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ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO Direção Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz Conselho Desembargador Federal Victor Luiz dos Santos Laus Desembargador Federal Joel Ilan Paciornik Coordenador Científico do Módulo de Direito Constitucional 2008 Juiz Federal João Pedro Gebran Neto Assessoria Isabel Cristina Lima Selau __________________________________________ CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL - 2008 Organização – Divisão de Ensino Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling Revisão – Divisão de Ensino Maria de Fátima de Goes Lanziotti Capa e Editoração – Divisão de Editoração e Artes Alberto Pietro Bigatti Erico da Silva Ferreira Ricardo Lisboa Pegorini Rodrigo Meine Apoio Seção de Reprografia e Encadernação Contatos: E-mail: [email protected] Assessoria: (51) 3213-3040 Divisão de Ensino: (51) 3213-3041, 3213-3045 Divisão de Editoração e Artes: (51) 3213-3046 www.trf4.jus.br (link Escola da Magistratura, Currículo Permanente) Caderno de Direito Constitucional - 2008 Jose Luis Bolzan de Morais _____________________________________________________________________________________________________ 2

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ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

Direção Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz Conselho Desembargador Federal Victor Luiz dos Santos Laus Desembargador Federal Joel Ilan Paciornik Coordenador Científico do Módulo de Direito Constitucional 2008 Juiz Federal João Pedro Gebran Neto Assessoria Isabel Cristina Lima Selau __________________________________________

CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL - 2008

Organização – Divisão de Ensino Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling Revisão – Divisão de Ensino Maria de Fátima de Goes Lanziotti Capa e Editoração – Divisão de Editoração e Artes Alberto Pietro Bigatti Erico da Silva Ferreira Ricardo Lisboa Pegorini Rodrigo Meine

Apoio Seção de Reprografia e Encadernação Contatos: E-mail: [email protected] Assessoria: (51) 3213-3040 Divisão de Ensino: (51) 3213-3041, 3213-3045 Divisão de Editoração e Artes: (51) 3213-3046 www.trf4.jus.br (link Escola da Magistratura, Currículo Permanente)

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Apresentação

O Currículo Permanente criado pela Escola da Magistratura do

Tribunal Regional Federal da 4ª Região - EMAGIS - é um curso realizado em

encontros mensais, voltado ao aperfeiçoamento dos juízes federais e juízes

federais substitutos da 4ª Região, que atende ao disposto na Emenda

Constitucional nº 45/2004. Tem por objetivo, entre outros, propiciar aos

magistrados, além de uma atualização nas matérias enfocadas, melhor

instrumentalidade para condução e solução das questões referentes aos casos

concretos de sua jurisdição.

O Caderno do Currículo Permanente é fruto de um trabalho conjunto

desta Escola e dos ministrantes do curso, a fim de subsidiar as aulas e atender às

necessidades dos participantes.

O material conta com o registro de notáveis contribuições, tais como

artigos, jurisprudência selecionada e estudos de ilustres doutrinadores brasileiros

e estrangeiros compilados pela EMAGIS e destina-se aos magistrados da 4ª

Região, bem como a pesquisadores e público interessado em geral.

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COMO CITAR ESTA OBRA: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. Estado Constitucional, Direitos Fundamentais: limites e possibilidades. Porto Alegre: TRF – 4ª Região, 2008 (Caderno de Direito Constitucional: módulo 5)

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ÍNDICE

Estado Constitucional, Direitos Fundamentais: limites e possibilidades Ministrante: Jose Luis Bolzan de Morais

Ficha Técnica................................................................................................................................ 02 Apresentação................................................................................................................................ 03 Notas inaugurais........................................................................................................................... 09 Texto1: O ESTADO E SEUS LIMITES: REFLEXÕES EM TORNO DOS 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 Autor: Jose Luis Bolzan de Morais e Angela Araujo da Silveira Espindola Considerações iniciais.................................................................................................................. 111 As circunstâncias de produção da Constituição de 1988.......................................................... 122 A CF/88 e o ocaso das certezas iluministas.............................................................................. 16

2.1. Aspectos da identidade constitucional brasileira pós-88................................................... 162.2 A obsolescência do constitucionalismo social.................................................................... 17

3 A crise estrutural do Estado e a responsabilidade pela realização de suas promessas........... 223.1 A sacralização da jurisdição constitucional........................................................................ 24

4 A tensão entre inclusão e exclusão social................................................................................. 304.1 A segregação econômica e os limites da política............................................................... 31

Conclusão..................................................................................................................................... 34Referências................................................................................................................................... 36 Texto 2: O ESTADO SOCIAL E SEUS LIMITES. Condições e possibilidades para a realização de um projeto constitucional includente Autor: Jose Luis Bolzan de Morais Premissas Inaugurais. O contorno do problema........................................................................... 39O objeto da discussão.................................................................................................................. 40O Estado Constitucional como Estado Social e seus dilemas...................................................... 41E o Brasil nisso tudo..................................................................................................................... 51Estado Democrático de Direito, Constituição e a realização do direito à saúde como exemplo.. 51Referências bibliográficas............................................................................................................. 58 Texto 3: DO ESTADO SOCIAL DAS “CARÊNCIAS” AO ESTADO SOCIAL DOS “RISCOS”. Ou: de como a questão ambiental especula por uma “nova cultura” jurídico-política Autor: Jose Luis Bolzan de Morais 1 O Direito e a nova cultura jurídica.............................................................................................. 642 O Estado Liberal: das carências sociais aos riscos ambientais............................................... 683 Concluindo................................................................................................................................ 72Referências bibliográficas............................................................................................................. 75

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Estado Constitucional, Direitos Fundamentais: limites e possibilidades

PROF. DR. JOSE LUIS BOLZAN DE MORAIS Mestre em Ciências Jurídicas – PUC/RJ

Doutor em Direito do Estado – UFSC/Univ. de Montpellier I Pós-Doutoramento em Direito Constitucional – Univ. de Coimbra

Professor e Coordenador do PPGD/UNISINOS Procurador do Estado do Rio Grande do Sul

e-mail: [email protected] tel: (51)92493285

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NOTAS INAUGURAIS

O material – publicado em livros ou revistas, no Brasil, em Portugal, na Espanha e

na Itália – que segue, tem por objetivo consolidar um conjunto de reflexões desenvolvidas

pelo autor.

A pretensão que está presente no mesmo diz apenas com a apresentação aos

alunos de algumas idéias que tema marcado o debate contemporâneo em torno das

circunstâncias que afetam o projeto político-jurídico moderno, em particular no que diz

com a idéia de Estado e sua expressão como Estado Constitucional, em seus diversos

matizes.

Com isso, na esteira do Prof. Gomes Canotilho, tem-se presente que o Estado vem

sempre adjetivado, sendo necessário construir-se uma doutrina jurídica que considere as

relações entre Estado e Constituição em seus vínculos estreitos. Por isso a tomada de

posição acerca da imprescindibilidade de formatar-se uma Teoria do/para o Estado

Constitucional, partindo-se do pressuposto de não ser possível buscar-se um

conhecimento adequado sobre o tema, considerando-os em perspectiva única e

exclusivamente disciplinar.

De outro lado, tenha-se presente que a intenção é a mesma de Saramago, em O

Direito e os Sinos: ser apenas um desassossegador, navegando em águas rasas, mas, ao

mesmo tempo, um provocador, intentando, como sugere Aganbem, profanar ou

dessacralizar, trazendo de volta ao convívio humano os ícones político-jurídicos modernos

– Estado e Constituição.

Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais

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O ESTADO E SEUS LIMITES: REFLEXÕES EM TORNO DOS 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

Jose Luis Bolzan de Morais∗ Angela Araujo da Silveira Espindola∗∗

“Profanar o improfanável é a missão

política da próxima geração” Georgio Agamben

Considerações iniciais

Passadas duas décadas desde a promulgação da Carta Constitucional brasileira

na esteira do processo de redemocratização do País, depois de mais de 20 anos de

autoritarismo inaugurado pelo Golpe de 1964, é preciso que façamos um esforço para

tentar compreender o que se passou, aquilo que ficou na retórica, bem como o que foi

resultado desta nova era constitucional, tudo pautado pelas condições e circunstâncias

que marcaram a produção desta mesma Constituição, além dos limites postos e impostos

diante das transformações percebidas nas últimas décadas do século passado e nesta

quase década que se cumpre deste novo milênio.

Assim inaugurado, este texto, como reflexão livre, não pretende ficar amarrado aos

modelos tradicionais da metodologia científica. Ao contrário, visa “desassossegar” o

pensamento para recompor o quadro circunstancial das instituições político-jurídicas

modernas e suas condições e possibilidades para pôr em prática muitas de suas

promessas ainda não cumpridas.

Assim, na linha de Giorgio Agamben, consideramos ser necessário promover uma

leitura que profane aquilo que sacralizou, de certa forma, as instituições políticas

modernas, trazendo-as de volta à vida para um uso livre pela humanidade, como uma

recuperação da magia do pensar e do agir1. Para Agamben, essa sacralização da vida

∗ Professor e Coordenador do PPGD/UNISINOS. Doutor em Direito do Estado. Pós-doutorado pela Universidade de Coimbra. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Membro Conselheiro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – IHJ. ∗∗ Professora do curso de Direito da UNISINOS e da FADISMA. Doutora em Direito pela UNISINOS. Advogada. 1 Ver: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. Para este autor, puro, profano, livre dos nomes sagrados, é o que é restituído ao uso comum dos homens... Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso (Ibidem, p. 67-68).

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deriva, de fato, do sacrifício2. O sacrifício (rito) é o que marca a passagem do profano ao

sagrado. Trata-se de uma forma de poder e de dominação, pois aquilo que é consagrado

aos deuses é retirado do uso comum! Portanto, a sacralização faz abandonar a vida nua

natural à própria violência e à própria indizibilidade, fundando nestas toda a

regulamentação cultural e toda a linguagem3. A sacralização é para os deuses e a

profanações são dos homens, do que é humano. Profanar, então, é devolver ao uso

comum. Ora, a Constituição é um ato de poder e como tal, a partir de sua promulgação

tornou-se sagrada. Passados 20 anos de sua consagração é preciso profaná-la, ou seja,

restituí-la ao homem.

Com tais premissas postas, parece possível começar a reflexão em torno ao tema

que emerge das questões que se apresentam quando se pretende fazer um balanço do

tempo passado, assim como a prospecção do tempo futuro. Com isto, pretende-se retirar

a Constituição de seu local sagrado e trazê-la para perto do homem e sua circunstância

histórica, profanando-a, nos termos referidos por Agamben.

1 As circunstâncias de produção da Constituição de 1988

Todo período histórico abriga, no seu interior, forças que o contestam. Foi no

contexto de repúdio às tendências absolutistas que os ideais liberais brotaram e

encontraram como aliados o iluminismo, o individualismo bem como o pensamento

contratualista das escolas jusracionalistas.

O liberalismo surge, então, como a melhor resposta contra o absolutismo (do

soberano). A autonomia da vontade recebe destaque bastante especial, expressando a

limitação da autoridade por meio do dogma (e sacralização) da especialização de funções

e do princípio da legalidade. Elege-se um novo soberano para o Estado Moderno: a

assembléia parlamentar (representante popular e lugar de produção da lei). O primeiro

palco dessas modificações foi a França: a assembléia parlamentar francesa substituiu o

rei na tarefa de legislar. O absolutismo do rei – um absolutismo institucionalizado – foi

decapitado, mas o absolutismo da assembléia parlamentar francesa – um absolutismo

velado – ensaiava seus primeiros passos4. Atribuiu-se à lei – em seu sentido formal – a

responsabilidade de renovar/reinventar o sistema jurídico da época.

2 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 143. 3 Ibidem, p. 143. 4 Ver: ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos e justicia. 3. ed. Madrid: Editorial Trotta, 1999; ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia y constitución. Madrid: Trotta, 2005.

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Deu-se, assim, a primeira revolução do Estado de Direito: era a onipotência do

legislador5. O poder legislativo enquanto protagonista do Estado. Erigia-se, nesse caldo, o

princípio da legalidade formal como critério de identificação do direito.

Estavam semeados os valores de um Estado Liberal, calcado na liberdade

individual, na igualdade formal, na não-intervenção estatal, na especialização de funções,

fortemente influenciado pelo iluminismo e marcado pelo positivismo jurídico, resultando no

princípio (formal) da legalidade e na conseqüente subordinação do executivo e judiciário

ao legislativo, ou seja, na supremacia da lei e simplificação das atribuições e poderes do

judiciário. A supremacia da lei, portanto, reflete a transformação do papel do Estado

(Soberano) na sociedade, bem como o papel do Direito/Lei enquanto meio de regulação

estatal. A influência que este cenário exerce sob a concepção de direito e jurisdição é

flagrante.

Foi neste caldo que emergiu a primeira fase do constitucionalismo brasileiro (1824),

com forte influência francesa e inglesa. Esta fase deu-se sob as bases de um Estado

centralizador e de uma formação quadripartida do poder, em que o imperador, com as

vestes de um poder moderador, consagrava-se em cerne absolutista e representava a

sobrevida do absolutismo monárquico. É apenas com o advento da República e da

primeira Constituição republicana de 1891 que se inaugura a teoria constitucional

brasileira, sob a influência do modelo norte-americano, com a adoção do federalismo e do

presidencialismo.

Desde então, entre avanços e retrocessos, sístoles e diástoles, passando pela

obscuridade dos intermináveis anos de regime ditatorial, a história do constitucionalismo

brasileiro foi-se desenhando e já completa mais de um século.

No cenário da história jurídico-política do Brasil, as décadas de 70 e 80

desempenharam importante papel no constitucionalismo pátrio abrindo o processo de

(re)democratização do país, depois de um histórico de autoritarismos apenas renovado

pelo Golpe militar de 1964, que instaurou um novo período de exceção.

Os movimentos da sociedade civil, os movimentos sindicais e sociais, os

movimentos estudantis, o surgimento de novos partidos políticos, o grito pelas “diretas já”,

o forte desejo por uma Assembléia Nacional Constituinte, por uma nova arquitetura

constitucional, por uma nova liderança presidencial e por políticas públicas orientou-se

5 A expressão primeira revolução é aqui empregada no sentido utilizado por Luigi Ferrajoli. Ver: FERRAJOLI, Luigi. “Pasado y futuro del Estado de derecho”. In: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003; também publicado em Revista Internacional de Filosofía Política, n. 17, Madrid, 2001, p. 31-46.

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pela proposta de uma demanda crescente pela (re)democratização. O ápice deste

processo se dará em meados da década de 80, quando o Colégio Eleitoral elege

Tancredo Neves para a Presidência da República – primeiro presidente civil desde o

Golpe de 1964.

A "Nova República", no entanto, resultou de um pacto “secreto” entre os dirigentes

da "Aliança Democrática" com as cúpulas militares – do novo com o “ancien” regime. O

apoio a Tancredo Neves foi dado sob a condição de não ser abalada a estabilidade dos

organismos essenciais do poder de Estado. Havia, assim, uma harmonia (política)

preestabelecida e conveniente. Uma forma de usar as regras do jogo para desmantelar o

próprio jogo (regime militar), sem confrontarem-se os jogadores.

Às vésperas da posse, Tancredo, com problemas de saúde, é internado em

hospital de Brasília e quem assume a Presidência da República é o vice, José Sarney.

Com a morte de Tancredo Neves, em 21 de abril de 1985, Sarney é efetivado no cargo –

sob dúvidas constitucionais – e alguns meses depois encaminha ao Congresso Nacional

proposta de emenda constitucional (EC 26, de 27.11.85) convocando uma Assembléia

Nacional Constituinte, “eleita” em 15.11.86, para elaborar uma nova Constituição para o

Brasil.

À época não houve a eleição de uma constituinte exclusiva – como pretendiam os

movimentos sociais capitaneados pela Ordem dos Advogados do Brasil, dentre outras

entidades –, a dissolver-se após a conclusão da tarefa, mas sim a delegação de poderes

ao Congresso Nacional – então eleito, sem que houvesse, no processo eleitoral,

discussões efetivas quanto ao Estado que se pretendia constituir – que passou a usar –

temporariamente – a “máscara” de Poder Constituinte, conservando os Senadores

“biônicos” e as tarefas de elaboração da nova Constituição. De fato, tratava-se de uma

convocação dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para se

reunirem unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte a partir de 01.02.1987.

Portanto, uma Assembléia Constituinte não exclusiva, com apenas dois terços do Senado

renovados e um terço não eleito.

A Assembléia Nacional Constituinte foi presidida pelo Deputado Ulisses

Guimarães. À semelhança da Constituição de 46, os seus trabalhos se desenvolveram

sem a apresentação de um projeto prévio. Várias propostas foram apresentadas,

incontáveis emendas ao texto destes projetos foram sugeridas.

Uma das marcas desta Assembléia foi a sua divisão em grupos, dentre eles o

grupo majoritário – o Centro Democrático (Centrão) – apoiado pelo poder executivo, com

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perfil conservador e que teve significativa influência no resultado das votações, a exemplo

da duração do mandato de Sarney (cinco anos) e do papel das Forças armadas.

Os trabalhos perduraram por um ano e meio, até que em 5.11.88 deu-se a

aprovação da nova Constituição do Brasil – a “Constituição Cidadã” – produto de um

processo constituinte “não exclusivo”, sem um debate popular em torno dos grandes

temas que deveriam fazer parte do processo constituinte, “aparentemente” dominada por

forças conservadoras que pautavam alguns de seus aspectos centrais, cujo resultado –

Constituição de 1988 – não teve sua dimensão apreendida/percebida à época pelos

“ditos” progressistas e, até mesmo, por significativa parcela da inteligentsia nacional,

sobretudo dos operadores do Direito.

Há que se reconhecer, neste sentido, que houve, ainda, um descompasso entre a

“nova” Constituição e a doutrina jurídica pátria, “órfã” de um conhecimento adequado para

lidar com o texto de uma Carta Política dirigente e compromissória.

Se de um lado podemos ver um sofisticado texto jurídico-político, fruto de tensões

políticas e ideológicas de uma determinada época e contexto, reflexo do

constitucionalismo dirigente, compromissário e social, com a pretensão de atender as

promessas da modernidade em terrae brasilis; de outro, é preciso reconhecer as

condições e as possibilidades para a construção e o exercício de um poder político

democrático no âmbito do Estado brasileiro – marcado por autoritarismos, como já dito – e

de suas vicissitudes contemporâneas6.

Para a construção de um Estado Constitucional, não lhe basta seu texto

constitucional, não lhe é suficiente o reconhecimento político-social de direitos e

garantias, há que se dar eficácia jurídica e efetividade prática aos direitos já reconhecidos.

Daí a importância de questionar o Estado e seus limites no contexto pós-88, diante da

defasagem que se percebe entre o projeto constitucional, plasmado no texto da Carta

brasileira, e o produto da realidade histórica nacional nas duas últimas décadas, apesar

de tudo o que se fez no período em termos de produção de políticas públicas e de

intervenção jurisdicional. Questionar seus limites exige, antes, profaná-la, retirá-la do local

sagrado e permitir-lhe o toque humano, reconhecendo-a como resultado não só de um

específico momento histórico, mas em constante construção.

6 Ver: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Democracia e representação política ou como escolher dentre “escolhas já escolhidas”? In: COPETTI NETO, Alfredo; GUBERT, Roberta Magalhães; TRINDADE, André Karam. Direito e literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 209-226.

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2 A CF/88 e o ocaso das certezas iluministas

Para que se tenha êxito na transição do sagrado ao profano é preciso o sacrifício,

como dito. O ritual que sacralizou a Constituição e o Estado merece ser revisado e jogado

no atual contexto histórico. A Constituição emerge a partir de um determinado perfil

estatal e em uma determinada expectativa histórica. Hoje, em outro cenário, ela precisa

ser “tocada” pelo homem, daí a necessidade de examinar os aspectos da identidade

constitucional brasileira pós-88 e, em seguida, a obsolescência do constitucionalismo

social.

2.1. Aspectos da identidade constitucional brasileira pós-88

Para que se compreendam as circunstâncias do Estado Constitucional brasileiro

pós-88 não se pode deixar de lado as circunstâncias nas quais foram postos à prova os

conteúdos trazidos pelo novo constitucionalismo adotado no Brasil, em particular pela

incorporação do protótipo do Estado Democrático de Direito, presente no art. 1º da CF/88,

bem como pela identificação desta com a tradição do nomeado constitucionalismo

dirigente do Segundo pós-Guerra.

A identidade do constitucionalismo brasileiro pós-88 pode ser percebida a partir da

leitura de seu texto, marcadamente pelo conjunto de seus princípios, por sua carta de

direitos fundamentais, pela fórmula do Estado (Democrático de Direito) com a

centralidade assumida por sua finalidade transformadora das circunstâncias históricas de

exclusão e desigualdade social que caracterizam a história brasileira seja durante o

período monárquico, seja na fase republicana.

Assim, tem-se que, desde o Preâmbulo, o caráter do “novo” Estado Constitucional

brasileiro vem identificado com a edificação de um Estado alicerçado em fórmulas de

democracia formal – mecanismos de constituição do poder, da tomada de decisões e da

participação popular etc (art. 1º e Parágrafo Único) –, bem como de democracia

substancial, pautado pelo princípio base da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III)

como “filtro” de toda a organização e ação estatal, esta sempre teleologicamente

orientada pelos objetivos fundamentais da república (art. 3º) – aliás, o princípio

republicano, ele também, vincula a forma e conteúdo da atividade do poder público –, os

quais se identificam com a substancialidade do Estado Democrático de Direito, ao mesmo

tempo em que apontam para o seu caráter de “transição” “da” e “na” sociedade.

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Não é por outro motivo que, nos termos do art. 4º, o texto de 88 assume os direitos

humanos como matéria que resume nossa opção constitucional, o que vem, de alguma

forma, refletido nos demais incisos desta mesma norma constitucional.

Nestes termos é que o catálogo de direitos fundamentais incluídos pelo constituinte

no Título II da Carta, para além de sua extensão explícita contemplou, no § 2º do art. 5º,

uma verdadeira cláusula constitucional aberta, promovendo a integração do direito

constitucional com o direito internacional dos direitos humanos, o que vem sendo objeto

de discussão pela doutrina e jurisprudência pátrios, merecendo notícia o julgamento do

HC 87.585-8 que incorpora, por nosso órgão superior para o controle de

constitucionalidade, tal debate, no sentido de reconhecer a recepção constitucional de tais

conteúdos.

E é por isso que sentimos o tensionamento entre este projeto civilizatório e suas

próprias condições de exercício e realização. Trata-se de transição do sagrado para o

profano, resultado do toque humano.

2.2 A obsolescência do constitucionalismo social

Colocar em pauta os dilemas do Estado Social no contexto atual implica, em

síntese, interrogar o Estado Constitucional e seus dilemas.

Porém, para situar o leitor, em primeiro lugar, é preciso identificar o objeto sobre o

qual estamos falando – o Estado Constitucional: (1) o que é? e (2) o que comporta? Além

disso, uma pequena revisão histórico-constitucional é importante, para situar as

circunstâncias nas quais navegamos. O que é o Estado Constitucional pode ser respondido, breve e sucintamente – para

os limites desta reflexão e até mesmo por ser este um tema reiterado na doutrina

publicística – , como sendo o produto de um projeto político-histórico marcado pela

tradição liberal e alicerçado em uma estrutura de poder político identificado por uma

ordem jurídica que o organiza, adotando a estratégia da especialização de funções, o

princípio da legalidade da ação estatal, dentre outras, e assegura um conjunto de

liberdades expressas pelo reconhecimento jurídico-legislativo dos direitos humanos,

traduzidos como direitos fundamentais7.

7 Ver: MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad: historia del constitucionalismo moderno. Madrid: Trotta. 1998. Ver, ainda: HABERLE, Peter. Diritto costituzionale nazionale, unioni regionali fra stati e diritto internazionale come diritto universale dell’umanità: convergenze e divergenze. Texto em versão italiana por J. Luther, de conferência proferida na Cidade do México e Bologna, em abril de 2004. Mimeo; VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría de la constitución como ciencia cultural. 2. ed. Madrid: Editorial Dykinson, 1998. No que diz respeito aos conceitos

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Assim, o Estado Constitucional incorpora uma tradição jurídico-política que formata

o poder político sob a lógica de um poder limitado e controlado e, além disso, reconhece

os direitos humanos como conteúdos fundamentais que direcionam o poder, voltado à sua

consecução como finalidade da ação estatal; e, como tal, é um produto da história, por

isso, dinâmico, bastando perceber a passagem – no âmbito do liberalismo – do Estado

Mínimo ao Estado Social; dos direitos de liberdade aos direitos de solidariedade, etc.

Pode-se dizer, assim, que o Estado Constitucional do Século XIX não é o mesmo

do Século XX. Aquele tinha como substância a construção de um Estado absenteísta –

mesmo que sempre se tenha algum nível de atuação estatal –, marcado por um conjunto

de limitações/proteções asseguradoras das práticas individuais e da auto-regulação

mercadológica. Este último vai se identificar com a formatação do Estado Social em seus

vários desenhos. Tudo isto, como já dito, fruto dos receios em face do, então, passado

recente – absolutismo – e do projeto futuro da nova classe social hegemônica – a

burguesia revolucionária – e, por isso mesmo, o requisito da especialização de funções

bem como do asseguramento dos direitos humanos como anteparos à atuação estatal, os

direitos de liberdade, constituindo-se como um Estado cuja aparente neutralidade

asseguraria o desenvolvimento das potencialidades de indivíduos livres e iguais

(formalmente). Esta é a fase do Constitucionalismo Liberal.

Já no Século XX, com origens ainda no transcurso do Século XIX, observa-se este

mesmo Estado Liberal transmutar-se substancialmente, assumindo o feitio de Estado

Social, conceito aqui utilizado em sua acepção genérica, suportado em um novo

Constitucionalismo – agora Social –, este identificado histórica e privilegiadamente com as

Constituições mexicana de 1917 e de Weimar de 1919 – apresentadas, de regra, como

marcos históricos -, vindo em resposta ao novo tratamento da chamada questão social, a

qual deixa de ser um caso de polícia para tornar-se um caso de políticas públicas

(sociais), com o objetivo de enfrentamento dos dilemas da escassez8, sobretudo no que

se refere às carências.

O constitucionalismo social traz consigo o reconhecimento constitucional desta

questão social que advém das transformações operadas pelas revoluções industriais, pelo terminológicos das palavras e expressões que se referem à tutela de direitos do homem não há consenso tanto na doutrina, como no direito positivo (Constitucional e Internacional). São utilizadas diversas nomenclaturas como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, direitos individuais, liberdades fundamentais, direitos humanos fundamentais, direito humanitário, dentre outras. Neste sentido, ver: SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 8 Tal situação se repete, com as suas peculiaridades, com o surgimento e reconhecimento da novíssima questão ambiental que opera não mais com a escassez, mas, agora, com o risco, algo não localizado e diferenciado como a tradicional questão social.

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novo modelo de produção (fabril) e pela emergência de uma nova categoria social – o

proletariado ou as classes operárias. Esta questão social vem apresentada

constitucionalmente sob os inéditos direitos sociais l.s. – de igualdade ou direitos

econômicos, sociais e culturais (DESCs) – que em tudo diferem dos primeiros, em

particular por exigirem uma maior e mais qualificada intervenção estatal, com a

elaboração e implementação de políticas públicas prestacionais para a sua satisfação, o

que faz desviar o foco das atenções da esfera legislativa do Estado para o ambiente da

atividade executiva. Não basta, a partir de então, apenas legislar, é necessário assegurar

a usufruição dos direitos constitucionalizados por intermédio de políticas públicas

implementadoras dos conteúdos reconhecidos pelo legislador, com a adoção de práticas

administrativas implementadoras.

Com isso não só a forma do Direito se modifica – tanto que se identifica uma

transição das proibições para as prestações, das punições para os prêmios9, das regras

para os princípios10 –, mas o seu próprio conteúdo e estratégias de concretização.

Hoje, não mais se fala na dicotomia “direitos negativos (de abstenção) e direitos

positivos (de prestação)”. Há uma imbricação inevitável entre ambos. Não se tem

assegurada a liberdade de manifestação sem o acesso ao conhecimento,

exemplificativamente. Não se é livre passando fome. E é nesta perspectiva que emergem

os problemas de efetivação dos direitos à – educação, saúde, moradia etc11.

Em um primeiro momento surge o dilema de não se saber o que fazer com eles

diante do ineditismo do constitucionalismo social – carga eficacial das normas, caráter

programático das mesmas etc –, posteriormente – e ainda, mais, hoje - se questiona

como implementá-los, por não se ter capacidade para satisfazê-los todos e em toda a sua

extensão.

9 Sobre o tema, ver: BOBBIO, Norberto. Dalla strutura alla funzione. Milano: Edizioni di Comunità, 1978. 10 A discussão que gira em torno dos princípios constitucionais e do processo de ressignificação que sofreram no decorrer da história não é objeto do presente texto. Sobre o tema, consultar: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006; DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 11 No que tange a emergência destes direitos à são paradigmáticas as discussões em torno das “ações afirmativas”, dentre elas podemos citar a recente decisão do Ministro do STF, Carlos Ayres Brito, sobre a constitucionalidade do ProUni (Programa Universidade para Todos). Em seu voto, o Ministro afirma que é pelo combate a situações de desigualdade que se concretiza a igualdade, devendo a lei assumir-se como instrumento de reequilíbiro social. Para Ayres Brito, “o típico da lei é fazer distinções, diferenciações, desigualações para contrabater renitentes desigualações”. Este é um dos múltiplos casos, em que se percebe a emergência de direitos que carecem de um Estado não só preocupado com a resolução de conflitos, mas, sobretudo, com a concretização de valores constitucionais. Direitos que carecem um Estado ativo e não só reativo. O voto do ministro foi proferido em 02/04/2008 e, nesta data, o julgamento foi suspenso em razão de pedido de vista do Ministro Joaquim Barbosa. (Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.330-1 – Distrito Federal).

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Tudo isso acaba gerando não apenas (1) dúvidas, mas, acima de tudo, uma (2)

conflituosidade que exige novas formas de tratamento, com a presença de (3) novos

atores, em um (4) contexto de profunda insuficiência de recursos e diante de uma (5)

reviravolta nas fórmulas político-econômicas contemporâneas. Assim, entre outras

conseqüências, ocorre uma nova transição funcional no Estado – antes do legislativo ao

executivo – agora, como muitos percebem, em direção à Jurisdição, em razão da (1)

democratização no acesso, por um lado, e, para o que aqui interessa, a (2) insatisfação

quanto à realização das promessas constitucionais.

Ora, o Estado Social passou por significativas transformações ao longo do tempo,

podendo-se dividir esta história em duas grandes fases. Uma que vai de seu surgimento

até sua consolidação e as primeiras décadas gloriosas. Outra que emerge, no início dos

anos 1970, com o esgotamento de suas estratégias ante o início da crise da matriz

energética, o desenvolvimento tecnológico e a transformação da economia capitalista,

sem falar, aqui, da transição da tradicional questão social para a novíssima questão

ambiental e seus consectários12 - das carências locais para os riscos globalizados.

A primeira fase foi marcada por sua instalação, aprofundamento de mecanismos de

intervenção e alargamento de seus conteúdos. Na segunda, quando seus sucessos já

não são tão marcantes ou, até mesmo, lhe trazem dificuldades, é que se vê o projeto do

Estado Social envolto em tensões que fazem transitar – para o que aqui importa - o

debate acerca da sua realização do âmbito executivo – da política – para o jurisdicional –

da judicialização -, pondo em evidência os limites e dificuldades que tal desvio de rota

acarreta, pois, para a doutrina jurídica, o Constitucionalismo Social mantém, até hoje,

problemas, como por exemplo, o que respeita ao caráter eficacial das normas

constitucionais a partir de uma estrutura classificatória das normas que desprivilegia o

papel dos “programas” sociais e a substancialidade das próprias Constituições sem falar

das dificuldades de atribuição de sentido às mesmas normas jurídicas13, dentre outros

aspectos aqui não ditos.

O que se verifica é que o constitucionalismo social revelou a obsolescência

precoce de uma doutrina constitucional recém edificada no âmbito do constitucionalismo

12 Ver: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Do estado social das “carências” ao estado social dos “riscos”. Ou: de como a questão ambiental especula por uma “nova cultura” jurídico-política. In: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e STRECK, Lenio Luiz (orgs) In: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito. Mestrado e Doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 13 Apenas para referir este debate, ver: STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto. In: Revista Seqüência, n. 54. Florianópolis: Fundação Boiteux, p.29-46.

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moderno, mas voltada ao liberalismo clássico e seu modelo de regulação – em um

período de pouco mais de um século (finais do XVIII e início do XX). Assim, desde a

origem este novo constitucionalismo trouxe problemas para os juristas, politólogos,

gestores públicos, etc.14, apesar dos avanços obtidos sobretudo no segundo pós-guerra.

Este é um outro debate, mas serve para lembrar que tal fragilidade doutrinária vai

aparecer na experiência brasileira pós-88, apenas para se ter uma idéia da dimensão do

déficit e das dificuldades para fazer-se concreta uma constituição dirigente como a

brasileira, ainda mais em um contexto de profunda transformação em sentido regressivo –

lembre-se das propostas neoliberais, dos planos de reforma do Estado, das sugestões de

flexibilização dos direitos e garantais sociais etc. – do Estado Social15.

O Estado Constitucional Social ganhou contornos mais definitivos no pós-Segunda

Guerra Mundial, como tentativa de enfrentamento das barbáries experimentadas no

período. Emerge daí um “neo”constitucionalismo que, além de reforçar e transformar sua

substância e materialidade, constrói novos sistemas de se fazer efetivo. Acrescenta-se ao

conteúdo social instrumentos processuais que visam dar conta dos conflitos advindos da

não realização dos mesmos, já supondo, como inerentes às fórmulas jurídicas e à

normatividade estatal moderna, a sua irrealização.

Estabelecem-se os novos direitos ladeados por novos instrumentos processuais –

como no caso brasileiro com: Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão,

Mandado de Injunção, Ação Civil Pública, Ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental -, novos atores – partes públicas (Ministério Público, Defensorias Públicas),

partes coletivas (associações, sindicatos, grupos de interesses) - e, sobretudo, por um

reforço/valorização dos sistemas de controle de constitucionalidade, com particular

atenção à Jurisdição Constitucional, com uma democratização permanente do acesso à

jurisdição, muitas vezes descurando de um seu pressuposto o acesso ao direito, inclusive

em tal nível jurisdicional – ampliação da legitimação ativa – além de uma sobrevalorização

do debate constitucional no controle difuso e nas disputas judiciais correntes.

14 Para verificar a questão do controle efetuado pelos Tribunais alemães na realização dos direitos sociais, consultar: KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002. 15 Como refere Martonio M. Barreto Lima, a “agonia, o sono ou a morte da constituição dirigente significa, portanto, o retorno de uma situação que já se conhece: à pré-modernidade, isto é aquele período onde a economia política desconsiderava os aspectos externos do movimento econômico, sem inimigos, nem mesmo no âmbito do discursivo, resguardando para si e para seus sistemas jurídicos a ação de pequenos grupos, obrigando as sociedades modernas à volta de situações que não permitem democracia e participação, tampouco realizam o objetivo destas: igualdade entre os homens perante a lei. Ver: BARRETO LIMA, Martônio Mont’Alverne. Constituição e economia: como construir o mito da estabilidade democrática no capitalismo periférico. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e STRECK, Lenio Luiz (Orgs). Estudos constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.291.

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Assim, está desenhado o Estado Social no pós-Guerra, com a supervalorização do

constitucionalismo, marcado sob o modelo do neoconstitucionalismo, na crença profunda

de que com isso poderia construir uma sociedade justa e solidária, com a erradicação da

pobreza e marcada pela idéia da função social16.

Porém, este Estado Social Constitucional se vê confrontado com seus próprios

limites e com as transformações para as quais não se havia precavido, se é que se

poderia estar ou se é que adiantaria estar... em razão de suas próprias idiossincrasias.

A experiência brasileira vivida no pós-88 retrata este quadro e evidencia a

constatação de que somente as previsões contidas na Constituição não têm a capacidade

de, por si mesma, solucionar os problemas sociais, transformando magicamente o mundo

da vida e os séculos de exclusão social, como sustenta Gilberto Bercovici17. Há um vácuo

profundo, ou um vazio imenso, entre ter Constituição e estar em Constituição, como refere

Pablo Verdú: estar em Constituição é concretizá-la.18

Com isso posto, sustenta-se a exigência de se partir para uma Teoria do/para o

Estado Constitucional e não de uma Teoria do Estado e de uma – outra – Teoria da

Constituição que, muitas vezes, não conversam entre si. Ou seja, não há como se

entender a relação Estado-Constituição – direitos fundamentais sem a inserção no

contexto do Estado Contemporâneo que, mesmo diferido constitucionalmente como

Estado Democrático de Direito – outra herança do neoconstitucionalismo – se vê

confrontado com uma religião de crítica ao Estado Social, como diz Canotilho,

independentemente do modelo e da extensão que este tenha assumido, uma vez que o

Estado Social é um projeto diferenciado geográfica e historicamente.19

3 A crise estrutural do Estado e a responsabilidade pela realização de suas promessas

Com a – quase – implosão do modelo de Estado Social, em particular a partir das

circunstâncias novas que afetam a sua capacidade de suportar os custos dos direitos, em 16 Tudo isto está muito presente na Constituição brasileira do pós-autoritarismo, que possui uma identidade baseada nas experiências européias da segunda metade do século passado. Vide CFB/88, arts. 1º a 4º, para mencionarmos apenas os fundamentos da República. 17 BERCOVICI, Gilberto. Dilemas da Concretização da Constituição de 1988. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 1, n. 2, Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2004, p. 101-120. 18 VERDÚ, Pablo Lucas. La constituición em la encrucijada: palingenesia iuris politici. Madrid: Real academia de ciências morales y políticas, 1994, .p.41-45. VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría de la constitución como ciencia cultural. 2. ed. Madrid: Editorial Dykinson, 1998, p.43-45. 19 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A Governance do terceiro capitalismo e a Constituição Social. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lenio Luiz (coords). Entre discursos e culturas jurídicas. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 145-154.

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particular pelo crescimento dos custos, inclusive decorrentes de seus próprios sucessos,

da mesma forma que pela redução de sua capacidade arrecadatória diante dos novos

modelos econômicos, o que se vivencia é um grande descompasso entre as promessas

constitucionais, a democratização no acesso aos meios de demanda social e os meios

para sua realização.

Tal se dá em meio a um debate entre aqueles que buscam a sua realização e

aprofundamento e outros tantos que pleiteiam a revisão dos papéis do Estado Social,

genericamente falando.

Isto acaba gerando um profundo descrédito do próprio constitucionalismo, do

Estado Constitucional e dos elementos que lhe são peculiares.

Por outro lado, merece atenção o fato de que, diante do incumprimento das suas

promessas, o Estado – como poder público – se vê confrontado ante seus próprios

instrumentos de funcionamento. Não é a toa que, com a democratização do acesso ao

conhecimento dos direitos, com a democratização do próprio Estado, há um aumento

significativo de demandas apresentadas ao mesmo Estado para que este ponha em

prática os conteúdos que foram conformados pela e na Constituição do País.

Tal circunstância é facilmente reconhecida na histórica constitucional brasileira

pós-88. Nela percebe-se claramente a emergência de um descompasso entre o que

vimos nomeando como “promessas constitucionais (incumpridas)” e as condições infra-

estruturais para a sua realização, bem como a precariedade de uma doutrina

constitucional apta a dar conta deste “novo” constitucionalismo e das próprias

circunstâncias que afetam os modelos político-institucionais da modernidade.

Ao lado disso, a democratização no acesso ao direito e à justiça, inclusive ante os

novos instrumentos jurídico-processuais e, além disso, dos próprios serviços postos à

disposição da população pelo próprio Estado – como é o caso da Defensoria Pública (art.

134 da CF/88) – tem viabilizado que o conflito que emerge deste descompasso –

promessa vs. irrealização – deságüe na função jurisdicional do Estado, a qual,

acompanhando tendência contemporânea, tem assumido a centralidade no debate e

condução da política estatal.

Ou seja: no contexto de um constitucionalismo dirigente em um ambiente de crise

estrutural do Estado, é na função jurisdicional que se estabelece a disputa pela realização

e definição do projeto constitucional expresso no texto da Carta Política.

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3.1 A sacralização da jurisdição constitucional

E é apenas neste contexto que ganha sentido discutir a judicialização da política

como uma conseqüência inescapável a um Estado que se apresenta como de bem-estar,

mas que se executa como de mal-estar – não apenas o mal-estar da civilização de que

falava Sigmund Freud, mas de um mal-estar na civilização (no projeto civilizatório

moderno) como tem sido reiterado no período pós-88 no Brasil.

Ora, se os sucessos do Estado Social fossem incontestáveis e não contrastáveis

não se enfrentaria o dilema de sua realização nos termos postos pelo constitucionalismo

contemporâneo. Se das garantias constitucionais – ou das promessas constitucionais –

emergisse a satisfação inexorável das pretensões sociais este debate não se colocaria e

tudo se resolveria por políticas públicas prestacionais e pela satisfação profunda dos seus

destinatários. Não haveria dificuldades em se atender e atingir ótimos padrões e todas as

expectativas relativas à satisfação das necessidades sociais da população.

Com isso, a conflituosidade que se enfrenta não estaria posta perante os Tribunais,

posto que ausente das preocupações sociais em uma sociedade ótima. Porém, por

desgraça ou por humanidade (?), não se vive neste mundo ideal – não se confunda com

idealizado (!) – e é exatamente do tensionamento entre projeto político-constitucional e

projeto político-econômico que subjaz a fórmula do Estado contemporâneo. Democracia

como política e capitalismo como economia não formam um par perfeito. Pelo contrário,

são gêmeos da tradição liberal que trilham caminhos distintos.

Neste ambiente emerge um confronto de interesses que deságua na Jurisdição

que se torna, assim, o grande ambiente de disputa e definição política na atualidade,

embora sem ultrapassar seus próprios limites no sentido de fazer valer para todos os

compromissos constitucionais. Em um ambiente de mais acesso vive-se um contexto de

maior exclusão ou de crescente negação de promessas.

Com isso, se solidifica a idéia de que não se pode pretender construir uma teoria

constitucional no contexto contemporâneo sem que se tenha presente os limites e

possibilidades de e para o próprio Estado Constitucional, envolto que está na

transformação de suas fórmulas políticas, bem como sujeito – muitas vezes incapaz –

diante das mudanças radicais dos modelos econômicos adotados pela economia

capitalista, da qual não logrou desassujeitar-se.

Neste contexto, a disputa pela efetivação dos direitos sociais pelo Poder Judiciário

passa a ser uma das marcas da contemporaneidade. Experimenta-se, assim, um

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rearranjo organizacional na forma estatal da modernidade, fruto das próprias dificuldades

do Estado Social e se percebe um embate do Estado com ele mesmo, da construção

legislativa de promessas à disputa por sua concretização, em um primeiro momento no

âmbito da administração (Executivo) envolta, hoje, em projetos de reforma do Estado e,

posteriormente, diante da insatisfação na sua (ir)realização, nos limites da jurisdição, em

busca das promessas perdidas, submetida, agora, à exaustão de suas fórmulas20.

E, deste quadro surgem e se renovam questionamentos, que vão das clássicas

interrogações acerca da eficácia das normas de direitos sociais, visto sob novos ângulos,

até as dúvidas acerca da legitimação da jurisdição (constitucional) para intervir nas

opções políticas, sejam legislativas, sejam das práticas administrativas.

Ou seja, o debate entre função de governo e função de garantia, remodelando a

clássica tripartição de funções, passando, ainda, pelos limites que demarcariam a

extensão destes “direitos” constitucionais, em uma disputa entre o mínimo existencial e a

reserva do possível, margeado pelo fundamento da dignidade humana no contexto de um

Estado que, apesar de social, não rompeu com um modelo econômico cujo fundamento

não é, por óbvio, o da inclusão social21.

Na verdade, para além dos princípios a serem aplicados, é necessário se

compreender as circunstâncias do Estado Social como tal e seus corolários

contemporâneos para, assim, se discutir os vínculos do tema que envolve a realização

20 Este embate do Estado com ele mesmo, a tensão entre a construção legislativa e a concretização dos direitos, pode ser lida a partir da analise entre justiça e poder feita por Mirjan Damaska quando contrapõe o perfil reativo do Estado liberal ao perfil ativo desejado para o Estado democrático. Aquele satisfaz-se com uma jurisdição cujo principal objetivo é a resolução de conflitos; e esta, carece de uma jurisdição empenhada na implementação de políticas e na concretização de valores constitucionais. O Estado liberal corresponderia a um Estado reativo, enquanto o Estado social ou o Estado democrático, a um Estado ativo, cada um deles delineando um perfil diferente para a função jurisdicional e, conseqüentemente, para a construção da sua jurisdição constitucional e seus instrumentos. Em um Estado cujo perfil seja ativo, a exemplo dos Estados social e democrático, a resolução de conflitos subjetivos são pretextos para que seja possível encontrar a melhor solução para um problema social. Isso implica dizer que o direito, para além do simples texto de lei, tem sua substância moldada pela Constituição. Nesta perspectiva, toda e qualquer decisão deve partir dos princípios constitucionais e da implementação de direitos fundamentais, rompendo com um modelo econômico cujo fundamento não seja o da inclusão social. (Neste sentido, ver DAMASKA, Mirjan R. The faces of justice and state authority: a comparative approach to the legal process. Yale: University Press, 2005). 21 No Estado brasileiro, várias decisões têm sido tomadas em torno da “suposta” colisão entre o mínimo existencial e a reserva do possível. Cita-se, como exemplo, a discussão estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n.º 5, como segue: ADPF - Políticas Públicas - Intervenção Judicial - "reserva do possível" (transcrições) Min. Celso de Mello. Ementa: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental (...). Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível". Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do "mínimo existencial". Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração).

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dos direitos sociais – basta, para isso, estudar o debate que envolve a realização do

direito à saúde22.

Quando se constitucionaliza o chamado Estado Democrático de Direito, deve-se

atentar para o que isso significa e, por conseqüência, para as condições, possibilidades e

limites de realização das promessas construídas no/pelo “contrato constitucional” e

contidas no bojo da Carta Política que o caracteriza.

Esse novo modelo de Estado com o qualificativo democrático – que o distingue

tanto do Estado “Liberal” de Direito quanto do Estado “Social” de Direito23 –, embora tenha

nascido sob o influxo do neoconstitucionalismo, carregando a marca de um projeto de

transformação social - basta lembrar a Constituição Portuguesa em seu texto original (art.

3º) - atualmente, encontra-se imerso em dilemas para efetivação das promessas

constitucionais.

Com efeito, o Estado Democrático de Direito apresenta-se como uma nova fase

histórica do Estado de Direito, o qual já havia passado por seu nascedouro como Estado

Liberal de Direito e, após, como Estado Social de Direito, marcado pelo enfrentamento

dos dilemas irresolvidos, bem como pelas crises enfrentadas por este último, mantém-se

adstrito à tradição do liberalismo, em particular ao seu viés econômico pautado pela

doutrina e pelas práticas capitalistas, mesmo que não se lhe dê, muitas vezes, a devida

atenção!

E tal não é sem conseqüências, posto que, assim sendo, ele se mantém vinculado

às dores e delícias de ser o que é, para usar a expressão de Caetano Veloso. Um projeto

estatal que se vê confrontado com a finalidade de transformar a sociedade, sobretudo na

perspectiva da inclusão social, como projeto político-constitucional, e, de outro lado,

delimitado com as proteções, resguardos e salvaguardas impostos por uma economia

capitalista que, não mais podendo excluir totalmente, estabelece limites às possibilidades

de concretização de um tal projeto. Ou seja, vive-se sobre a dualidade: política de

inclusão vs. economia de exclusão ou, no limite, de semi-inclusão.

Nesse sentido, não se pode almejar do Estado Democrático de Direito mais do que

ele pode “dar”, nem se supõe que as condições para sua execução e desenvolvimento

22 Neste sentido, são emblemáticas as discussões sobre o fornecimento de medicamentos na rede pública. No RE 566.471, o Ministro Marco Aurélio, em seu voto, vislumbra ‘repercussão geral’ no caso concreto para a admissibilidade do recurso extraordinário, diante do inegável apelo coletivo das discussões em torno do direito à saúde. A ementa do RE traz o seguinte texto: “SAÚDE – ASSISTÊNCIA - MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO – FORNECIMENTO. Possui repercussão geral controvérsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo”. 23 Ver: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e STRECK, Lenio Luiz. Ciência política e teoria do estado. 6ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

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histórico permaneçam inalteradas diante das crises da própria economia capitalista

tradicional – produtiva – mas, e, sobretudo, em face da transformação operada no campo

de sua formulação teórica e de suas práticas. Tal reconhecimento conduz a certos

dilemas.

O primeiro se refere à mutação de suas circunstâncias. Ou, dito de outra maneira,

o problema das crises do Estado, diante das transformações características da sociedade

e da economia liberal – capitalismo – contemporâneas. E aqui se aborda apenas dois

aspectos destas crises, as quais vêm esmiuçadas na obra As Crises do Estado e da

Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos ou, mais simplesmente, em

Ciência Política e Teoria do Estado24.

Dentre outras tantas, o Estado contemporâneo se vê confrontado, por um lado, por

uma crise conceitual, a qual afeta a sua própria formulação como Instituição da

modernidade, assentada que estava sobre os pilares dos seus elementos característicos:

território, povo e poder soberano. Em linhas gerais, não há mais como entender tais

conceitos em suas versões clássicas, se é que ainda são conceitos operacionais para

descrever esta experiência institucional.

Falar em soberania em tempos de Império – Negri/Hardt25 –, de globalizações ou

globolocalismos, de estruturas supranacionais ou de cosmopolitismos, parece de uma

ingenuidade atroz. E, com a falência deste conceito, soa no mínimo estranho pretender a

permanência das idéias de povo e, sobretudo, de território como espaço geográfico

delimitado e submetido a uma ordem jurídica autônoma.

Não identificar as insuficiências e as razões dos problemas que hoje enfrentamos,

arriscando propostas superficiais é, sim, ingênuo. Mas apresentar soluções possíveis

fundadas em uma investigação que vai às raízes da problemática contemporânea e do

contexto atual é trilhar o caminho do sagrado ao profano. Que assim como o caminho

inverso (a sacralização), exige sacrifícios, ou seja, o abandono de alguns mitos e a

revisão de outros.

Estas circunstâncias apontam para o desfazimento de certezas iluministas,

modernas, institucionais, apontando para a fragmentação do lócus tradicional do que se

convencionou chamar Estado Nacional, da sua política e de suas estratégias de atuação.

Por outro lado, permitem reconhecer que o capitalismo, acaba levando ao extremo uma 24 BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do estado e da constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e STRECK, Lenio Luiz. Ciência política e teoria do estado. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 25 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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tendência já presente no cristianismo, generaliza e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura

da separação que define a religião26.

O grande dilema que parece ser vivido hoje é aquele que contrapõe o

descompasso entre as promessas constitucionais e as possibilidades de sua realização,

pois o Estado Social imprescinde de um poder político forte, de um lado e, de outro, a

desconfiança/descompromisso coletivo e individual com o seu projeto constitucional,

naquilo que se identifica como sentimento constitucional27, o que pode produzir um

abandono do Estado Constitucional à sua própria sorte ou, ainda, uma tentativa de

(re)apropriação de seus conteúdos privadamente, em particular pelos atores individuais

de alguma forma já incluídos, fortalecendo a exclusão social. Reconhecendo tais

dificuldades, Canotilho salienta:

(...)ora, o Estado Social só pode desempenhar positivamente as suas tarefas de socialidade se verificarem quatro condições básicas: 1)provisões financeiras necessárias e suficientes, por parte dos cofres públicos, o que implica um sistema fiscal eficiente capaz de assegurar e exercer relevante capacidade de coação tributária; 2)estrutura da despesa pública orientada para o financiamento dos serviços sociais (despesa social) e para investimentos produtivos (despesa produtiva); 3)orçamento público equilibrado de forma a assegurar o controlo do déficit das despesas públicas e a evitar que um déficit elevado tenha reflexos negativos na inflação e no valor da moeda; 4)taxa de crescimento do rendimento nacional de valor médio ou elevado.28

O que se questiona é: teria, neste quadro, este Estado, em crise conceitual,

condições para exercer tais tarefas? Olhando ao redor se percebe que, com incidências

distintas, experimenta-se um quadro histórico no qual a potência estatal se vê confrontada

com um tal grau de fragmentação que muito pouco lhe resta para poder desempenhar tais

requisitos, forçando permanentemente um processo de reforma (do Estado) sob os

auspícios de um neoliberalismo minimizante vinculado ao que nomeamos neocapitalismo

desvinculado das práticas produtivas29 e voltado à sua auto-reprodução em escala

planetária sob os auspícios das novas estratégias financeiras tornadas possível com o

26 Ver: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p.71. Este mesmo autor deixa expresso que, porque tende com todas as suas forças não para a redenção, mas para a culpa, não para a esperança, mas para o desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição do mesmo. (Ibidem, p. 70.) 27 VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 28 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A Governance do terceiro capitalismo e a Constituição Social. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lenio Luiz (coords). Entre discursos e culturas jurídicas. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 147. 29 Ainda, deve-se lembrar que, muitas vezes, as práticas produtivas que se mantêm são desenvolvidas desvinculadas das tradicionais conquistas trabalhistas ou sob a revisão das mesmas, bastando lembrar aqui as estratégias de flexibilização pretendidas ou levadas a cabo, assim como as práticas neo-escravistas implementadas pelas grandes economias atuais – e.g. China.

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advento do mercado global virtual e das tecnologias ou novas práticas de gestão

financeira e orçamentárias que deslocam o sentido da ação estatal.

Com isso, resta reconhecer a ocorrência de uma segunda crise, que não vem

desconectada da primeira: a crise estrutural que diz respeito às condições – ausência

delas – de e para o Estado Social continuar mantendo e aprofundando seu projeto

includente.

Nessa perspectiva, como um Estado fragilizado pode se constituir em um ambiente

de e para a realização dos direitos sociais em permanente desenvolvimento? Sendo o

Estado Social este ajuste precário entre política de inclusão e economia – capitalismo –

de exclusão, este só poderá manter-se estando presentes dois fatores: 1) de um lado sua

capacidade de decidir e impor suas decisões, sempre orientadas para as despesas

sociais e produtivas e, 2) de outro a suportabilidade deste “acordo” inaugural que reuniu

(tentou reunir) a liberdade liberal à igualdade socialista – uma economia capitalista

voltada à produção de bens e consumo, alicerçada em uma sociedade onde o trabalho se

constitua como fator relevante de produção e de incorporação de amplas parcelas da

sociedade à própria economia capitalista, bem como a (alguns) de seus resultados –

novos produtos, novas tecnologias, novas práticas sócio-econômicas etc30.

O primeiro desfaz-se ante o que se apresenta como crise conceitual. O segundo,

parece, vem perecendo diante da transformação radical promovida pela(s) nova(s)

revolução(ões) industrial(is) e tecnológica(s) que, para além de libertar o homem do

trabalho – como ansiava Marx e a tradição do(s) socialismo(s) -, desfaz o segundo

elemento, ao mesmo tempo em que projeta este homem “livre” da opressão da máquina

para a mais absoluta exclusão dos benefícios desta sociedade tecnológica.

O homem livre do trabalho se vê abandonado à sua própria “falta” de sorte, diante

de uma autoridade pública fragilizada, bem como de um deslocamento e pluralização de

instâncias de poder – públicas, privadas, sociais, marginais – mesmo em um contexto

onde, no espectro constitucional tenhamos a marca de um constitucionalismo cujo projeto

vem alicerçado na atuação finalística e integradora da autoridade estatal por intermédio

de políticas que o resgatem da pobreza, marginalização e/ou exclusão.31

30 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A Governance do terceiro capitalismo e a Constituição Social. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lenio Luiz (coords). Entre discursos e culturas jurídicas. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 145-154. 31 A descentralização e fragmentação do poder do Estado contemporâneo é denominada, por André Noël Roth, de regulação social neofeudal. Ver: ROTH, André-Noël. O direito em crise: fim do estado moderno. In: FARIA, José Eduardo (org). Direito e globalização econômica: implicações e perspectivas. São Paulo: Malheiros, p.15-27. Para esta discussão há uma vasta literatura, a qual pode ser consultada nos trabalhos publicados por Jose Luis Bolzan de Morais

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Neste contexto, lateralmente, tem ganho consistência e amplitude o recurso ao

Estado Jurisdição, na perspectiva de recolocar tudo nos trilhos... – no que se

convencionou judicialização da política, como já foi dito.

Mas, o Estado Jurisdição é tão Estado quanto o Estado Legislador ou o Estado

Administrador. Aliás, uma das marcas características da modernidade estatal é a unidade

do poder político, sendo a sua organização funcional apenas uma estratégia, também

forjada no seio do liberalismo, para a sua funcionalidade e autocontrole recíproco.

Porém, ao que parece, aqui, a alternativa ao projeto civilizatório do Estado

apresenta-se como a reinstauração da fragmentação feudal ou da barbárie natural

hobbesiana(?).32 Um Estado fragilizado gerindo um pacto cujos elementos

caracterizadores da equação original foram completamente transformados, é anúncio de

fracasso, de problemas, de insucessos etc.

O pressuposto da “socialidade” – como diz Canotilho -, apontado anteriormente, se

desfaz não apenas com a reprivatização ou apropriação privada do espaço e das

prestações públicas – muito sentido naqueles países de modernidade tardia, cujas

políticas sociais prestacionais, quando ocorrentes, muitas vezes serviram para reforçar o

caixa dos já incluídos ao invés de promoverem a integração social dos seus destinatários

-, como também com a desconstrução da fórmula de interesse comum entre democracia e

capitalismo (de produção), até mesmo porque esta “socialidade” é uma marca da ação

civilizatória do Estado – agora fragmentado - agindo por sobre o egoísmo característico

do espaço privado e da economia liberal (capitalismo).

Entretanto, importa observar que o deslocamento do poder para o setor privado,

não exclui o espaço público. Este foi redefinido, mas não abolido. A “politização da vida

nua”, para usar a expressão de Agamben novamente, é o aspecto decisivo da

modernidade e faz evidenciar o paradoxo da “exclusão inclusiva” e da “inclusão

exclusiva”33, onde pertencimento e inclusão não são sinônimos.

4 A tensão entre inclusão e exclusão social

Há, aqui, a expressão latente e presente no âmbito do Estado Social, da tensão

entre um projeto político-constitucional de inclusão social, característico das fórmulas de

nos Anuários do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, publicados, a partir de 2005, pela Livraria do Advogado. 32 Para uma leitura original e ampla da obra de Hobbes, ver: RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2004. 33 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 29.

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welfare, que se constitui no bojo de uma tradição político-econômica caracteristicamente

excludente.

Ou seja: a tensão entre política de inclusão e economia de exclusão é uma marca

peculiar a este arranjo que forja o modelo de bem-estar, em particular no pós-guerra.

O que se tem percebido é que o equilíbrio precário há pouco aparentemente

“estável” tem-se “precarizado” cada vez mais, à medida em que a fórmula econômica

capitalista tem ganho nova consistência, quando, no contexto da nomeada globalização

econômica e das possibilidades tecnológicas, este se reestrutura e, de alguma forma, se

autonomiza da “produção”, onde capital e trabalho conjugam suas “paixões e interesses”,

bem como se descola – ou pretende – dos espaços de decisão da política.

4.1 A segregação econômica e os limites da política

Já se disse anteriormente que o Estado Social não se autonomiza do seu ambiente

liberal – sobretudo do seu núcleo econômico (liberalismo/capitalismo) –, tanto é que ele

vem dependente desta relação de base construída ante o reconhecimento das conquistas

sociais e os interesses do próprio capital, em um pêndulo permanentemente tensionado.

Dessa forma, deve-se reconhecer que o Estado Social não renega sua origem,

mas apenas domestica suas pulsões de morte. E o faz por meio de políticas públicas

compensatórias de carências, desde que isto não signifique a negação dos fundamentos

de suporte do núcleo econômico do liberalismo – o capitalismo – que vem recompensado

com a socialização dos custos de infra-estrutura econômica, de higidez para o trabalho e

de um mercado consumidor em expansão, entre outros fatores.

Dito de outro modo, rápido e um pouco grosseiramente: o Estado Social não

apenas convive, mas admite e incorpora uma relação de inclusão e exclusão em níveis

distintos, mas intransponíveis, sem se livrar de âmbitos de “individualismo possessivo” –

como diria C. B. Macpherson34 – próprios do indivíduo liberal. Para haver inclusão, um

certo nível de exclusão continua sendo aceito. A questão é: quanta inclusão é possível ou,

ao contrário, quanta exclusão se admite, mantendo-se o Estado Social?

A experiência histórica tem demonstrado níveis bastante distintos. Basta se olhar,

hoje, sobretudo, para os âmbitos de promoção social na Escandinávia, Canadá, França,

Itália, Espanha, Portugal, para se observar o quanto se diferenciam. Porém, mesmo no

34 Neste sentido, sobre a teoria política do individualismo possessivo, consultar a obra MACPHERSON, Crawford Brough. Hobbes: o dever político do Mercado. In: A teoria política do individualismo possessivo (de Hobbes a Locke). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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mais exitoso deles, os elementos fundantes da economia liberal permanecem

assegurados: propriedade privada, apropriação do lucro, resguardos ante a ação estatal

etc.

Evidencia-se que, no momento, não se mencionou o Brasil, seja pela dificuldade de

classificá-lo como Estado Social, seja pela dívida histórica que necessita ser resgatada,

ainda que sob os auspícios da Constituição Federal de 1988.

O que se quer dizer com isso é que há que se reconhecer que neste Estado Social

ainda se convive com a aceitação de um certo nível de exclusão e que em seu arranjo a

garantia da vida digna não “vale” para todos ou acontece em níveis distintos.

Ou seja: no encontro entre política de inclusão e economia de exclusão permanece

um espectro intransponível de aceitação de segregação – de inacessibilidade às

promessas modernas. Esta é uma marca inafastável do modelo econômico capitalista,

que contamina o arranjo político do Estado Social.

Saramago, em entrevista, perguntado sobre os movimentos de fast e slow food

disse que o problema é dar um prato de comida a toda a gente, em primeiro lugar, depois

pensar em qual o melhor modo de comer. Todavia, esta estratégia não parece estar

conforme com o modelo de Estado Social, que parece aceitar – e aceita – que o ideal

prático é assegurar ao maior número “possível” o acesso à comida, tendo consciência de

que nesta contabilidade muitos ficam “de fora” desta conta.

Para dificultar ainda mais, hoje, está-se marcado pela idéia de um Estado

Regulador, em substituição ao tradicional Estado Social, afirmando-se as virtudes e o

primado da concorrência, da responsabilidade fiscal, da gestão de resultados etc e

esvaziando-se este último como responsável pela prestação de serviços públicos, embora

se apresente, ainda, como condicionador ou balizador da atuação dos agentes

econômicos em nome da salvaguarda do interesse público, fazendo-o, agora, sobretudo

por intermédio de autoridades administrativas independentes (agências reguladoras),

como descrito por António José Avelãs Nunes35 e propagandeado por um tanto de autores

de postura político-epistemológica distinta deste.

E, é neste contexto de incidência global, por exemplo, que se evidenciam os

dilemas do Estado Social, onde se inclui a situação atual do Brasil, sobretudo desde o

confronto que se estabeleceu com a promulgação de uma Constituição que, mesmo fruto

35 AVELÃS NUNES, António José. Breve reflexão sobre o chamado estado regulador. In: Revista Seqüência, n. 54. Florianópolis: Fundação Boiteux, p.09-17. Sobre esta temática ver, ainda: TIMSIT, Gerard. La régulation. La notion et lê phénomène. In: Revue Française d’Administration Publique, n. 109, 2004, p.05-11.

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de uma Assembléia Nacional Constituinte não-exclusiva e dominada por setores

conservadores (Centrão), institucionalizou a fórmula do Estado Democrático de Direito

como sendo o grande estuário do projeto de recuperação não só dos anos – muitos – de

autoritarismos, mas, em especial, dos séculos de exclusão social.

Tal debate pode ser muito bem exemplificado pelas dificuldades enfrentadas no

asseguramento, e.g., do direito à saúde como direito de cidadania, tal qual estabelecido

no art. 196 da CFB/88, bastando, para isso percorrer a jurisprudência pátria dos mais

diversos tribunais e instâncias judiciais, a qual transita desde a sua negação suportada

em doutrina que nega o caráter eficacial das nomeadas normas programáticas até sua

irrestrita concretização fundamentada na força normativa da Constituição e nos seus

preceitos principiológicos, sobretudo a dignidade da pessoa humana.

O que tentamos construir com isso é a situação na qual a busca de respostas para

a insatisfação frente à insuficiência das políticas do Estado Social, diante do

descompasso entre promessas constitucionais e realização efetiva das mesmas – bem

como suas condições para... – impõe uma reflexão responsável acerca do caráter peculiar

que é este sistema misto que vincula estruturas de produção capitalistas com uma lógica

de distribuição socialista, esquecendo que, desde os fisiocratas, parece ser ponto assente

na teoria econômica que as estruturas de distribuição do rendimento e da riqueza não

podem considerar-se separadas das estruturas sociais da produção36.

Porém, lido em um contexto no qual “profanar não significa apenas abolir e

cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. A

sociedade sem classes não é uma sociedade que aboliu e perdeu toda a memória das

diferenças de classe, mas uma sociedade que soube desativar seus dispositivos, a fim de

tornar possível um novo uso, para transformá-las em meios puros”.37

Isto tudo traz à tona a insuficiência de uma resposta disciplinar, que busque, seja

na Teoria do Estado, seja na Teoria da Constituição, elementos capazes de dar conta das

circunstâncias contemporâneas, ante o desfazimento de todas as suas certezas, como

apontado anteriormente.

A historicidade das instituições políticas nos faz enfrentar as dificuldades marcadas

entre o resguardo das conquistas modernas, sua insuficiência ante o “novo” e a

36 AVELÃS NUNES, António José. Breve reflexão sobre o chamado estado regulador. In: Revista Seqüência, n. 54. Florianópolis: Fundação Boiteux, p.16. Do mesmo autor, ver: AVELÃS NUNES, António José. A concepção de estado nos fundadores da ciência econômica. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e STRECK, Lenio Luiz (Orgs.). Estudos Constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.47-70. 37 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p.75.

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necessidade de construir instrumentos que permitam e assegurem a continuidade de um

projeto civilizatório, corrigindo rumos, nunca retrocedendo. Afinal, como diz J. J. Gomes

Canotilho:

Hoje, a constituição como norma deve assegurar a normatividade no complexo contexto do constitucionalismo em rede que alguns autores designam por multilevel constitutionalismo. O impacto da interconstitucionalidade não legitima, porém, a desvalorização da força normativa da constituição concretamente vigente e válida numa determinada comunidade jurídico-política.38

Diante da incerteza – não democrática – do projeto de Estado Social, há que se

buscar alternativas que indiquem estratégias satisfatórias à instauração do futuro, sem

que isso implique, desde logo, a ruptura das bases do modelo jurídico-político da

modernidade com seus avanços inquestionáveis.

Concluindo: entre o Estado sacralizado e a civilização profana (ou como realizar uma ordem constitucional em um ambiente hostil?)

Diante de um quadro de desfazimento da fórmula do Estado Social, seja por suas

próprias insuficiências e crenças – inclusive nas potencialidades de uma racionalidade

cientificista apta a solucionar todos os dilemas modernos e uma burocracia técnica pronta

a dar respostas satisfatórias às demandas políticas – seja pelas propaladas crises que se

lhe abatem, o próprio constitucionalismo que lhe dá formatação vê-se, muitas vezes,

constrangido e deslegitimado diante das disputas que se estabelecem entre a busca de

efetividade da Constituição e as pautas estabelecidas pela perseguição da eficácia

econômica, corriqueiramente veiculada a partir dos pressupostos de uma economia

globalizada que além e porque transformada se autonomiza das balizas da política, bem

como do díálogo político (democracia).

Para além, em um ambiente de risco crescente e globalizado, este mesmo novo

espaço econômico projeta – em particular em sede de Organização Mundial do Comércio

– a ruptura completa do modelo de solidariedade social que orienta a fórmula do Estado

Social – como aqui descrito rapidamente –, substituindo-o pela preocupação com a

segurança contra os riscos que podem vir de toda e qualquer parte, até mesmo em uma

ave migratória, a qual não tem passaporte, nem é revistada nas alfândegas por onde

passa ou, sequer está sujeita ao pagamento de tributos por eventuais mercadorias que

porte. 38 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Princípios: entre a sabedoria e a aprendizagem. In: Boletim da Faculdade de Direito. Vol. LXXXII. Coimbra: Coimbra, 2006, p.12.

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Não são apenas os aviões que transportam terroristas, o perigo. Ele agora está em

qualquer pombo correio. Para proteger-se do risco natural ou criado a nova ordem é a

segurança. Mas segurança contra o que? Contra quem? Quando? Onde? Na dúvida, na

ausência de um sistema de definição, controle e gestão dos riscos, erige-se a segurança

como máxima. E, talvez, este seja apenas mais um risco...

Afinal, se uma Constituição de valores trazia o problema da atribuição de sentido à

norma jurídica e sua concretização – ora tratado sob os auspícios da hermenêutica

filosófica –, uma sociedade de riscos põe a interrogação acerca da atribuição de sentido

ao paradigma da precaução. Porém, se a política – como diálogo democrático – foi

substituída pela economia – como monólogo da eficácia, quem decide?

Não há dúvida. Existe a necessidade de se estender um prato de comida a todos.

E aqui o problema não é relacionado à velocidade com que se lançará o destinatário

sobre essa ração alimentar. O problema é qual e o quanto de comida há de ser-lhe

ofertado, tendo presente tudo o que foi dito acima e as opções que vêm sendo feitas.

Esta resposta, parece-nos, continua sendo cativa do Estado Social.

Outra resposta exigiria uma outra sociedade, sobre novas bases e, aí, não se sabe

até que ponto as comunidades atuais estariam empenhadas em sua construção... mas,

para cujo projeto é necessária a dessacralização de alguns dos itens modernos.

Entre o Estado sacralizado e uma civilização profana é preciso encontrar um

espaço para reinventar uma (nova) ordem constitucional, um constitucionalismo que, na

“vida nua” construa “respostas corretas” na tentativa de viabilizar a “comunidade que

vem”.

A Constituição Cidadã, que festeja seus vinte anos, precisa ser retirada do local

onde se encontra e jogada para o mundo da vida. Para tanto, há que se olhar a política e

o direito sob uma nova perspectiva, percebendo o cenário que marca as crises do Estado

contemporâneo, para só então arriscar alternativas possíveis.

Será necessário profanar a idealização dos ícones modernos – Estado Nacional,

Constituição, Estado de Direito etc – para poder reconstruir um projeto de sociedade que

venha ao encontro, inclusive, dos projetos destes mesmos sagrados... já que não há

possibilidade alguma de se abrir mão daquelas que foram conquistas civilizatórias,

mesmo em troca de promessas de um mundo novo, ainda não apresentado.

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O ESTADO SOCIAL E SEUS LIMITES. Condições e possibilidades para a realização

de um projeto constitucional includente.

Jose Luis Bolzan de Morais∗∗

Premissas Inaugurais. O contorno do problema

Este é – ou com certeza –, nos dias atuais, um dos problemas fundantes para a

sociedade contemporânea, como Estado Social, sobretudo sob a fórmula do Estado

Democrático de Direito, inaugurada, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988. Um

problema que repercute os sucessos e fracassos deste mesmo projeto de organização

política; um problema que nos coloca frente à necessidade de pensarmos, em um país

periférico, as condições necessárias e suficientes para tentarmos minimizar nossas culpas

e insucessos em resgatar os compromissos da modernidade em torno ao caráter

finalístico do próprio Estado, no caso voltado ao cumprimento de sua função social, de

erradicar a pobreza, “reduzir” as desigualdades, fundar uma sociedade justa e solidária

etc..

Por isso mesmo, trata-se de temática que nos coloca frente a dilemas, muitas

vezes pessoais, mas também no propõe refletirmos de forma responsável as

circunstâncias que se apresentam para o debate.

Aceitando enfrentá-lo, devo uma resposta a este convite, mesmo que parcial e

circunstancial.

Como fazê-lo? Penso, para isso, que devo proceder a algumas localizações. Em

primeiro lugar, é preciso deixar claro que falo de um lugar que conjuga o debate

acadêmico com o labor diário nos tribunais, aliado ao interesse particular como cidadão

destinatário das normas contidas neste projeto de sociedade.

Por outro lado, este é um tema que exigiria um trato inter/transdisciplinar, mas sou

um jurista e tenho meus limites tecnológicos e, mais, tenho meus olhares. Assim sendo, a

∗∗ ∗ O autor é mestre - PUC/RJ - doutor - UFSC/Université de Montpellier I - em Direito do Estado e Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra; Coordenador e professor do PPGD/UNISINOS; Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Professor da UNILE – Lecce – Itália; Consultor da Escola Doutoral Túlio Ascareli – Roma Tre e professor convidado das Universidades de Roma “La Sapienza”, Roma Tre, Napoli e Salerno. Pesquisador do CNPq, FAPERGS. Consultor ad hoc do MEC/SESu/INEP, CAPES e CNPq. Coordenador do Círculo Constitucional Euro-Americano (CCEUAM) e Membro Conselheiro do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ).

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discussão aqui posta resumidamente pretende se dar com a abertura de algumas portas39

e lançando alguns olhares possíveis que, mesmo parciais, parecem-me necessários para

iluminar o tema enfrentado. Buscarei ver o horizonte desde estes olhares e lugares e,

para isso, o estarei (re)construindo a partir de alguns (pré)supostos, os quais pretendo

deixar explícitos para que saibam de onde estarei falando, perimitindo-lhes a crítica e a

concordância ou a discordância e assegurando-me uma certa segurança pois poderei

sempre dizer que alertei o leitor acerca desta parcialidade.

Para além das máscaras já assumidas outras precisam ser informadas: esta é uma

leitura que retoma a tradição contratualista hobbesiana – na perspectiva sugerida por

Renato Janine Ribeiro (Ao Leitor sem Medo) –, o que implica reconhecer que a instalação

de uma instância de autoridade – Estado – significou(ca) um ganho qualitativo no

processo civilizatório, sobretudo estando nós situados em “ países periféricos” (conceito

hoje desqualificado) e, como tal, por outro lado, enfrenta ceticamente as condições e

possibilidades de sairmos ilesos deste processo.

Pretendo, contudo, abrir clareiras, como sugerem Heidegger e Gadamer

recuperados para o Direito por Lenio Streck, seguindo alguns desvios, enfrentando

encruzilhadas, escolhendo caminhos dentre as possibilidades que uma Teoria do Estado

Constitucional e um Direito Constitucional, em particular, descortinam, se tomadas desde

a perspectiva acima referida.

O objeto da discussão Do que estamos falando? Qual o objeto posto à debate. Creio que são três os

aspectos a serem aqui enfrentados:

Em primeiro lugar é preciso que recuperemos algo daquilo que é a própria história

do Estado e sua trajetória até o atualíssimo Estado Democrático de Direito. Só assim

teremos condições de compreender o significado e o papel que desempenham as

políticas (públicas) no contexto de um Estado que se assume como um projeto finalístico,

identificado com o reconhecimento e a realização do conjunto dos direitos humanos em

permanente expansão e aprofundamento.

Nesta trajetória teremos a possibilidade de reconhecer e enfrentar aquilo que se

nomeia como judicialização da política, a qual vem marcada pela emergência do

39 Ver: Michel MIAILLE, Uma Introdução Crítica ao Direito.

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constitucionalismo do pós-guerras e, sobretudo, pela maior conflituosidade a que se vê

confrontada a sociedade atual seja como conseqüência de sua própria democratização –

o que inclui um maior acesso à justiça, embora este deva ser confrontado, ainda, com a

desigualdade no conhecimento e nas condições econômicas dos indivíduos – seja como

resultado da fragilização do modelo do Estado Social, o que faz emergir um conjunto cada

vez maior de pretensões irrealizadas, as quais acabam por desaguar nos Tribunais, como

estuário da irresignação da cidadania diante da inconsistência das políticas de bem-estar

e das promessas incumpridas da modernidade.

Todavia, este é um tema que pode ser objeto de múltiplas falas e estratégias de

tratamento, como já anotado. Contudo, aqui pretendemos traçar algumas linhas

demarcatórias acerca das circunstâncias que afetam as possibilidades de vivenciarmos

esta “sociedade ótima”, apontando, ainda, para a insuficiência do debate posto entorno às

idéias de reserva do possível e mínimo existencial.

O Estado Constitucional como Estado Social e seus dilemas

Podemos sintetizar isto tudo no seguinte foco: Estado Constitucional e seus

dilemas. ou, mais especificamente, o neoconstitucionalismo e suas encruzilhadas. Em primeiro lugar, devemos identificar o Estado Constitucional:1.O que é? e, 2.O

que comporta?, apenas para termos um acordo semântico que oriente o debate.

O que é o Estado Constitucional pode ser respondido, breve e sucintamente como

sendo este o produto de um projeto político-histórico marcado pela tradição liberal e

alicerçado em uma estrutura de poder político identificado por uma ordem jurídica que

organiza o poder – em particular adotando a estratégia da especialização de funções, o

princípio da legalidade da ação estatal etc. – e assegura um conjunto de liberdades

expressas pelo reconhecimento jurídico-legislativo dos direitos humanos, traduzidos como

direitos fundamentais40.

Assim, o Estado Constitucional incorpora um conjunto de normas reunidas em um

documento jurídico legislado ou fruto de um processo consuetudinário que 1. formatam o

poder político sob a lógica de um poder limitado e controlado; 2. reconhecem os direitos

humanos como conteúdos fundamentais que direcionam a ação deste poder, voltado à

sua consecução como finalidade da ação estatal; e, 3. como tal é um produto da história

40 Ver: Nicola MATTEUCCI, Organizacion do Poder y LIbertad….

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e, por isso, dinâmico, bastando perceber a passagem do Estado Mínimo ao Estado

Social; dos direitos de liberdade aos direitos de solidariedade etc41.

Por isso, podemos dizer que o Estado Constitucional do Século XIX não é o

mesmo do Século XX. Aquele tinha como substância a construção de um Estado

Absenteísta – mesmo que sempre tenhamos algum nível de atuação estatal –, marcado

por um conjunto de limitações/proteções asseguradoras das práticas individuais e da

auto-regulação mercadológica, com uma separação rígida entre Estado e Sociedade Civil.

Tudo isto fruto dos receios em face do passado recente – absolutismo – e do projeto

futuro da nova classe social hegemônica – a burguesia revolucionária – e, por isso

mesmo, o requisito da especialização de funções, bem como do asseguramento dos

direitos humanos como anteparos à atuação estatal, ou direitos de liberdade, constituindo-

se um Estado cuja aparente neutralidade asseguraria o desenvolvimento das

potencialidades de indivíduos livres e iguais (formalmente). É a fase do

Constitucionalismo Liberal.

Já no Século XX, com nascedouro ainda no transcurso do Século XIX, vemos este

mesmo Estado Liberal transmutar-se substancialmente, assumindo o feitio de Estado

Social, conceito aqui utilizado em sua acepção genérica, suportado em um novo

Constitucionalismo – agora Social -, este identificado historicamente com as Constituições

mexicana de 1917 e de Weimar, de 1919 – apresentadas como marcos históricos –, vindo

em resposta ao novo tratamento da chamada questão social, a qual deixa de ser uma

“caso de polícia” para tornar-se um caso de políticas públicas (socias).

Aqui começam novos problemas! O Constitucionalismo Social traz consigo o

reconhecimento constitucional da questão social – acima referida – e que advém das

transformações operadas pelas revoluções industriais, pelo novo modelo de produção

(fabril) e pela emergência de uma nova categoria social - o proletariado etc. Esta questão

social vem apresentada constitucionalmente sob os inéditos direitos sociais l. s. – de

igualdade ou direitos econômicos, sociais e culturais (DESCs) – que em tudo diferem dos

primeiros, em particular por exigirem uma maior e mais qualificada intervenção, bem

como a elaboração de políticas públicas prestacionais para a sua satisfação, o que faz

desviar o foco das atenções da esfera legislativa do Estado para o ambiente da atividade

executiva. Não basta mais legislar, é necessário assegurar a usufruição dos direitos

constitucionalizados.

41 E este é um problema, pois não há linearidade na história, sequer garantias ou segurança.

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Com isso não só a forma do Direito se modifica – tanto que identificamos uma

transição das regras para os princípios –, mas o seu próprio conteúdo e estratégias de

concretização.

Hoje não há mais que se falar em direitos negativos – de abstenção – e direitos

positivos – de prestação como instâncias distintas. Há uma imbricação inevitável. Não

temos assegurada a liberdade de manifestação sem o acesso ao conhecimento,

exemplificativamente.

É, como disse acima, no contexto do Estado Constitucional, como Estado Social,

que vemos surgir os problemas que suscitam nossas dúvidas. É neste ambiente que

emergem os direitos à – educação, saúde, moradia etc...

Em um primeiro momento por não sabermos o que fazer com eles, ou como fazer.

Dito de outro modo, vivencia-se uma defasagem entre o direito e a doutrina constitucional.

Depois por não termos capacidade para satisfazê-los todos e em toda a sua extensão, o

que levará a uma nova transição funcional no Estado – do legislativo ao executivo e,

agora, à Jurisdição – em razão da democratização no acesso, por um lado, e, para o que

aqui interessa, da deficiência na satisfação das promessas constitucionais – como

veremos a seguir.

Mas estes são dilemas novos. É, sobretudo, a partir de quando seus sucessos já

não são tão marcantes ou, até mesmo, lhe trazem dificuldades, é que vemos o projeto do

Estado Social envolto em tensões que fazem transitar o debate acerca da sua realização

do âmbito executivo – da política – para o jurisdicional – da judicialização, pondo em

evidência os limites que tal desvio de rota acarreta, pois, para a doutrina jurídica, o

constitucionalismo social traz, até hoje, problemas como o que respeita ao caráter

eficacial das normas constitucionais a partir de uma estrutura classificatória das normas

constitucionais que desprivilegia o papel dos “programas” sociais e a substancialidade das

próprias Constituições, dentre outros aspectos.

O que temos aqui é que, com o constitucionalismo social há a obsolescência

precoce de uma doutrina constitucional recém edificada, mas voltada ao liberalismo

clássico e seu modelo de regulação – em um período de pouco mais de um século (finais

do XVIII e início do XX)

Desde a origem o novo constitucionalismo trouxe problemas para os juristas,

politólogos, gestores públicos etc...

Não é por menos que a pobreza doutrinária inaugural – lembremos a doutrina

jurídica de Weimar e o debate que se instalou no seu entorno, que serve para lembrar que

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tal fragilidade doutrinária vai aparecer na experiência brasileira pós-88, apenas para

termos uma idéia da dimensão do déficit ainda experimentado.

Mas, este Estado Constitucional Social só ganhará contornos definitivos no pós-

Segunda Guerra Mundial, como tentativa de enfrentamento das barbáries experimentadas

no período. Emerge daí um constitucionalismo que, além de reforçar seu caráter social,

constrói novos sistemas de se fazer efetivo. Acrescenta-se ao conteúdo social

instrumentos processuais que visam dar conta dos conflitos advindos da não realização

dos mesmos.

São novos direitos – agora, liberdades, igualdades e solidariedades - ladeados por

novos instrumentos processuais – ADIOmissão, Mandado de Injunção, Ação Civil Pública

–, novos atores – partes públicas (MP, Defensorias), partes coletivas (associações,

sindicatos, grupos de interesses) – e, sobretudo, por um reforço/valorização dos sistemas

de controle de constitucionalidade, com particular atenção à Jurisdição Constitucional,

com uma democratização permanente do acesso à jurisdição, muitas vezes descurando

de um seu pressuposto o acesso ao direito, inclusive em sede de controle de

constitucionalidade.

Assim está desenhado o Estado Social no pós-Segunda Guerra, com a

supervalorização do constitucionalismo, marcado sob o modelo do neoconstitucionalismo,

na crença profunda de que com isso podemos construir uma sociedade justa e solidária,

com a erradicação da pobreza e marcada com a idéia da função social, marcas profundas

do constitucionalismo brasileiro do pós-88, a qual está presente em todo o espectro da

vida social e da regulação – cidade, família, propriedade, empresa, contrato etc..

Isto tudo está muito presente na Constituição brasileira do pós-autoritarismo, na

identidade que possuímos com as experiências européias da segunda metade do século

passado, em particular na experiência italiana, espanhola e portuguesa.

Porém, este Estado Social Constitucional se vê confrontado com seus próprios

limites e com as transformações para as quais não estávamos precavidos, se é que

poderíamos estar ou se é que adiantaria estarmos. E nos experimentamos diante da

frustração de que a Constituição por si, embora marque uma pauta de desenvolvimento

de uma política constitucional que busque a realização de seus conteúdos, não tem a

capacidade de por si mesma tratar os problemas sociais, transformando magicamente o

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mundo da vida e os séculos de exclusão social, como sustenta Gilberto Bercovici42. Há,

aqui, um vácuo profundo, ou vazio imenso, entre ter Constituição e estar em Constituição.

Assim, nos vemos confrontados com a necessidade de, para tratarmos deste tema,

precisarmos ter presente a exigência de o fazermos a partir de uma Teoria do/para o

Estado Constitucional e não de, por um lado, uma Teoria do Estado e, de outro, uma

Teoria da Constituição que, muitas vezes, não conversam entre si.

Ou seja, não há como entendermos a relação Constituição – direitos sociais –

políticas públicas – judicialização sem a inserirmos no contexto do Estado

Contemporâneo que, mesmo diferido constitucionalmente como Estado Democrático de

Direito – outra herança do Neoconstitucionalismo (Portugal) – se vê confrontado com uma

religião de crítica ao Estado Social, como diz J. J. Gomes Canotilho43,

independentemente do modelo e da extensão que este tenha assumido, uma vez que o

Estado Social é um projeto diferenciado geográfica e historicamente.

É apenas neste contextos que ganha sentido discutirmos a judicialização da

política. Ora, se os sucessos do Estado Social fossem incontestáveis e não contrastáveis

não estaríamos nós aqui a tratarmos do problema de difícil realização das políticas

públicas – como, e.g., o fornecimento de medicamentos, no âmbito do direito à saúde.

Na opulência não haveria dificuldades em termos atendidos os padrões ótimos e

todas as expectativas relativas à satisfação das necessidades sociais da população e,

com isso, a conflituosidade de que estamos falando não estaria posta perante os

Tribunais, já que ausente das preocupações sociais em uma sociedade ótima

inalcançada/inalcançável.

Se das garantias constitucionais – ou das promessas constitucionais – emergisse a

satisfação inexorável das pretensões sociais este debate não se colocaria e teríamos tudo

resolvido por políticas públicas prestacionais e pela satisfação profunda dos seus

destinatários.

Porém, por desgraça ou por humanidade(?), não vivemos neste mundo ideal e é

exatamente do descompasso entre projeto político-constitucional e projeto político-

econômico que subjaz à fórmula do Estado contemporâneo que emerge o confronto de

interesses que deságua na Jurisdição que se torna, assim, o grande ambiente de disputa

e definição política na atualidade. Se especificarmos o debate, podemos sugerir que há,

42 In: Dilemas da Concretização da Constituição de 1988 – Revista do IHJ, n. 2/2004 43 In: J. J. Gomes CANOTILHO. A governance do terceiro capitalismo e a constituição social. Coimbra: Coimbra Editores. 2006

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hoje, mais acesso à saúde – sobretudo aquela curativa – no âmbito da jurisdição do que

no sistema hospitalar, sem que se possa reconhecer nele um bom ou mal sinal – ao que

voltaremos na seqüência, alterando não soas relações internas aos poderes, como o

próprio significado do “fazer” político(a).

Esta é, no campo jurídico, uma das marcas da contemporaneidade.

Experimentamos um rearranjo organizacional na forma estatal da modernidade, fruto da

própria falência do Estado Social e vemos um embate do Estado com ele mesmo.

E, deste quadro surgem novos questionamentos, que vão das clássicas

interrogações acerca da eficácia das normas de direitos sociais, visto sob novos ângulos

– como já mencionado –, até as dúvidas acerca da legitimação da Jurisdição

(constitucional) para intervir nas opções políticas, sejam legislativas, sejam das práticas

administrativas, além das fórmulas teóricas para dar conta disso, em particular no embate

entre teorias argumentativas e hermenêutica filosófica.

Ou seja, o debate entre função de governo e função de garantia, remodelando a

clássica tripartição de funções, passando, ainda, pelos limites que demarcariam a

extensão destes “direitos” constitucionais, em uma disputa entre o mínimo existencial e a

reserva do possível, margeado pelo fundamento da dignidade humana – o que não

parece ser esta uma estratégia suficiente.

É necessário compreendermos as circunstâncias do Estado Social como tal e seus

corolários contemporâneos para, assim, podermos discutir competentemente os vínculos

do nosso tema, inclusive enquadrando adequadamente a discussão acerca do

atendimento individualizado das demandas, assim como a própria “reserva do possível”,

“mínimo existencial”, “dignidade da pessoa humana” etc.

Quando constitucionalizamos o chamado Estado Democrático de Direito, temos

que atentar para o que isto significa e, por conseqüência, para as condições,

possibilidades e limites para a sua realização.

Este Estado Democrático de Direito, embora, como já afirmamos em outros

momentos, tenha nascido sob o influxo do neoconstitucionalismo, carregando a marca de

um projeto de transformação social – basta lembrarmos, de novo, da Constituição

Portuguesa em seu texto original (art. 3º) –, temos que conferir o que isto significa ou

passou a significar e, por conseqüência, para as condições, possibilidades e limites para a

sua realização.

O Estado Democrático de Direito nada mais é que uma nova fase histórica do

Estado de Direito que já havia passado por seu nascedouro como Estado Liberal de

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Direito e, após, como Estado Social de Direito, deixando claro que, infelizmente, estamos

inseridos no âmbito e ambiente da tradição liberal, gostemos ou não.

Neste sentido, não podemos pretender do Estado Democrático de Direito mais do

que ele pode dar, nem podemos supor que as condições para sua execução e

desenvolvimento histórico permaneçam inalteradas.

Tal reconhecimento nos conduz a dois dilemas

O primeiro diz com a mutação de suas circunstâncias. Ou, dito de outra maneira, o

problema daquilo que nomeio como crises do Estado, diante das transformações

características da sociedade e da economia liberal – capitalismo – contemporâneas.

E aqui vou tratar de apenas dois aspectos destas crises, as quais vêm esmiuçadas

em meu As Crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos

humanos ou, mais simplesmente, em Ciência Política e Teoria do Estado, em sua 5ª

edição, este em conjunto com Lenio Streck.

Dentre outras tantas, o Estado contemporâneo se vê confrontado, por um lado, por

uma crise conceitual, a qual afeta a sua própria formulação como instituição da

modernidade, assentada que estava esta sobre os pilares dos seus elementos

característicos: território, povo e poder soberano. Para ser rápido, não há mais como

entender tais conceitos em suas versões clássicas, se é que ainda são conceitos

operacionais para descrever esta experiência institucional.

Falar em soberania em tempos de Império e Multidão – Negri/Hardt44 –, de

globalizações ou globolocalismos, de estruturas supranacionais ou de cosmopolitismos,

parece de uma ingenuidade atroz. E com a falência deste conceito, soa no mínimo

estranho pretendermos a permanência das idéias de povo e, sobretudo, de território como

espaço geográfico delimitado e submetido a uma ordem jurídica autônoma.

Estas circunstâncias apontam para o desfazimento de certezas iluministas,

modernas, institucionais, apontando para a fragmentação do lócus tradicional do que

convencionamos chamar Estado Nacional e de suas estratégias de atuação, gerando um

1)Descompasso entre as promessas constitucionais e as possibilidades de sua

realização, pois, não esqueçamos, o Estado Social imprescinde de um poder político forte

e,

2)Desconfiança/descompromisso coletivo e individual com o seu projeto

constitucional, naquilo que se convencionou identificar como sentimento constitucional, o

44 Ver, destes autores: Império. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Record. 2001 e Multidão.Guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record. 2005.

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que pode produzir um abandono do Estado Constitucional à sua própria sorte ou, de outro

lado, uma tentativa de (re)apropriação de seus conteúdos privadamente, em particular

pelos atores individuais de alguma forma já incluídos, fortalecendo a exclusão social

Lembremos, por oportuno, para o quê nos chama a atenção Canotilho, quando

refere que, cito textualmente (...)ora, o Estado Social só pode desempenhar positivamente as suas tarefas de socialidade se se verificarem quatro condições básicas: 1)provisões financeiras necessárias e suficientes, por parte dos cofres públicos, o que implica um sistema fiscal eficiente capaz de assegurar e exercer relevante capacidade de coação tributária; 2)estrutura da despesa pública orientada para o financiamento dos serviços sociais (despesa social) e para investimentos produtivos (despesa produtiva); 3)orçamento público equilibrado de forma a assegurar o controlo do déficit das despesas públicas e a evitar que um déficit elevado tenha reflexos negativos na inflação e no valor da moeda; 4)taxa de crescimento do rendimento nacional de valor médio ou elevado.45

Teria, neste quadro, este Estado, em crise conceitual, condições para exercer tais

tarefas?

Penso que se olharmos ao nosso redor perceberemos que, com incidências

distintas, estamos experimentando um quadro histórico no qual a potência estatal se vê

confrontada com um tal grau de fragmentação que muito pouco lhe resta para poder

desempenhar tais requisitos, forçando no mais das vezes a um processo de reforma (do

Estado) decidido desde fora e desenhada sob os auspícios de um neoliberalismo

retrógrado, posto que voltado não apenas ao redirecionamento do sentido da intervenção

estatal, como à sua redução quando destinada ao enfrentamento da tradicional questão

social e suas carências.

Com isto, nos resta reconhecer a ocorrência de uma segunda crise, que não vem

desconectada da primeira: a crise estrutural, que diz respeito às condições – ausência

delas – de e para o Estado Social continuar mantendo e aprofundando seu projeto

político-jurídico includente.

Como um Estado fragilizado pode constituir-se em ambiente de e para a realização

dos direitos sociais?

Sendo o Estado Social este ajuste precário entre política de inclusão e economia –

capitalismo – de exclusão, só poderá manter-se estando presentes dois fatores:

45 J. J. Canotilho, op. cit., p.

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1)de um lado sua capacidade de decidir e impor suas decisões, sempre orientadas

para as despesas sociais e produtivas pautadas por uma extensão da e na participação

democrática e,

2)de outro a suportabilidade deste “acordo” inaugural que reuniu a liberdade liberal

à igualdade socialista – uma economia capitalista voltada à produção de bens e consumo,

alicerçada em uma sociedade onde o trabalho se constitua como fator relevante de

produção.

O primeiro desfaz-se ante o que apresentamos como crise conceitual. O segundo,

parece, vem perecendo ante a transformação radical promovida pela(s) nova(s)

revolução(ões) industrial(is) e tecnológica(s) que, para além de libertar o homem do

trabalho – como ansiava uma certa tradição socialista -, desfaz o segundo elemento, ao

mesmo tempo em que projeta este homem “livre” da opressão da máquina para a mais

absoluta exclusão dos benefícios desta sociedade tecnológica. O homem livre do trabalho

se vê abandonado à sua própria “falta” de sorte, diante de uma autoridade pública

fragilizada, bem como de um deslocamento e pluralização de instâncias de poder –

públicas, privadas, sociais, marginais.

Poderia dizer e contra-argumentar, resta o Estado Jurisdição para recolocar tudo

nos trilhos... Mas, o Estado Jurisdição é tão Estado quanto o Estado Legislador ou o

Estado Administrador.

Aliás, uma das marcas características da modernidade estatal é a unidade do

poder político, sendo a sua organização funcional apenas uma estratégia, também forjada

no seio do liberalismo, para a sua funcionalidade e autocontrole recíproco.

Aqui, a alternativa ao projeto civilizatório do Estado apresenta-se como a

reinstauração da fragmentação feudal ou da barbárie natural hobbesiana.

Um Estado fragilizado gerindo um pacto cujos elementos caracterizadores da

equação original foram completamente transformados, é anúncio de fracasso.

O pressuposto da “socialidade”, apontada antes, se desfaz não apenas com a

reprivatização ou apropriação privada do espaço e das prestações públicas, como

também com a desconstrução da fórmula de interesse entre democracia e capitalismo (de

produção), até mesmo porque esta “socialidade” é uma marca da ação civilizatória do

Estado agindo por sobre o egoísmo característico do espaço privado e da economia

liberal (capitalismo).

Isto nos leva a outro ponto.

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Já disse antes que o Estado Social não se autonomiza do seu ambiente liberal –

sobretudo do seu núcleo econômico (liberismo/capitalismo) –, tanto é que vimos como ele

vem dependente desta relação de base construída ante o reconhecimento das conquistas

sociais e os interesses do próprio capital.

Ora, neste quadro é preciso reconhecer que, assim sendo, este Estado Social não

renega sua origem, mas apenas domestica suas pulsões de morte. E o faz por meio de

políticas públicas compensatórias de carências, desde que isto não signifique a negação

dos fundamentos de suporte do núcleo econômico do liberalismo – o capitalismo – que

vem recompensado com a socialização dos custos de infra-estrutura econômica, de

higidez para o trabalho e de um mercado consumidor em expansão.

Dito de outro modo rápido e um pouco grosseiramente: o Estado Social não

apenas convive, mas admite e incorpora uma relação de inclusão e exclusão em níveis

distintos, mas intransponíveis, sem se livrar de níveis de individualismo possessivo

próprios do indivíduo liberal.

Para haver inclusão, um certo nível de exclusão continua sendo aceito. A questão

é: quanta inclusão é possível ou, ao contrário, quanta exclusão se admite, mantendo-se o

Estado Social?46

A experiência histórica tem demonstrado níveis bastante distintos. Basta olharmos,

hoje sobretudo, para os âmbitos de promoção social na Escandinávia, Canadá, França,

Itália, Espanha, Portugal, para vermos o quanto se diferenciam, sobretudo quando a

globalização não incorpore a aceitação do outro.

Mas, mesmo no mais exitoso deles, os elementos fundantes permanecem

assegurados: propriedade privada, apropriação do lucro etc...

E há que se considerar, ainda, que passamos das carências localizadas para os

riscos globalizados47.

E nem se falou em Brasil. Seja pela dificuldade de classificá-lo como Estado Social,

seja pela nossa dívida histórica que necessita ser resgatada48.

46 O que eu quero dizer com isso é que, com dor no coração, para alguns viverem alguns outros perecem....Esta é uma marca inafastável do modelo econômico capitalista. 47 Este tema enfrentei em: Do Estado Social das “Carências” Ao Estado Social dos “Riscos”. Ou: de como a questão ambiental especula por uma “nova cultura” jurídico-política. BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e STRECK, Lenio Luiz (Orgs.). Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. No prelo. 48 Já Saramago, em entrevista, perguntado sobre os movimentos de fast e slow food disse que o problema é darmos um prato de comida a toda a gente, em primeiro lugar, depois nos preocuparmos com o melhor modo de comer. Não resolvemos este pequeno detalhe e já estamos enfrentando um dilema maior.

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E o Brasil nisso tudo... Quando o constituinte pátrio – e vejam que a CF/88 foi fruto de uma Assembléia

Nacional Constituinte não exclusiva, além de dominada por grupos conservadores

(Centrão), o que deixou estupefatos os atores de esquerda (palavra fora de moda), bem

como espantou até mesmo os juristas progressistas que se viram constrangidos a lidar

com algo que não estavam acostumados, gerando uma certa paralisia e produzindo

efeitos nefastos para o projeto constitucional ali inaugurado – incluiu no rol dos direitos

sociais a saúde, impondo ao Estado o dever de prestá-la, inclusive sem nenhum tipo de

contraprestação específica – contribuição social (direito de cidadania) – o fez, na esteira

do neoconstitucionalismo, como um conteúdo característico do Estado Social finalmente e

tardiamente projetado para o País que então se anunciava redemocratizado.

Porém, lidar com este texto implica o tomarmos nas suas condições históricas, na

sua cultura (tradição), no seu contexto, para que tiremos dali a norma que vem contida –

em uma perspectiva hermenêutica –, sem transformarmos alguns preceitos

constitucionais em verdadeiros curingas argumentativos, como se percebe, por ex., na

jurisprudência pátria com o princípio da dignidade da pessoa humana, que vem, de regra,

como suporte para qualquer coisa, sem que lhe seja atribuído um significado no/para o

caso concreto, sem que se lhe perceba, em sua dupla dimensão (defensiva e

prestacional), sendo, ao mesmo tempo, um traço distintivo da pessoa humana e uma

tarefa de configuração vinculada ao objetivo de sua máxima medida.

Temos, assim, três perguntas a serem respondidas:

1)Qual a norma contida no texto constitucional?

2)A quem se destina tal comando? Quem é o responsável por sua concretização e

quem é o destinatário final do conteúdo assegurado?

3)Quais as condições e instrumentos ótimos para a execução deste comando?

Estado Democrático de Direito, Constituição e a realização do direito à saúde como exemplo.

Para compreendermos o tema sob tal ótica é preciso que partamos dos contornos

constitucionais que se produzem no âmbito do chamado constitucionalismo social e,

particularmente, no contexto do século XX – em sua segunda fase – quando se inaugura

o que se denominou Estado Democrático de Direito – EDD – (ver art. 1o da CFB/88),

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como produto, até mesmo, de uma expectativa renovada de reconstrução democrática de

sociedades marcadas por experiências autoritárias.

No âmbito destes modelos de Estado – EDDs – o constitucionalismo adquire um

caráter que, embora não seja inédito, incorpora, ainda mais, um projeto de uma sociedade

em constante caminhar rumo à desconstrução das diferenças sociais e à realização –

permanentemente inalcançada – de um projeto justo, solidário que visa erradicar a

pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o

bem de todos (art. Art. 3o) identificado pela prevalência dos direitos humanos e pela

cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4o)e marcado pelo

“pressuposto” fundante da dignidade da pessoa humana (art. Art. 1o, III).

Neste contexto, por óbvio, emerge como bem maior a vida (art. 5o caput). Porém,

aqui, já não se está diante da dúvida hobbesiana acerca do tema, mas da certeza de que

está diante do compromisso de realizar a vida como dignidade, como qualidade de vida

(art 225 – meio ambiente) e não só sob a perspectiva de cada um isoladamente, mas

inseridos em seu contexto, assegurando que o ambiente de vida também deve ser

marcado pelo seu destino de bem-estar (art. 182 – política urbana – funções sociais da

cidade, como repercussão da função social da propriedade – art. 5o., XXIII, art. 184 –

política agrícola e fundiária e reforma agrária).

Assim, para sintetizar a opção pelo EDD impregna a ordem jurídica de seu caráter

de promoção do bem-estar e de transformação das circunstâncias de desequilíbrio.

Tem-se, neste quadro, o estabelecimento de um projeto de sociedade que

constitui-se sob pressupostos substanciais que precisam ser concretizados no âmbito da

ação estatal, seja por intermédio de normas integradoras do texto constitucional, seja pela

prestação de políticas públicas e serviços que visem dar conta do acordo constitucional

seja, ainda, pela realização jurisdicional do conteúdo da norma constitucional.

Ou seja: o EDD pressupõe uma atuação comprometida das funções do Estado,

voltadas para a realização, nunca concluída – já que a busca permanente é uma das

características da própria democracia –, do projeto de sociedade que vem identificado no

texto da Constituição.

Tal nos coloca frente a dois dilemas. De um lado, sob a perspectiva da Teoria do

Estado, a questão das características peculiares ao modelo de bem-estar constituído ao

longo do século passado e que, desde os anos 1970 – apenas para tomar como uma

referência histórica – vem sofrendo com o desajuste de seus pressupostos financeiros

frente à crise econômica do capitalismo, sua transformação – passagem de um

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capitalismo de produção para um capitalismo financeiro – e das transformações e

descobertas tecnológicas que, se apresentam melhores condições para o tratamento e a

prevenção de doenças ou para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, impõem ao

Estado custos adicionais não previstos pelo modelo de bem-estar – seja pela melhor e

maior expectativa de vida, seja pelos custos dos tratamentos médicos, seja pelos

distúrbios promovidos na sociedade do trabalho pela transformação do capitalismo. Isto

desemboca no que vamos nomear crise estrutural do Estado de Bem-Estar, afetando sua

capacidade de fazer frente aos custos sempre acrescidos das prestações estatais,

sobretudo em um ambiente de escassez econômica, sem considerarmos, ainda, as

próprias insuficiências do modelo de bem-estar – clientelismo, infantilização,

reprivatização etc.

De outro, nos vemos frente a um constitucionalismo que se caracteriza como

dirigente – para utilizar um conceito que ficou em voga, em particular, a partir de sua

utilização por J. J. Gomes Canotilho – e que supõe uma abertura significativa de

conteúdos, para além da incorporação de novas garantias, em face de seu caráter

eminentemente principiológico e valorativo – não que isso seja inédito na história do

constitucionalismo –, bem como projeta e promete uma solidariedade social que vise e

permita realizar a promessa de inclusão social contida na Constituição.

Este constitucionalismo traz para o Estado – em particular neste ambiente de crise

e escassez antes mencionados – uma tensão permanente, inclusive em seu âmbito

interno, seja pela insuficiência da doutrina constitucional para lidar com tais conteúdos,

seja diante do que se convencionou nomear como judicialização da política – como já dito

antes –, uma vez que as frustrações diante da não realização das promessas

constitucionais são levadas à jurisdição para que esta diga acerca do seu conteúdo e,

mais, na medida do possível, viabilize a sua realização.

A crise do Welfare state afeta profundamente a realização das garantias

constitucionais – e.g. do direito à saúde – tanto sob o viés de um bem comum que as

mesmos representam, como no caso específico pela ampliação de suas dimensões que

ultrapassam a cura e a prevenção da doença e passam a operar na perspectiva da

promoção da vida digna e com qualidade, quanto sob a perspectiva da sociedade do

trabalho, onde esta aparece como uma utilidade, já que o trabalhador deve estar saudável

para poder produzir bem e... mais49.

49 Deve-se ter presente que o Estado do bem-estar social da segunda metade desse século reforça a lógica econômica, especialmente em decorrência da evidente interdependência entre as condições de saúde e de trabalho, e

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O que fazer, portanto, para dar conta, em um EDD, do direito à saúde como

qualidade de vida se as condições necessárias para tanto, no contexto de um arranjo

estratégico entre política de bem-estar e economia capitalista, se vêem ameaçadas pelos

fatores e circunstâncias pretendias referir sinteticamente acima?

As respostas são diversas e difíceis. Algumas supõem a necessidade de levar a

cabo as propostas da modernidade e do EDD; outras jogam com a imprescindibilidade de

termos que adaptar-nos às novas circunstâncias, promovendo um arranjo possível entre

as promessas constitucionais e os limites impostos pelos parâmetros da eficácia

econômica, considerando-se que hoje, talvez mais do que sempre, a política – e, com

isso, o direito – vem pautada pela economia. Outras vêm marcadas pela referência à

necessidade de que se coloque esta discussão sob novas inflexões.

De qualquer modo, no espectro do EDD, a saúde é, ainda, um bem a ser

assegurado e promovido – responsabilidade coletiva e solidária – como e por meio de

políticas públicas que vêm marcadas pelas características do próprio Estado e,

fundamentalmente, orientadas à concretização da dignidade da pessoa como pauta

mínima, uma vez que o retrocesso não se coaduna com o constitucionalismo dirigente

que lhe é peculiar.

Mas não só estas limitações locais e circunstanciais atingem-na. Há, ainda que

levar-se em conta o contexto no qual está inserida, o qual não difere do espectro maior

que envolve o conjunto dos direitos e garantias fundamentais.

Como reflexo das transformações tecnológicas ocorridas ao longo do século XX,

mas, por óbvio não só delas, uma nova fase de globalização se apresenta. Esta vem

marcada por uma transformação na base econômica do liberalismo – o capitalismo, o qual

vem pautado por um novo modelo de produção de lucro, que não mais se vincula à

produção e ao consumo, mas à reprodução do próprio capital, no âmbito de um novo

mercado em ascensão, o financeiro, onde os investimentos não se dão na base produtiva

e em suas estruturas, mas na reprodução ascética do próprio capital.

Nesta nova onda do capitalismo, no que diz com os direitos sociais – a saúde aí

incluída – o que se tem são as propostas inseridas no âmbito do que se convencionou

reconhecer como neoliberalismo e que, para o enfrentamento da crise estrutural do EBE,

responsabiliza-se pela implementação da prevenção sanitária. Ver: DALLARI, Sueli G. e VENTURA, Deisy de Freitas Lima. Reflexões sobre a saúde pública na era do livre comércio. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). A Saúde sob os cuidados do direito. Passo Fundo: EDUPF. 2003. p. 34.

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antes referida, sugere uma reforma do Estado que vem marcada pela desregulação,

flexibilização e privatização50.

Sem retomarmos tal debate, é preciso ter presente que o direito à saúde não fica

imune a tais aspecto e acaba repercutindo estas propostas pela reapropriação de uma

responsabilidade individual no que diz com o tema.

É neste quadro que renovam-se posturas individualistas, entre outras de perfil

assistencialista que visam recompor as insuficiências do trato da questão social por meio

de políticas públicas estatais.

Tal perspectiva pode ser bem percebida pela reapropriação e revalorização das

práticas privadas na prestação dos serviços de saúde, pela reinstituição de uma economia

privada em saúde e por práticas securitárias – seguros privados saúde.

O que chama a atenção aqui é que a fórmula includente do Estado Social vem

substituída por estratégias individuais ou corporativas de proteção contra perigos e riscos,

sendo que aqueles outros – os excluídos – não têm chance de assegurarem-se contra os

mesmos, ficando sujeitos às prestações publicas já, agora, de caráter subsidiário.

A perspectiva solidária, marca peculiar ao EBE, vem substituída – ou ladeada – por

uma responsabilidade social quando, então, a ação estatal passa a ser apenas

relacionada às questões macro que afetam algumas das afecções marcantes destes

tempos, como pode-se perceber no enfrentamento da AIDS51.

Tal orientação pode ser verificada, no caso do Brasil, nas inúmeras demandas

postas em juízo buscando a prestação de remédios ou tratamentos específicos, o que,

malgrado o seu feitio de realização da garantia constitucional, reflete um viés

eminentemente individual de acesso ao bem – saúde – constitucional, sobretudo se

verificado em uma situação de dificuldades de realização do próprio acesso à justiça, o

qual vem precedido do inevitável acesso ao direito.

De fato, tal situação rompe com o modelo histórico de proteção sanitária como

prevenção – seja primária de prevenção geral (evitar ficar doente – saneamento etc –,

alimentação, exercícios físicos), secundária de prevenção específica (evitar doenças

específicas (vacinação etc) e terciária (reduzir repercussões das incapacidades crônicas e

50 Como referem Sueli G. Dallari e Deysi Ventura: (...)o predomínio da ideologia neoliberal provocou uma diminuição do papel do Estado na sociedade em favor dos grupos associações e da própria responsabilidade individual. Op. cit., p. 35 51 Este exemplo parece elucidativo de uma tendência: as políticas, no caso específico, têm repercutido a lógica de que a saúde deve ser percebida no âmbito da responsabilidade individual, ladeado por estratégias coletivas de caráter familiar, de portadores e amigos, restando ao Estado a função subsidiária de controle do sangue.Aqui mereceria atenção particular o caso das políticas setoriais brasileiras, o que vai além dos limites do presente trabalho.

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sua recidiva) apresentando uma nova concepção de saúde pública que considera as

insuficiências do EBE, por um lado, e a participação do indivíduo, por outro.

Por outro lado, o tema saúde também tem serventia para iluminar um dos aspectos

que marcam o ambiente contemporâneo, qual seja a ultrapassagem do modelo do Estado

Nacional como instância única e exclusiva para o tratamento e alocação dos desafios.

A quebra da unidade estatal e de sua exclusividade no campo da política, que se

expressa no âmbito das instituições pela notória incapacidade de os Estados Nacionais

decidirem com exclusividade acerca dos assuntos públicos, promove não apenas a

dependência destes diante de decisões produzidas além-fronteiras, com a necessidade

de ajustes de suas políticas às determinações de redução de gastos, controle do déficit

público, ajuste fiscal etc, como também repercute um novo contexto de riscos que se

apresentam não mais localizados ou vinculados a fatores próprios ou peculiares a

determinadas regiões ou populações, mas agora dizem com questões que afetam ou

podem afetar ordinariamente todos e ninguém ao mesmo tempo.

Ou seja, a globalização, vista sob a perspectiva dos riscos, trouxe à cena o

problema dos riscos globais ou, parafraseando o tema dos interesses transindividuais,

poderíamos dizer que estamos frente a riscos transindividuais, os quais põem em

evidência a quebra dos limites territoriais como instâncias geográficas de autarquização

peculiares aos Estados da modernidade.

Ou seja, os novos riscos revelariam, portanto, a necessidade de uma preocupação

global de proteção e promoção também em matéria de saúde pública, talvez marcada

pelo mesmo parâmetro que substituiu inicialmente a responsabilidade individual pela

solidariedade social.

Porém, o que se tem apresentado como novidade na área é a instauração do

chamado princípio da precaução, o qual dá origem a um novo “paradigma”, em

substituição à responsabilidade e à solidariedade, o da segurança, que se constitui sob a

perspectiva da vigilância para dotar-se de meios de prever o surgimento de eventuais

danos antes mesmo de ter a certeza da existência de um risco52.

Ou seja, confrontado frente ao risco global a estratégia que se adota,

paradoxalmente, é a da defesa local como um dever do Estado.

52 Dallari e Ventura, op. cit., p. 43.

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Resta a dúvida, qual o caráter deste “modelo” neste contexto de superação das

fórmulas modernas e de substituição das instâncias políticas pelas econômicas e dos

espaços nacionais pelas sedes internacionais, do espaço público pelo privado? Não

estaríamos, aqui, mais uma vez, sendo reféns de uma política de segurança ,no caso

sanitária, que, mascarada pela precaução contra riscos atuais e futuros, se constituiria

como uma nova pauta das práticas protecionistas – uma vez que a crise de soberania

incide diversamente nos diversos Estados Nacionais – e, pior, ao invés de constituir-se

um espaço de tratamento comum do risco difuso, estaríamos projetando novas

possibilidades de xenofobismo e segregação?

Dito de outro modo, de alguma forma este novo “paradigma” vem ao encontro, de

um certo modo, de todo um modelo de política global, a qual se sustenta e projeta uma

perspectiva de exclusão e de montagem de estratégias baseadas na negação do outro,

na dualidade amigo/inimigo, a qual, eventualmente pode substituir a tradicional relação

nacional/estrangeiro, e que aparecem, e.g., no combate ao terrorismo, nas novas formas

de segregação racial presentes na Europa etc.

Como, então, fica a saúde ou o direito à.

Diante de um quadro de desfazimento da fórmula do EBE, seja por suas próprias

insuficiências e crenças ou por seus sucessos e fracassos – inclusive nas potencialidades

de uma racionalidade cientificista apta a solucionar todos os dilemas modernos e uma

burocracia técnica pronta a dar respostas satisfatórias às demandas políticas – seja pela

propalada crise fiscal que se lhe abate, o próprio constitucionalismo que lhe dá

formatação vê-se constrangido e deslegitimado diante das disputas que se estabelecem

entre a busca de efetividade da Constituição e as pautas estabelecidas pela perseguição

da eficácia econômica, muitas vezes veiculada a partir dos pressupostos de uma

economia globalizada que além e porque transformada se autonomiza dos limites da

política.

Por outro lado, em um ambiente de risco crescente e globalizado, este mesmo

novo espaço econômico projeta a ruptura completa do modelo de solidariedade social que

orienta a fórmula do Estado Social, substituindo-o pela preocupação com a segurança

contra os riscos que podem vir de toda e qualquer parte, estão em todos os lugares e

podem afetar a todos indistintamente.

Para proteger-se do risco natural ou criado a nova ordem é a segurança. Mas

segurança contra o que? contra quem? Quando? Onde?

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Na dúvida, na ausência de um sistema de definição, controle e gestão dos riscos,

erige-se a segurança como máxima. E, talvez, este seja apenas mais um risco...

Afinal, se uma Constituição de valores trazia o problema da atribuição de sentido à

norma jurídica, uma sociedade de riscos põe a interrogação acerca da atribuição de

sentido ao paradigma da precaução.

Porém, se a política – como diálogo democrático – foi substituída pela economia –

como monólogo da eficácia, quem decide? Este talvez seja o maior de todos os riscos

para a saúde e sobrevivência da humanidade como tal.

Não há dúvida. Havemos de estender um prato de comida a todos. E aqui o

problema não é relacionado à velocidade com que se lançará o destinatário sobre a

mesma. O problema é qual e o quanto de comida há de ser-lhe ofertado ou está-se

disposto a ofertar-lhe, tendo presente tudo o que foi dito acima.

Esta resposta, ao que parece, mesmo diante de seus dilemas, continua sendo

cativa do Estado Social.

Outra resposta exigiria uma outra sociedade, sobre novas bases e, aí, não sei até

que ponto estaríamos empenhados em sua construção...

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DO ESTADO SOCIAL DAS “CARÊNCIAS” AO ESTADO SOCIAL DOS “RISCOS”.

Ou: de como a questão ambiental especula por uma “nova cultura” jurídico-política

Jose Luis Bolzan de Morais∗

“O problema, contudo, é que, ao que parece, não parecemos estar nem equipados nem preparados para esta atividade de pensar, de instalar-se na lacuna entre o passado e o futuro. Por longos períodos em nossa história, na verdade no transcurso dos milênios que se seguiram à fundação de Roma e que foram determinados por conceitos romanos, esta lacuna foi transposta por aquilo que, desde os romanos, chamamos de tradição. Não é segredo para ninguém o fato de essa tradição ter-se esgarçado cada vez mais à medida que a época moderna progrediu. Quando afinal rompeu-se o fio da tradição, a lacuna entre o passado e o futuro deixou de ser uma precondição peculiar unicamente à atividade de pensamento e adstrita, enquanto experiência, aos poucos eleitos que fizeram do pensar sua ocupação primordial. Ela tornou-se realidade tangível e perplexidade para todos, isto é um fato de importância política.” (Hannah Arendt, no Prefácio de Entre o passado e o futuro, p. 05)

“A estrela mente o mar sofisma. De fato,

o homem está preso à vida e precisa viver o homem tem fome

e precisa comer o homem tem filhos

e precisa criá-los Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.”

(Ferreira Gullar, No mundo há muitas armadilhas)

∗ Professor e Coordenador do PPGD/UNISINOS. Pesquisador do CNPq. Consultor “ad doc” CNPq, CAPES, MEC e INEP. Membro Conselheiro do IHJ. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul.

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Pensar a questão ambiental tem imposto aos atores juristas, politólogos,

sociólogos, dentre outros – ou em uma mistura necessária para uma leitura

transdisciplinar competente – a necessidade de buscar compreender não só a

emergência deste novo – já nem tanto – dilema social, assim como o compromisso de

inseri-lo na agenda político-econômico-social diante da emergência de novos riscos53, os

quais superam em muito as velhas carências, envolvendo o repensar do perfil das

fórmulas político-jurídicas modernas condensadas no Estado.

Para os limites deste trabalho basta reter que a idéia de risco comporta um

componente volitivo, enquanto a de perigo é vista como uma possibilidade de ocorrência.

O risco se vincula a uma opção, enquanto o perigo pode emergir independentemente de

um querer. O perigo é contingente, enquanto o risco é conseqüente.

E, por isso, podemos dizer que há um risco ambiental, como conseqüência de uma

opção civilizatória – marcada pela sociedade fabril, pela massificação do cotidiano, pelo

esgotamento dos recursos naturais, pela razão instrumental e etc. –, ao mesmo tempo em

que há perigos que independem desta. E, assim, risco e perigo se entrelaçam.

Por outro lado, a passagem das carências para os riscos, mesmo tendo contribuído

para uma mudança paradigmática, impondo-a até mesmo, parece não ter sido suficiente

para instaurar uma nova cultura do/no direito, mesmo diante dos termos do art. 225 da

CFB/88, bem como não tem sido objeto de atenções suficientes por parte da teoria

política diante da emergência de referências novas para as práticas políticas, sobretudo

pela demarcação de novos terrenos, os quais não se limitam ou identificam com as

tradicionais fronteiras da soberania.

É a isso que vamos dedicar nossa reflexão, tomando como fundamento todo o

debate que temos travado em torno dos dilemas experimentados pela fórmula estatal

moderna, tendo a certeza que, em face de sua importância e dimensão, não daremos

conta sequer de atingir parcela significativa da discussão e não alcançaremos o universo

da temática sugerida, diante dos limites desta publicação, uma vez que a própria

53 Não desconhecemos a distinção entre ‘risco’ e ‘perigo’. Embora ela não seja imprescindível para o desenvolvimento do argumento do texto, vale registrar que os riscos são conseqüências de decisões, pressupondo, portanto, a consciência de danos possíveis. Já o perigo não tem relação com essa consciência, pois provocado exteriormente. Isso não significa que risco e perigo não estejam interligados, eis que o risco pode gerar perigos. Para uma melhor compreensão da distinção recomenda-se a análise de BECK, Ulrick. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo XXI, 2006. LUHMANN, Niklas. Sociologia del riesgo. México: Triana Editores; Universidad Iberoamericana, 1998; dentre outros.

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possibilidade de pensarmos na construção de um Estado Social que venha marcado pelo

compromisso sócio-ambiental nos impõe a tarefa de refletirmos as condições de

possibilidade para uma nova cultura jurídico-política que não venha demarcada e

submetida aos parâmetros que a modernidade estabeleceu, mas, ao mesmo tempo, não

perca o horizonte de sucessos que esta mesma tradição aportou à história da

humanidade, mesmo não tendo sido capaz de, com isso, blindá-la das perversidades

experimentadas e até hoje não resolvidas.

Ou seja: vamos lançar as bases para uma discussão que pretende inserir um novo

componente à já expressiva interrogação acerca das circunstâncias que envolvem as

estruturas jurídico-políticas modernas, bem como suas potencialidades.

Propomos, assim, uma reflexão que considere os termos novos trazidos pelo

debate posto a partir dos nomeados novos direitos, dos quais o tema ambiental implica na

necessidade de reestruturação de toda a cultura jurídico-política moderna marcada por

um saber técnico que ao mesmo tempo em que sustentou o novo, implicou também na

sua redução epistemológica a categorias disciplinares e disciplinadas, assim como

circunscreveu seu âmbito a uma tentativa de domesticação das possibilidades ao espaço

geográfico delimitado do Estado Nação – com seu elemento territorial, marco geográfico

de sua ação soberana.

A partir destas constatações pode-se avançar para uma análise acerca das

condições e possibilidades de e para a compreensão do fenômeno jurídico-político

contemporâneo, bem como das circunstâncias para o enfrentamento dos novos dilemas

que se apresentam para a continuidade/transformação da civilização, tomando-se como

referência o trânsito experimentado com a passagem da questão social para a questão ambiental, com suas novidades e sem que a primeira tenha sido adequada e

suficientemente tratada e resolvida, em todos os lugares e para todas as pessoas.

Para isso, organizamos esta primeira aproximação em duas partes. Na primeira

retomaremos alguns aspectos relativos à estruturação do direito contemporaneamente a

partir de sua “expansão” subjetiva e, na segunda, buscaremos refletir os limites das

fórmulas jurídico-políticas modernas para suportar o “novo” da questão ambiental, sem

sequer ter solvido o “velho” da questão ambiental.

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1 O Direito e a nova cultura jurídica

Tendo presente os termos da CF/88, percebemos que estamos diante de um direito

novo não apenas no conteúdo que regula, mas na estrutura que adota. E, para o que aqui

interessa, este novo vem expresso no reconhecimento de conteúdos que expressam o

reconhecimento de dilemas nascidos das próprias circunstâncias da modernidade e de

suas implicações, como pode ser percebido da regulação de um direito ao meio ambiente.

Nos termos do art. 225 da Carta Política de 1988, pode-se perceber o que

sugerimos acima, como se lê:

Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Compreender a complexidade da norma contida neste texto, sem enveredarmos

por seu trato hermenêutico, nos faz perceber o caráter novo que aqui se apresenta.

Neste sentido emergem fundamentalmente duas grandes espécies de interesses

reconhecidos pelos ordenamentos jurídicos contemporâneos, quais sejam, os individuais e os transindividuais – estes, os coletivos e os difusos –, o que passaremos a estudar a

seguir, não sem anotar a ocorrência de outros interesses, como os individuais

homogêneos, os quais não serão objeto de estudo neste momento, assim como não sem

termos presente que esta tríade pode ser pensada sob a vertente dos direitos

fundamentais e suas dimensões já clássicas – individuais (liberdades), sociais

(econômicos e culturais) (igualdades) e de fraternidade, mesmo tendo sido esta a

característica “esquecida” da revolução liberal, muito embora faça parte da formatação do

novo Estado Liberal – o Estado do Bem-Estar Social.

Neste contexto, como diz François Ost:

(...) falta, pois, imaginar um estatuto jurídico do meio, que esteja à altura do paradigma ecológico marcado pelas idéias de globalidade (“tudo constitui sistema na natureza”) e de complexidade; um regime jurídico pertinente face ao caráter dialético da relação homem-natureza, que não reduza, portanto, o movimento ao domínio unilateral de um sobre o outro54.

54 Ver: OST, François. A Natureza à margem da lei. Ecologia à prova do Direito. ., p. 351

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Assim, a questão que nos foi posta se insere neste contexto onde, para um

adequado tratamento político-jurídico do tema é preciso ter-se presente que a

problemática ambiental necessita estar reconhecida no conjunto dos interesses transindividuais55, como veremos na seqüência.

A ordem jurídica contemporânea, para além dos tradicionais interesses individuais,

vem composta com os interesses transindividuais, dentre os quais aparecem, em

primeiro lugar, os chamados interesses coletivos que, estando titularizados por um

conjunto de pessoas, permanecem adstritos a uma determinada classe ou categoria, ou

seja, são interesses que são comuns a uma coletividade de pessoas e a elas somente.

Para a caracterização destes pressupõe-se a delimitação do número de

interessados com a existência de um vínculo jurídico que una os membros desta

comunidade para que, assim, a titularidade possa ser coletivamente definida.

O que se percebe desde logo é que, embora coletivos, tais interesses têm uma

titularidade perfeitamente visível, pois identificada com os membros de um determinado

grupo, unidos por um laço jurídico de relacionamento. Neste espectro podemos, então,

situar, exemplificativamente, a sociedade mercantil, o condomínio, a família, o sindicato,

os órgãos profissionais, entre outros, como grupos de indivíduos nos quais aparecem tais

interesses.

Ou seja, o interesse será coletivo quando titularizado pelos elementos pertencentes

a um grupo perfeitamente delimitado subjetivamente, pois juridicamente unidos. Assim, o

interesse coletivo tem como titulares, apesar de sua extensão numérica, um conjunto

delimitável e perceptível de pessoas.

A lei 8078/90 – Código do Consumidor - estatue:

Art. 81, II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica.

O âmbito dos interesses coletivos está longe de esgotar as possibilidades desse

processo de despersonalização dos interesses.

Se, do início aos meados do século XX, a resposta jurídica à questão social e aos

demais aspectos ligados ao Estado do Bem-Estar Social significaram uma crise profunda

55 Etsta temática foi tratada no nosso Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. O Estado e o direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1996, com 2ª edição no prelo).

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da idéia de interesses individuais e o surgimento de interesses coletivos, a segunda

metade deste mesmo período histórico impõe, diante do próprio esgotamento das

condições vitais do planeta, ao lado de outros problemas ligados à sociedade industrial,

novas questões que, para serem apreendidas pela regulação jurídica, significam o

aprofundamento da crise da racionalidade jurídica individualista, o que pode ser alocado

sob a perspectiva do que estamos nomeando como questão ambiental – sem que esta

se restrinja ou identifique com o problema da preservação ambiental em sentido estrito –,

em paralelo à questão social que caracterizou e pautou a formação do Estado Social em

todas as suas versões desde meados do século XIX.

São estes novos impasses relacionados genericamente à qualidade de vida das

pessoas que põem na ordem do dia um novo tipo de interesses – os difusos.

Estes, apesar de estarem relacionados à coletividade de indivíduos, distinguem-se

dos coletivos por não estarem alicerçados em qualquer vínculo jurídico estrito de base e,

com isso, não terem uma delimitação quantitativamente. Há um vínculo sim, mas de

natureza constitucional.

A reunião de pessoas em torno de um interesse difuso assenta-se em fatos

genéricos – como diz o art. 81 do Código do Consumidor56 – ou tem base constitucional,

acidentais e mutáveis, como habitar a mesma região, consumir os mesmos produtos,

viver sob determinadas condições sócio-econômico-ambientais, sujeitar-se a

determinados empreendimentos, etc., como refere o jurista italiano Mauro Cappelletti57.

Em razão disso, o grupo ligado aos interesses difusos apresenta-se fluido, indeterminado

e indeterminável, pois estão diluídos na satisfação de necessidades e interesses de

amplos e indefinidos setores da sociedade de massas, característica dos tempos atuais.

Com o crescimento de importância das questões envolvendo tais interesses difusos

aprofunda-se, ainda mais, a incompatibilidade destes com uma teoria jurídica tradicional

acostumada a reconhecer e atrelar a todo interesse um titular visível e reconhecível. Os

interesses difusos significam uma indeterminação subjetiva de sua titularidade e, ainda,

implicam uma reestruturação e ressiginificação das fórmulas jurídicas tradicionais, posto

que assumem âmbitos inovadores, para além das identidades territoriais, bem como para

além do presente – uma vez expressarem um compromisso intergeracional.

56 Diz o Código do Consumidor (Lei 8078/90) em seu art. 81, I: interesses difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. 57 CAPPELLETTI, Mauro, Formações Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil, pp. 128-59.

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Os interesses difusos caracterizam interesses que não pertencem a pessoa alguma

de forma isolada, tampouco a um grupo mesmo que delimitável de pessoas, mas a uma

série indeterminada ou de difícil determinação de sujeitos. de lugares e de gerações

distintas. Neste sentido é já tradicional a questão posta por M. Cappelletti inquirindo a

quem pertence o ar que respiramos (?) e respondendo: a cada um e a todos, a todos e a

cada um.

Eu acrescentaria: daqui e dali (lugares indefinidos); de hoje e de amanhã (tempos

indefinidos).

Os interesses transindividuais difusos implicam em um aprofundamento e reforço

dos laços de união fáticos que reúnem o grupo "difuso" de pessoas em torno a

determinado interesse, assim como, em razão de sua indeterminação subjetiva, a

"comunidade" de interessados pode assumir contornos avantajados, referendando o que

chamaríamos amplitude máxima – por isso os contornos abertos, fluidos dos

agrupamentos – inclusive para além das referências territoriais próprias do Estado e da

geração atual.

O que se percebe do descrito acima é que, mais do que uma seqüência evolutiva

no sentido da despersonalização dos interesses, temos uma realidade jurídico-normativa

que convive com tipos diversos de pretensões, muito embora tendamos a privilegiar as

referentes aos interesses transindividuais, especialmente os difusos, em razão de sua

importância fundamental no presente e para o futuro, como os que dizem respeito a

questões relativas ao meio ambiente em sentido amplo.

É inafastável, contudo, que pensemos a realidade do Direito como uma convivência

complexa entre interesses individuais, coletivos e difusos58, da mesma forma que as que

referem as dimensões de direitos humanos, como visto antes.

Com isso, observa-se que a realidade envolvente do Direito implica na

contemporaneidade de interesses muitas vezes contraditórios entre si e que exigem a

tomada de posição frente a problemas estruturais que não se restringem a uma operação

simples de dizer quem tenha e quem não tenha a sua pretensão reconhecida pelo

ordenamento jurídico, de estabelecer um ganhador e um perdedor – ganhadores e

58 Não referimos aqui aqueles interesses individuais homogêneos também presentes na regulação jurídica contemporânea, por despiciendo para os objetivos do presente trabalho. Todavia, é preciso ter-lhes em conta como espécie dos interesses transindividuais. Sobre o tema ver o nosso Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. O Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1996. Passim.

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perdedores podem ser todos, o que faz desaparecer o sentido mesmo de ganhar e

perder.

2 O Estado Liberal: das carências sociais aos riscos ambientais

Uma das expressões mais “vivas” dos novíssimos interesses – os difusos – é sem

dúvida aquela que diz com a questão ambiental, nos termos já referidos acima, a qual,

pode-se dizer, substitui, ou melhor: se agrega, já em meados do século passado à

nominada questão social, característica da transformação do Estado Liberal, de seu

feitio mínimo para o social.

Ora, se no final do Século XIX e início do Século XX o tratamento da questão social

transformou a face do Estado Liberal, impondo-lhe um caráter intervencionista tendo

como sentido não apenas a proteção de pretensões, mas, e sobretudo, a promoção de

modos de vida através, principalmente de prestações públicas e de normas premiais, a partir da metade do último século viu-se, desde a explicitação das possibilidades de

extinção massiva da espécie humana e do esgotamento de recursos naturais, entre

outros fatores, a incorporação de um novo conjunto de preocupações cujo atendimento

pressupunha uma transformação radical nas práticas jurídico-político-sociais, posto que

estas novidades não se enquadravam em nenhum dos esquemas até então forjados para

dar conta dos interesses juridicamente relevantes – individuais e coletivos, as liberdades

“de” e as liberdades “do” ou “da”.

A questão ambiental pôs em pauta não apenas a necessidade de se pensar

estratégias novas de tratamento jurídico-político, como trouxe para o universo de

preocupações jurídico-econômico-políticas o asseguramento das condições de vida – com

qualidade – para as futuras gerações, uma vez explícita a sua inapropriabilidade

exclusivista – própria aos interesses individuais – e tão só contemporânea – ou seja, do

tempo presente – por, como diria Mauro Cappelletti, dizer respeito a todos e ninguém ao

mesmo tempo, sendo todos incluindo os das presentes e os das futuras gerações –

forjando o que se nomeia como compromisso intergeracional. Ou seja, para o campo jurídico, a questão ambiental impôs não apenas a revisão

de seus esquemas conceituais e estruturais, como também apresentou um novo ator

interessado, até então desconhecido ou desprezado, as gerações futuras. Assim, pode-se

dizer que a questão ambiental tem como interessados gerações, e não apenas indivíduos,

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atuais e futuras, fazendo com que se reescreva a assertiva de Mauro Cappelletti, para

expressá-la dessa forma: A quem pertence – e pertencerá – o ar que respiro. A todos e a

ninguém ao mesmo tempo, no presente e no futuro.

Com isso, um conjunto de preocupações se põe ao jurista, seja sob a perspectiva

de que a compreensão da questão ambiental implica em uma postura transdisciplinar

posto que inapreensível a partir dos esquemas conceituais disciplinares próprios do

pensamento cartesiano moderno, seja sob a perspectiva de que o dilema ambiental

ultrapassa em muito a lógica estruturante do Estado (Moderno) e de seu Direito,

submetidos aos estritos limites de sua territorialidade e de suas fórmulas sancionatórias e,

mesmo, premiais59, de regulação de condutas.

Como diz Maria del Carmen Carmona Lara60: Es aqui em donde surge el problema para que la regulación ecológica seja efectiva y llegue a los fines inmediatos que pueden ser la solución a un problema concreto, por ejemplo, bajar los niveles de contaminación, o a los fines mediatos para los que fue emitida, que pueden ser la protección del ambiente y el derecho de las futuras generaciones; esta regulación debe llegar a la conciencia de su aplicación, y entonces se convierte más que en un problema de aplicabilidad jurídica, en un postulado ético.

Tal circunstancia pode ser observada desde um compreensão mais aguda acerca

da concepção à qual se conecta a regulação ambiental, como refere François Ost:

Do local (a “minha” propriedade, a “minha” herança) conduz ao global (o patrimônio comum do grupo, da nação, da humanidade); do simples (tal espaço, tal indivíduo, tal facto físico), conduz ao complexo (o ecossistema, a espécie, o ciclo); de um regime jurídico ligado em direitos e obrigações individuais (direitos subjectivos de apropriação e obrigações correspondentes), conduz a um regime que toma em consideração os interesses difusos (os interesses de todos, incluindo os das gerações futuras) e as responsabilidades colectivas; de um estatuto centrado, principalmente, numa repartição-atribuição estática do espaço (regime monofuncional da propriedade), conduz ao reconhecimento da multiplicidade das utilizações de que os espaços e recursos são susceptíveis, o que relativiza, necessariamente, as partilhas de apropriação. 61

Ou, ainda:

59 A respeito ver: Bobbio, Norberto. Dalla Strutura alla Funzione: nuovi studi di teoria del diritto. Milano: Comunità, 1977. 60 Ver, desta autora, El Derecho Ecológico en México. In: FERNÁNDEZ, José Luis Soberanes(comp.). Tendencias Actuales del Derecho. 2ª ed. México: FCE, 2001. p. 71 61 Ver, deste autor, A Natureza à margem da lei. Ecologia à prova do Direito. p. 355

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É que o meio (justo ou injusto) é uma realidade paradoxal: o seu centro está em todo o lado, a sua circunferência em parte alguma. Por outras palavras, se nos engloba totalmente, ele é também aquilo que passa no âmago de cada um de nós. Totalmente dependentes dele, somos também por ele totalmente responsáveis62.

Tal circunstância aponta para a dimensão global da questão ambiental, afetando

profundamente as possibilidades de tratamento local – nacional – dos problemas a ela

ligados, uma vez que o Estado Nacional se mostra limitado, embora possa fazê-lo, para o

tratamento de tais problemas diante da repercussão global dos incidentes ambientais

pois,

Uma vez que o meio é uma realidade global, será necessário reconhecer, igualmente, que o consumo excessivo praticado no hemisfério Norte não apenas implicará conseqüências negativas no hemisfério Sul como tornará simplesmente impossível o acesso de todos a um modo de vida equiparável63.

Assim sendo, o tema ambiental impõe sob todas as suas facetas um tratamento

inovador, o que repercute também sobre a perspectiva das políticas e práticas do Estado

e para além do Estado.

Vê-se que o dilema ambiental impõe à interrogação não só os limites possíveis do

Estado, como forma institucional da modernidade64, como também a todos os

instrumentos até então postos à disposição da regulação jurídica do meio ambiente e de

sua afetação.

De tudo o que foi exposto fica o sentimento de que para darmos conta da questão

ambiental tomada como um interesse cujas dimensões se agigantam tanto

subjetivamente (envolvem interesses difusos) como espacialmente (territorialmente), bem

como geracionalmente (envolvem interesses intergeracionais), mister se faz que não

fiquemos presos aos esquemas conceituais e institucionais da modernidade tanto quanto

aos mecanismos regulatórios utilizados pelo Direito Moderno, sobretudo aquele de caráter

liberal-individualista cujas potencialidades limitam-se ao tratamento dos tradicionais

interesses individuais e, mesmo assim, desde uma ótica privilegiadora do interesse de um

indivíduo que exclui o de todos os demais, implicando numa potencial e reconhecida

62 Id Ibid, p. 395 63 Ibidem. p. 394. 64 Para esta discussão remetemos a Ciência Política e Teorial do Estado, de nossa autoria em parceria com Lenio Luis Streck, publicado pela Livraria do Advogado, em sua 5ª ed.

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possibilidade de destruição do bem objeto do interesse e de sua “proteção” através de

sua identificação patrimonial, ou seja, de sua transformação em um quantum financeiro.

A questão ambiental, dessa forma, não se submete aos limites territoriais da ordem

jurídica moderna e a suas estratégias, provocando a incapacidade de ser tratada

adequadamente em um ambiente jurídico que não se abra para a ultrapassagem de tais

restrições.

Ou seja, é preciso um direito – ou melhor: uma forma regulatória – novo(a) para as

circunstâncias que compõem esta nova questão ambiental em toda a sua extensão, sem

deixar-se de lado a inevitabilidade de operar ainda com o tratamento da questão social

irresolvida.

Mas não apenas isto. Há que se pensar em instâncias regulatórias apropriadas ao

enfrentamento das carências, as quais mesmo que diferentemente localizadas – as

nossas carências não são em qualidade e quantidade as mesmas dos outros – não mais

se limitam espacialmente, nem podem ser controladas localmente, mesmo que esta

dimensão também mereça consideração, uma vez que elas vêm marcadas por um

modelo de economia que se transformou tanto em seus conteúdos – de um capitalismo

de produção para um capitalismo financeiro – e em seus âmbitos de ação – de um

capitalismo local ou multinacional para um capitalismo global.

Com isto, a perspectiva estadual parece não ser suficiente para suportar a

necessidade de dar-se conta de riscos que não têm nas fronteiras nacionais os limites

que delimitavam historicamente “pobreza” e “riqueza”, símbolos das carências. A

poluição, como exemplo, não se circunscreve a um espaço geográfico delimitado, a um

território como aqueles que identificam os Estados Nacionais da modernidade.

Aqui faz sentido a advertência de François Ost:

E voltamos assim – ... – ao essencial: a prática renovada e aprofundada da democracia. O ‘meio justo’ não derivará nunca da planificação de especialistas, por mais bem intencionados que sejam e qualquer que seja o nível, mesmo mundial, das suas intervenções. É do debate democrático, agora interpelado pela urgência de desafios inéditos, que deverão proceder as decisões susceptíveis de inflectir a nossa forma de habitar a Terra. (...) Resta, portanto, inventar práticas concertadas, públicas, privadas ou associativas, para dar corpo a um outro modelo de desenvolvimento. Uma coisa é certa: a responsabilidade em relação às gerações futuras e a

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elaboração de um patrimônio natural comum, começam aqui e agora65. (grifei)

E mais, sendo a questão ambiental a repercussão de uma opção moderna de

sociedade, de ciência, de economia (capitalista), de desenvolvimento, é preciso que se

opere uma transformação profunda no modo de vida moderno e não apenas um arranjo

pontual, limitado e circunstancial para a manutenção do status quo anterior.

Ou seja, uma política para a questão ambiental implica a opção, tal qual ocorrido

nos estertores do século XIX, por um novo pacto social que repercuta uma cultura do/para

o meio, cuja incidência nas fórmulas jurídicas até então conhecidas e praticadas não será

menos drásticas, impondo um tratamento que não fique submetido aos espaços

tradicionais da política, mas, ao mesmo tempo, responda às pretensões sociais sob

fórmulas democráticas que também elas se vêem constrangidas pela superposição de

carências e riscos.

Dito de outra forma, a questão ambiental – ainda mais que a questão social -

implica em um novo arranjo social que, provavelmente, não dispensará nenhum dos

âmbitos possíveis de tratamento (o local, o nacional, o supranacional, o mundial; o espaço

público estatal, o espaço público não-estatal e o espaço privado) mas exigirá um conserto

social que se constitua a partir de práticas e vínculos construídos sobre instrumentos de

uma democracia sustentável66

3 Concluindo

Podemos, assim, resumir o que foi até aqui apresentado sucintamente:

1 – Os interesses juridicamente hoje relevantes podem ser caracterizados como

individuais e transindividuais – coletivos e difusos, além dos nomeados interesses

individuais homogêneos;

2 – Esta composição da ordem jurídica contemporânea está a exigir a formulação

de uma nova cultura jurídica que seja capaz de dar conta destes novos conteúdos;

3 – Estes interesses inauguram um momento novo nas formas, fórmulas e lugares

de regulação social;

65 François Ost, op. cit., p. 395 66 Utilizamos este termo para conectá-lo à idéia de desenvolvimento sustentável e suas características. De alguma forma, neste sentido ver, de nossa autoria, A Subjetividade do Tempo, pela Livraria do Advogado.

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4 – Em paralelo à já tradicional “questão social” vimos emergir aquilo que

nomeamos “questão ambiental”;

5 – Esta convivência implica a passagem do tratamento das “carências” para os

“riscos”;

6 – A questão ambiental vem inserida no contexto dos chamados interesses

difusos;

7 – O desafio ambiental não se resume a um tema de interesse intrageracional

(geração presente) mas intergeracional (gerações presentes e futuras);

8 – A questão ambiental incorpora o risco como dimensão constitutiva das práticas

jurídico políticas, ao lado das carências tentadas tratar por intermédio do Estado Social;

8 – A questão ambiental, como aqui referida, propõe um novo arranjo social à

semelhança, porém mais radical, daquele proposto pela questão social ao final do século

XIX e ao longo do século XX. O que poderia ser traduzido como a transição de um Estado

Social para um (Pós)Estado Ambiental ou um Estado Sócio-ambiental;

9 – Todavia, o tratamento da questão ambiental demanda a revalorização e

revitalização de práticas democráticas e a construção de uma democracia sustentável

desprendida dos vínculos estreitos dos limites territoriais das fórmulas do Estado

(Moderno);

10 – Em conseqüência percebe-se uma insuficiência profunda em as fórmulas

modernas serem suficientes para dar conta destas novidades, podendo-se supor que elas

implicam a necessária construção de novos ambientes para além daqueles dos Estados

Nação.

Tal sugere a passagem de uma nova cultura jurídico-política que transita de uma

cultura da exclusão para outra, de inclusão dos destinos. Que se assume como uma

cultura da fraternidade, marcada, ainda, pelo projeto civilizatório moderno de uma

estrutura institucional – o Estado – que tem por finalidade promover não apenas o fim do

medo67, mas também, veicular a esperança como marca do acordo fundante da

Sociedade Civil que remonta ao contratualismo clássico68.

67 Uma discussão acerca deste aspecto pode ser lida em: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. Estado, função social e (os obstáculos da) violência. Ou: do “mal-estar” na civilização à síndrome do medo na barbárie! In: BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis e CALLEGARI, André. Política Criminal, Estado e Democracia. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2007 (no prelo) 68 Sobre os vínculos entre “medo” e “esperança”, em particular na literatura hobbesiana, ver: RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo. Hobbes escrevendo contra seu tempo. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

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A substituição das carências pelos riscos, nesta perspectiva, conduziria a um novo

arranjo cultural da própria política e, por conseqüência, da democracia para um âmbito e

um ambiente que se desterritorializa e que rearticularia os laços conviviais.

Tal se concluiria em um projeto comunitário, cujas bases ainda não têm um

desenho adequadamente constituído, sequer garantias suficientes, sem que isso implique

necessariamente a ultrapassagem completa dos papéis e tarefas que incumbem e só

podem ser realizadas no e pelo modelo de autoridade comum moderno sob a forma do

Estado Nacional.

Todavia, nem tudo está resolvido, pois a passagem das carências para os riscos,

significa, também, muitas vezes, a substituição da decisão impositiva estatal, com a

intermediação da política – como democracia – por “decisões” reflexivas – não

necessariamente consensuais – tomadas em lugares distintos do Estado, promovendo um

pluralismo muito distinto daquele que se apresentava como alternativa à regulação estatal

no século passado.

Um pluralismo que desloca o lugar da decisão – do Estado para outras instâncias,

não apenas as da macroeconomia, como também as da macro criminalidade –, assim

como substitui a política pela economia e os atores públicos pelos privados. Mas também,

há que se reconhecer que surgem novos espaços, estes de caráter disruptivos, expressos

em ações identificadas como uma alternativa ao modelo hegemônico69.

Parece, assim, um tempo de contradições. Tempos sombrios em que, embora o

smog (como risco) atinja todos, as carências ainda não foram resolvidas. Enfim, poluição

e fome convivem e, como no aquecimento global, quem “paga” a conta são aqueles que

menos contribuíram. Sinal das diferenças não resolvidas e das tarefas que temos.

Assim, compactuo com a idéia e ideal acerca da nova revolução copernicana,

marcada pela viragem hermenêutica filosófica, do papel do constitucionalismo, mesmo

sendo, diante das circunstâncias contemporâneas, cético quanto às condições de

possibilidade de e para a sua realização.

Isto porque, com o “fim” do projeto hobbesiano de criação de uma autoridade

comum (Estado) – perde-se a referência à uma unidade cultural que hoje vem expressa

pelo constitucionalismo e nas Constituições modernas.

69 É neste sentido, por ex., que Hardt e Negri sugerem o papel desempenhado pela multidão que se organiza em rede aberta e em expansão, onde as diferenças são reconhecidas e favorecidas. Ver: NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Multidão.Guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record. 2005. p. 12

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Neste contexto, nesta transição das carências para os riscos, percebe-se que estes

não são distribuídos igualmente, da mesma forma que as carências, apesar das

intervenções sociais e dos projetos humanitários, nunca o foram, sobretudo se

lembrarmos das diferenças norte-sul ou, para dizer de outra forma, países centrais

(desenvolvidos) e países periféricos (subdesenvolvidos ou, como se queira, em

desenvolvimento), países ricos e países pobres.

Estas reflexões iniciais, em conclusão, nos indicam a necessidade de fortalecermos

o debate em torno das alternativas, tendo presente a imprescindibilidade de, sobretudo

em países como o Brasil, saber que, nesta quadra da história, não temos mais todo o

tempo do mundo...e que o tempo tem, agora, uma nova extensão – a da imediatidade e

da instantaneidade.

Há que se reconhecer, assim, a imprescindibilidade de fazer conviver um novo

Estado Social, comprometido com carências e riscos, com instâncias de regulação e

realização de interesses que ultrapassam os espaços nacionais, bem como reconhecem o

papel de novos atores, em especial aqueles que possam compor estratégias de

autonomização diante das perspectivas expressas pelos novos riscos sociais.

Tudo isso implica, como sugerido ao início, a construção de uma nova cultura

jurídico-políitca que não fique presa aos esquemas tradicionais do pensamento jurídico

liberal-individualista.

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