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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Maíra Cavalcanti Vale Cachoeira & a inversão do mundo CAMPINAS 2018

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Page 1: Cachoeira & a inversão do mundo · Agradeço a Mãe Dionízia por todo aprendizado. Por ensinar a tanta gente que é preciso respeitar o mundo e as donas das falanges. Obrigada,

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Maíra Cavalcanti Vale

Cachoeira

& a inversão do mundo

CAMPINAS 2018

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Maíra Cavalcanti Vale

Cachoeira

& a inversão do mundo

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

Orientadora: Maria Suely Kofes

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA MAÍRA CAVALCANTI VALE, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. MARIA SUELY KOFES.

CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora do trabalho de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelas Professoras Doutoras a seguir descritas, em sessão pública realizada em 04 de outubro de 2018, considerou a candidata Maíra Cavalcanti Vale aprovada. Profª. Dra. Maria Suely Kofes

Profª Dra. Lucilene Reginaldo

Profª Dra. Carolina Cantarino Rodrigues

Profª Dra. Cristiane Santos Souza

Profª Dra. Angela Lucia Silva Figueiredo

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Para Mãe Dionízia, e todas as mulheres que cotidianamente invertem o mundo.

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AGRADECIMENTOS

É pouco falar que este texto não é só meu. Os caminhos que me levaram a ele

foram acompanhados por muita gente. Um processo de doutorado é processo de uma

vida inteira. Até puxar os fios na memória de todas as pessoas que passaram por esse

caminho, que brilharam com olhos juntos... é um longo percurso. Mas nele há uma

certeza: não se constrói conhecimento sozinha.

O começo é Cachoeira. Agradecer à cidade e todos os povos que nela habitam é

agradecer pela permissão. De morada. De trabalho. De afetos.

Começo assim pela dedicatória.

Agradeço a Mãe Dionízia por todo aprendizado. Por ensinar a tanta gente que é

preciso respeitar o mundo e as donas das falanges. Obrigada, Mãe, por me ensinar que

é preciso desenganar a vista. E tanto mais. Essas palavras não seriam nada sem a sua

força. Agradeço a toda gente do Oiá Mucumbi nos nomes de Iyá Aleluia, Ogan Vaval,

Dona Leninha, Ogan Ornelas, Dona Roquinha, Antônio, Gegeo, Lene Pequena, Marli,

Joelson (o que seria da feira sem você?!), Dona Caxixa, Vó Clarice, Fernanda, Sol, Dina,

Irene, Cristina, pelas costuras, Dona Domingas, Diná, Ito, Anderson e todas e todos que

têm o privilégio de ter Dona Dionízia como madrinha. A benção.

As portas cachoeiranas me foram abertas por Acely de Seu Salu! Agradecida,

mulher, por tudo e por nos fazer dar tantas risadas. Rita e Duca, não existiria tese,

trabalho de campo e tanta alegria se não fossem por vocês. Agradeço demais por

todos os momentos compartilhados, por tudo que aprendi, pelas águas que comemos

e pelo afeto. Vocês são parceiras de toda uma vida! Pedro, meu querido, brilhe

sempre! Seu carinho, inteligência, acolhimento e talento encantam a todos e me

envolvem em um abraço bem apertado. Lulu, minha querida gótica, seu abraço é

morada de muito amor. Que seu caminho seja sempre repleto de alegria! Um

agradecimento especial para a família Fernandes por todo carinho e alegria na feijoada

deliciosa de Lúcia de Badú, na Formiga de Dona Tudinha! Mariana e Tábatha, obrigada

pelo acolhimento. E que Ágatha seja muito bem-vinda a esse mundo! Um grande

abraço para Gesy, Ricarda, Arthur, Sílvia, Leandro, Manu e Fátima representando toda

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a família Amorim com muita gratidão por fazerem com que eu me sentisse em casa e

em família.

Ao quarteto bombástico, são tantas águas. Agradeço, minhas negas, pelas

comidas compartilhadas, pelas risadas, dores e amores divididos na cozinha da casa

azul. Mile, que nossa mãe nos abençoe e faça seu caminho brilhar sempre, com esse

seu carinho e ousadia, esse brilho cheio de mar. Jessiane, passarinha, voe, voe cada

vez mais! Obrigada pela morada, pelas portas abertas, pelas noites de gandaia e pelo

carinho. Com amor, sempre. Que Artur continue sendo esse chamego de mundo! Dona

Caroline, obrigada pela confiança de sua irmandade. Agradeço à vida por tê-la no meu

caminho! As risadas do alto de seu trono, as lágrimas e as histórias partilhadas são

fundamentais para este caminho. Na ponta do arco-íris há um pote de ouro. Brilhe

muito, muito, Bêee! Um beijo grande para dona Nilzete, agradecida pelas comidas

deliciosas e por todo carinho.

Rose, minha querida, o que teria sido dos meus dias em Cachoeira sem a sua

alegria? Agradeço pelo apoio, carinho e almoços na rodoviária. Seguimos juntas nessa

vida. Dona Venina, a benção, e muito obrigada. Um agradecimento para toda família

Miranda.

Gilvânia, como teria sido estar em Cachoeira sem seu acarajé abusado e sem

tanto descaramento? Obrigada por todo acolhimento, por me ajudar a inverter o

mundo com suas frases incríveis e por sempre nos fazer dar tanta risada.

Agradeço à Dona Zilma pela conversa, pelo acolhimento na rua Santo Antônio e

pela simpatia de sempre. À Marcli, por me ensinar sobre as folhas. Agradeço ao

Professor Raymundo por me receber em sua casa e por me contar com tanta

empolgação sobre Cachoeira. Ao seu Adilson, por quase me narrar um programa de

rádio com suas histórias da cidade. Agradeço a Cacau Nascimento por ter me

concedido uma entrevista tão cheia de Cachoeira. E a Badinho, por ser tamanha

inspiração para se contar histórias.

Deise, minha querida, obrigada pelas águas de mar em Cachoeira. Pelo primeiro

sorriso de compartilhamento, por todo o seu incentivo e pelas poesias-Terezas tão

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inspiradoras. Agradeço à Dona Norma por ter nos recebido em sua roça e por nos

ensinar sobre o tempo.

Udinaldo, sua peste, obrigada por todos os momentos de carinho, todas as

partilhas de leituras. Pelas risadas, tiradas e esse olhar escorpiano cheio de acidez. Viva

aos momentos cheios de amor vividos na casa azul! Tudo teria sido muito mais difícil

sem você.

Nuno, querido, obrigada pelas palavras sempre instigadoras, por me ensinar tanto

sobre a cidade. Com muito carinho, sempre. À Edna eu agradeço o carinho matinal em

aulas de pilates! Zé Miúdo, você alegrava as nossas noites mesmo quando estava de

mau humor! Agradeço a Cristina Solimando pelos desenhos inspiradores de histórias

cachoeiranas. À Oncinha, Ninja e Mudo, agradeço a paciência e por acreditarem que

eu podia gingar. Luis, querido, obrigada por sua amizade. A Rwolf e Gabi, agradeço

demais por me acolherem em sua casa e por serem tanto brilho em carinho. Agradeço

às pessoas com quem dividi o cotidiano cachoeirano em diversos momentos: Dona

Carminha, Dona Cadú, Lu e Dona Noélia, Flávia Palha, Tical, Júlia, Luísa Mahin, Guto,

Mari, Aline, Vivi, Débora Raquel, maravilhosa, Fran, Jon, Alanna, Anastácia Flora, Jé,

Sílvia, Ju, Mari Barcellini.

À Dona Dalva, por ser sorriso tão acolhedor. Agradeço também a toda sua família,

em especial à Any Manuela, pela força de levar tudo adiante, e Dona Ana e Seu Gilson,

pela simpatia de sempre.

Agradeço à Martha Rosa por me convidar a acompanhar um pouco seu projeto de

extensão. À Suzana Maia por dividirmos uma disciplina sobre escrita. Ao Osmundo

Pinho pelo primeiro contato. E a Papaléguas pelo incrível acervo de livros.

Agradeço a Jacimara Santana pela confiança em meu trabalho, por me convidar a

participar do Malungu, por me fazer apresentar em Jacobina e pela amizade! Um

abraço em seu Juci.

À Bruna Maia pelas palavras doces e fortes, potente poesia política.

À Carol e Amanda, por serem porto tão doce em Salvador.

Fora de Cachoeira e da Bahia também são muitos amores.

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Dona Ana, obrigada pela vida. Por todo o seu apoio, incentivo, leituras e amor.

Mãe, toda vez que eu cozinho, coloco ali o nosso afeto no aprendizado da magia de

temperar aquilo que comemos. Temperar aquilo que amamos. Eu te admiro muito,

não se esqueça disso. DonAna, força que pulsa. Pai, obrigada por tudo, sempre.

Compartilhamos a paixão pelos textos e pelas coisas escritas que nos fazem sentir.

Sem o seu apoio Lady Kate, eu não teria chegado até aqui. Agradeço, seu Natal, por ter

acreditado sempre no meu trabalho e por me fazer estar sempre atenta a desconfiar e

discordar das coisas. Um beijo sem brigas. Gordo, meu amado, obrigada pelo carinho

de sempre. Por me fazer sorrir e me acalantar. Por ser força quando a gente precisa.

Com amor da Pequena.

Tias Marias amadas sempre. Tia Clarissa, agradeço por sempre acreditar no meu

trabalho e pelo carinho. Sua determinação é inspiração na vida. Tia Nica, obrigada por

todo seu afeto em forma de tantos presentes e lembranças, seu sorriso doce é um

alento. Tia Márcia, que venham muitas cervejas geladas para a gente partilhar a alegria

que é estar ao seu lado. Seu jeito fina pra * é inspiração de vida! Tias, muito obrigada

pelo apoio nos últimos tempos difíceis. Primaiada amada, o que seria da minha vida

sem vocês? Sem a chatice sensível para os detalhes da vida de dona Bárbara. Sem o

carinho de Natália. Sem o amor mudo de Marcelo. Sem a gaiatice de seu Luiz. Sem a

leveza de Emilhoca. Sem as atuações de Julinha. Sem as presepadas do cabeção

Eduardo. Sem a doçura da Fernandinha. E sem as piadas da Vevê. Tio Luís e Tia Madi,

amo vocês! Obrigada por tudo. João e Delmiro, vocês são família também! Vovó Enói,

obrigada pelo pudim mais gostoso do mundo! Tia Vera, um beijo enorme em

agradecimento à presença tão amorosa. Ao Tio Luca, obrigada pelo carinho e apoio de

sempre, beijo em toda família, Luciana, Bel e Luquinha.

A aqueles que já se foram e se tornaram nossos ancestrais, fica o carinho numa

saudade às vezes boa, às vezes doída. Cabeça, espero que você continue correndo

mundo. Vó Carminho, sua azedinha sempre pensa em você cheia de amor. Vovô

Rossini, você é o lugar na mesa de domingo das nossas vidas – “a saudade dele está

doendo em nós”. Tio Ronaldo, você faz muita falta.

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Chocolate, um beijo cheio de amor! Lúcia, agradeço sempre e ainda mais por ter

nos dado essa alegria chamada Sofia. Dona Maria, a senhora não existe! Obrigada pelo

carinho e cuidado de sempre.

À família baiana, agradeço todo acolhimento. Yonara, obrigada por me oferecer

casa e tanto carinho. Tio Marcos, obrigada por tudo! Mari e Fernanda, obrigada pelos

momentos partilhados e por sempre me receberem tão bem. Um beijo grande ao tio

Mauricinho e Adriana. Tia Anucha, você é incrível! Obrigada, Anna Olympiada, por

inspirar tantas risadas, palavras e amores. Um beijo em tio Mário também.

Fernanda, que de onde você estiver, continue olhando com amor para os seus.

Obrigada, minha querida, pela amizade de uma vida.

Agradeço a melhor turma de todos os tempos da última semana de doutorado da

história! 2014 foi um ano de transformações. Agradeço à Kenia, querida, por tamanha

inspiração. Ao galego Diego pela movimentação constante e inspiração. Ao Juan pelas

noites maravilhosas de dança em sua casa e pelo carinho de sempre. À Maite que,

mesmo na distância, é uma mulher tão inspiradora, forte e presente. Obrigada,

querida, por todas as nossas partilhas. Ao Mateus, pelo carinho de mineirinho quieto.

À Isabel, pelos sabores moçambicanos. À Cláudia, pelas aulas de psicanálise, pela

parceria de copo e pelo carinho Miúda. Ao Erik, pela ausência presente. Ao Carlos e

Germán, pela presença constante. À Carol e Dário, pela acolhida em sua casa. Ao Alex

pelo carinho e parceria, nessa ansiedade do tamanho do mundo. Obrigada, meu

querido, pelo cuidado com as imagens desta tese. À Carol pela beleza das linhas. À

Isabel Herrera, pelo amor em forma de loucura, pela lindeza inspiradora que é te ouvir

cantar. À Bruna, amada, por tantos compartilhamentos de caminho. Pela força que

inspira seguir a caminhada mesmo nos momentos mais difíceis.

À Márcia, mulher, por ser tamanha inspiração de força e beleza. Por me levar à

Ilha do Massangano, por me apresentar Dona Amélia. Tu é parceira de correr terra

nesse mundo.

Analu, nossa amada bruxa, com você a gente aprende o que é a vida. Para muito

além de qualquer coisa. A gente aprende a pirataria e lembra que o mundo é mais.

Com muito amor e gratidão pelo seu teto, tarô, acolhimento e fogo.

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Sariza, minha irmã, sem você 2014 não seria possível. Agradeço a partilha, por

conhecer as águas do Tocantins e me tornar água ao seu lado. Não vejo a hora de

comer panelada de novo contigo. Seu Dernival, agradeço a inspiração!

À Claudilene, Carlos e Ayana, foi maravilhoso compartilhar caminhos com vocês

desde Campinas até Cachoeira. Vocês são inspiração nesta caminhada! E Ayana,

menina linda do mar, um chêro com muito amor e maresia.

Ao pessoal da Frente Pró-Cotas da Unicamp, eu agradeço pela caminhada

conjunta e por ter valido a pena!! Obrigada por todos os aprendizados. Sílvio, Rodrigo

Ribeiro, Anderson, Théo, Giorgia, Márcia, Rodrigo Bulamah, Bruno. Gustavo, meu

querido, viva a Bahia! Obrigada pelos momentos alegres compartilhados. Agradeço

também ao Mário pela amizade, por todo o incentivo e compartilhamento, o

Cachoeirando ganhou força com suas leituras.

Aos meus amores de outros tempos de Unicamp, agradeço hoje e sempre. Dona

Vilênia furacão que bagunça a vida de uma pessoa, continue espalhando amor em

forma de risadas por onde passa. Joyce Bolsinha Verde, agradeço o pouso sempre

certo e a inspiração dessa mulher galo de briga. Fran, querida, agradeço o sorriso

sempre aberto. Que as crias de vocês continuem alegrando os nossos caminhos. Foi

uma lindeza o nosso reencontro! Andrea e Raquel, tão queridas, sempre bom sair e rir

muito, muito com vocês. Adriana Dias, obrigada pela inspiração e força de continuar

lutando nesse mundo cão. E à Iracema, agradeço pela casa sempre aberta e pelo

carinho de sempre.

À minha família cosmopolita, o agradecimento é de uma vida. Rô, querida,

obrigada por sempre torcer por e cuidar de mim. Sua casa é acalanto em terras

paulistas! E sua cozinha lugar de partilhas deliciosas. Um beijo cheio de amor. João,

querido, sorte na nova caminhada. Angélica, continue com seu coração amanteigado e

suas ideias subversivas de viver a vida. Agradeço a vocês, ao Dudu, Rafa e Jonathan,

pelo acolhimento.

Ao meu povo de Brasília, agradeço a presença de sempre. Seu Olavo pelas

sugestões de leituras e pelo incentivo. Lu, amada, pelo carinho de vida. Nana, minha

querida, pela inspiração e partilha de caminhada e lutas. Mari... pelas águas! Gui, pela

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força. Lucas, pela presença carinhosa e constante. Pelas luzes, filmes e parecerias de

vida. Saroca, por Jabaquára! Verônica, por ser maravilhosa! Dani e Saulo, pelo amor-

presença. Mi e Tata, vocês são amor que pulsa. Iaiá, Taís, Jeje e Pot, viva os nossos

almoços no Careca! Kassoum, meu querido, obrigada por toda confiança e carinho.

Obrigada minhas amadas Pérolla e Karina por estarem sempre ao meu lado. Quem

tem Zuda, tem tudo! Ao Fred e Du, vocês são a base. Aina, querida, obrigada por

desenhar antropologia. Natália Maria, amora, obrigada pelos astros, trocas, palavras e

inspiração. À Júlia Dalla, por me passar informações sobre os quilombos do Recôncavo.

E Ana Rita, há sempre chuvas de caju de saudades.

Às companheiras do Comoveras agradeço o espaço para pensar diferente. Para

pensar uma antropologia feminista e política. Michele, sua dedicação é admirável e

sem você não teríamos tido as nossas discussões. Obrigada pelo carinho, foi um

presente tê-la conhecido! Victoria, sua escrita sensível é inspiradora. Com você o

cheiro ganha um espaço fundamental na produção de conhecimento. Isabel, obrigada

pelas perguntas sempre instigantes e por nos ensinar sobre a teoria do afeto. Leticia,

Catherine, Carol e Márcia, o nosso espaço de troca compartilhado foi muito

importante para a construção de formas outras de conhecimento.

No finzinho desse longo percurso, a vida ainda me reservou bons encontros.

Agradeço à Érica pela gentileza, apoio e incentivo nesse período tão difícil de escrita. A

Ana Flávia pelas risadas e a Jacque pelas trocas e cuidado. A Nusha, por me acolher tão

bem em sua casa e pelas alegrias que são Clarice e Bernardo.

Eu era estudante de graduação. Nunca havia ouvido falar de antropologia antes

de pisar os pés na aula de Introdução da disciplina. Foi com Antonádia Borges que eu

aprendi que o Evans-Prtichard não responde à segunda flecha que a pergunta da

bruxaria fazia e foi com ela que eu aprendi que os Baloma habitam o mundo.

Antonádia, querida, obrigada pelo primeiro passo e por, junto ao Marcelo Rosa, nos

proporcionar começar a pesquisar desde cedo.

No meu mestrado na Unicamp, confirmei a importância do detalhe etnográfico

com Omar Ribeiro Thomaz. Querido, agradeço a leitura da qualificação, suas sugestões

e seu pensamento sempre perspicaz. Além do carinho de sempre.

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No doutorado, aprendi a contar histórias. Agradeço a Suely Kofes pela orientação,

carinho e parceria nesta longa caminhada narrativa. Pelas aulas inspiradoras, pelo

comprometimento com a nossa formação e pela leitura atenta. Obrigada por apoiar

minhas loucuras, como mudar de tema no meio do primeiro ano de doutorado! À

Suely também agradeço ao convite de integrar o La’grima. O laboratório foi

fundamental para a minha formação. Agradeço aos colegas pelas discussões sempre

inspiradoras e pelas possibilidades de compartilhar a reflexão em outras grafias. À

Fabiana Bruno, pelo carinho de sempre, pela inspiração e dedicação. À Mariana

Petroni por aceitar o convite de suplência e pelas partilhas das diversas formas de ver

a antropologia. Agradeço à Magda Ribeiro, que conheci em outras terras, e está cada

vez mais próxima, em tantos bons sentidos.

Agradeço a Lucilene Reginaldo por ter lido tão atentamente meu texto de

qualificação e por ter me dado sugestões tão valiosas, bem como ter aceitado o

convite de participar da banca de avaliação. As trocas com o CECULT foram muito

importantes para minha trajetória acadêmcia.

Agradeço também a Carolina Cantarino e Ângela Figueiredo por terem aceitado o

convite de participar desta banca. É uma honra tê-las como leitoras. Em nome de

Ângela, agradeço aos momentos em que pude compartilhar das discussões tão ricas do

Coletivo Ângela Davis, fundamentais para a formação de um conhecimento político

neste mundo. Agradeço a Zelinda Barros por ter me incluído nas listas de discussão e

por me acolher com o seu sorriso tão bonito.

À Cristiane Santos Souza agradeço pela presença neste momento tão importante.

Seu olhar e partilha ao longo de todos esses anos de doutorado foram fundamentais

para que este texto fosse possível. Obrigada, minha querida, pelos convites à Unilab,

pelo olhar sensível, por ter sempre apoiado o meu trabalho e pela ideia de fazer 16

falanges em textos. Um beijo grande em Inaê!

Agradeço à professora Nashieli Loera por ter aceitado o convite de suplência, e a

todos os professores do departamento de antropologia que contribuíram para a minha

formação.

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Agradeço ao professor Kabengele Munanga por ter me permitido acompanhar o

seu curso como ouvinte e pelo tanto que aprendi com seu conhecimento,

envolvimento comprometido e longa caminhada.

Agradeço ao CNPq pela bolsa concedida por quase todo o meu período de

doutorado, sem a qual ele não seria possível, e à Márcia Goulart por todos os trâmites

burocráticos. Em seu nome eu agradeço a todos os funcionários da Unicamp que

fazem a universidade funcionar.

O Schomburg Center for Research in Black Culture é um centro muito importante

para estudos de África e sua diásporas. Seu riquíssimo acervo permitiu que eu

realizasse as leituras necessárias ao longo do tempo em que estive em Nova Iorque.

Bem como a Coleção Peter Eisenberg da Biblioteca Central da Unicamp pelo acesso a

algumas obras raras.

Por fim, esta tese não seria possível sem uma raposa que me apoia tanto.

Catarina, obrigada por inverter o meu mundo. O que seriam dos meus dias sem as

nossas risadas? Agradeço por me ensinar a beleza das cores, das composições, das

formas geométricas. Com você aprendo a olhar o mundo de um jeito-arte que desde o

primeiro momento me capturou e me fez vetor. Sem você, este texto não teria

potência procedimental. Obrigada por dividir comigo um cotidiano miúdo, feito de

sabores bem combinados, quentura nos dias frios e aquilo que nos habita, crescendo a

cada dia.

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RESUMO Cachoeira é uma cidade do Recôncavo Baiano cheia de histórias. Durante o período colonial,

chegou a ser o segundo principal porto do Brasil. É uma terra de movimento. Nela, escutamos a

todo tempo que tudo tem um fundamento por trás. Esse fundamento não se explica, se sente:

o candomblé e suas presenças informam o cotidiano das pessoas. Orixás, inquices, caboclos são

presenças donas das pedras do rio. Das esquinas da cidade. Das praças, matas, encruzilhadas.

Só não vê quem não quer. Tendo por base pesquisa de campo entre os anos de 2015 e 2017 na

cidade de Cachoeira, busco aqui trabalhar com uma perspectiva atenta ao conhecimento diário,

de modo que pequenas narrativas e histórias do comum ressoem e possam compor um estado

de análise. Assim, evito nesta tese explicar o conhecimento do candomblé a partir de noções

próprias da teoria antropológica. O que proponho é uma inversão do olhar etnográfico, em três

movimentos. Primeiro, parto do discurso oficial da cidade presente nas sessões solenes e

momentos cívicos, bem como na fala de algumas pessoas, para chegar à Recuada, o lugar da

resistência de um conhecimento sobre a cidade que permeia o discurso oficial, e que envolve

uma atenção aos perigos espirituais, às presenças e ao dono da terra. Num segundo movimento,

em vez de partir da literatura antropológica e seus debates em torno do candomblé na Bahia

para falar sobre Cachoeira, procuro fazer uma crítica inspirada por Cachoeira sobre tal literatura.

Para tanto, mostro como a figura do caboclo, imprevisível e em constante movimento, aparece

para bagunçar os esquemas e modelos antropológicos. Por fim, num terceiro movimento, deixo

que o mundo vivido de Cachoeira contamine o texto. Um mundo que é vivido por meio de uma

espiritualidade corpórea e de um ritmo de fala. Através das suas narrativas, a intenção, portanto,

não é olhar a espiritualidade do ponto de vista racional-analítico, mas deixar que ela componha

a própria narrativa da tese. É inverter, portanto, uma forma de pensar através de classificações

e explicações para uma forma de viver um mundo feito por pessoas e outros povos, das ruas,

das matas, das águas, dos caminhos, da terra. Um mundo que é plural como a entidade caboclo.

Ao escutar, sentir e olhar para caboclos e entidades, outras possibilidades se abrem para compor

narrativas etnográficas.

PALAVRAS-CHAVE: espiritualidade; escravidão; etnografia; escrita; Cachoeira (BA)

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ABSTRACT

Cachoeira is a city in the Recôncavo Baiano, in the state of Bahia, that is full of stories. During

the colonial period, it became the second main port of Brazil. It is a land of movement, in which

we often hear that everything has a foundation behind. This foundation is never explained, but

always felt: candomblé and its presences inform everyone’s daily lives. Orixás, inquices, caboclos

are presences that own the stones in the river, the corners of the city, town squares, woodlands,

crossroads. Só não vê quem não quer, the only ones who cannot see are those who do not want

to. Based on fieldwork in the city of Cachoeira between 2015 and 2017, I seek a perspective

attentive to everyday knowledge, so that small narratives and common stories resound and

work to compose a state of analysis. I thus avoid explaining the knowledge of candomblé from

notions proper to anthropological theory. What I propose in this thesis is an inversion of the

ethnographic gaze in three movements. First, I start from the official discourse of the city

present in solemn sessions and civic moments, as well as in some people’s narratives, only to

arrive at Recuada, the place of resistance of a knowledge about the city that permeates the

official discourse, and that involves an attention to the city’s spiritual dangers, presences and

dono da terra, the owner of the land. In a second movement, instead of starting from the

anthropological literature and its debates around candomblé in Bahia in order to explain

Cachoeira, I aim to provide a critique of such literature inspired by Cachoeira. I show how the

figure of the caboclo, unpredictable and in constant movement, appears to muddle

anthropological schemes and models. Finally, in a third movement, I let the lived world of

Cachoeira contaminate the text. A world that is lived through a corporeal spirituality and a

rhythm of speech. By making use of everyday narratives, the intention is not to look at

spirituality from a rational point of view, but to let it compose the text itself. The aim is to

transform an analytical way of thinking that relies on classifications and explanations into one

that portrays a mode of living in a world made up of persons and other presences in streets,

woodlands, waters, pathways. A world that is as plural as the caboclo. By listening, feeling and

looking at caboclos and entities, new possibilities open up to compose ethnographic narratives.

KEY-WORDS: spirituality; slavery; ethnography; writing; Cachoeira (BA)

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CONVENÇÕES DE ESCRITA

Em itálico: termos e expressões de Cachoeira; falas das pessoas de Cachoeira no

texto. Nos dois primeiros capítulos, elas são destacadas quando possuem mais de

três linhas.

Entre “aspas”: citações de textos escritos.

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LISTA DE IMAGENS

1) Mapa do município de Cachoeira Fonte: IBGE.......................................................20 2) Mapa do centro urbano de Cachoeira, Fonte: plataforma @openstreetmap.....21 3) Mapa turístico da prefeitura de Cachoeira, 2016. Foto da autora........................22 4) Desenho 1 de Cristina Solimando, 2014; foto da autora.......................................23 5) Desenho 2 de Cristina Solimando, 2014; foto da autora.......................................24 6) Desenho 3 de Cristina Solimando, 2014; foto da autora.......................................25 7) Capa do Capítulo I – Ruína do Hotel Colombo; foto da autora..............................46 8) Fotografia aérea de Cachoeira, vista na margem esquerda do rio, e São Félix, na

margem direita, presenteada por Professor Raymundo........................................75 9) Programação 25 de junho de 2015. Fonte: página da Prefeitura de Cachoeira no

Facebook (https://www.facebook.com/prefeituradecachoeira/)........................91 10) Foto do Caboclo na Revista de Comemoração dos 150 anos da cidade de

Cachoeira, 1987; foto da autora.............................................................................95 11) Capa do Capítulo II – Caboclo no Caquende e Igreja de Nossa Senhora da

Conceição dos Pobres; foto da autora..................................................................117 12) Capa do Capítulo III – Dologum de Nanã; foto da autora....................................186 13) Lista de banho de folhas; foto da autora.............................................................196 14) Domínio – Desenho em cartolina, Cristina Solimando (2015); foto da autora.....205

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SUMÁRIO

MAPAS............................................................................................................................20

INTRODUÇÃO - ESCREVER CACHOEIRA....................................................................................26

1) Caminhos......................................................................................................................30 2) Desengano da vista......................................................................................................34 3) Narrar um mundo........................................................................................................38 4) Viver o mundo..............................................................................................................43

CAPÍTULO I - A INVERSÃO....................................................................................................46

1) O dono da terra............................................................................................................48 2) Camadas no Recôncavo Baiano, a história a partir dos livros.....................................52 3) Camadas na cidade-porto, a história a partir dos prédios...........................................70 4) Patrimônio histórico, patrimônio cultural: história oficial e o poder público.............84 5) Camadas na Recuada, as histórias das esquinas.........................................................96 6) A história portuguesa que ficou aqui são esses prédios aí, que caem........................106

CAPÍTULO II - OS OUTROS....................................................................................................117

1) Eu nasci mulher, porque mulher burra nasce homem................................................119 2) Tensões políticas numa emergente ciência brasileira................................................124 3) Um olhar mais sociológico, cultura e relações raciais................................................139 4) A fase pós-racialista dos Estudos Afro-brasileiros......................................................144 5) Misturas: foi Deus, Iemanjá mesmo e minha mãe Iansã............................................156 6) Aquilo que o caboclo faz, o negro não desfaz.............................................................166 7) A força que vem dessa pedra que canta Itapoã, fala Tupi fala Iorubá.......................180

CAPÍTULO III - O MUNDO....................................................................................................186

1) São 16 falanges, cada uma tem uma dona.................................................................188 2) Amaci............................................................................................................................196 3) Em Cachoeira, quem é de santo se não tá na vista, tá na corrente............................198 4) Domínio.........................................................................................................................205 5) Velho do Balaio e o Enterro da meia-noite...................................................................209 6) A árvore murada...........................................................................................................212 7) Eu faço feitiço, mas não sou feiticeira..........................................................................213 8) No quarto de costura....................................................................................................217 9) Sambando com Santo Antônio.....................................................................................219 10) É o cheiro da Festa D’Ajuda!.........................................................................................221 11) Não sei se é 25 pelo 25 de junho ou se porque é 25 horas..........................................226 12) No tabuleiro do acarajé................................................................................................228 13) Cachoeirando................................................................................................................231 14) A roça de Dona Norma.................................................................................................236 15) Ausências......................................................................................................................238 16) As pessoas vão deixando de ser gente e se transformando em divindade.................239

EPÍLOGO - PELE, AQUILO QUE NÃO SE FALA.............................................................................244

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................................255

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MAPAS

1) Fonte: Site do IBGE Uso da plataforma @openstreetmap

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3) Fonte: Prefeitura de Cachoeira, 2016

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4) Desenho 1 de Cristina Solimando, 2014; foto da autora.

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5) Desenho 2 de Cristina Solimando, 2014; foto da autora

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6) Desenho 3 de Cristina Solimando, 2014; foto da autora

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INTRODUÇÃO

Escrever Cachoeira

Homem! O animal que fala

Cachoeira, foi de Luanda que entendi sua realidade Olhem pra mim sou de Cachoeira

Penso, falo, canto e sou sua liberdade. (...)

Eu nasci em Cachoeira E perguntei à Cachoeira, por que tanta decepção?

Cachoeira me disse: - Pergunte ao homem.

- Cachoeira, por que tanta desilusão, tanta intolerância, por quê Cachoeira?

- Coisa do homem - Cachoeira e tanta violência, Cachoeira, o por quê Cachoeira?

- Desperta o homem. Também Cachoeira me disse:

O homem que eu falo é você, mergulhe bem dentro de si, se encontre e pergunte por que?

(...) Quando chego na Pitanga, certeza tenho que em casa eu já cheguei

À tardinha vou passear no campo da manga Lembro do Caquende em cujas águas eu me banhei.

Da Faceira e Tororó eu vejo a Pedra da Baleia E o santuário de Oxum, Mãe Aziri Tobóssi

Subindo a levada vejo o Ilê de Gaiaku. Esse é o big bang, Cachoeira.

Mateus Aleluia

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Perdi as contas de quantas vezes fiz aquele trajeto. Os caminhos para se chegar

à cidade de Cachoeira são muitos. Seja por terra, seja por mar. Cachoeira tem várias

entradas e várias saídas. Ainda que ela esteja situada em um vale. Hoje em dia, o mais

comum é vir por terra da Cidade da Bahia, Salvador, nos ônibus das viações Jauá ou

Santana. Há também as topics, vans conhecidas por serem mais rápidas ao fazerem o

mesmo percurso.

O trajeto segue pela BR 324, rodovia que liga Salvador à Feira de Santana. Ainda

na estrada, após passar por Simões Filhos, cidade da região metropolitana de Salvador,

avista-se um prédio enorme, retangular, pintado de branco e azul com o escrito JESUS

bem grande, em vermelho. É a fundação Dr. Jesus, um centro de recuperação que fica

em frente ao distrito Menino Jesus. Quando o ônibus faz a volta no viaduto da estrada

que leva à BR 420, a paisagem começa a mudar. Com o tempo, fui aprendendo os

detalhes da estrada. O que significava cada passo desse caminho. Depois do viaduto, a

estrada encurta, entramos em mão dupla, o mato começa a brotar na margem e a pista

começa a se encaracolar em curvas. Em meio aos verdes, surgem aos poucos os

municípios rurais: pequenos amontoados de casas, escolas e igrejas.

Entramos na cidade de Santo Amaro da Purificação. O ônibus pára em alguns

pontos, rodeia o centro da cidade, passa por uma de suas igrejas e chega à rodoviária.

Neste momento, o veículo é tomado por cheiros diversos vindos dos vendedores que

entram. Água, cerveja, milho assado, amendoim cozido. Na saída da cidade em direção

aos outros municípios do Recôncavo, deixamos São Francisco do Conde para trás. O

percurso procede semelhante: verde, casas, curvas. À esquerda, temos a entrada para

o trecho que leva aos distritos de mangue de Santo Amaro, Acupe e o quilombo São

Braz, assim como ao município de Saubara, que abarca as praias de Cabuçu e Bom Jesus

dos Pobres. Depois, ultrapassamos a fronteira não delimitada com o município de

Cachoeira na mesma rodovia. Seguimos com mais zonas rurais. Passamos pela

Murutuba, pelo Alecrim e pela entrada de Belém da Cachoeira, de frente ao Posto Lagoa

Encantada. E é a partir dali que eu sei que estou chegando. O ônibus começa a descer,

descer, sempre em curvas. O sinal volta a pegar no celular e alcançamos a ladeira

Manuel Vitório de um lado e o alto do Jenipapeiro do outro. Chegamos a um portal azul

e branco, onde se lê: “Cachoeira heroica e monumento nacional”. Estamos na Pitanga.

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Como nos diz Mateus Aleluia, é neste momento que certeza tenho que em casa eu já

cheguei.

O percurso do ônibus, no entanto, segue. Seu destino final é São Félix – cidade-

irmã de Cachoeira, atravessando o Rio Paraguaçu. Da Pitanga, vira-se no Paradela, loja

de materiais de construção. Alcança-se neste momento a feira e o Mercado Municipal.

O ônibus pára. Torna a dobrar, à direita, na rua do comércio sempre muito

movimentada. Passa pelos vários mercados pequenos, pelo supermercado Souza e pela

recém aberta loja do Subway no antigo prédio dos Correios. Ainda mais lojas, o

supermercado Pereira. Logo depois dobra ali, no prédio da antiga fábrica de charutos

Leite Alves, onde hoje funciona o Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL) da

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Por fim, o ônibus chega à

rodoviária na beira do rio Paraguaçu. De lá, sobe a pequena rampa de acesso ao lado e

passa pela antiga estação de trem, abandonada, ainda com os letreiros “Cachoeira”, por

onde passa hoje apenas o trem de carga. E atravessa a ponte de ferro Dom Pedro II.

Se for de dia, os barulhos cachoeiranos já passam a ocupar os ouvidos. Descendo

na rodoviária temos a caixa de som na esquina da universidade, sempre ligada. As caixas

de som acompanham os também carros ou motos de som. É possível ainda escutar

algum ensaio de uma das filarmônicas da cidade. Pode-se ouvir, talvez, o apito do trem

passando e o tremor que provoca nas estruturas de ferro da ponte. Logo, some na

estação fantasma, quase entrando no mato. Este é um dos caminhos que desemboca

no bairro do Viradouro. O apito do trem ressoa em toda cidade. Pode-se ouvir ainda os

fogos que sempre queimam pelos mais diversos motivos – seja futebol, seja evento de

igreja, seja festa no terreiro, seja a droga chegando. Ou os sinos de alguma das suas

muitas igrejas a badalar. Talvez se escute ainda o anúncio de um funeral: anunciamos o

falecimento de fulano da Silva, conhecido como Seu Coisinho, filho de seu Zé do Caixote

e Dona Dadá, marido, pai, cunhado, filha. A família enlutada agradece e convida a todos

para este ato de solidariedade cristã no Cemitério da Piedade. A família ainda

consternada agradece as condolências. Cachoeira é assim, barulho.

Muitas vezes é possível reconhecer Cachoeira pela forma de fala, pelos nomes e

apelidos diversos. Cachoeira se sente. Cachoeira é barulho, mas é cheiro também. Às

cinco da tarde é cheiro de acarajé fritando. É cheiro de folha macerada ou da folha fresca

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nos dias de festa na cidade. É cheiro do Rio Paraguaçu secando. Cheiro da fogueira de

São João queimando. É cheiro de feira: verduras, flores, siri catado, mariscagem. É cheiro

de carne nos açougues do mercado. Cheiro de incenso das procissões. É cheiro do samba

de roda, do reggae, do pagode, da confusão. É cheiro da Festa d’Ajuda!

Certeza que em casa eu havia chegado, não era apenas da Pitanga. Era já na

rodoviária dar um bocado de risada com Rose, pedir a benção à Dona Venina. Era ao

chegar no meio da praça, no caminho de casa, encontrar Gilvânia rindo e contando

histórias, às vezes descarada, desbocada, às vezes tão brava que dava medo, enquanto

oferecia seu acarajé abusado de camarão fresco e bacalhau. Era ver o movimento ora

cheio, ora vazio – como o próprio Paraguaçu – do bar e do humor de Zé Miúdo e sua

famosa carne. Era sentar em Zé Miúdo com Rita, Duca, Pedro e Lulu, às vezes Acely, para

filosofar pitorescamente e dar muita risada. Esses dois pontos ficam na praça dos

Correios, a antiga Praça do Chafariz, onde era a feira no período colonial. O chafariz até

hoje se encontra nesta praça, ao lado do prédio do Bradesco e circundado de sobrados.

No meio de um cruzamento de ruas, temos o busto de Getúlio Vargas, ele que visitou

Cachoeira em agosto de 19331. Mas chegar em casa era também atravessar a cidade,

centro, Caquende e, na Faceira, subir as escadas irregulares e pedir a benção à Mãe

Dionízia, Iyá Aleluia, Ogan Vaval, Dona Leninha, Dona Roquinha, Gegeo, Lene Pequena,

Marli e Joelson.

Já bebeu a água de Cachoeira?, muitas pessoas perguntam para quem é de fora

e está de visita na cidade. Se a resposta é afirmativa, segue-se um: Apois, quem bebe,

não quer mais ir embora. Mãe Dionízia uma vez me perguntou: desses lugares todos que

você andou, não foi Cachoeira a qual você mais gostou? Ao meu sim, ela acrescentou:

Cachoeira é uma mãe. E ainda Ana Rita Fernandes afirmou certa vez, em Cachoeira tudo

cabe. Quem disse que essa cidade é pequena?

1 Detalhes da visita do presidente Vargas podem ser lidos no artigo “Visita de Getúlio Vargas a Cachoeira e São Félix” (Rocha, 2015: 175-180).

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1) CAMINHOS

Cachoeira é uma cidade do Recôncavo Baiano cheia de histórias. Durante o

período colonial, chegou a ser o segundo principal porto do Brasil e ponto importante

de trânsito entre a capital, Salvador, e o sertão. Cachoeira é uma terra de movimento.

Nela, escutamos a todo tempo que tudo tem um fundamento por trás. Esse fundamento

não se explica, se sente: o candomblé e suas presenças informam o cotidiano das

pessoas. Orixás, inquices, caboclos são presenças donas das pedras do rio. Das esquinas

da cidade. Das praças, matas, encruzilhadas.

Cheguei em Cachoeira em fevereiro de 2015. Lá permaneci até agosto de 2017.

Morar por tanto tempo na cidade me permitiu realizar dois movimentos que operaram

uma transformação na forma de se fazer trabalho de campo e no próprio texto da tese.

Logo que cheguei, comecei minhas andanças por Cachoeira perguntando às pessoas

indicações de com quem conversar sobre essa cidade do interior tão singular – com três

filarmônicas oficiais, uma universidade federal, uma vida cultural movimentada em

festas ao longo de todo ano, a Irmandade da Boa Morte, uma Festa Literária (Flica), um

Festival de Documentário e muitos terreiros. A maioria dos nomes automaticamente

indicados para entrevistar era de homens, aqueles que, de certa forma, estavam

autorizados a falar sobre a cidade. Cachoeira, como muitas outras cidades pequenas do

Brasil, possui seus memorialistas e historiadores locais.

Eu então perguntava: e as mulheres? Elas estavam no samba de roda, na esmola

cantada, nos terreiros, na Boa Morte e outras irmandades, eram rezadeiras ou

costureiras. Ainda que as mulheres ocupassem cargos importantes do cotidiano

cachoeirano, porém, permanecia a questão: por que para falar sobre a cidade eram os

homens os sugeridos? Como pude perceber, essa indicação tinha relação com a história

de Cachoeira que era contada. Uma história sobre os seus tempos de glória no período

colonial. Sobre sua fundamental participação na Independência da Bahia. Sobre a

riqueza dos seus engenhos. A história de um povo aguerrido, heroico e rico

culturalmente. Se eram os homens os mais indicados para falar sobre a glória

cachoeirana, ao longo dos anos, a minha rede de apoio e afetos ia sendo cada vez mais

composta por mulheres.

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Não foi essa a única mudança ao longo do percurso. No início, a pesquisa seguia

os padrões do que se entende por um trabalho de campo: ao viver o cotidiano da cidade,

fiz entrevistas com as pessoas que todos me indicavam, frequentei sessões solenes na

Câmara de Vereadores e acompanhei eventos cívicos. Estes momentos eram seguidos

por uma escrita disciplinada do caderno de campo. Com o tempo, no entanto, o campo

se tornou a minha vida. A relação com a escrita no diário se transformou.

Assim que cheguei em Cachoeira, Deisiane Barbosa, uma grande amiga e

escritora, sugeriu que eu criasse um blog para escrever a minha experiência poética com

a cidade2, algo que inicialmente estava desconectado da escrita da tese. O blog se

tornou, porém, uma espécie de diário de campo fragmentado, um apanhado das frases

rápidas, poéticas e engraçadas que eu escutava pelas ruas de Cachoeira. Com o tempo,

também as minhas anotações passaram a serem feitas no formato de pequenos diálogos

e histórias curtas neste site e em diversos outros pequenos cadernos, e cada vez menos

em um diário de campo digitado como ferramenta metodológica de pesquisa. Eu passei

a viver Cachoeira.

E é a partir dessa experiência de viver a cidade que resolvi escrever as histórias

que me foram contadas e as vivências compartilhadas.

As relações que construí em Cachoeira são, assim, parte constitutiva do

conhecimento que busco aqui comunicar. Através de conversas informais, de

entrevistas gravadas e mesmo da vida cotidiana o argumento desta tese foi sendo

construído ao longo desses dois anos e meio de trabalho de campo. Dos aprendizados,

as conversas na sala de Maria Dionízia dos Santos, Mãe Dionízia do terreiro Oiá Mucumbi

na Faceira, foram as que mais me ensinaram sobre um mundo habitado por muitas

presenças. Foi sentada ali, primeiro no sofá, depois no chão, que pude ver através do

movimento de pessoas em sua casa a forma com que ela contava histórias3. Das

conversas com Ana Clara Amorim, professora de história no Iguape e conhecida pela

cidade como Duca, o aprendizado vinha da pouca importância que ela conferia à história

exaltada pelas pessoas autorizadas a falar sobre a cidade e da necessidade de afirmação

daquelas pessoas que ali, no Recôncavo, haviam remanescido. E com a baiana de acarajé

2 https://cachoeirando.wordpress.com/ (último acesso 16/08/2018) 3 Para um trabalho sobre o terreiro Oiá Mucumbi em Cachoeira, ver Luísa Damasceno (2017).

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Gilvânia, com seu jeito perspicaz e debochado, a inspiração do argumento que tece o fio

da tese: a inversão do mundo.

A inversão do mundo será feita no texto em três movimentos. Estes movimentos

estão na tese divididos em três capítulos. Ao optar por narrar esse mundo4 construído e

vivido por histórias, volto o interesse para a forma narrativa das pessoas de Cachoeira e

o que ela nos ensina sobre viver a cidade. Essa é uma maneira de viver o mundo que

passa pelo candomblé, mas não se restringe a ele. Motivo pelo qual o foco aqui não será,

portanto, o candomblé. Não procuro descrever rituais e mitos de orixás, nem explicar

pressupostos estruturais da religião. O interesse da tese é escrever uma maneira de

viver que passa pelo conhecimento no candomblé e que implica uma forma de contar

um mundo composto por presenças. Um mundo que resistiu, sobreviveu e remanesceu,

e que será explorado no primeiro capítulo da tese.

O Capítulo I, portanto, é o lugar onde faremos A inversão. Partindo do discurso

oficial da cidade presente nas sessões solenes e momentos cívicos, bem como na fala

de algumas pessoas e historiadores locais, chegaremos à Recuada, o lugar da resistência

de um conhecimento sobre a cidade que permeia o discurso oficial, e que envolve uma

atenção aos perigos espirituais, às presenças e ao dono da terra, o caboclo. O que chamo

nesta tese de presenças, portanto, são as donas e donos dos lugares que me foram

narrados pelas pessoas de santo. Quando pedi para entrevistar Mãe Dionízia, por

exemplo, ela me falou sobre o rio Paraguaçu. Ih, minha filha, esse rio aí tem é história.

Da ponte Dom Pedro até a Pedra da Baleia são 16 falanges, cada uma tem uma dona.

Falarei sobre as falanges quando for descrever o terceiro capítulo.

A primeira parte da tese é, assim, uma costura das diferentes formas de se narrar

Cachoeira. O capítulo faz o movimento referido acima que eu mesma fiz ao longo do

trabalho de campo, um movimento que vai do oficial ao que remanesceu. Em suas

diversas manifestações, a entidade caboclo é fundamental para nos ajudar nessa

inversão. Na entrada da cidade, o caboclo e a cabocla nos levam pelos dados do IBGE,

pela história oficial escrita por descendentes de senhores de engenho, pela

4 Vânia Zinkan Cardoso (2007) fala de “narrar o mundo” ao trabalhar com as “estórias” do “povo da rua”, entidades das esquerdas, em sua pesquisa no Rio de Janeiro. Uso aqui a ideia de narrar um mundo inspirada nesta autora, mas acrescento à noção de narrar o mundo uma ênfase no viver o mundo.

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historiografia feita na academia a partir dos anos 1980, pelo discurso oficial da cidade

mobilizado pela prefeitura e câmara de vereadores em momentos solenes e

comemorações cívicas, mas também acionado pelos historiadores locais, os homens

autorizados a falar sobre a cidade. A inversão começa quando se passa a narrar a cidade

a partir da Recuada, bairro que no período colonial era morada da população negra de

Cachoeira. A inversão toma forma nas palavras de Ana Clara Amorim, que enfatiza a

importância dos remanescentes e o efeito que Cachoeira tem sobre quem por lá passa.

Para ela, a cidade contamina as pessoas, noção que será usada ao trabalhar com as

narrativas históricas. Aqui, história oficial e discurso oficial se confundem. A

historiografia contamina e é contaminada pela resistência de quem remanesceu.

Para deixar mais claro, neste capítulo eu chamo de história oficial uma vertente

da historiografia brasileira do final do século XIX e início do século XX que faz parte de

um momento em que se buscava a consolidação de um discurso de identidade nacional.

Já o que chamo de discurso oficial é o que se refere às narrativas da cidade de Cachoeira

construídas pelos historiadores locais, bem como nos atos cívicos e sessões solenes da

Câmara dos Vereadores. Em termos de perspectiva, este discurso se aproxima da

história oficial pois também busca a construção de uma identidade nacional, baiana e

cachoeirana.

O movimento é, portanto, de um conhecimento centrado em fatos e lugares

históricos, pessoas importantes e a noção de patrimônio que precisa ser preservado,

para um conhecimento que é ensinado nas esquinas da cidade. São as presenças,

entidades, orixás, inquices e caboclos, as donas e donos dos lugares que nos ensinam

que é preciso tomar cuidado com os perigos espirituais da cidade. Uma cidade que é

cheia deles, poluída espiritualmente, porque carregada de feitiço, de trânsitos e de

mortes. Essa forma de conhecer nos ensina que é preciso pedir licença quando for

atravessar o território de outrem. Além disso, ela nos desloca o olhar para a existência

do dono da terra. Sua existência é contada nas narrativas acerca da relação entre negros

e índios na resistência ao colonialismo português. Sobrevivência aqui é fundamental.

Significa remanescer, resistir espiritual e epistemologicamente.

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2) DESENGANO DA VISTA

No segundo movimento, em vez de partir da literatura antropológica e seus

debates em torno do candomblé na Bahia para falar sobre Cachoeira, procuro fazer uma

crítica inspirada por Cachoeira sobre tal literatura. Para tanto, mostro como a figura do

caboclo, imprevisível e em constante movimento, aparece para bagunçar os esquemas

e modelos antropológicos nos trabalhos sobre as religiões de matriz africana. A partir

dos perigos da Recuada e dos remanescentes de Duca, nós iremos pensar na forma de

construção do conhecimento naquilo que ficou consagrado como os Estudos Afro-

Brasileiros. O objetivo é refletir sobre etnografia e escrita antropológica na literatura

produzida sobre o candomblé da Bahia centrada em Salvador.

Não foram poucas as autoras e autores que refletiram sobre escrita etnográfica.

Não é o caso aqui de fazer um apanhado geral do debate, desde os clássicos, passando

pelos pós-modernos, chegando às discussões mais recentes. Como o propósito desta

tese é pensar a forma da escrita, remeto-me ao livro Vida & Grafias organizado por Suely

Kofes e Daniela Manica (2015: 16), um apanhado de textos com diferentes propostas de

grafias que refletem sobre o uso de outros registros e formas de inscrição. As autoras

partem do “interesse pela riqueza das relações entre experiências, grafias e escrita

antropológica”:

Pensamos ser importante contribuir para um enfrentamento das questões que

surgem da tentativa de relacionar criticamente essas duas modalidades de grafia,

“etno” e “bio”, e seus pressupostos. E, mais do que isso, abarcar a multiplicidade

gráfica possibilitada por combinações diversas entre radicais que antecedem a grafia

(“etno”/ “bio”, “foto”/ “bio”, “carto”, “antro” etc.). Ou seja, pensar também outros

registros e formas de inscrição – como as imagens, os sons, as coisas, seus rastros e

(re)composições, sobretudo (mas não apenas) quando articulados às questões de

alteridade e individuação, e à escrita antropológica. Em certo sentido, nosso

pressuposto e horizonte era também de que as próprias noções de vida, “indivíduo”/

“pessoa”, anthropos/ ethnos, podem ser ampliadas e tensionadas ao se pensar vidas

e grafias na antropologia. (Kofes & Manica, 2015: 17, grifos no original)

No posfácio desse mesmo livro, Fabiana Bruno (2015: 407) faz a instigante

pergunta: como “fazer ver” experiências de vida? Ela atribui, assim, às imagens, mas

também a outras formas de grafia,

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o lugar de onde se pode tirar, como nos diria Didi-Huberman (2003), “emoção e

bocados de memória, imaginação e bocados de verdade”, o movimento seria como

aquele de quem procura, nos termos de Aby Warburg (2000), o “fluxo invisível”

daquilo que passa entre as coisas e as tornam “tesouros sobreviventes”. (Bruno,

2015: 407)

A ideia de “fazer ver” a vida inspira aqui a reflexão sobre a forma que esta tese

toma, o que, por sua vez, leva à questão de como construímos análises antropológicas.

Ao “atravessar as águas da memória e seguir as trajetórias de migrantes” do “interior”

da Bahia para Salvador, Cristiane Souza (2013: 14) levanta importantes

questionamentos nesse sentido:

Como construir nossos “objetos de pesquisa”, nossas relações com as pessoas com

as quais desejamos produzir, junto, conhecimento? Como operamos com o nosso

próprio universo lógico? Que hierarquia produzimos ou reafirmamos com nossos

silêncios e posicionamentos narrativos? Isso implica na escolha do que relatar.

(Souza, 2013: 12).

Não podemos esquecer, ela ainda nos adverte, “que, assim como as

subjetividades dos que estudamos se modifica, também as nossas se transformam na

relação com cada um dos sujeitos envolvidos na pesquisa de campo” (Souza, 2013: 12).

Isso porque, sempre bom lembrar, “toda enunciação, todo discurso, toda prática vem

de um lugar, e que, da mesma maneira, a produção do conhecimento científico também

reflete um lugar de enunciação, uma escolha feita pelo investigador” (Souza, 2013: 12).

Por fim, Souza (2013: 13) nos propõe “outros caminhos”: “o deslocamento me trouxe

uma narrativa interessada em [des]construir e (re)afirmar uma prática e uma escrita

etnográfica de proximidades sociais e analíticas que contribuam na invenção de outros

caminhos antropológicos”.

Catarina Morawska (2017) propõe que a análise antropológica seja feita através

da abertura de pontos de bifurcação entre material etnográfico e bibliográfico. Essas

bifurcações fariam ver e manteriam explícitas distinções conceituais do mundo do

campo e da literatura antropológica. Ao fazer esse movimento, a autora pretende evitar

um procedimento analítico comum que transmuta noções encontradas em campo em

conceitos teóricos generalizantes acionados em diferentes contextos etnográficos.

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Manter a proeminência das noções de nossos interlocutores nas nossas análises

como uma postura política não se resolve nem pela tentativa de lhes “dar voz”, nem

pela suposição de que se fala “a partir da perspectiva nativa”, pois em ambos os

casos seus conceitos, práticas e modelos são inevitavelmente subsumidos por

modelos antropológicos. (Morawska, 2017: 239)

O interesse da autora é em como construir uma narrativa que garanta a

proeminência das noções de nossos interlocutores nas análises antropológicas. Como

fazer com que na análise, o lugar das pessoas com quem fazemos pesquisa esteja

equiparado ao dos autores acadêmicos?

O procedimento inaugurado por Marilyn Strathern (2004) parece uma possível

contribuição para tanto, na medida em que renova o empreendimento comparativo

na antropologia ao sempre explicitar as aproximações, paralelos e transformações

dos conceitos nativos em relação aos conceitos oriundos da teoria, como corpos que

se mantêm externos uns aos outros, e cujo encontro provoca novas aberturas, novas

conexões. E assim buscou-se fazer neste texto por meio de bifurcações. Não se

tratou aqui de “deixar os educadores falarem” a partir da adoção da perspectiva [da

literatura pós] colonial, mas sim de, na companhia de Jucélia, José Luiz, Daniel,

Vander, Erika, Clébison, Erivan, Zuleide e Robson, promover agenciamentos

particulares, o tempo emergente aberto pela escrita antropológica. (Morawska,

2017: 240)

Como fazer no “tempo emergente aberto pela escrita antropológica” uma

mescla entre as razões dos mundos vividos em campo e na teoria? Como fazer com que

essa construção não seja mais uma razão ilustrada pelo “pensamento nativo” e

explicada a partir de modelos antropológicos?

Essas autoras me ajudam a pensar na maneira como se constrói conhecimento

antropológico. O lugar da teoria dos Estudos Afro-Brasileiros foi para mim um lugar de

desencaixe. Primeiro fiz trabalho de campo e apenas depois me debrucei sobre a

literatura. Neste procedimento, houve um descompasso: eu não conseguia ver ali o

mundo que vivi.

No Capítulo II, Os outros, portanto, nós iremos olhar para a antropologia a partir

do mundo que foi invertido no primeiro capítulo para questionar qual a forma

geralmente reconhecida como uma análise na antropologia. A inversão nos incita a um

movimento que atenta para o ponto de partida no momento em que se constrói

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textualmente nossas análises: o campo ou a teoria? A relação tensa entre estes dois

polos tão caros à antropologia é o foco dessa parte. Para isso, será preciso olhar para os

textos prestando atenção ao lugar em que está o mundo na composição das análises.

Onde está o campo no momento em que ele se torna texto? Em relação com ou dentro

dos modelos antropológicos? Procuro, assim, discutir como o campo se torna

subsumido em discussões teóricas dentro da antropologia das religiões de matriz

africana.

A intenção aqui não é esgotar essa imensa literatura, mas prestar atenção na

forma como esses trabalhos são escritos, como os conteúdos são hierarquizados, o que

entra e o que fica de fora para compor aquilo que se reconhece como análise. Atentando

para a ausência das presenças e, em alguns casos, a própria ausência das pessoas com

as quais pesquisadores fizeram campo. Ao percorrer uma série de trabalhos, tinha a

seguinte questão em mente: o que acontece na passagem do trabalho de campo para o

texto em que tanta coisa se perde?

Os fios que irão guiar a nossa costura são as noções de probidade científica e

envolvimento político. No caso dos estudos afro-brasileiros, essas duas questões estão

intimamente ligadas aos debates em torno dos conceitos de raça e cultura. E, por fim,

espelham também as diferentes formas de denominar esses mesmos estudos: afro-

brasileiro, afro-brasilianista e afro-baiano.

Portanto, evito na tese explicar o conhecimento do candomblé a partir de noções

próprias desta teoria antropológica. O que proponho é uma inversão do olhar

etnográfico. Mas como então escrever teoria antropológica sem explicar o mundo

aprendido? Proponho refletir sobre esta questão por meio de um experimento

etnográfico: olhar a teoria antropológica da forma como Mãe Dionízia faz com os seus

búzios. Um dia ao responder a uma pergunta qualquer, ela me disse: tem que olhar,

minha filha, desengano da vista é ver. Pensando em forma, pretendo construir uma

linguagem narrativa em que o campo contamine – tal como a cidade de Cachoeira faz

com as pessoas segundo Ana Clara Amorim – a forma da escrita, desenganando a vista

da teoria. Essa perspectiva nos leva para o próximo passo da inversão.

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3) NARRAR UM MUNDO

Refletir sobre o que se toma por análise nos leva ainda a uma pergunta também

inspirada pela provocação da coletânea organizada por Kofes e Manica (2015): como

grafar a vida?

O último e terceiro movimento da tese é deixar que o mundo vivido de Cachoeira

contamine o texto. Um mundo que é vivido por meio de uma espiritualidade corpórea e

de um ritmo de fala. Através das narrativas, a intenção, portanto, não é olhar a

espiritualidade do ponto de vista racional-analítico, mas deixar que ela componha a

própria narrativa da tese. É inverter, portanto, uma forma de pensar através de

classificações e explicações para uma forma de viver um mundo feito por pessoas e

outros povos, das ruas, das matas, das águas, dos caminhos, da terra. Um mundo que é

plural como a entidade caboclo.

Muitos foram os trabalhos de experimentações com a escrita na antropologia. E

esta tese faz coro a todos eles. Só para mencionar alguns. A sequência que buscou

escrever a visão histórica dos saramaka (Price, [1983] 2002), bem como uma “estória”

do colonialismo e resistência no Caribe (Price, 1998). A proposta de escrever os afetos

cotidianos (Stewart, 2007). E escrever uma antropologia poética das religiões afro-

americanas (Fichte, 1987). A intenção aqui é justamente levar a sério a potencialidade

da antropologia que todas essas formas de pensar escrita etnográfica nos levam. Que as

nossas escritas sejam tão múltiplas como os nossos tão diversos trabalhos de campo.

Benedikte Zitouni ([2011] 2014) defende que deveríamos abolir a palavra

explicação. Esse posicionamento está relacionado com a violência de se clamar por um

entendimento e pela definição de quem irá explicar. Uma violência que Zitouni

aprendeu a reconhecer como inerente à relação de conhecimento ensinado e praticado

na universidade. Em resposta à carta de Virgínia Woolf, sua herança estava em sustentar

a memória e se recusar a esquecer que Zitouni e sua mãe eram as mulheres a quem as

explicações eram dadas, as mulheres de quem o entendimento era demandado. Esta

herança é também uma forma de proteção: fomentar o mal-estar, quase raiva, que essa

memória incita toda vez. Quantos homens explicaram coisas a elas – mãe solteira e filha

única? Especialmente sobre o seu bem-estar e mesmo quando nada havia sido

perguntado (Stengers, Despret & collective, 2011).

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Para evitar dizer o que o outro deve pensar, a estratégia para a escrita de Zitouni

é dramatizar a descrição: o leitor deve sempre sentir que há alguém contando a história,

que exagera o traço, que manipula os dados (Stengers, Despret & collective, 2011).

O autor sul-africano Njabulo Ndebele (2006), por sua vez, reitera a importância

do detalhe para se falar em política na literatura. O autor sugere, então, que se quebre

a barreira da demonstração e da obviedade para revelar novas possibilidades de se

entender e de agir (Ndebele, 2006: 46). O ordinário é aqui definido em oposição ao

espetacular. “Racional e não-racional constituem a mesma esfera da realidade”

(Ndebele, 2006: 51). A vida cotidiana das pessoas deveria ser o foco do interesse

político, pois elas constituem a principal parte da luta, “já que a luta envolve pessoas e

não abstrações” (Ndebele, 2006: 52).

Renato Rosaldo (2000: 167), por sua vez, nos coloca a importância de perceber

a narrativa como forma de análise social: “en lugar de ser simplesmente ornamentales,

las narrativas de los protagonistas acerca de su propia conducta merecen seria atención

como formas de análisis social”. Segundo o seu argumento, há uma enorme diversidade

de “narrativas êmicas”. As pessoas que ele chama de “protagonistas” do seu trabalho

possuem diversas formas de narrar a própria cultura. A partir do momento em que se

encara a narrativa como análise social, estas deixam de apenas ilustrar o texto, para

compor em si a própria análise.

Vincent Crapanzano (1980), ao escrever com o marroquino Tuhami, aponta para

a questão da escrita que se transforma na medida em que o próprio autor se transforma.

Na introdução de seu livro ele se pergunta: o que eu faço com esse relato? Como se faz

a tradução de uma narrativa? Através das conversas com Tuhami, Crapanzano (1980)

reflete ele mesmo sobre diversas questões da teoria e os limites da antropologia. A

noção de realidade é posta em xeque pelo marroquino e é o tempo todo negociada,

como o próprio encontro. O autor se coloca no desafio de dar sentido ao relato de

Tuhami, como uma resposta ao encontro e ao pensar a teoria etnográfica como fincada,

encravada no encontro etnográfico. Com Tuhami, Crapanzano (1980) aprendeu que

realidade e verdade não se equivalem. Diante disso, o autor optou por um jogo retórico

com a verdade: manter o encontro, mais do que manter uma coerência no que estava

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sendo dito. Suas reflexões foram tecidas assim, ao longo do encontro e ao longo da

escrita.

Tuhami é um narrador, a história de vida escrita por Crapanzano baseou-se no que

Tuhami lhe contou, e não no que outros lhe contam sobre ele. É assim quanto à

própria noção de realidade, de realidade etnográfica e de invenção que Crapanzano

discute. As histórias contadas por Tuhami e a narrativa de vida de Tuhami aproximam

autobiografia, etnografia, narrativas míticas e contos de fada. (Kofes, 2015: 28-29,

grifos no original)

Nelson Goodman (1980) reflete sobre a narratividade da imagem. Para o autor,

a ordem da narração independe da ordem de uma ocorrência. No começo do seu texto,

Goodman fala sobre o arranjo temporal da narrativa e depois do arranjo espacial das

imagens, encarando a sua não correspondência. As relações significam a narrativa,

mesmo que reordenada. O autor parece estar preocupado em descontruir a relação

imediata entre a ordem de narração e a ordem de ocorrência, nas diversas formas de se

contar (cinema, literatura, reportagens). Desta forma, em uma narrativa, nem o contar,

nem o que é explicitamente contado, precisa levar o tempo cronológico em

consideração. Ao analisar as imagens que nos traz, Goodman (1980) mostra que uma

narrativa (escrita ou em imagens) pode seguir ordens de diversos tipos, sejam

temporais, espaciais ou mesmo espirituais.

Cada narrativa tem um efeito. Assim, ao colocarmos em diálogo etnografia e

escrita, reafirmamos a importância da diversidade na própria construção do

conhecimento antropológico, na medida em que cada experiência de campo é

incorporada a partir de formas narrativas não previstas de antemão. Se, como afirma

Turner (1980), a narrativa torna o evento comunicável, a escrita que decorre de distintas

experiências etnográficas contém o potencial para multiplicar os nexos que provoca.

Levar a sério a potencialidade da diferença que a antropologia nos possibilita é,

aqui nesta tese, narrar o mundo contando histórias em seus detalhes (Ndebele, 2006).

Histórias que têm lá a sua dose de invenção (Evaristo, 2011) – no sentido de uma

“criatividade implícita no contar” (Cardoso, 2007: 340) –, mas que são contaminadas por

uma forma de narrar o mundo tal como as pessoas de Cachoeira. Escrever as histórias

narradas em campo implicou perceber o que os modelos antropológicos fazem sumir.

Embora o campo me faça refletir sobre uma discussão propriamente antropológica em

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torno da escrita etnográfica, não é esse o ponto de partida. O ponto de partida são os

prédios que caem, de Ana Clara Amorim (Capítulo I), as mulheres burras, de Gilvânia

(Capítulo II), e as 16 falanges de Mãe Dionízia (Capítulo III). Através dessas ideias, eu

construí a tese buscando trazer para o texto um mundo que não é apenas narrado, mas

vivido.

Como esse jeito de viver o cotidiano e de falar vai contaminando uma escrita que

teria como pressuposto ser acadêmica? Como tensionar e fazer uma tese não

explicativa? As histórias contadas em Cachoeira diiiiizem5 muita coisa. A própria forma

narrativa que as pessoas acionam vão nos contando sobre o mundo. Como me disse

Mãe Dionízia: nessa terra já teve muitas batalhas, minha filha. Ela conta da escravidão

e da violência. Das presenças de entidades em todos os lugares. Dos segredos do Rio

Paraguaçu e das construções em cima dele, a ponte Dom Pedro II e a barragem da Pedra

do Cavalo. Elas contam muitas coisas. Não precisam que, ao trazê-las para o texto, eu

pare seu fluxo narrativo para lançá-las a um mundo a elas alheio para, assim, fazer

análise antropológica. A decisão foi de transformar o que se entende por análise:

comunicar a forma de um mundo tal como ele é reconhecido e vivido. No arranjo e

rearranjo das palavras escolhidas. No ritmo. No deboche. No mistério. A intenção é fazer

a leitora sentir. Sentir a cidade. As pessoas. As presenças.

Busca-se, assim, trabalhar com uma perspectiva atenta ao conhecimento diário,

pensando que pequenas narrativas e histórias do comum ressoam e podem compor um

estado de análise. Da minha perspectiva, trabalho de campo implica um aprendizado

que vem das mais variadas formas, pelo jeito como nos comunicamos, pelo toque ou

não toque dos corpos, pelas expressões, pelas posturas, pelos tons de voz. Depois do

campo, o que fazemos é trabalhar com palavras e com a junção delas, para tentar dar

conta, minimamente, de transportar com nossas grafias o conhecimento e o mundo das

pessoas com as quais trabalhamos. A forma de escrever tem, então, relação com uma

escolha teórica e política de compromisso com o campo.

5 Diiiiiizem é expressão corriqueira entre algumas pessoas em Cachoeira para se iniciar uma fofoca ou história. Essa é a forma como o locutor da rádio Olha a pititinga!, Ivanildo Paulo, inicia as suas reportagens polêmicas.

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A escrita é, portanto, o lugar de uma teoria etnográfica que permita que

Cachoeira seja contada com as pessoas que nela habitam. Mesmo que o interesse em

discutir espiritualidade, memória da escravidão ou racismo seja também o de uma larga

parte da literatura acadêmica, o argumento da tese será conduzido textualmente pelas

minhas escolhas diante das falas das pessoas e da nossa própria relação. O que estou

propondo é uma composição de Cachoeira sobre a qual as pessoas falam, mas também

sobre a qual eu escrevo. É, portanto, no arranjo e rearranjo das conversas que a reflexão

aqui vai sendo feita e posta, e é nos interstícios do que dizem os cachoeiranos que se

pode vislumbrar o que diz também a nossa literatura acadêmica. Não o contrário.

Pretendo, assim, construir uma conversa com ritmo cachoeirano.

O desafio é escrever o detalhe.

O Capítulo III, O mundo, portanto, é uma experimentação na forma do texto.

Depois de questionada a análise no capítulo anterior, a proposta aqui é que o estado de

análise esteja nas palavras escolhidas, no arranjo e rearranjo das histórias através da

contaminação do texto etnográfico pela forma como as pessoas falam. Como as pessoas

contam história em Cachoeira? Mãe Dionízia fala, fala, fala, devagar. Ao escutá-la, temos

a impressão em diversos momentos de que não estamos entendendo nada, mas à

medida que a narrativa segue, vai fazendo sentido. E ela não é a única. Dona Venina

sempre constrói suas frases com perguntas retóricas. Se minha mãe não sabia nadar? E

assim vai nos contando suas histórias de santo. Rose, sua filha, está sempre pronta a nos

fazer rir. Bem como Gilvânia e Duca. Rita surpreende com frases maravilhosas: em

Cachoeira tudo cabe. Badinho e Cacau Nascimento exibem uma oratória particular ao

contar várias histórias das pessoas mais velhas de Cachoeira. Cristina Solimando

desenha. Dona Zilma, de forma tímida, fala de sua fé. Dona Norma, tinhosa, nos ensina

sobre tempo. E Nuno nos chama atenção para a praça 25. Essas pessoas todas me

ajudaram a narrar o terceiro capítulo. Quem elas são é algo que vai se revelando ao

longo da própria narrativa.

Em dezesseis falanges – em cada porto governa uma sereia dessas águas –

construí pequenos textos com diferentes estratégias narrativas e formatação distinta do

restante da tese. As falas das pessoas e expressões cachoeiranas permanecem em

itálico. Estes textos curtos são repletos de histórias cotidianas, sem começo nem fim. Da

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forma como são contadas no dia-a-dia. Essas narrativas nos falam de tempo, de morte,

de violência, de ausências, de risadas, de axé, de escravidão, de racismo, de Cachoeira.

Há, ainda, uma outra falange. Ela perpassa toda a tese. Ganha mais corpo no

segundo capítulo, mas é o que costura a narrativa ao longo de todo o texto. A falange

ponto de partida, número zero, é o próprio caboclo.

4) VIVER O MUNDO

Foram diversas as formas como eu grafei o conhecimento aprendido em

Cachoeira. Se ao longo do campo, como eu falei, fui vivendo mais do que “pesquisando”,

isso não significou menos envolvimento com a pesquisa. As anotações ficaram mais

esparsas no diário de campo, mas abundavam de outras maneiras. Assim, o material

aqui faz referência a entrevistas gravadas, conversas anotadas, caderno de campo, notas

em congressos na UFRB e muitos cadernos de notas escritas à mão, bem como o próprio

celular. Além disso, passar a viver a cidade foi fundamental para escrever o

conhecimento proposto nesta tese. Um conhecimento que não parte do pressuposto de

que os dados etnográficos são materiais a serem coletados, mas sim, uma forma de viver

e narrar o cotidiano que é construída na relação com as pessoas. Isso envolve confiança,

respeito e cumplicidade. Confiança, respeito e cumplicidade implicam um envolvimento

rigoroso com o momento de escrita.

As entrevistas foram por mim transcritas. Escrevi a linguagem falada buscando

evitar uma distinção entre o formal e o informal. Mantive algumas formas de falar

apenas para respeitar o ritmo da fala. Das conversas não gravadas, estão em itálico as

falas quando transcritas em cadernos de nota, anotadas entre aspas para indicar a

autoria de alguém. Em itálico também estão expressões comuns de serem ouvidas em

Cachoeira. A fala de Doné Maria Conceição no início do primeiro capítulo, por exemplo,

é uma composição das frases por ela ditas ao longo do congresso em que apresentou e

anotadas no meu caderno à mão. Nas entrevistas gravadas, preservei o estilo narrativo

na transcrição realizando a pontuação e editando as repetições que, se persuadem na

forma oral, tornam-se excessivas em um texto escrito. A conversa com Mãe Dionízia,

base da primeira falange do terceiro capítulo, não foi gravada, mas anotada à mão em

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um caderno e transcrita logo em seguida para o computador. Como ela me disse na

ocasião, tem certas coisas que não se deve gravar.

Os mapas e as imagens fazem parte da narrativa6. Nas suas várias formas de

contar Cachoeira, os mapas estão no começo da tese com a intenção de levar a leitora

e o leitor para a cidade. Essa cidade que é contada como todas as outras cidades do

mundo em plataformas de mapas amplamente acessíveis (mapas 1 e 2). Pela prefeitura,

que mostra os pontos turísticos e as pessoas importantes da cidade (mapa 3). E ainda

contada através de mapas-arte (mapas 4, 5, 6). Os desenhos7 de Cristina Solimando

foram a mim apresentados como uma visitante da cidade, em 2014, quando estava

hospedada em sua pousada. Ela desenhava mapas para os viajantes com os pontos

turísticos de Cachoeira. Em 2015, pedi que Cristina desenhasse um mapa das histórias

da cidade. Assim nasceu o Domínio, uma das falanges que compõem o terceiro capítulo

da tese.

Todas as partes desta tese são fundamentais. Da introdução ao epílogo. Elas

acompanham o meu movimento em Cachoeira, mas também dentro da antropologia. A

questão de forma aqui, portanto, não é apenas poética. Mas também política. Depois

do terceiro capítulo em 16 falanges, não faria sentido escrever uma conclusão para esta

tese. Para finalizar o texto, escrevi um epílogo. Nele, parto de algumas das discussões

do feminismo negro para falar brevemente sobre as diferenças raciais em campo. Como

disse Djamila Ribeiro no prefácio à edição brasileira da obra de Angelas Davis (2016),

Mulheres, raça e classe, a visão ativista aguça o olhar e recusa uma suposta neutralidade

epistemológica. Esta é a base desta tese. Inspirada neste debate que busca construir um

pensamento que rompa com as assimetrias socias (Ribeiro apud Davis, 2016), finalizo o

texto falando sobre o meu lugar de fala (Ribeiro, 2017) contando algumas das

6 Pensar o uso da imagem nos trabalhos antropológicos é fundamental para se refletir sobre outras formas de grafar. As discussões do La’grima, laboratório antropológico de grafia e imagem, coordenado pelas professoras Suely Kofes e Fabiana Bruno, foram fundamentais para o meu aprendizado no assunto, ainda que eu ainda esteja começando a caminhar nele. O laboratório reflete sobre experimentação conceitual e metodológica ao fomentar estudos e reflexões sobre as grafias e as imagens em pesquisa no campo (https://www.ifch.unicamp.br/lagrima/ - acesso em 16/08/2018). Para o uso especificamente de imagens e narrativas, ver, apenas para citar alguns poucos: Fabiana Bruno (2009), Alexsânder Nakaóka Elias (2018) e Nelson Goodman (1980). 7 Para uma discussão sobre antropologia e desenho, ver Aina Azevedo (2016) e demais artigos do dossiê "Antropologia e desenho" da Revista Cadernos de Arte e Antropologia (v. 5, nº 2, 2016).

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experiências vividas em Cachoeira e no meu trabalho de campo de mestrado, na África

do Sul (Vale, 2013).

Se a espiritualidade é vivida cotidianamente pelos corpos, esses corpos são

majoritariamente negros. A inversão também acontece quando a cidade é vivida no dia-

a-dia da pesquisa pelo corpo da pesquisadora branca na relação com outros corpos. O

título do epílogo, Pele, aquilo que não se fala, foi inspirado na entrevista com a poeta

Miriam Alves, Um poema com muita pele8. Ao fim da tese falo do que aprendi nos meus

trabalhos de campo e no diálogo com pessoas importantes que fizeram parte da minha

formação, algo que cursos de metodologia em geral não ensinam: a responsabilidade

de entrar na vida das pessoas. Como efetivamente levar a sério essa responsabilidade?

Como trazer a vida aprendida no mundo para os nossos textos etnográficos? Como

torná-los acessíveis para outras pessoas, não-antropólogas? Como não apagar

cinicamente as diferenças raciais vivenciadas nos trabalhos de campo? É com questões

como essas que procuro deixar a vida contaminar o texto. Em todos os seus aspectos. O

epílogo, portanto, encerra o movimento proposto na tese ao falar em respeito.

*

Em dezembro de 2015 estávamos, Jamile, Caroline e eu, ajudando nas

preparações para as festas de fim de ano no terreiro Oiá Mucumbi. Preparar festas em

um terreiro é preparar muitas coisas. Ainda mais em obrigação grande da dona da casa.

Deve-se limpar o corpo com banho antes de começar a limpeza do terreno, o preparo

da comida, o enfeite do salão. Além disso, tem que se estar com saia de ração, roupa

exclusiva para os afazeres da roça, e pano na cabeça. Mile não estava nem com um, nem

com outro. Mãe Dionízia, surpresa, afirmou: cadê sua roupa, menina? Se tá na macumba

é pra macumbar. Fica aqui, então, o convite para acompanhar um movimento que busca

macumbar o texto.

8 Entrevista feita por Carolina Menegatti, Gui Mohallem e Marcos Visnadi da revista virtual Geni, disponível em http://revistageni.org/11/um-poema-com-muita-pele/ (último acesso 1/08/2018)

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CAPÍTULO I

A inversão

Linha de Caboclo

Já chegou a hora, quem lá no mato mora É que vai agora se apresentar

No chão do terreiro a flecha do seu Flecheiro Foi que primeiro zuniu no ar.

Vi Seu Aimoré, Seu Coral, vi Seu Guiné, Ví Seu Jaguaré, Seu Araranguá,

Tupaíba eu vi, Seu Tupã, vi Seu Tupi, Seu Tupiraci, Seu Tupinambá.

Vi Seu Pedra-Preta se anunciar, Seu Rompe-Mato, Seu Sete-Flechas,

Vi Seu Ventania me assoviar Seu Vence-Demandas eu vi dançar

Benzeu meu patuá Vi Seu Pena-Branca rodopiar,

Seu Mata-Virgem, Seu Sete-Estrelas Vi Seu Vira-Mundo me abençoar

Vi toda a falange do Jurema Dentro do meu gongá.

Seu Ubirajara trouxe Seu Jupiara e Seu Tupiara Pra confirmar

Linha de Caboclo, Diz Seu Arranca-Toco, Um é irmão do outro

Quem vem lá. Com berloque e joia, vi Seu Arariboia

Com Seu Jiboia beirando o mar, Com cocar, borduna,

Chegou Seu Grajaúna, Que Baraúna mandou chamar.

Vi Seu Pedra-Branca se aproximar, Seu Folha-Verde, Seu Serra-Negra,

Seu Sete-Pedreiras eu vi rolar Seu Cachoeirinha ouvi cantar

Seu Gira-Sol girar. Vi Seu Boiadeiro me cavalgar,

Seu Treme-Terra, Seu Tira-Teima, Seu Ogum-das-Matas me alumiar

Vi toda a nação se manifestar Dentro do meu gongá.

Paulo César Pinheiro e Pedro Amorim

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1) O DONO DA TERRA

Julho é o mês dos caboclos na Bahia.

Os baianos se gabam por terem sido o único estado do país a ter efetivamente

uma guerra pela independência. Dizem que tudo começou na cidade de Cachoeira ainda

no ano de 1822. Depois de uma luta travada no interior enquanto a capital estava

sitiada, no dia 2 de julho de 1823 o exército nacional enfim derrotou as tropas

portuguesas e retomou o controle da capital. Escuta-se essa história do bravo e heroico

povo cachoeirano nas conversas com as pessoas, nos livros infantis, nos projetos

estaduais desenvolvidos nesta época do ano, nos folhetos disponibilizados pela

prefeitura e pelo governo do estado, e nas sessões solenes da Câmara de Vereadores. A

Independência da Bahia, portanto, foi e é motivo de um orgulho patriótico – estado e

país aqui se confundem. “Os baianos acharam este feito tão importante para a fundação

do Brasil, que no século XIX tentaram várias vezes transformar o dia em feriado

nacional” (Reis, 1999: 13).

Um ano após a batalha, foi realizado em Salvador um cortejo informal em

comemoração ao primeiro ano da independência. Reproduzindo o “trajeto da entrada

triunfal das tropas brasileiras na capital” (Reis, 1999: 13), um senhor indígena foi

colocado em um carro do antigo exército português e o desfile seguiu pelas ruas da

cidade (Kraay, 1999; Teles dos Santos, 1995; Albuquerque, 1999). Tal desfile foi ainda

repetido nos anos de 1825 e 1826,

quando nele se destacou um novo carro alegórico com uma estátua de um índio, o

caboclo, vestido de penas e portando arco e flecha, pisando a tirania, representada

por uma serpente. Para não deixar dúvidas quanto ao sentido da alegoria, o caboclo

está matando a serpente com uma lança, enquanto segura o pavilhão nacional na

mão esquerda. (Kraay, 1999: 53)

Ano após ano o Cortejo do 2 de Julho foi ganhando tamanho. A independência

passou a ser identificada na figura do caboclo como o herói da guerra. Em Cachoeira, a

data magna da independência é comemorada alguns dias antes, no dia 25 de junho. Pois

no dia 25 de junho de 1822 tropas cachoeiranas se reuniram na Casa de Câmara e Cadeia

e proclamaram D. Pedro regente do Brasil; o que depois valeu-lhe o nobre título de

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cidade heroica9. Como em Salvador, temos o Cortejo do 2 de Julho em São Félix. Nele, o

caboclo e a cabocla vão à frente, seguidos de um desfile oficial composto pelas

tradicionais filarmônicas de Cachoeira e São Félix, assim como das diversas bandas

marciais de escolas locais. Hendrik Kraay (1999) compara o cortejo do caboclo às

procissões católicas, em que o santo segue pelas ruas das cidades e os fiéis caminham

ao seu lado com devoção. O cortejo em Salvador é, ainda, conhecido como a “Festa do

Caboclo” (Teles dos Santos, 1995).

Para quem não nasceu na Bahia ou não estudou nas escolas baianas, a

Independência da Bahia é uma história desconhecida. Essa história, como a maioria das

histórias que buscam a construção de uma identidade nacional, possui seus heróis. No

caso da independência baiana, surpreende o fato de alguns deles serem mulheres. A

Sóror Joana Angélica, conta-se, tornou-se mártir da independência ao morrer tentando

barrar a entrada de portugueses no ataque ao Convento da Lapa. Maria Quitéria, dizem,

se vestiu de homem para lutar nas batalhas. Há, ainda, uma mulher negra, Maria Felipa,

da Ilha de Itaparica, cujo exército teria lutado contra os portugueses munido de facões

e folhas de cansanção, conhecidas para se dar surra pelo fato de causar uma sensação

de queimação maior que a urtiga. Além de heróis, as narrativas possuem também

símbolos. Na narrativa da Independência da Bahia o caboclo do cortejo é o símbolo do

brasileiro ideal. Para as pessoas ligadas às religiões afro-brasileiras, no entanto, o signo

de brasilidade deste caboclo tem outro motivo. O caboclo é brasileiro porque é o dono

da terra:

A partir de elementos presentes na simbologia afro-baiana, constitui-se a imagem

de um autóctone que, se por um lado espelha, assimila e reproduz valores ditos

oficiais, também reelabora esses valores, dando-lhes uma feição própria: o

autóctone deixa de ser aquele que não se deixou dominar no processo histórico

brasileiro para representar, na sua gama de significados, “o dono da terra”. Desse

modo, o candomblé recria, a partir de elementos próprios, um índio que a sociedade

brasileira imagina conhecer. (Teles dos Santos, 1995: 147)

9 Em março de 1837, através da Lei Provincial nº 43, foi conferido a Cachoeira o título honorífico de heroica e ela foi elevada à categoria de cidade.

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Não surpreende, assim, que é também no dia 2 de julho que nos terreiros de

algumas destas cidades é dia da entidade caboclo10. É o dia em que algumas das casas

de axé fazem uma das festas mais esperadas do ano. Os terreiros são enfeitados com

folhas e frutas penduradas. Assim como folhas e frutas dispostas no chão. Essa

ornamentação forma um altar. Em seu centro, colocam-se bolos confeitados. A bandeira

do Brasil faz parte do repertório de ornamentação em grande quantidade, suas cores

são fortes e presentes. É a única festa, na maioria dos terreiros, em que se é permitida

bebida dentro do salão. Vinho, cerveja, cachaça. Tem trago para o gosto de cada

caboclo. No primeiro 2 de julho que passei na Bahia, fui à festa de caboclo no terreiro

de Mãe Sem-Brinco, em São Félix, no ano de 2015. Foi também em uma festa de caboclo,

no terreiro de Mãe Dionízia, que vi um ogan11 bater para caboclo até a sua mão sangrar.

Nem assim ele parou de bater.

Diferentemente das outras festas que costumam começar à noite, as de caboclos

são conhecidas pelo samba que corre solto, iniciado normalmente à tarde, e só

terminado quando os caboclos permitem. Não conheci uma pessoa em Cachoeira, e que

frequentasse as festas de terreiro, que não gostasse das festas de caboclo. As pessoas

cantam alto e dançam os sambas, bebem e se divertem. A roda é aberta para todos que

pelos caboclos são convidados a sambar, mas é preciso ter cuidado. Os caboclos adoram

tombar quem de tombo é.

10 O termo “candomblés de caboclo” apareceu pela primeira vez na literatura sobre o candomblé da Bahia nos escritos de Nina Rodrigues, como aponta Jocélio Teles dos Santos (1995: 78). Tal designação foi parâmetro para estudos clássicos tais como de Nina Rodrigues (1932), Manoel Querino ([1938] 1988), Arthur Ramos ([1934] 1988a), Edison Carneiro ([1948] 1954, [1936/1937] 1991, 1964) e Ruth Landes ([1967] 2002). Já os estudos mais contemporâneos, com um viés historiográfico, centraram-se no debate entre os caboclos e o Dois de Julho: Wlamyra Albuquerque (1999), Hendrik Kraay (1999), Ordep Serra (1999), João José Reis e Eduardo Silva ([1989] 2005). Na antropologia, Jocélio Teles dos Santos (1995) buscou entender a relação entre a entidade caboclo e as religiões de matriz africana. Andrea Mendes, doutoranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Unicamp, está desenvolvendo uma tese que analisa as transformações da festa do Dois de Julho, buscando identificar seus diálogos com práticas de matrizes culturais centro-africanas. Ela se propõe a fazer o seu estudo através dos pontos cantados aos caboclos. Agradeço a ela pela partilha de versões preliminares do seu texto que guiaram os meus primeiros passos nesse tema. Na segunda parte desta tese eu trabalharei com a antropologia que foi feita sobre os candomblés na Bahia, bem como os caboclos – ou ainda, com a falta da presença deles em grande parte da literatura. 11 No candomblé, ogã ou ogan é o cargo de homens que possuem determinadas funções – como tocar os atabaques, cuidar para que tudo corra bem nas festas e realizar os sacrifícios – e que não incorporam as entidades. Equede é o cargo de mulheres que também não incorporam e possuem a função de vestir e dar apoio aos orixás ao longo das festas.

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Doné Maria Conceição ensina, assim, sobre a importância do caboclo12:

O caboclo muitas vezes conquista, tem lugar que o orixá não vai, mas o caboclo vai.

Os orixás não podem se separar dos caboclos e vice-versa: os caboclos são filhos da

terra e os orixás precisam da terra (das folhas, dos animais). Da sabedoria da terra.

Tudo o que tem em cima da nossa terra, na natureza, tem a presença deles. Os

caboclos nunca foram separados dos orixás. Todos nós temos caboclo. Raízes afro-

indígenas ou afro-ameríndias. É isso que o caboclo quer que todo mundo saiba. As

folhas são nossas. Se o caboclo é uma coisa que vive escondida, não tem muita coisa

escrita. Entre o caboclo e os orixás, têm as folhas, os banhos. Eles estão dentro da

mata fazendo tudo. É a linha dos caboclos quem faz as folhas. Devemos aceitar os

caboclos da forma como devem ser respeitados.

Eu não sabia o que uma casa de caboclo faz com uma pessoa: ela cura.

O caboclo dá o sentido da geografia, da saúde e da defesa da terra. O caboclo já veio

ao mundo para falar, não peça a ele para ficar calado. Tem muita cura dentro da

nossa nação de caboclo. Cura do útero ao cérebro. Cada energia das fases da lua o

caboclo tem o que curar. Quem ensinou aos negros se embrenhar nas matas foram

os índios. Quem deu caminho para a minha mãe de santo fazer o santo foi o caboclo.

O caboclo é o dono de sua terra, por que não reverenciar? (Doné Maria Conceição

Souza dos Santos Costa do Centro de Caboclo Sultão das Matas, agosto de 2015,

grifos adicionados)13

O caboclo, como entidade, é o ponto de partida deste texto. E também seu guia

– espero que isso fique claro ao longo dos dois primeiros capítulos desta tese. Esta

pequena introdução do Capítulo I é um convite: fazer a passagem da Cachoeira heroica,

patrimônio nacional, cidade monumento – e todo o conhecimento envolvido nessas

palavras-chave – para a Cachoeira cujo dono da terra é o caboclo. Nas palavras de

Badinho, um artista da cidade, ator e dramaturgo, Cachoeira foi resistindo através do

12 Doné é o cargo feminino do candomblé Jeje, como Yalorixá, do candomblé Ketu, e Gaiaku, outra denominação Jeje. 13 Acompanhei a fala de Doné Maria Conceição Souza dos Santos Costa ao longo do “III Encontro sobre Saúde nos Terreiros do Recôncavo da Bahia”, em agosto de 2015 no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL-UFRB), organizado pela RENAFRO. Nele ocorreu o lançamento digital do Projeto Inventário aos Caboclos na Bahia: “O projeto é uma realização do Instituto Tribos Jovens em parceria com o Centro de Caboclo Sultão das Matas, o Terreiro 21 Aldeia de Mar e Terra/Ponto de Cultura Expressão e Cidadania Quilombola; o Terreiro Ilê Omorodé Axé Orixá N’Lá; e o Terreiro Mokambo OnzóNguzoNkisi Dandalunda Ye Tempo. Sua concretização deu-se através do financiamento do Fundo da Cultura da Bahia através de Edital Público do Centro de Culturas Populares e Identitárias – CCPI/Secretaria de Cultura do Estado da Bahia – SECULT” (informações obtidas no site http://namidianews.com.br/caderno-1/bahia/inventario-virtual-culto-aos-caboclos-na-bahia-registro-e-salvaguarda-e-lacado-em-cachoeira/, onde é possível obter o link para baixar o inventário – último acesso 18/04/2017)].

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candomblé. Esse é o movimento aqui pretendido: como diante de um discurso em que

se exalta o passado colonial, houve um outro conhecimento que resistiu nas esquinas,

mas também nos espaços de poder. Permeou. Permaneceu. Remanesceu. Esse outro

conhecimento se dá em um mundo que não é apenas composto por patrimônios

históricos, mas está repleto de presenças. De donas e donos. Das encruzilhadas, do rio,

da mata, do chão. Afinal, como disse Gilvânia, baiana de acarajé, é Deus no céu, no ar é

o vento e nas esquinas são os exús.

2) CAMADAS NO RECÔNCAVO BAIANO, A HISTÓRIA A PARTIR DOS LIVROS

Se tem uma coisa que Cachoeira tem, é história. Isso se percebe em uma visita

rápida à cidade, ao andar pelas ruas e conversar com algumas pessoas. A história

oficial14, por sua vez, é ensinada na sala de aula, exaltada nos bares, relembrada no

calendário da prefeitura e consagrada nos atos cívicos. A revista comemorativa de 150

anos da cidade15, por exemplo, tem uma sessão intitulada “Viagem ao século XVII”, cujo

subtítulo nos diz muito: “Visitar Cachoeira é mergulhar no tempo e conviver com a

História”. Batizada como Vila Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, em

virtude das pancadas de água que a maré do rio Paraguaçu fazia ao passar pelas

pedras16, a cidade é conhecida por historicamente abrigar artistas, heróis da guerra da

independência, pessoas célebres nacional e internacionalmente, uma quantidade

surpreendente de terreiros de religiões de matriz afro-brasileira, muita riqueza e

cultura.

A cidade de Cachoeira é formada por um distrito urbano (sede), que abarca o

antigo centro colonial e bairros que constituem sua zona de expansão; além de outros

14 Neste capítulo, chamo de história oficial uma vertente da historiografia brasileira do final do século XIX e início do século XX que faz parte de um momento em que se buscava a consolidação de um discurso de identidade nacional. Mais adiante, uso também a expressão discurso oficial que se refere às narrativas da cidade de Cachoeira construídas pelos historiadores locais, bem como nos atos cívicos e sessões solenes da Câmara dos Vereadores. Em termos de perspectiva, este discurso se aproxima da história oficial pois também busca a construção de uma identidade nacional, baiana e cahoeirana. 15 Publicada em 13 de março de 1987. 16 Lucilene Reginaldo traz as cartas do português Luís Santos Vilhena para explicar o nome da cidade: “Deriva o nome de Cachoeira de uma grande pancada, que dão as águas do rio despenhadas de uma grande altura, pouca distância acima daquela vila” Vilhena, A Bahia no século XVIII, Vol. 1, p. 482” (Reginaldo, 2005: nota 29, p. 66).

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dois distritos rurais, Belém da Cachoeira e Santiago do Iguape, este, por sua vez,

formado por diversos quilombos17. Possui em torno de 35.000 habitantes e uma área de

399.930 km2. Em 13 de janeiro de 1971, a cidade de Cachoeira foi tombada Monumento

Nacional pelo Decreto de Lei nº 68.045. Deste documento vale destacar que não apenas

o conjunto arquitetônico e natural da cidade foi salvaguardado, como também as suas

tradições cívicas18.

Cachoeira está situada na parte recôncava das costas da Baía de Todos os Santos.

Envoltos em uma ideia de mistério, a baía e o seu recôncavo foram cantados em diversas

músicas, escritos em muitos livros e declamados em inúmeras poesias.

Se queres saber de tudo De tudo então saberás

Sou índio de sangue latino Sou negro dos canaviais Eu sou da nação da cana

Da Bahia suburbana Do samba em linhas gerais

Luz que ilumina Iluminai os meus olhos

Meus olhos iluminai Bahia de todos os santos Dos santos de todos ais

O rio que corta a minha vida Cortou-me pra nunca mais

Sou varanda dividida Mourão que segura viga Pedra que sustenta o cais

(música de Márcio Valverde e Chico Porto, cantada por Maria Bethânia)

17 Dentre estes quilombos o mais conhecido é o do Kaonge. A região ainda é marcada pela luta por reconhecimento de sua identidade e de sua terra – marcada também, como todo conflito agrário no país, por mortes e assassinatos, questões que fogem ao escopo e fôlego deste trabalho. Há ainda uma rota turística que percorre esses quilombos, chamada Rota da Liberdade. 18 “DECRETO Nº 68.045, DE 13 DE JANEIRO DE 1971 Converte em Monumento Nacional a cidade baiana de Cachoeira e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 81, item III, tendo em vista o disposto no artigo 180, ambos da Constituição, e CONSIDERANDO a necessidade urgente de ser assegurada proteção especial ao acervo arquitetônico e natural da tricentenária cidade de Cachoeira, no Estado da Bahia; CONSIDERANDO, outrossim, que nessa salvaguarda atende às tradições cívicas da Cidade, capital da província durante as lutas pela Independência da Pátria, ali iniciadas a 25 de junho de 1822, e que culminaram a 2 de julho de 1823, com a entrada triunfante do Exército Patriótico Libertador na Bahia, (...).” (Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-68045-13-janeiro-1971-409924-publicacaooriginal-1-pe.html, último acesso 08/07/2017).

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Nos tempos coloniais, as terras úmidas do Recôncavo Baiano, de solo massapê,

foram utilizadas para o cultivo da cana-de-açúcar.

As freguesias suburbanas de Salvador e os distritos rurais das cidades de São

Francisco, Santo Amaro e Cachoeira constituíam os principais centros produtores de

cana. Em meados do século XIX, aproximadamente 90% dos engenhos

concentravam-se nas freguesias rurais daqueles municípios. Nos distritos

açucareiros mais tradicionais, os engenhos dominavam a maior parte das terras

cultiváveis. Em meados do século XIX, na Freguesia do Iguape, 12 proprietários

controlavam 80% das terras disponíveis. Entretanto, no Recôncavo, não se cultiva

apenas cana-de-açúcar; a variedade de solos permitiu ampla diversidade de gêneros

agrícolas, entre os quais fumo, mandioca, feijão, milho e outros, que contribuíam

para o abastecimento de Salvador e dos demais centros urbanos da região. Nos

próprios engenhos, escravos e libertos cultivavam gêneros de subsistência que eram

consumidos internamente ou vendidos nas feiras locais. (Fraga, [2006] 2014: 27)

O mapa do município de Cachoeira no início do texto da tese é aquele

disponibilizado pelo antigo site do IBGE Cidades. Percebe-se nele a extensão do

município. Tal extensão e sua divisão em diversos distritos são importantes para fins

burocrático-administrativos, para que o município posso administrar escolas, postos de

saúde, etc.; e para que também o estado da Bahia possa gerenciar os equipamentos

públicos estaduais. No período colonial, Cachoeira era cidade matriz de uma extensão

muito maior, pertencia a ela os municípios de São Félix, Conceição da Feira, São Gonçalo

dos Campos e Feira de Santana. Se hoje a divisão e extensão facilita a administração

municipal, no período colonial, no auge da economia cachoeirana, era importante pelos

engenhos de açúcar que essa área compreendia, assim como pela vasta ligação com o

interior.

Os primeiros contatos de europeus com a região do recôncavo da Bahia foram

iniciados no século XVI, às margens do Rio Paraguaçu. O território era originalmente

habitado por povos indígenas de diversas etnias, praticamente dizimados pela

colonização. Edmar Ferreira Santos (2009: 19) afirma que “Wanderley Pinho identifica o

terceiro governador-geral da Bahia, Mem de Sá, como o responsável por um genocídio

empreendido em 1557 no baixo Paraguaçu”.

Quando Felisbelo Freire diz: “foi o Paraguaçu o rio que primeiro atraiu o

movimento da colonização”, diria com mais acerto: sendo a região do

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Paraguaçu a primeira conquistada ao índio, foi também a primeira cobiçada

por sesmeiros; e para melhor definir e significar essa circunstância, poderia

registrar que o primeiro donatário no Paraguaçu – e da maior sesmaria

concedida – foi D. Álvaro da Costa, o conquistador pelas armas, que tomava

para si as terras de onde expulsara o íncola; tal como aconteceria com Mem

de Sá em Sergipe do Conde, e com tantos mais. Entrava também como fator,

ainda que de menor conta, de penetração territorial, a pacificação religiosa

do caboclo, especialmente pelos padres da Companhia de Jesus. (Pinho,

[1946] 1982: 42, grifos adicionados)

Depois de “conquistada ao índio”, o porto da Cachoeira começa a se desenvolver

a partir do século XVII. Parte da historiografia que é feita desde então parece se

esquecer desse povo conquistado e passa a dar ênfase à história da riqueza e

prosperidade da região. Riqueza essa pensada por portugueses, construída por negros.

Tal história foca no período em que Cachoeira constituiu-se no principal ponto que

ligava a cidade de Salvador (conhecida como Cidade da Bahia) ao sertão e interiores,

dado ao transporte fluvial.

Em 1674 o porto torna-se Freguesia de Nossa Senhora do Rosário. Paulo Dias

Adorno é então conhecido como o fundador da cidade. No entorno do engenho da

família Adorno, foi construída a atual capela de Nossa Senhora d’Ajuda – à época

nominada à Nossa Senhora do Rosário, atual padroeira da Igreja Matriz de Cachoeira.

Esta capela é considerada o marco inicial da povoação convertida em freguesia. Em

1698, esta freguesia alcança a categoria de vila sob o nome de Nossa Senhora do Rosário

do Porto da Cachoeira, cuja prosperidade alcançou o auge com a expansão da economia

açucareira, e depois do tabaco, além da atividade comercial do porto. É neste período

que a cidade ganha os contornos coloniais vistos até hoje na arquitetura dos grandes

sobrados, das muitas igrejas e conventos. Seu contorno era demarcado pelos rios

Pitanga e Caquende. Além disso,

a crescente relevância da cultura do tabaco durante o século XVIII, na área fumageira

da Vila e adjacências, forneceu o principal objeto de comércio baiano na Costa da

Mina, aumentando o fluxo de escravos e a prosperidade econômica da região.

Apesar de seu renome de região açucareira, as culturas agrícolas do Recôncavo

foram diversificadas de acordo com o solo, topografia ou clima das várias zonas. O

estabelecimento e o crescimento do empreendimento agrícola na região,

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especialmente da cana, apenas foi possível através da utilização do poderio militar

dos portugueses sobre os povos indígenas, subjugados, escravizados e utilizados

extensivamente nas plantações, junto aos africanos, seguindo os moldes em que

estava se desenvolvendo a empresa colonial ibérica. (Santos, 2009: 19)

A partir da segunda metade do século XVIII a região passou a ser importante

também, como exposto na citação acima, por conta do comércio de exportação

fumageiro19. O Recôncavo, e principalmente a vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto

da Cachoeira, produzia o tabaco em um momento em que “o fumo foi a principal moeda

do tráfico Atlântico” (Reginaldo, 2005: 66), perdurando por cerca de cem anos. Além

disso, “o rio Paraguaçu, navegável de sua foz na Bahia de Todos os Santos até Cachoeira,

oferecia as condições geográficas necessárias para fazer desta vila a principal via de

acesso das mercadorias européias para o sertão baiano” (Reginaldo, 2005: 67). A

produção desses bens e o porto fizeram da cidade um dos centros mais importantes do

Brasil no período colonial.

De Cachoeira saíam os caminhos que iam para as Minas Gerais, Maranhão e os

sertões. A transumância do gado, o tráfico de ouro e o tráfico interno de escravos

passavam por Cachoeira. Resultado dessa localização estratégica, Cachoeira se

converteu no lugar de residência de um grande número de senhores de engenho,

favorecendo a prosperidade da vila, assim como a concentração da população negra.

(Parés, 2013: 179-180).

Ao andar pelas ruas de Cachoeira, percebe-se a quantidade de igrejas que ela

“ostenta”. Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora d’Ajuda, Nossa Senhora da

Conceição do Monte, Nossa Senhora do Rosário da Terra Vermelha, Nossa Senhora da

Conceição dos Pobres, Santo Antônio do Capoeiruçu, Nossa Senhora do Monte do

Carmo (Convento), Ordem Terceira do Carmo, São João de Deus e Nossa Senhora da

Piedade (Loureiro de Souza, 1972: 27). Além disso, possui ainda duas capelas, uma igreja

em ruínas, Nossa Senhora dos Remédios, e uma que foi queimada, Nossa Senhora do

Amparo.

No final do século XVIII, Cachoeira era o segundo núcleo populacional da Bahia. Em

1775 seu centro urbano tinha 986 casas, talvez cerca de 4.000 habitantes; a

19 “Produzia e embarcava em seu porto o tabaco exportado para a Europa, especialmente Gibraltar, Lisboa, Porto, Marselha, Hamburgo e Liverpool e, principalmente, para costa da África, responsável primeira pela expansão da produção do vegetal no final do setecentos” (Reginaldo, 2005: 66).

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população da vila espalhadas em 8 freguesias chegava a quase 27.000 almas.

Cachoeira, ainda hoje guarda as marcas de seu passado suntuoso expresso na

arquitetura de casas, sobrados e igrejas. No final do século XVIII seus principais

templos religiosos eram a Igreja paroquial dedicada a Nossa Senhora do Rosário, um

convento de carmelitas calçados, uma ordem terceira subordinada aos mesmos, e

cinco capelas: Nossa Senhora d’Ajuda, Conceição do Monte, São Pedro, Amparo e

São João de Deus. (Reginaldo, 2005: 67)

A riqueza da vila de Cachoeira era tamanha que, em 1756, o Rei de Portugal

“resolveu taxá-la numa vultosa quantia, revertida para a recuperação da cidade de

Lisboa, quase totalmente destruída por um terremoto”20. António Loureiro de Souza

ainda acrescenta que “em 1781, em carta dirigida a Domingos Vanderlei, diretor do Real

Jardim Botânico de Lisboa, assim se expressava José da Silva Lisboa: ‘A vila da Cachoeira

não cede em grandeza e riqueza a algumas pequenas cidades de Portugal’” (Loureiro de

Souza, 1972: 9). A importância política da cidade crescia e ao final do século XIX recebeu

“as visitas ilustres de D. Pedro I, D. Pedro II, Princesa Isabel e Conde D'Eu”21.

Depois da cidade é esta a terceira povoação na antiguidade; é suficientemente

espaçosa, em muitos bons edifícios, entre os quais é a Matriz com o Orago de Nossa

Senhora do Rosário; são igualmente boas, grandes e vistosas, as casas do Conselho

em que há espaçosas salas e muito boa cadeia quando as rendas do Conselho são

avantajadas. Há também nesta Vila um bom Hospital fundado por um António

Machado, que dele fez doações aos frades de São João de Deus; assim como há na

Cachoeira um Convento de Carmelitas calçados e no seu corpo uma passagem para

o arraial de São Félix de que anualmente se tira um bom rendimento para a Câmara.

(Loureiro de Souza, 1972: 11)

O Recôncavo era, assim, economicamente a região mais importante da província,

além de ser a mais densamente povoada. Possuía, por isso, um maior número de

escravos, mesmo quando todo o comércio colonial começou a entrar em crise:

Segundo o censo de 1872, a região concentrava 35,7% da população da província.

Na época, a Bahia possuía 165.403 escravos, que correspondiam a 12,8% da

população cativa de todo o Brasil. Entre 1884 e 1887 a província sofreu uma perda

de 42,1% de seus cativos. Em 1887 a Bahia possuía 76.838 escravos, mas ainda

20 Informações retiradas da descrição do histórico de Cachoeira no site do IBGE (https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/cachoeira/historico, último acesso 13/02/2018). 21 Também retirado do site do IBGE.

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ocupava a quarta posição em população cativa no império. No Recôncavo, o declínio

foi provavelmente menos acentuado devido à resistência do setor açucareiro em se

desfazer dos últimos escravos. (Fraga, [2006] 2014: 28)

Sua riqueza e importância se estendeu ainda ao longo do século XIX, sendo

consolidada através da implementação da navegação a vapor (Santos, 2009: 19-20). As

zonas rurais eram, à época, de igual importância. Belém da Cachoeira, por exemplo,

possuía duas entradas que estão localizadas nas principais estradas que ligavam o porto

a outras cidades do interior. A entrada que até hoje fica na estrada que liga Cachoeira a

Santo Amaro se situa em frente ao Posto Lagoa Encantada – importante referência deste

trajeto. A sua segunda entrada era e é o percurso que liga Cachoeira à Conceição da

Feira. Esta região, que é também um caminho, abrigou um importante seminário ainda

no século XVII. Em 1640 por aí surge o convento dos jesuítas lá em Belém, falou-me Luiz

Claudio Dias do Nascimento – historiador cachoeirano conhecido como Cacau

Nascimento. Segundo ele, Belém da Cachoeira se caracteriza como uma região

inicialmente indígena, se você entra no interior de Belém você vai encontrar uma zona

totalmente ocupada por índios.

Cachoeira é um ponto de desbravamento do interior brasileiro, quer dizer, a saída do

colono da zona litorânea para a zona interior do país, então Cachoeira foi desses

pontos centrais. [...] Com a abertura dos portos e a chegada da corte de Lisboa para

o Brasil, até 1808 o porto de Salvador, era o porto mais importante da América

portuguesa, o maior porto da América portuguesa. Nesse momento o porto de

Cachoeira era o segundo porto mais importante de Salvador, da Bahia, logo, por uma

inferência matemática, o porto de Cachoeira era o segundo porto mais importante

da América portuguesa. Sabe, você não vai dizer isso, primeiro porque, a USP, a

Unicamp, os historiadores da USP, Unicamp nunca vão aceitar isso, porque eles não

aceitam nada do Nordeste como relevante para a construção de uma nação, né, isso

é uma disputa acadêmica. E segundo porque quando você olha pra essa cidade [...]

uma cidade pobre, você não vai entender que 500, 400 anos atrás, ela teve uma

importância, uma importância central, relevante para a construção de uma

unidade territorial brasileira, Cachoeira teve. De escoamento de represa. Descia

pelo rio Paraguaçu todo o ouro produzido em Minas Gerais, tem uma tese de

doutorado falando isso. Hoje tá no palácio de Buckingham, na Inglaterra, mas antes

de chegar em Buckingham passou pelo, em pedra bruta, passou por Cachoeira.

(Entrevista em agosto de 2015, grifos adicionados)

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Cacau Nascimento, assim como outras pessoas da cidade, está sempre disposto

a exaltar a grandeza de Cachoeira. A sua importância na história nacional. Do porto à

beira do rio, aos engenhos e às zonas rurais ocupadas por seminários e conventos,

Cachoeira vai se desenhando numa grandeza erigida pelos portugueses. Nessa

grandeza, os elementos indígenas e negros aparecem ora apenas como um cenário, ora

como agentes da construção física deste passado.

Foi, assim, nessa região “que se estabeleceram e prosperaram as grandes

famílias dos senhores brasileiros que viriam a constituir a elite latifundiária que, mais

tarde, organizaria a guerra de independência contra comerciantes portugueses da praça

da Bahia” (Parés, 2013: 179)22. Foi essa mesma elite que imortalizou a cidade na história

nacional através da luta pela independência, orgulho sempre evocado nos momentos

cívicos da cidade de Cachoeira.

Este texto começou com uma referência à história do 2 de julho que imortalizou

a cidade. Usei ali a palavra dizem como uma expressão de uso frequente entre algumas

pessoas de Cachoeira para começar a contar uma história/fofoca. Contam sobre a

independência nas sessões solenes de comemoração da data cívica, em conversas nas

ruas, por aqueles que são sempre os autorizados a falar da história oficial da cidade, em

livros infantis patrocinados por fundações governamentais e por historiadores locais23.

As histórias dessa batalha são contadas em meio a um imaginário em torno do baiano

como quem não aceitava o controle português. A reação colonial é narrada, por sua vez,

com histórias de saques, tumultos e mortes. E é na resistência a esta truculenta reação

colonial que as heroínas e os heróis aparecem nas narrativas.

22 Braz do Amaral (1957) em seu livro “História da Independência na Bahia”, traz o perfil daqueles que organizaram a “conspiração em favor do movimento constitucional”, na figura de Felisberto Caldeira Brant Pontes, “um homem inteligente, ativo e de iniciativa”: “Este marechal Felisberto Caldeira era um proprietário rico do Recôncavo, onde tinha engenhos e grande escravatura. Por tal motivo se indispusera ele com o Conde dos Arcos, por ocasião da última revolta dos negros ussás, acussando o Conde de complacência com os escravos, por se haver aquele governador recusado exercer sobre os pretos extremado vigor” (:18). 23 Faço aqui referência ao livro infantil de Neide Cortizo (2013), Aventuras e Travessuras no 2 de julho; e a dois livros de historiadores locais: Cachoeira, III Séculos de História e Tradição (Santos, [2001] 2010) e Cachoeira, Jóia do Recôncavo Baiano (Rocha, [2002] 2015). Eles podem ser comprados em diversos locais de Cachoeira, seja em restaurantes, na própria sede do IPHAN local ou no Pouso da Palavra (casa, localizada na Praça da Aclamação, de Damário da Cruz, em memória; poeta soteropolitano que adotou Cachoeira como casa fundando o Pouso, lugar destinado a exposição de artes, suas fotografias, leituras e recitais de poesia).

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Em oposição aos heróis baianos temos os “algozes portugueses” (Cortizo, 2013).

A figura de um general chamado Madeira de Melo – cantado em músicas de carnaval

com o apelido de Madeira Podre – aparece nas histórias como o grande vilão contra a

ofensiva que buscava através da independência um governo entendido como “nosso”

(Cortizo, 2013: 8), brasileiro. O Recôncavo Baiano aparece aqui como o grande palco da

resistência formando um exército caracterizado como uma “tropa valente!” de “índios,

negros, brancos”, “pernambucano, carioca” e até alguns portugueses “lutando do nosso

lado” (Cortizo, 2013: 22). É construída, assim, uma narrativa sobre a independência que

mobiliza ideais de união e de liberdade ao romantizar e exaltar uma suposta motivação

comum: “quase todo mundo pobre, acreditando que a vida vai melhorar” (Cortizo, 2013:

22). Nessa narrativa a “tirania portuguesa” é vencida e depois representada pelo dragão

que o caboclo está sempre lançando nos desfiles de comemoração do 2 de julho

(Cortizo, 2013: 10).

Na madrugada de 2 de julho de 1823, as tropas lusas abandonaram Salvador por

mar, deixando os patriotas esfarrapados ocuparem pacificamente a cidade. Durante

o ano e meio entre fevereiro de 1822, quando os patriotas foram derrotados pelas

tropas portuguesas durante três dias de lutas nas ruas da cidade, e julho de 1823,

houve uma grande mobilização popular, contraste importante com os

acontecimentos contemporâneos no Rio de Janeiro, onde Pedro I efetuou uma

ruptura relativamente pacífica com Lisboa. As dimensões desta mobilização ainda

não são bem conhecidas, mas ela englobou importantes setores da sociedade

baiana: estudantes organizaram batalhões para se oporem aos portugueses; a

milícia negra e parda se destacava nas lutas de 1822 e 1823 e até mesmo escravos

foram recrutados para as forças patriotas. De fato, já foi sugerido que os senhores

de engenho do Recôncavo assumiram a liderança do movimento patriótico e se

sujeitaram ao governo do Rio de Janeiro em meados de 1822, principalmente para

frear a desordem social que, como temiam, resultaria da mobilização patriótica.

(Kraay, 1999: 48-49, grifos adicionados)

Como a história do livro infantil bem demonstra, a “mobilização patriótica” foi

marcada inicialmente por um sentimento anti-português. Ao longo do século XIX, no

entanto, a narrativa dessa mobilização passa a ser apropriada de diferentes maneiras

pelos diversos grupos que lutaram na batalha pela independência. Assim como a

narrativa, a comemoração da vitória nos anos que se seguiram, feita através do Cortejo

do 2 de Julho, passa também a ser apropriada diferentemente. Em seu primeiro

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momento o cortejo comemorou a libertação no sentido de independência, mas com o

tempo ele passou a significar um ideal de liberdade de acordo com os grupos que

compunham as diversas frentes da batalha.

Em seus primeiros anos, a liberdade é representada pelo caboclo e aparece no

cerne dessa primeira aversão lusitana. Outra aversão, porém, surge também ao longo

do século XIX com relação à população africana que se mobilizava cada vez mais contra

a escravidão:

[...] o simbolismo do Dois de Julho não foi antecessor da idealização harmoniosa da

mistura de raças estreitamente ligada à obra de Gilberto Freyre; antes, uma rejeição

agressiva de portugueses e africanos dominava a festa. À luz disso, o caboclo era

uma escolha acertada; índios não ameaçavam a Bahia da maneira que africanos e

portugueses o faziam na época. Afinal de contas, o caboclo não era um dos dois

últimos e, no ato de apunhalar a serpente da tirania portuguesa, ele exemplificava o

nativismo antiportuguês que dominava os primeiros Dois de Julho. (Kraay, 1999: 59)

O discurso oficial que se sobressai em meio a essas apropriações é, assim, o dos

senhores de engenho brasileiros que assumiram a liderança da guerra. É importante

destacar que é este o discurso oficial escutado nas sessões solenes, lido nos livros

infantis e nos folders do governo. Nele, pouco se fala que nesta época o Brasil ainda era

um país escravocrata. Hoje em dia, quando se narra a história, portanto, conta-se acerca

do exército e da união, mas pouco se fala que os negros evocados nela eram escravos

dos heroicos senhores de engenho.

Como bem lembra João José Reis ([1989] 2005: 92), no entanto, “os escravos,

sobretudo os crioulos e os pardos nascidos no Brasil, mas também os africanos, não

testemunharam passivamente o drama da Independência”. E, mais ainda, “muitos [dos

escravos] chegaram a acreditar, às vezes de maneira organizada, que lhes cabia um

melhor papel no palco político em via de ser montado com a vitória baiana” (Reis, [1989]

2005: 92). Houve no período pós-independência, portanto, muitos conflitos e revoltas –

já que a liberdade alcançada pela guerra foi somente aquela dos senhores de engenho

que provocou “mudança alguma no sistema escravista vigente” (Gandon, 1997: 142).

Tais revoltas foram duramente reprimidas tendo como ponto auge a Revolta dos Malês,

em 1835 e a Sabinada, em 1938. A coerção austera a esses movimentos mostrava uma

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contradição entre os ideais igualitários e patrióticos do movimento de independência e

a violência que se seguiu depois.

Ainda assim, as comemorações da independência antes da abolição da

escravatura foram usadas como espaço privilegiado pelo movimento abolicionista que

se apropriou da ideia de liberdade que o caboclo e o 2 de Julho emanavam. Ao longo

das festas, eram distribuídas cartas de alforria, intensificando a campanha pelo fim da

escravidão.

Mais do que se constituir em possibilidade efetiva de liberdade para a população

escrava, essas alforrias tinham um explícito valor simbólico, por relacionar a

conquista de liberdade nacional ao fim da escravidão. Tanto para os abolicionistas

quanto para os escravos, os caboclos simbolizavam a liberdade. Se, no começo do

século XIX, os negros carregaram os caboclos para celebrar a libertação do Brasil

do domínio português, em 1888 levaram-nos às ruas para comemorar a conquista

da sua própria emancipação. (Albuquerque, 199: 91-92, grifos adicionados)

Como vimos, desde a primeira comemoração da Independência da Bahia o

caboclo aparece associado a um ideal de liberdade. Tal como a narrativa, ele passa a ser

apropriado de diferentes maneiras. De um lado ele é brasileiro – significando não

português e não-negro –, de outro, ele se torna um símbolo na luta pela abolição. Jocélio

Teles dos Santos (1995: 48) argumenta que “apesar de haver uma diferença conceitual

entre o Caboclo da Independência e o Caboclo do candomblé”, há entre eles “um

parentesco simbólico” “na medida em que o sentido de continuidade entre os índios da

Independência e o ‘dono da terra’, como é expresso no espaço litúrgico, adquire uma

dimensão política”. Essa dimensão política é fundamental no momento em que o

patriotismo brasileiro passa cada vez mais de um patriotismo anti-lusitano a uma

aversão acentuada contra o que é entendido como africano.

A violência contra as revoltas após a independência passa assim a abranger um

escopo maior da organização das pessoas negras, provocando “uma repressão severa

da cultura africana e afro-brasileira sagrada e secular, enquanto a elite baiana se auto-

identificava como parte do mundo europeu e civilizado” (Kraay, 1999: 62). Acerca da

participação da milícia negra na parte formal da festa do 2 de Julho, Kraay escreveu:

Sem dúvida, a milícia participava dos festejos dos primeiros Dois de Julho; em 1826,

o batalhão negro solicitou licença para organizar uma missa em Pirajá, no dia 8 de

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novembro, aniversário de uma vitória brasileira sobre os portugueses. A participação

da milícia negra, cada vez mais radicalizada, na Sabinada serviu de justificação para

seu massacre em março de 1838. Dessa maneira, a Bahia eliminou os heróis negros

da Independência e purgou o conteúdo racial do Dois de Julho; satisfeito, o visconde

de Pirajá comentou que os indesejáveis “painéis (...) de negros matando brancos”

(talvez representações das façanhas dos milicianos negros) não seriam repetidos nas

comemorações de 1838. Dessa maneira, o Dois de Julho apresentava uma Bahia

ostensivamente “não racial”, cuja esfera pública seria presumida como “branca”.

(Kraay, 1999: 67-68)

Os trabalhos que procuram historicizar os acontecimentos do 2 de Julho – como

o dia passou a ser chamado –, assim como as suas subsequentes comemorações,

apontam que no período pós-república diversas tensões passam a existir em torno da

festa. Wlamyra Albuquerque (1999) argumenta que havia um desencontro entre o

projeto de modernidade que passava a ser almejado pelas elites em Salvador, que

obedecia a uma nova ordem republicana, e certos costumes da sociedade baiana, vistos

como percalços decorrentes da ideia de que a Bahia ainda permanecia deslocada dessa

nova ordem. Arcaica, antiquada e incivilizada.

Neste período, a narrativa da luta pela independência passa a ser apropriada por

uma elite que se vê com a “‘missão patriótica’ de resgatar a importância histórica da

Bahia” (Albuquerque, 1999: 123). Esse movimento buscava “superar uma discutível

posição periférica no contexto nacional naqueles dias republicanos” (Albuquerque,

1999: 123). Há, deste ponto de vista, portanto, o esforço narrativo de transformar a

“mobilização patriótica” em uma “missão patriótica”. Esta missão visava a “redenção”

da Bahia diante do cenário nacional, devido à perda do poder político e às consequências

que vinha sofrendo diante da crise econômica daquela época. Wlamyra Albuquerque

(1999: 13) afirma que deste ponto de vista “a luta pela independência na Bahia foi

vencida não apenas contra os portugueses, foi também a vitória de um projeto de nação

concebido nos termos da elite local”.

Apontando para o caráter atual da festa, João José Reis diz que ela é uma mistura

de “festa da ordem” com “festa popular”. “No início, a festa era só do povo, mas aos

poucos as autoridades foram se apropriando de partes dela. A disputa pelo mito nunca

foi decidida, é como se o mito estivesse irremediavelmente impregnado de sua origem

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histórica: o conflito” (Reis, [1989] 2005: 579). Na comemoração dos cem anos da

Independência da Bahia, por exemplo, o 2 de Julho foi marcado por esse conflito. A

busca aqui era de um ideal de desenvolvimento futuro para o estado através do resgate

do seu passado de glória.

Na “epopeia” de 1823, grupos distintos social, étnica e ideologicamente diziam

irmanar-se em nome da causa nacional. Em 1923, grupos também distintos

concentravam esforços para a “redenção” da Bahia. Tanto o branco aristocrata

Miguel Calmon, quanto o mulato Manoel Querino aspiravam a esta redenção. Ao

invés dos “sanguinários” portugueses, a luta era contra uma grave crise econômica

capaz de, mais que as batalhas de 1823, penalizar a população baiana cada vez mais

empobrecida. Mas, como sugeria o conselheiro Augusto da Silva, era relendo a

“pagina imortal do Dois de Julho”, inspirando-se no ‘memorável acontecimento”,

que se buscaria confiança no futuro. (Albuquerque, 1999: 123)

Wlamyra Albuquerque (1999: 128) argumenta assim que este orgulho do

passado amenizava os problemas sociais, econômicos e políticos da época, vistos como

“responsáveis pela ‘letargia’ local, na leitura de grupos da elite”. Como já apontado por

Hendrik Kraay (1999) e João José Reis([1989] 2005), Albuquerque (1999: 128) também

explicita o caráter racial que o conflito em torno da festa passa a demonstrar: “o período

pós-abolição e recém-republicano ambientou conflitos que explicitavam especificidades

das relações raciais e parâmetros de cidadania vigentes”.

Voltemos ao que Nicolau Parés (2013: 179) falou acima: foi a elite proprietária

dos engenhos no Recôncavo que organizou a luta de Independência da Bahia. Além da

preocupação com os novos rumos do estado, foi essa mesma elite que inicialmente

passou a constituir a historiografia oficial produzida na Bahia no início do século XX. Essa

historiografia é marcada por uma tradição “diletante” feita pelos descendentes das

“elites escravagistas” (Reginaldo, 2005) interessados em exaltar a grandeza do passado

colonial baiano.

Desde pelo menos a década de 1950, a escravidão negra tem sido o tema mais

importante da historiografia baiana. A consolidação das pesquisas de cunho

acadêmico, através da criação dos centros de ensino e investigação da Universidade

Federal da Bahia e da Universidade Católica de Salvador, apenas confirmaram uma

tradição que vinha se consolidando entre os pesquisadores tradicionais/diletantes

ligados à instituições como o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. A produção

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acadêmica, entretanto, rompeu com a perspectiva tradicional que privilegiava o

estudo das elites escravistas, tão ao gosto de seus descendentes/investigadores,

trazendo à tona novos sujeitos do regime vigente no país até 1888. (Reginaldo, 2005:

175)

Exemplos dessa “tradição diletante” citados aqui neste texto são António

Loureiro de Souza (1972), Braz do Amaral (1957) e Wanderley Pinho ([1946] 1982). Este

último escreveu a História de um Engenho do Recôncavo, engenho que pertenceu à sua

família, sendo “um dos mais notáveis pesquisadores da história social e cultural da

região açucareira” (Reginaldo, 2005: nota 103). O autor aponta no trecho a seguir temas

como “penetração territorial” e a “pacificação religiosa do caboclo”.

Não foi a geografia, não foram as bacias hidrográficas, a riqueza prometida pelas

terras férteis que determinaram, ou melhor, permitiram a penetração; foram os

sucessos político-militares na luta ou convivência com o gentio, o fraquear da

resistência do íncola. Onde este cedeu, e quando cedeu, entrou o colono, concedeu-

se a sesmaria que estabilizou a propriedade e disciplinou o desbravamento. A guerra

ao gentio é que traçou as primeiras linhas de ocupação e da exploração econômica

da terra. (Pinho, [1946] 1982: 42-43, grifos adicionados).

É importante aqui destacar que a ênfase do autor difere daquela de uma história

que justifica a exploração econômica do Recôncavo baiano por seu solo propício para o

cultivo da cana-de-açúcar. Wanderley Pinho ([1946] 1982), por sua vez, afirma que a

exploração e invasão da terra só foi possível a partir do que ele chamou anteriormente

da dizimação da população indígena da região: foi na “guerra ao gentio” que se ocupou

e explorou a terra. Esta lógica de ocupação é a mesma que informa um conhecimento

historiográfico do ponto de vista de uma elite dona de engenhos. Importa, como vimos

na primeira citação deste autor ainda no começo dessa sessão, o “sucesso político-

militar” diante do “fraquejar da resistência indígena”.

Felisbelo Freire na “História Territorial do Brasil” [1891], trabalho muito cheio de

erros mas muito útil e revelador de apurada pesquisa, como sugere obedecerem as

linhas de penetração ou povoamento a direção de bacias fluviais, ligando o fato

sesmaria ao fator geográfico da fertilidade da terra e presença dos cursos de água;

ao elemento econômico. Mas é estudar melhor este assunto e verificar que aquelas

concessões correspondem e são direta consequência da submissão, êxodo ou

extermínio do índio. (Pinho, [1946] 1982: 41)

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O trecho acima mostra dois exemplos dessa primeira tradição historiográfica,

feita por pessoas da elite, que possuíam cargos políticos e fundaram os primeiros

institutos de pesquisa do país. Felisbelo Freire era carioca, mas estudou na Faculdade

de Medicina da Bahia, formando-se em 1882. Pinho, em seu trabalho crítico, afirma que

o trabalho de Freire falha ao explicar a exploração à terra. Se Wanderley Pinho ganha

em assumir que a exploração à terra só foi possível a partir do extermínio da população

indígena, seu trabalho não difere muito dos outros em termos do que é focado a partir

de então: a riqueza e decadência de um engenho no Recôncavo Baiano. O trabalho de

Pinho nos mostra de forma crítica a criação da figura do senhor de engenho e suas

contradições e extravagâncias em uma província que vai ficando cada vez mais pobre,

mas falta em nos mostrar os outros elementos que compõem a história. O indígena

desaparece com o seu extermínio e o negro é somente mão-de-obra que não merece

muitas linhas de dedicação. A abolição da escravatura é descrita em seu trabalho como

uma crise financeira.

A partir da década de 1980, no entanto, outro tipo de abordagem historiográfica

começou a surgir, como nos apontou Lucilene Reginaldo (2005). É importante dizer que

esses trabalhos procuravam se contrapor a este primeiro momento da historiografia

brasileira através da reconstrução da escravidão a partir das próprias pessoas

escravizadas, buscando preencher a lacuna deixada por essa tradição primeira. Outras

fontes passam a importar nestes trabalhos, como a história oral e as matérias

jornalísticas. E, mais ainda, há uma mudança na forma de olhar para os próprios

documentos tradicionais. Exemplos desta forma de se fazer historiografia, aqui citados,

são os trabalhos de João José Reis([1989] 2005, 2008), Walter Fraga ([2006] 2014),

Lucilene Reginaldo (2005), Nicolau Parés (2007) – que faz um trabalho entre história e

antropologia –, Jocélio Teles dos Santos (1995), Edmar Santos (2009), Wlamyra

Albuquerque (1999) e Hendrik Kraay (1999).

A partir dessas duas formas narrativas podemos perceber que os elementos e

símbolos, tanto da guerra de independência quanto da história de riqueza da região,

ocupam diferentes lugares ao longo da história. Muda-se também a própria forma

narrativa da historiografia. Depois de “pacificado”, o indígena tornou-se o símbolo

nacional. Se durante a guerra da independência o exército negro foi fundamental, nos

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anos seguintes a sua organização tornou-se uma ameaça. É também nesta época, após

o fim do comércio de escravos, no início de 1850, que “as culturas africanas das gerações

de escravos nascidos na África transformavam-se em culturas afro-brasileiras” (Kraay,

1999: 62) e o Cortejo do 2 de Julho foi ganhando uma importância espiritual em torno

do caboclo mais como uma entidade, o dono da terra, e menos como símbolo da

independência. Diante destas transformações, ficou ainda mais difícil para aqueles que

buscavam um ideal de modernidade “a tarefa de se distanciar da sua herança africana”

(Kraay, 1999: 62).

A república é assim caracterizada pela busca de um ideal cujo objetivo era se

distanciar ao máximo do lado “africano” do Brasil, mesmo tendo sido proclamada um

ano após a Lei Áurea. Temos de um lado uma elite cada vez mais preocupada com a falta

de importância que a Bahia passou a ocupar no país e com a pobreza que impede que

um certo estilo de vida seja mantido. E de outro, a estruturação dos cultos afro-

brasileiros, e suas relações com as festas estaduais e nacionais, assim como uma

organização que buscava a libertação e a sobrevivência pós-abolição.

Exemplo do cotidiano pós-república é um dos contos trazidos pelo historiador

Ubiratan Castro de Araújo24 no livro Sete histórias de negros. Estes contos são fruto da

combinação entre pesquisa historiográfica e memórias familiares. Em sua terceira

história, A guarda civil, o autor relembra a frustração de seu bisavô, “abolicionista e

republicano entusiasmado” (Araújo, 2006: 13), com a formação da Guarda Cívica

republicana. Pesquisando na Biblioteca Central do Estado da Bahia, o autor encontrou

os exemplares dos dias 16 e 17 de dezembro de 1889 do jornal A República Federal. Eles

noticiavam a “recusa do alistamento de dois cidadãos negros na primeira instituição

24 “Ubiratan Castro de Araújo, mais conhecido como Bira, é um admirável narrador de histórias. Até agora a sua fama como tal se restringia à narrativa oral na sala de aula, nas mesas de bares e restaurantes. Bira gosta de contar histórias, piadas e incidentes do cotidiano, aos quais acrescenta um tempero especial de graça, irreverência, inteligência e imaginação” (Araújo, 2006: 7). Essas são as palavras de João José Reis no prefácio do livro de Ubiratan Castro, Sete histórias de negros, o livro de contos é um bom exemplo do trânsito ao longo da vida deste importante historiador entre a academia e o povo de santo: “Os contos de Bira apresentam personagens que a máquina do escravismo e do racismo tentou triturar com maior ou menor intensidade e sucesso, mas o leitor não vai encontrar um mero rosário de lamentações. Tal como aparecem na historiografia recente da escravidão, os personagens deste livro não se deixaram vencer facilmente, não se apresentam como vítimas absolutas, mas também não são heróis imbatíveis. São homens e mulheres que reagem, negociam, resistem, atacam, se juntam solidários, às vezes vencem, outras perdem, raramente desistem” (Araújo 2006: 8).

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republicana, criada pelo governo provisório em 1889, na Bahia”. (Araújo, 2006: 13-14).

Segue um trecho do conto:

No dia 16 de dezembro de 1889, um mês e um dia após a proclamação da República

na Bahia, o jornal oficial do governo, “A República Federal”, estampava o escândalo

em primeira página. Dois homens pretos haviam sido recusados como voluntários

para a Guarda Cívica. Em depoimento concedido ao repórter do jornal, o

comandante da guarda, o Major Salvador Pires, declarava que a recusa se justificava

por motivos estéticos. Por serem pretos, eles provocariam uma deformidade na

tropa, principalmente nos desfiles e cerimônias oficiais. Dizia ele:

– Se pelo menos fossem mulatos disfarçados... (Araújo, 2006: 39)

Para a construção da narrativa historiográfica que visava outros pontos de vista,

a imprensa passou a ocupar um lugar fundamental como fonte documental. Antes de

cunho patriótico e abolicionista, aos poucos os periódicos tornaram-se defensores

ferrenhos dos ideários republicanos.

Em seu trabalho em que analisa os discursos das elites baianas sobre as

grandezas passadas e os infortúnios atuais nas duas primeiras décadas republicanas,

Rinaldo Leite (2005) afirma que a elite respondeu à decadência na “chamada Primeira

República”, principalmente nas décadas de 1910 e 1920, através da “invenção” de uma

identidade local que se pretendia importante em âmbito nacional.

Em Cachoeira, Edmar Santos (2009) afirma que os jornais contribuíram para a

construção de sua imagem como a “cidade do feitiço”:

a cidade de Cachoeira goza de considerável prestígio quando o assunto é candomblé.

Desfruta de reconhecida importância por adeptos e não-adeptos de vários estados

brasileiros, chegando a alcançar status internacional. Não é difícil ouvir referências à

cidade como “terra da macumba” ou “cidade do feitiço”. (Santos, 2009: 23, nota 18)

A imprensa é a base do trabalho de Edmar Santos (2009) que busca compreer os

movimentos e debates que configuravam o cenário social da cidade “nas três principais

décadas do século XX” (Santos, 2009). Os jornais eram ferramentas de um discurso

civilizador que dissimulava o racismo imbuído nas relações sociais (Santos, 2009:25). Seu

trabalho teve como objetivo buscar o que estava e não estava nos textos da época,

procurando refletir sobre “a correlação de forças sociais que fizeram dos sambas,

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batuques e candomblés, temas de disputas materiais e simbólicas, pelo real e imaginário

da cidade” (Santos, 2009:24).

O autor fala assim que neste ambiente de disputa houve uma “resistência

silenciosa do ebó” na cidade de Cachoeira25. Mesmo diante do ataque da imprensa, os

despachos nas encruzilhadas não deixaram de aparecer. Pelo contrário, eles

aumentaram. Os candomblés podiam ser fechados pelas batidas policiais. Batia-se

palma no lugar do atabaque para fazer menos barulho. Ou ainda se silenciavam os

sambas e batuques. Mas, no silêncio também, aquelas pessoas que buscavam a

civilização não iam deixar de encontrar perto de sua casa um bozó – forma pejorativa

usada para se referir aos ebós por pessoas que não são do candomblé. Voltarei a isso

mais adiante.

Como pudemos ver nesta parte, a região do Recôncavo foi sendo construída

como objeto de estudo de historiadores ao longo do tempo. Devido à sua

particularidade e importância no período colonial, pós-independência, pós-abolição e

pós-república a cidade de Cachoeira é um local privilegiado para estudar temas caros a

essa disciplina como o fumo, escravidão, engenhos, arquitetura e irmandades religiosas.

Cachoeira é também sustentada pelos cachoeiranos e pessoas de fora que visitam a

cidade, ou a escolhem para morar, como um lugar singular. Essa singularidade está,

portanto, diretamente relacionada à história oficial da cidade. Mas não apenas.

Todo mundo acha que Cachoeira é diferenciada, né? Não sou eu que vou dizer o

contrário. Eu também acho. É uma cidade diferenciada. Uma cidade que abraça

muito tudo, sabe. Tem seu lado conservador, lógico, não é diferente em relação às

questões conservadoras, não é diferente de nenhuma outra cidade de interior, mas

o seu lado liberal é muito intenso, ele é muito forte. E Cachoeira é uma cidade que,

eu nem gosto de usar essa coisa, esse link histórico de ter sido pioneira nas lutas pela

independência, até porque essa independência também é fajutinha, ela não me

representa, essa independência aí não me representa. Mas, assim, Cachoeira tem

realmente uma história de ser pioneira em determinadas coisas, em determinadas

posturas, e eu acho que é muito disso. Quando a gente chega nessa cidade, a gente

já é contaminado por essa postura, uma coisa impressionante, acho que você

mesma já deve ter percebido isso. A gente chega aqui e a gente já se contamina

25 Ebó é uma oferenda às entidades; sendo, muitas vezes, um processo de limpeza.

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com um posicionamento diferente, a gente já vê as coisas de outra maneira. (Ana

Clara Amorim, entrevista em abril de 2017, grifos adicionados)

Se o IBGE nos fala que o município cachoeirano possui cerca de 35.000 pessoas

e três distritos, é ao andar pelas ruas da cidade que se percebe que ela é composta de

muitas outras presenças e muitas outras divisões espaciais. No calendário da Secretaria

de Cultura e Turismo da prefeitura, do ano de 2015, as datas são marcadas pelas festas,

atividades cívicas e feriados nacionais e locais, mas também pelo nascimento e morte

de algumas pessoas ilustres. Iremos perceber ao longo das próximas sessões deste

capítulo que as histórias referidas no começo desta sessão são contadas pelas pessoas

de Cachoeira através dos prédios e dos lugares. Além disso, prédios e lugares também

são contados através das pessoas importantes que ali fizeram história.

Na fala de Ana Clara Amorim, no entanto, vemos que a singularidade de

Cachoeira não está relacionada à independência fajutinha, mas a uma postura que

contamina. Contaminar, aqui, tem a ver com as pessoas que remanesceram na cidade

no período de “decadência” – iremos ver o argumento de Ana Clara Amorim na última

sessão deste capítulo. Essas pessoas que sobreviveram e permaneceram construindo

cotidianamente a cidade imprimiram em Cachoeira uma outra forma de conhecer. Essa

forma não está necessariamente ligada aos prédios coloniais e à guerra da

independência. Ela tem a ver com outras formas de propriedade e com a Recuada.

Veremos ao longo do caminho.

3) CAMADAS NA CIDADE-PORTO, A HISTÓRIA A PARTIR DOS PRÉDIOS

Cachoeira nasce pelo Paraguaçu, afirmou o professor Raymundo Cerqueira na

primeira entrevista que fizemos. O Paraguaçu é um rio de maré. Um rio que é mar, nasce

na Chapada Diamantina e desemboca na Baía de Todos os Santos. Rubens Rocha, um

historiador local, em nota de abertura do seu livro Cachoeira, Jóia do Recôncavo Baiano,

afirma que os artigos que compõem a sua coletânea são textos “contando um pouco a

história do rio Paraguaçu, grandioso no seu aspecto, gigante nas cheias avassaladoras,

esse majestoso rio, agora domado, tem muita coisa para ser contada, sua navegação,

seus engenhos e a famosa Ponte Pedro II” (Rocha, [2002] 2015: 10). É importante

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destacar a linguagem usada pelo autor. O rio foi “domado” e o que ele tem a contar se

refere à “navegação”, aos “engenhos” e à “ponte Dom Pedro II”.

Sobre a navegação, os engenhos e as construções dos homens, como a ponte,

nos contam as pessoas autorizadas a falar da Cachoeira: homens locais das letras.

Sempre que respondia à pergunta do que eu fazia em Cachoeira, por exemplo, a pessoa

com quem eu estava conversando geralmente me indicava os mesmos nomes a

entrevistar. Cacau Nascimento, Professor Raymundo, Professor Carneirinho. Muitas

vezes eu pedia que me indicassem mulheres também. Alanna Oliveira, estudante da

UFRB e vice-diretora à época da ONG Casa de Barro, em 2015, indicou-me, então, uma

rezadeira que morava no pé da ladeira do Rosarinho. Seu nome é Marcli.

Fui visitá-la em um fim de tarde. Não sabia ao certo onde era a sua casa,

perguntei a uma senhora que estava na rua. Marcli se mudou, acho que ela agora está

ali, naquele beco viela. Era uma rua sem saída. Marcli estava sentada na porta de sua

casa conversando com um rapaz da Tsunami, empresa que fornece serviços de internet

em Cachoeira. Quando entrei em sua casa, disse-lhe que queria ser rezada. Ela

perguntou do que, o que eu estava sentindo, mas não me deixou falar. Olhou para o

computador que estava com a tela branca em uma mesa da sala e não ligava. Entre a

preocupação com o computador e uma conversa e outra, ela me disse que não podia

rezar naquele dia pois ela só cortava a folha pela manhã: meu pai me ensinou que de

manhã o senhor das plantas é um e de tarde é outro, depois disso nunca mais eu cortei

pela tarde. Fiquei de retornar no próximo dia. Falei que também queria entrevistá-la.

Na tarde seguinte, ela começou perguntando o que eu fazia e por diversas vezes

falou que não sabia bem o que eu queria, além de falar que têm coisas que não podia

me explicar. Disse que eu tinha que falar com Cacau Nascimento, seu Raymundo,

Professor Carneirinho e David Luiz – um artista local.

Mas ela também me contou parte de sua história. Seu pai foi um grande rezador

da cidade. Nascido em Maragogipe, mudou-se para Cachoeira ainda jovem, lá pelos seus

15 anos e faleceu aos 90. O bairro do Rosarinho antigamente era conhecido como Currais

Velhos e era uma grande fazenda cujo dono era Fiuza. Segundo Marcli, o lugar onde é a

Santa Casa do Rosarinho, hoje, era onde eram feitos os cultos dos negros. Por conta

disso, o proprietário do terreno sugeriu que fosse feita a igreja e o cemitério no local

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para que tais cultos não pudessem mais acontecer. Toda casa era uma santa cruz. A

ladeira do Rosarinho antigamente era conhecida como o Alto do Rosário. Disse ainda

que ela não nasceu com o dom, mas que ele lhe foi passado pelo seu pai. Seus olhos

encheram de água ao relembrá-lo: era bonito demais, ele rezava através dos sonhos.

Falou então que seu pai lhe ensinou tudo: ele nasceu debaixo d’água, aprendeu

as rezas através dos sonhos, tinha visões e via através da água26. Sobre a leitura de mão,

Marcli falou que não sabia explicar, que não nasceu com o dom, mas que havia

aparecido de uns tempos para cá. Seu pai lhe fechou o corpo e lhe ensinou as rezas, ela

é a única da família que as sabe. Faz remédios e banhos também. Então, Maíra, é isso,

não sei explicar certas coisas que acontecem.

Ao fim de nossa conversa, ela disse mais uma vez que na verdade ela não sabia

muito, não podia me ensinar muito. Disse que era melhor que eu fosse procurar o

Professor Raymundo, Cacau Nascimento ou o Professor Carneirinho. A conversa com

Marcli me mostrou naquele primeiro ano que, embora houvesse os nomes autorizados

a falar da cidade, cada pessoa com a qual eu conversava tinha uma história para contar.

Cada pessoa colocava uma camada de memória em cima do espaço, sobre as ruínas,

sobre os prédios, sobre as ruas, sobre a ideia de patrimônio. Cachoeira é muitas vezes

narrada como se ser cachoeirano fosse ter um mapa da cidade na cabeça. As histórias

parecem contadas caminhando pelas ruas. Cada praça, cada esquina, cada encruzilhada.

Esses lugares, além de histórias, costumam possuir também alguma presença a eles

associados, um dono e/ou uma dona.

Por ora, vamos nos centrar nas pessoas autorizadas a falar e nas suas histórias,

no que esses homens contam. Na camada de história que eles colocam sobre o lugar.

São eles: Luiz Claudio Dias do Nascimento, cachoeirano, historiador, doutorando em

antropologia pela Universidade Federal da Bahia e conhecido como Cacau Nascimento;

professor Raymundo Cerqueira, cachoeirano e professor aposentado de história; e, por

fim, seu Adilson Nascimento, conhecido como Condenado, antigo operador do Cine

Theatro Cachoeirano.

26 É comum em alguns terreiros de Cachoeira a pessoa que joga búzios ter também um copo de água ao lado. As pessoas que têm vidência podem ver as coisas de várias formas. Pela água, pelos búzios, pelas cartas, ou mesmo pelo próprio olho.

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“Vocês são daonde?” Aí eu disse, nós somos da cidade de Cachoeira, no estado da

Bahia. Cidade de Cachoeira, cidade heroica, monumento nacional, é cidade

histórica, precursora da Independência lá em 25 de junho de 1822, com a conquista

e a derrota dos portugueses. Então foi proclamado Dom Pedro I como imperador

perpétuo do Brasil. Já em Santo Amaro, a câmara de vereadores de Santo Amaro, em

14 de junho 1822, proclamou Dom Pedro I imperador do Brasil, mas nós lutamos! E

olhe, que interessante. Tem um conterrâneo de vocês, lá de São Paulo, que estudou

num seminário, que lá em São Paulo tem o seminário de São Vicente e aqui tem o

seminário de Belém. Tem o Frei, o menino, Antônio não sei de quê Galvão estudou

no seminário. “É mesmo? Em Cachoeira tem um seminário?” E o cara ficou invocado,

eu dei uma aula. Aí, ele me procurou: “venha cá, o senhor é professor, historiador,

o que é?”, “Sou radialista e operador de cinema”. “Você então devia escrever um

livro!” (Adilson Nascimento, entrevista em novembro de 2016, grifos adicionados)

Como podemos perceber, em um diálogo com uma pessoa de outro estado, seu

Adilson conta a história oficial que exalta a Independência da Bahia e a cidade de

Cachoeira como heroica e monumento nacional mas também como um local importante

no período colonial, que abrigou um seminário de jesuítas. Cacau Nascimento, por sua

vez, estuda a cidade. Para ele, Cachoeira foi construída de forma inadequada através da

matança dos indígenas. O extermínio indígena coincide com a história dos bandeirantes.

Cacau é uma referência que todos indicam para falar sobre a cidade; é possível vê-lo,

assim, em diversos vídeos e programas de televisão feitos sobre Cachoeira, e lê-lo em

diversos livros.

Professor Raymundo Cerqueira é um colecionador de diversidades. Conhecido

por todos, gosta muito de falar de sua cidade, sempre com orgulho. É professor

aposentado de história e oferece a quem visita sua casa um kit Cachoeira quase

completo. Livros sobre as fábricas de Charuto da região, filmes sobre a história da

cidade, CDs do Festival de Orquestras Sinfônica do Recôncavo, poemas de sua autoria,

jornais e muita prosa.

Foi em um dia chuvoso, no meio da tarde, que fui em sua casa pela primeira vez.

Professor Raymundo me recebeu na sala, logo na entrada. A sala tinha dois sofás, um

móbile, uma imagem de Jesus Cristo, caixas espalhadas pelo chão, uma mesa de centro

e banners de suas poesias. Ali ele tem alguns materiais e fotos de Cachoeira – ele

inclusive me presenteou em um outro momento com uma foto aérea da cidade. Parece

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uma sala de recepção para quem quer conhecer Cachoeira, como muitos historiadores

e memorialistas locais de cidades brasileiras do interior.

Sempre acompanhado pelo seu cacoete “o fato é”, a nossa conversa foi

composta pelos assuntos mais diversos possíveis. Tais como as beneficies vitamínicas do

quiabo, que tem muito ferro, do azeite27 que dá sabor à comida e ainda recitava um de

seus poemas: o gosto do caruru é gosto de caruru/ comida de gente, comida de santo/

verde quiabo com baba pastoso/ tempero gostoso/ que Cosme aceitou. Ele participou

de uma das edições do Caruru dos 7 poetas organizado pela Casa de Barro no ano de

2014. Para o evento, fez esse poema sobre caruru: ao ser convidado, perguntou se

alguém havia se preocupado com o próprio prato que dá nome ao recital e que é tão

importante em diversas datas comemorativas da cidade – como a semana santa, os

meses de setembro e outubro relacionados a Cosme e Damião, aos Erês e Ibêjis28, e

ainda ao início de dezembro pelo dia de Santa Bárbara, Iansã.

O fato é que essa estrada de ferro, que até hoje funciona, ela foi construída, um

engenheiro, portanto negro cachoeirano, chamado André Pinto Rebouças. E ele

construiu naquela época, né, foi o inventor do cimento, tem aquele, o túnel André

Rebouças no Rio de Janeiro em homenagem a ele, cachoeirano, é. (Professor

Raymundo Cerqueira, entrevista em abril de 2015)

Contando sobre pessoas tais como André Rebouças e outras que passaram pela

cidade de Cachoeira, ele disse que a cidade teve esse privilégio de ter recebido sempre a

visita dessas pessoas maravilhosas, além de ser o berço de pessoas ilustres.

Com isso, Cachoeira teve o privilégio de ter tido a transmigração da família

real em 1808, e claro que foi muito beneficiada porque vieram naquela época

os arquitetos, os intelectuais também, as filarmônicas, o início, né, o núcleo

de filarmônicas, que isso foi se implantando, foi crescendo, foi sendo

maravilhoso. (Professor Raymundo Cerqueira, entrevista em abril de 2015,

grifos adicionados)

27 Na Bahia, azeite é azeite de dendê; para se referir ao azeite de oliva, fala-se azeite doce. 28 Ibêjis são orixás gêmeos infantis; Erês são os orixás crianças.

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8) Fotografia aérea de Cachoeira, vista na margem esquerda do rio, e de São Félix, na margem direita.

Presenteada por Professor Raymundo

Assim como o Recôncavo, os ilustres cachoeiranos foram exaltados em diversos

meios de comunicação e livros de história. António Loureiro de Souza (1972) traçou o

perfil de 50 deles, sendo destes apenas duas mulheres, Ana Neri, a pioneira da

enfermagem brasileira que foi à guerra do Paraguai, e Maria Quitéria, uma das heroínas

da independência.

Enquanto a exaltada cidade, pelo seu passado, pela sua tradição, pelas suas glórias,

não se poderá esquecer, jamais, o que para tanto contribuíram os seus filhos. Daí o

ressaltar-se, neste livro, em rápidos perfis, com sentido didático, as figuras dos que

mais se sobressaíram, na política, nas letras, nas artes, na ciência, enfim em todos os

campos da atividade humana. É um justo louvor, que terá, acreditamos, o mérito de

mostrar aos contemporâneos e aos porvindouros, que os nossos antepassados bem

souberam ser dignos da terra onde nasceram, buscando sempre, enaltecê-la pela

dedicação, pelo amor, pelo patriotismo. (Loureiro de Souza, 1972: 42)

Um cachoeirano ilustre foi Tranquilino Bastos, maestro e fundador da

Filarmônica Lyra Ceciliana. Ilustre pela sua trajetória de vida e importância no

movimento abolicionista baiano, mas também pelo lugar que a música ocupa em

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Cachoeira. As filarmônicas da cidade são muito importantes, tanto histórica, quanto

atualmente29 – elas estão presentes nos desfiles cívicos, sessões solenes e procissões.

Desempenham projetos sociais e são marcadas por uma histórica rivalidade. Conhecido

como o “Maestro Abolicionista”, Tranquilino Bastos nasceu em Cachoeira em 1850. Em

13 de maio de 1870 fundou a Lyra Ceciliana, uma filarmônica composta, em sua maioria,

por músicos negros (Costas, 2013: 4).

Manoel Tranquilino Bastos cantava a liberdade, a abolição, a Princesa Isabel, entre

outros temas, denunciando a situação dos negros e a desigualdade racial. As tensões

do período em análise estão presentes nas produções musicais de Bastos, o que

permite resgatar seus valores e pontos de vista. Atrelado ao movimento

abolicionista, o músico colocou seu talento a serviço da causa da população “de cor”,

ao criar diversas composições inspiradas na luta pela libertação dos negros e

afirmação de uma identidade negra. Entre elas, podemos destacar: o Hino

Abolicionista, composto em 1884 a pedido da Sociedade Libertadora Cachoeirana; o

Hino da Liberdade; o Hino 13 de maio, composto em 1888; a polca Príncipe Negro; a

quadrilha de valsa Os Africanos; e os dobrados O Aurorial de Maio, Eccho da

Liberdade, O anjo da liberdade e Navio Negreiro, este último inspirado no poema de

Castro Alves. (Costas, 2013: 6, grifos no original)

Essa cidade habitada por pessoas ilustres e nascida pelo rio traz desde sua

concepção uma diferenciação espacial nos diversos bairros que a compõe, segundo

Cacau Nascimento. Além disso, para ele, Cachoeira é uma cidade espiritualmente

problemática. E seu problema espiritual está diretamente relacionado com o espaço da

cidade e à forma como ela foi construída. Cacau Nascimento afirma que a construção se

deu através de três principais zonas divididas de acordo com a origem de seus habitantes

no momento da formação. Uma zona indígena – o Caquende; uma zona colonial-branca

– o Centro; e, por fim, uma zona negra – a Recuada.

E depois tem o núcleo do colonizador, o núcleo, esse núcleo da antiga Vila. A antiga

vila de Cachoeira vai onde tá o hospital, onde tem o Bradesco, onde tem o correio,

aquela praça até a Ordem Terceira do Carmo. Isso é o núcleo da vila, é o núcleo

original de Cachoeira, né. Então nós estamos aqui, eu moro, né, dentro do núcleo da

29 As duas principais filarmônicas da cidade foram fundadas no final do século XIX, a Lyra Ceciliana em 1870 e a Minerva Cachoeirana em 1878. Para alguns estudos sobre as filarmônicas baianas e do Recôncavo: Horst Schwebel (1987), Regina Cajazeira (2004), IPHAN (2007), Jorge Ramos (2011), Celso Rodrigues (2011), Manuela Costas (2013), Melira Cazaes (2014). O lugar que a música ocupa em Cachoeira também pode ser visto na relação com reggae, ver Maria Bárbara Vieira. Falcón (2009).

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antiga vila de Cachoeira, é a zona privilegiada da cidade. (Cacau Nascimento,

entrevista em agosto de 2015)

Como podemos ver, a narrativa de Cacau parece evocar o mapa mental da cidade

apontado antes. Nessa cidade que possui uma diferenciação espacial, cada lugar possui

uma história nesse mapa. A maior praça na beira do rio do porto da cidade, por exemplo,

chama-se Jardim Grande. A cachoeirana Acely Araújo me contou que o professor

Ubiratan Castro dizia que esse lugar era anteriormente habitado por indígenas, quando

ali ainda era tudo mata. Eles eram os donos daquele lugar. Neste ambiente, os indígenas

construíram covas disfarçadas que serviam para enterrar escravos fugidos. Ubiratan lhe

contou que os indígenas ensinavam técnicas de respiração aos negros para que debaixo

da terra estivessem quando os capitães do mato passassem à sua procura, de forma que

não fossem encontrados. Mais tarde, assim, os indígenas desenterravam os negros, que

fugiam para lugares mais distantes.

Em outra praça, também ao longo do porto de Cachoeira, temos o prédio

histórico do Cine Theatro Cachoeirano. Em 2015 foram comemorados seus 82 anos com

uma homenagem ao fundador, Cândido Elpídio Vacarezza – cujo retrato foi colocado no

hall de entrada do cinema. Para a fundação desta casa, em 1923, Vaccarezza comprou

um gerador de energia elétrica para poder exibir filmes cinco anos antes da luz chegar à

cidade de Cachoeira, quando a iluminação pelas ruas ainda era a gás. À época, estava

sendo construída, represando o rio Paraguaçu, a Usina de Bananeiras que iria produzir

energia elétrica para a região.

Na homenagem dos convidados, tanto do então secretário de cultura e turismo,

Zé Luís, quanto do bisneto do fundador, Cândido Augusto Vacarezza, a ideia da cidade

heroica foi exaltada. Enquanto realizava a cerimônia de inauguração do retrato do hall

de entrada, Zé Luís falou que a história de empreendedorismo de Cândido Elpídio

Vacarezza, após sua fuga da Itália para se instalar em Cachoeira, ajuda-nos a entender a

história da colonização brasileira, da formação do povo brasileiro e conhecer a origem

do nosso povo: sua história nos ajuda, por fim, a conhecer a nossa história.

Um pouco mais de um ano após esta inauguração, em uma segunda-feira, dia 28

de novembro de 2016, entrevistei seu Adilson Nascimento, conhecido como

Condenado. Seu Adilson foi operador do Cine Theatro Cachoeirano desde a sua

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fundação. Com sua voz possante de locutor, um pouco já desgastada pela idade, falou

de cinema, da rádio e dos 40 alto-falantes das ruas da cidade. Usando expressões como

rádio de poste, contou que foi autodidata. Para aprender o inglês, usado na locução do

cinema, ele tomou cursos em apostilas e treinava na frente do espelho e com as plantas

no jardim. Cursou só até o primário, mas lia o jornal para o seu avô na roça quando ainda

era menino.

Começou contando que era do sul da Bahia, ilheense. Foi em Ilhéus que fora

convidado a aprender a operar o cinema: se eu amava o cinema? Não perdia um dia de

cinema. Eu gastava todo o meu dinheirinho que eu ganhava pra ir pra o cinema. Contou

então que aprendeu a projetar, a gente era operador de cinema, que hoje a gente chama

projecionista. Tenho na carteira assinada como profissional operador de cinema.

Contou ainda que Carmem Miranda hospedara-se no Hotel Paraguaçu no ano de

1937 ou 38. Ela se apresentou no Cine Theatro Cachoeirano. O show fazia parte de sua

turnê com Lamartine Babo, Almirante e com o pessoal da rádio nacional, inicialmente

programado apenas para acontecer em Salvador, mas como Cachoeira era falada

naquela época, seguiram para o Recôncavo também.

E, claro, falou da Independência da Bahia.

saíram as tropas do lugar onde hoje se chama os Currais Velhos, praça Marechal

Deodoro e vieram pra luta, e venceu aí. Depois foi proclamado Dom Pedro I,

imperador do Brasil. Contavam essas histórias, Maria Quitéria que era, nasceu nas

pororocas em Feira de Santana. E daí veio a heroína. Maria Felipa em Itaparica e

muitos outros. Nós sabemos dessa história de Cachoeira como precursora da

independência. Cachoeira lutou para derrotar a côrte portuguesa. (Adilson

Nascimento, entrevista em novembro de 2016, grifos adicionados)

Seu Adilson passou assim a contar as histórias da cidade que escutou de Seu

Antônio, porteiro do Cine Theatro Cachoeirano. O colega mostrou a seu Adilson vários

pontos importantes como o Chafariz, a casa de Ana Neri e a casa onde nasceu o

jurisconsulto da América do Sul, Augusto Teixeira de Freitas.

O prédio em frente ao antigo Hotel Colombo, que hoje está em ruínas, e ali a praça

do cinema, que é a praça Teixeira de Freitas que o nome foi dado a ele. Aí teve uma

juíza achando que, pelo nome dele, que ele nasceu ali, como ali era a zona do

meretrício, achava que o fórum não poderia ser ali e pediu ao prefeito da época –

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não lembro mais a data, mais ou menos assim em 92 – que tirasse aquele prédio.

Hoje em frente da Minerva, que era uma ruína, aí foi que se transformou no Fórum

Teixeira de Freitas, que saiu de cá pra lá. Aí seu Antônio passou a me contar a história

de Cachoeira. Em Buenos Aires, o código civil da Argentina foi feito por esse

cachoeirano, enquanto em Cachoeira não tem uma estátua em homenagem a esse

homem, um dos maiores jurisconsulto da América do Sul, que é Teixeira de Freitas.

Tem uma estatuetazinha lá no fórum, né, enquanto lá em Buenos Aires, no centro,

tem uma estátua em homenagem a ele porque ele fez o código civil da Argentina.

Então seu Antônio me contava essas histórias de Cachoeira, né. Essa estatueta,

realmente tem essa grande estátua de Teixeira de Freitas. Ali era o mercado

aparente, hoje é o correio. Aqui o bairro do Caquende, aqui onde hoje é a policlínica

aqui era uma, chamava alambique, né, de antiga rocha, aí destilava a cachaça. Tinha

a cachaça Tupi nos Três Riachos, quem vai pra Capoeiruçu. Tinha que era mais antiga,

que já era usina que chamava, era usina e alambique, a usina da Vitória, ali produzia

açúcar, cachaça, era muito importante. (Adilson Nascimento, entrevista em

novembro de 2016)

O hotel Colombo ocupa um quarteirão inteiro na beira no rio Paraguaçu. A rua

detrás das ruínas do prédio, paralela à orla, é a entrada para a Rua do Brega, como todos

conhecem na cidade, a zona do meretrício a qual Seu Adilson se refere30. Percebemos

tanto na fala de seu Adilson, quanto das outras pessoas, que a história contada de

Cachoeira segue esse mapa mental, composto pelos prédios e pelas pessoas a eles

associadas, as ilustres figuras cachoeiranas conhecidas fora da terra, como Teixeira de

Freitas e André Rebouças, mencionado pelo professor Raymundo. O que está em jogo

aqui é a grandeza alcançada por essas pessoas, que parece ser causa e consequência da

grandeza da própria Cachoeira. A história contada da cidade possui ainda outras

presenças. As esquinas invadem os prédios.

Aí seu Antônio começou a falar outras coisas, aí eu comecei a perguntar a ele, “mas,

seu Antônio, como você sabe de tudo de Cachoeira, eu queria que o senhor me falasse

sobre o candomblé, se é verdade que o pessoal basta soprar assim que tem a

pemba31”, que não sei o que. “Que, nada, colega” – que a gente trabalhava junto, ele

era o porteiro, eu era o operador – disse, “não, o que acontece aqui em Cachoeira

são boatos, tem lendas, tem sobre os pais de santo famosos como aqui tinha”, disse

30 O lugar mais famoso da Rua do Brega é a casa de Cabeluda. Para um trabalho sobre a vida de Dona Cabeluda, ver Gleysa Siqueira (2017). 31 Pemba é um pó preparado espiritualmente para proteger alguém ou para fazer mal a outrem.

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que, como seu Antônio falava, que hoje tem vários, terreiros, né, o mais famoso é o

Ventura, que foi até tombado. Então, mas ele falava que aqui tinha naquela época,

dos escravos, ainda quando era da escravidão, que tinha dois pais de santo

poderosos como era, Salacó e Zé de Brechó. Esse Zé de Brechó não é Brechó, era

porque o pessoal não sabia pronunciar, era Belchior, aí botaram Brechó. Aí falavam

que um discutia com o outro, e batia coisa no outro para ver quem era o mais forte.

Aí um, parece que foi o Zé de Brechó, mandou um presente, uma caixa de charuto

preparada pra Salacó. Salacó disse para o enviado, o rapaz que entregou a caixa e

disse, diz ao seu chefe que eu, abriu a caixa, tirou o charuto e fumou, diz ao seu chefe

que eu tô usando o presente dele, agora não sei se ele vai usar o meu presente.

(Adilson Nascimento, entrevista em novembro de 2016)

Zé de Brechó é importante referência nas histórias das pessoas mais velhas de

Cachoeira. Não foi apenas seu Adilson quem me falou dele e me explicou a origem de

seu nome, Belchior, Cacau Nascimento também o fez. Bem como Badinho, que conta

histórias sobre ele. É, ainda, possível encontrá-lo nos trabalhos acadêmicos:

José Maria Belchior, ou Zé de Brechó, é um personagem legendário entre o povo-de-

santo cachoeirano. Ele tem fama de ter sido um temido feiticeiro ou ajé de “muita

força”. “Sabia fazer feitiço”, “era dono do ebó” e “podia matar em 24 horas”, tanto

a vítima como o cliente que não pagava. São famosas as diputas de Zé de Brechó

com o irmão Salacó, Antônio Maria Belchior, outro “macumbeiro” muito falado.

(Parés, 2013: 190, grifos no original)

A disputa entre esses dois famosos irmãos, presente na fala de seu Adilson,

também está nas páginas de Luís Nicolau Parés (2013: 190) a partir das palavras de um

de seus entrevistados, o cachoeirano seu Geninho: “um experimentava o outro. Naquele

tempo as coisas eram assim. A seita32 tinha aqueles homens sabidos e os dois mais

falados em Cachoeira eram eles”.

A história dos dois irmãos que não combinavam atravessou os anos, e a finada

Galdina Silva, popularmente conhecida como “mãe Baratinha”, de nação nagô-ketu,

contava que “de tanto um fazer trabalho contra o outro, os dois acabaram

morrendo”. Ela celebrava todo mês de maio uma obrigação no cemitério do

Rosarinho em louvor aos dois “babalaôs Salachior e Belchior”. Humbono33 Vicente

explica que Zé de Brechó “virava uma garça e ia para a África”. Não são

desconhecidos esses “poderes mágicos” dos especialistas religiosos jejes e, como as

32 Muitas das pessoas mais velhas em Cachoeira se referem à religião do candomblé como a seita. 33 Primeira pessoa iniciada em uma casa de candomblé Jeje.

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Iyami Oxoronga, acredita-se que os “feiticeiros” possam transformar-se em pássaro.

Quando chegava o vapor de Salvador ao cais de Cachoeira e se via uma garça no

mastro, a gente sussurrava “aí vem Zé de Brechó de volta da África”. (Parés, 2013:

190)

Zé de Brechó era conhecido também por sua riqueza e propriedades, de escravos

inclusive. Mas ele não era o único. No Livro de Terrenos e Propriedades da Santa Casa

de Cachoeira, Edmar Santos (2009) encontrou os nomes de Antonio Domingues e Júlia

Maria Guimarães, africanos que arrendaram casas entre os anos de 1879 e 1904. Eles,

no entanto, não moravam ali e sim em uma casa ao final da Rua da Matriz, no centro de

Cachoeira, atualmente Rua Ana Nery, nº 41. Eles moravam na Casa Estrela.

Júlia fazia doces e outras iguarias para venda, atividades para a qual “tomavam parte

muitas mulheres, inclusive muitas irmãs da Boa Morte”. A memória do povo-de-

santo de Cachoeira indica que a casa de Dona Júlia era o “Quartel General” da

Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Quais motivos levariam Júlia e Antônio

a arrendarem 3 casas e respectivas terras que, somadas, alcançavam o tamanho de

8 braças? Segundo Nina Rodrigues, referindo-se às atividades dos últimos africanos

de Salvador, eles se limitavam “ao pequeno comércio e a fretes”, bem como ao

trabalho na roça. (Santos, 2009: 162, grifos adicionados)

A Casa Estrela é, portanto, importante referência da história dos africanos na

cidade de Cachoeira. Fica hoje ao lado da Padaria Estrela. Em seu livro Bitedô, onde

moram os nagôs (2010), Cacau Nascimento também aponta que a Casa Estrela foi o local

onde primeiramente se instalou a Irmandade da Boa Morte, que à época não se

“configurava uma instituição religiosa formal”:

Em Cachoeira, ela se instalou numa residência ainda hoje conhecida como Casa

Estrela. Localizada no final da rua Principal e a poucos passos do largo do Hospital e

ao lado do mercado de Cereais, a Casa Estrela fazia vizinhança com algumas

quitandas pertencentes a africanas e crioulas. Em vista disso, ela representava um

local onde “negras do partido alto” ligadas ao candomblé e à Irmandade da Boa

Morte se reuniam com frequência. (Nascimento, 2010: 104)

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Contam que Ludovina Pessoa34 morou nesta casa e que “teria ‘plantado’ um

assento para Legba35 na sua porta de entrada, ainda hoje visível sob uma pedra de

granito com a forma de uma estrela de cinco pontas” (Parés, 2013: 184).

De acordo com a tradição oral, na Casa Estrela eram “preparadas” (iniciadas) as

vodunsis do grupo religioso do Bitedô e, mais tarde, as que foram preparadas por

Ludovina Pessoa para o Zoogodô Bogum Malê Seja Hundê. Além disso, essa casa

mantinha intercâmbio com a África através de viajantes cachoeiranos. Até a década

de 1960, além de ter sido residência onde reuniam o povo de santo de Cachoeira,

era onde se compravam produtos africanos utilizados em rituais de iniciação do

candomblé e onde membros da Irmandade da Boa Morte guardavam joias pessoais.

É oportuno ressaltar também que a Casa Estrela representava também um local

onde se reuniam as ganhadeiras membros da Irmandade da Boa Morte para juntas

produzirem doces, bolos, cocadas e outras guloseimas, que eram vendidos sob

encomenda para festas de aniversários, batizados, casamentos, e também

distribuídos entre elas para serem comercializados em tabuleiros em esquinas de

Cachoeira e São Felix. (Nascimento, 2010: 104-105)

A Casa Estrela e o seu Exu assentado são exemplos de como as outras histórias

de Cachoeira entram nos livros da história oficial sobre a cidade. Quando se passa pela

estrela, dizem que não se pode pisá-la. Uma das primeiras histórias de Cachoeira que eu

escutei foi a dos túneis que havia no Convento do Carmo36. Depois me disseram que eles

34 Ludovina Pessoa é importante referência do candomblé jeje-mahi das cidades de Cachoeira e Salvador. Luis Nicolau Parés (2013: 189-90) levanta a hipótese dela ter sido a primeira mãe-de-santo desta nação: “Podemos trabalhar com certa confiança sobre a ideia de que, na década de 1860, Ludovina Pessoa, unindo-se a outros africanos jejes e seus descendentes, fundou ou veio consolidar a liderança da Roça de Cima em Cachoeira, mantendo estreita colaboração com o candomblé do Bogum, assim como contatos regulares com vários outros terreiros da cidade. A minha hipótese é que essa dinâmica só foi possível pela existência de uma elite negra de libertos africanos e seus descendentes que, desde as primeiras décadas do século XIX, mas sobretudo a partir da metade do século, conseguiram ter acesso à propriedade de terras e estabelecer uma variada rede de relações sociopolíticas com a elite branca que podiam garantir o funcionamento dessas congregações religiosas”. 35 Vodun da nação Jeje relacionado ao bem e mal, aos caminhos, à proteção; corresponde ao orixá Exu da nação Ketu. 36 Em nota de rodapé, António Loureiro de Souza (1972: 29) conta sobre o túnel no Convento do Carmo: “Fala-se, com muita convicção, em subterrâneos sombrios e profundos que partem do antigo Seminário de Belém da Cachoeira, dos jesuítas. Um destes ligar-se-ia ao Convento do Carmo, dentro da cidade, com mais de légua de extensão! Do outro ocupou-se a Bahia Ilustrada, revista editada no Rio de Janeiro, de junho de 1918, nos termos que vão ler: ‘Há, por exemplo, numa rampa, em Cachoeira, no alto, próximo a uma cascata denominada ‘Banho Japonês’, do lado oposto a este, sob o caminho de ferro que vai até à Feira de Santana, um subterrâneo imenso, alimentado, e que dizem vai dar, em Belém, na antiga ermida dos Jesuítas. Nesse subterrâneo, da vertente, cuja entrada tem a forma de um carneiro de cemitério, foram encontradas, há tempos, algumas relíquias de jesuítas, crucifixos de prata, imagens de prata e trabalhadas em cajá. Onde se encontram essas relíquias hoje, ignoramo-lo. Não faz muito que o Jornal

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se ligavam a Belém da Cachoeira. Os motivos de sua origem eram os mais diversos.

Criados por escravos para fuga. Construído por dois amantes que queriam escapar de

algo. Ou, ainda, que ele é amaldiçoado, ninguém consegue nele entrar, sendo possível

ver apenas a sua entrada ao longo da visitação ao Convento. Sua existência, e o que se

conta dela, é envolvida em mortes.

Conta a tradição que existia na igreja, trazido pelos jesuítas, um Santo Inácio todo de

ouro maciço, em tamanho natural. Certa feita, como houvessem os jesuítas de

retirar-se, apressadamente, de Belém, e na impossibilidade de ser conduzido o

referido santo, enterraram-no em frente à igreja. Várias escavações têm sido feitas

por aqueles que acreditam na legenda, porém, como era de esperar-se, sem

resultado algum. Propalam outros, moradores antigos do lugar, que a mencionada

imagem fora atirada a uma fonte que fica abaixo de onde está a igreja, formada pelo

Riacho Pitanga. Todavia, tudo isso não passa de crendice popular que, como todas

de tal natureza, vai passando de geração em geração, porque existem crédulos que

juram pela veracidade dessas lendas. Reza, ainda, a mesma tradição, que o Santo

Inácio de ouro foi enterrado no subterrâneo que existia partindo de Belém, do centro

da Igreja, e indo dar ao Convento do Carmo, na Cachoeira. De referência ao

subterrâneo, este talvez exista. Se vai dar ao Convento do Carmo, ignoramos. Mas a

sua existência é real, porque nós já tivemos oportunidade de penetrar o mesmo,

embora pouco pudéssemos avançar, uma vez que, tendo havido possíveis

desmoronamentos, se encontra obstruído o seu caminho. Pode ser, igualmente, não

seja propriamente um subterrâneo, mas uma simples escavação ali deixada por

qualquer conveniência dos edificadores da igreja. Reformas posteriores vedaram

aquela entrada. (Loureiro de Souza, 1972: 33)

Ainda que alguns livros representem tais histórias como “crendice popular”, elas

permearam o mundo das letras também. Pelas conversas nas ruas ou pelas entrevistas

com as pessoas indicadas se aprende as histórias da cidade monumento, que

contaminam – para usar a expressão de Ana Clara Amorim – os livros do que aqui estou

chamando de história oficial. As sessões solenes na Câmara dos Vereadores, por sua vez,

são lugar privilegiado para se exaltar o passado grandioso da cidade, os monumentos e

as construções portuguesas, também elas contaminadas pelos livros que conformam

um discurso oficial. Os desfiles cívicos também o fazem, não através de discursos

Moderno, vespertino baiano, comentou, em suelto, esse curioso achado’. Cf Campos, J da Silva. Anais do Arq. Púb. da Bahia. Salvador, 26, 1939” (Loureiro de Souza, 1972: 29).

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apaixonados, mas percorrendo os espaços coloniais da cidade que contam a história do

25 de junho. É para esses eventos que iremos olhar agora.

4) PATRIMÔNIO HISTÓRICO, PATRIMÔNIO CULTURAL: HISTÓRIA OFICIAL E O PODER PÚBLICO

Estar em Cachoeira é escutar por várias vezes ao longo do dia os carros de som

passando pelas ruas. Eles anunciam desde quem morreu – o nome e apelido desta

pessoa, seus parentes e a hora do velório e funeral – a propagandas e festas da cidade.

Em março de 2015, recém chegada à cidade, escutei o carro de som anunciando o

aniversário da Cachoeira, no 13 de março: Ela não foi emancipada, foi elevada a

monumento nacional!

A ideia de patrimônio é muitas vezes evocada para além do tombamento

arquitetônico e cultural da cidade. Está relacionada à construção de uma imagem de

heroísmo vinculado ao período da independência. Tal imagem é informada, ainda, por

um discurso colonial que exalta as figuras de Dom Pedro I e II – o último visitou Cachoeira

para a inauguração da ponte que leva seu nome e há um diário de sua viagem ao

nordeste do país, com trechos sobre a cidade. Ao fundo da sala principal da Câmara de

Vereadores, por exemplo, está um quadro do Imperador. É o que primeiro se vê ao lá

entrar.

Em três diferentes datas podemos perceber o acionamento deste discurso oficial

da cidade enquanto monumento diretamente relacionado aos elementos coloniais que

compõem sua história: no dia 13 de março, 25 de junho e 2 de julho. Em 13 de março

de 1837, como já dito, a Vila Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira foi elevada

à categoria de cidade com a denominação de Heroica Cidade da Cachoeira. Como aqui

também antes mencionado, esse título vem da participação da cidade nas lutas pela

Independência da Bahia.

Por sua importância histórica e política, portanto, todos os anos no dia 25 de

junho a sede do governo do estado da Bahia é transferida para Cachoeira. As

comemorações destes dias são caracterizadas por desfiles que percorrem as ruas das

cidades de Cachoeira e São Félix. Saindo da casa de Câmara e Cadeia, as sinfônicas,

seguidas por fanfarras e bandas marciais dos colégios estaduais e particulares,

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percorrem o perímetro colonial da cidade. A primeira é a Rua Ana Nery. Dela, o desfile

segue para a rua do comércio, a Rua 13 de Maio, até a Rua da Feira. Retorna, por fim,

pela Rua Rui Barbosa. As ruas, como em qualquer outra cidade, carregam o nome de

pessoas importantes seja de Cachoeira e seja da Bahia, assim como de datas marcantes

e caminhos que a ligavam ao interior no período colonial – como a Rua da Feira (que

nunca teve feira), antiga estrada que levava à cidade de Feira de Santana. Além dos

desfiles, os dias de festas cívicas são marcados também por sessões solenes na câmara

dos vereadores. Nelas, são exaltadas as qualidades heroicas da cidade e do povo

cachoeirano.

A primeira sessão solene da Câmara que eu pude acompanhar foi no dia 13 de

março de 2015. A sessão se iniciou com os convidados oficiais sendo chamados à mesa:

prefeito, vereadores, juízes, advogados e clérigos da igreja católica. Seguiu-se o hino de

Cachoeira tocado pela Filarmônica Minerva Cachoeirana. Alguém muito emocionado

vibrou “Cachoeira” ao fim, com muita devoção. Foram ainda registradas pessoas

importantes: professor, jornalista, artista plástico, presidente da APAE, pessoas do axé.

O ex-prefeito (à época, reeleito em 2016) Tato Pereira foi saudado antes do próprio

prefeito, Carlos Pereira, pela vereadora Adriana dos Santos Silva, que foi chamada para

dar as boas-vindas: quero hoje saudar em nome do ex-prefeito Tato Pereira todo povo

cachoeirano!

Após as boas-vindas, veio o pronunciamento do prefeito da cidade. Carlos

Pereira deu início ao seu discurso cumprimentando todas as pessoas presentes. As

palavras-chave deste momento eram orgulho e honra. É com muito orgulho que hoje

celebramos o aniversário de 178 anos da elevação de Cachoeira à categoria de cidade.

A nossa querida e amada Cachoeira. Em seguida, o prefeito enumerou o que o seu

governo havia feito até aquele momento, em dois anos no poder, concentrando-se nas

áreas de educação, saúde e segurança, passando rapidamente pelo esporte. Hoje é dia

de comemorações, mas também da renovação de compromissos para continuarmos

lutando para honrar a história construída pelos nossos antepassados e que nos inspira

para seguir honrando o nome da nossa terra. A ideia de honrar as memórias, lutas e

tradições era constantemente evocada. Carlos Pereira terminou seu discurso falando do

orgulho pela cidade e com a salva Viva a Cachoeira!

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Os aplausos tomaram conta do ambiente enquanto alguém ao fundo gritou vivas

e ironicamente disse a prefeitura municipal dos Pereira – família que domina a política

há anos. A palavra foi então passada ao orador oficial do 13 de março, o professor Paulo

Victor Farias Mascarenhas. Depois de cumprimentar a todos e dizer que havia sido com

grande satisfação que ele havia aceitado o convite do presidente da casa, o vereador

Wendel Chaves, o orador se apresentou como apenas mais um cidadão cachoeirano:

Eu sou um cidadão que aqui nasceu, filho de uma lavaderia chamada Cosmita de

Santana Farias e um lavrador chamado Paulinho Souza Mascarenhas, nativo da

Opalma e trazido ao distrito sede logo após o assassinato do meu pai, aos três anos

de idade naquela localidade. Cresci no Cucui de São Cosme e São Damião, tomei

banho na prainha e por muitas vezes me embrenhava com familiares e amigos pelo

meio dos matos e íamos caminhando até a pedra rachada para se fazer o que eu

possa chamar de piquenique. Brincava até altas horas de picula, garrafão, baleado,

golzinho, bolinha de gude e em meio a tantas dificuldades das quais graças a Deus

eu não me lembro, sei apenas porque minha mãe quando passa a lembrar do

passado conta o que ela passou com dois filhos, viúva, sem nenhum amparo social,

apenas com o apoio dos familiares que ajudaram e até hoje ajudam no que é possível.

Em meio a todas essas dificuldades eu tive acesso a uma boa educação, graças a

Deus eu pude ter acesso à boa educação. E digo que graças a essa boa educação, que

foi a base para a minha formação, e hoje eu agradeço pelo que sou e foi graças a

isso. (Paulo Victor Farias Mascarenhas, sessão solene Câmara dos Vereadores de

Cachoeira, 13/03/2015)

Assim como muitas das falas de pessoas que aqui já vimos, a fala do orador foi

marcada pelos personagens da cidade de Cachoeira e pela luta de independência.

Desde jovem, muito jovem mesmo, coisa de quatro ou cinco anos de idade, eu

aprendi a cantar o hino da Cachoeira, conheci a história dos grandes nomes

cachoeiranos e fui obrigado a gravar os feitos de muitos deles: Ana Neri, a mãe do

Brasil; Rui Barbosa; Tranquilino Bastos, o poeta abolicionista; Sabino de Campos,

autor da letra do hino da Cachoeira e muitos outros. Me encantei nesta escola pela

história do 25 de junho, e ainda hoje lembro de professor Carneirinho lá no quiosque

da fundação Hansen Bahia dizendo as seguintes palavras: “Quem diria que o

Paraguaçu seria responsável por ganhar uma batalha, prelúdio de uma conquista

que mudou os rumos da nação e que se consolidou um ano depois, no dia 2 de julho

de 1823 e essa batalha foi no dia 25 de junho nesta praça de 1822”. Nesta mesma

escola escrevi 300 vezes “Patriotismo é dever de todo cidadão”, isso por ter faltado

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ao hasteamento das bandeiras no dia 25 de junho, aqui nesta mesma praça, e só

escrevi 300 vezes porque eu era terceira série, imagina os alunos da quarta série.

Senhores, aprendi também nesta escola a história da nossa cidade, não vou me

detalhar muito sobre isso porque todos nós estamos carecas de saber qual é a

história de Cachoeira, a influência dos Adornos, dos Rodrigues Martins, a evolução

da nossa cidade, toda a riqueza histórica da Cachoeira, do seu patrimônio cultural,

seu patrimônio arquitetônico, foi lá que eu aprendi. Senhores, eu estudei no

Educandário Paroquial a Jesus por Maria, liderado pelo ilustre Dom Roque, e aqui

hoje encontram-se inúmeras crianças me prestigiando e fazendo valer que aquela

escola sempre ensine que deveria seguir de modelo para toda cidade: “Patriotismo é

dever de todo cidadão”. Me sinto muito satisfeito e feliz por ter estudado naquela

escola. Com o passar do tempo tive que deixar o educandário, passei pelas escolas

estaduais, Edvaldo Brandão Corrêa, depois o Colégio Estadual da Cachoeira e outro

fato que marca a minha vida foi a fundação da Filarmônica 25 de junho a qual eu sou

seu regente fundador no ano de 2005. (Paulo Victor Farias Mascarenhas, sessão

solene Câmara dos Vereadores de Cachoeira, 13/03/2015, grifos adicionados)

Como podemos ver nessa fala, muitos desses elementos que exaltam a cultura

são aprendidos também nas escolas. Paulo Victor faz referência a três escolas públicas

muito importantes no município de Cachoeira, conhecidas como Paroquial, Estadual e

Edvaldo Brandão. Suas palavras apontam para a forma como o patriotismo cachoeirano

era exaltado na sala de aula. No início deste capítulo eu falei das pessoas autorizadas a

falar sobre a cidade, algumas delas eram professores das escolas cachoeiranas, como o

Professor Raymundo, Cacau Nascimento e Professor Carneirinho, este último conhecido

pela sua fala impecável e pelo conhecimento sobre a história do 25 de junho.

O orador da sessão solene segue o seu discurso dizendo que a sua história se

confunde com a história de qualquer outra pessoa de Cachoeira.

Mas, senhores, esta é a história de mais um cachoeirano, que não é diferente da de

muitos outros que luta diariamente prestando serviços em prol desta cidade. Assim

como aqueles do passado, que com seus atos, feitos e sacrifícios, nos deram a

liberdade e prepararam a Cachoeira que temos hoje. Uma Cachoeira rica, seja lá pelo

seu patrimônio histórico, que nos rendeu títulos como monumento nacional e

heroica, ou pelo seu patrimônio cultural, essa atração viva de preservação até os dias

de hoje da identidade de um povo. Assim como eu, existem muitos que a cada dia

travam uma guerra incessante para promover o bem e preservar as tradições da

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nossa Cachoeira, invejadas por muitos outros povos. (Paulo Victor Farias

Mascarenhas, sessão solene Câmara dos Vereadores de Cachoeira, 13/03/2015)

São exaltadas no discurso do orador a história, de um povo bravo e heroico, e a

cultura, vista como viva e marca da identidade desse povo. Tal ênfase é dada através do

uso dos termos patrimônio histórico e patrimônio cultural. História e cultura são, assim,

alinhadas pela narrativa de uma maneira em que a cultura seja associada a uma ideia de

tradição que precisa ser preservada.

Cachoeira é uma cidade muito rica, Cachoeira tem bumba-meu-boi, Cachoeira já teve

trança fitas, Cachoeira tem o São João, Cachoeira tem as filarmônicas, foram os

nomes do passado que nos deram a Lyra Ceciliana que encaminhou muita gente,

assim como a Minerva que junto hoje com a 25 de junho faz um trabalho preventivo

excepcional. (Paulo Victor Farias Mascarenhas, sessão solene Câmara dos

Vereadores de Cachoeira, 13/03/2015)

Essas narrativas são construídas de forma tal que tanto a história quanto a

cultura são mobilizadas para construir Cachoeira como um lugar singular. A história e a

cultura constituem a riqueza cachoeirana.

A nossa cidade é muito rica, é muito bela, é patrimônio que deve ser preservado. E

seu maior patrimônio é a sua gente que deve ser valorizada e respeitada. Foi aqui

que o Brasil iniciou seu processo de liberdade, modéstia à parte, o patriotismo aqui

foi provado pelo sangue, da mesma forma que o ouro é provado pelo fogo. E ainda

se vê o mesmo lugar que aqui nessa sessão que eu pude presenciar, e eu fico muito

feliz, narrado pela história quando um conterrâneo bate no seu peito e diz que sou

cachoeirano, sem nenhuma reserva. Então, senhores, lutemos, lutemos objetivando

elevar ao mais alto o nome da nossa cidade pois o nome da nossa cidade no mais

elevado topo seremos nós, a Cachoeira é o seu povo e vamos fazer o que estiver ao

nosso alcance para que o hino da Cachoeira, hoje já ouvido, seja cantado por muitos

e muitos séculos, quiçá milênios, com toda esta eloquência, com toda esta honra,

com toda dignidade e orgulho de como em quando de 13 de maio de 1888. Senhores

fico muito feliz, obrigado mais uma vez pelo convite senhor vereador, senhor

presidente desta casa, e muito obrigado e viva a Cachoeira! (Paulo Victor Farias

Mascarenhas, sessão solene Câmara dos Vereadores de Cachoeira, 13/03/2015,

grifos adicionados.)

É possível perceber, portanto, como os usos das noções de patrimônio histórico

e cultural são agenciados pelo poder público dentro da prefeitura e Câmara de

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Vereadores para construir um discurso oficial da cidade de Cachoeira. Este discurso

conforma um território tombado, formado por prédios que caem – noção que irei

retomar na última sessão deste primeiro capítulo – e por diversas manifestações

culturais.

A literatura sobre patrimônio cultural é vasta e foge aos propósitos desta tese37.

O que quero chamar a atenção aqui, no entanto, é para como essa noção de patrimônio

é apropriada pelas pessoas de Cachoeira para se contar a história oficial da cidade. Mas

não apenas. Ela é acionada para a proteção do território em prédios e em cultura. Na

produção de direitos sociais dos povos de santo, por exemplo, esse agenciamento

aparece como uma questão de sobrevivência, apropriando-se da discussão de

preservação da tradição. As alianças com o poder público são antigas na vida dos

terreiros baianos e diversos são os trabalhos que falam sobre a perseguição policial do

início do século XX e as políticas de proteção das mães e pais de santo (Braga, 1995,

1999; Santos, 2009; Carneiro, [1948] 1954, [1950] 2005, 1964; Landes, [1967] 2002;

Costa Lima, 1977, 2010; e outros). E, aos poucos, o candomblé foi também ocupando os

espaços de poder.

Um exemplo disso foi outra sessão solene que acompanhei, dias depois da que

descrevi acima, em 29 de abril de 2015 na Câmara de Vereadores de Cachoeira. Tratava-

se da Sessão Solene de entrega de título de cidadão cachoeirano. Enquanto caminhava

para a Casa de Câmara e Cadeia, pude ver várias pessoas de branco e turbante na rua.

Não era sexta-feira. Ebome38 Nice Evangelista Espindola era uma das homenageadas.

37 Para trabalhos técnicos sobre a cidade de Cachoeira, ver IPHAN (2007) e os Cadernos do IPAC 2 e 9 sobre a Festa da Boa Morte (Governo do Estado da Bahia/ Secretaria de Cultura, 2011) e os Terreiros de Candomblé de Cachoeira e São Félix (Governo do Estado da Bahia/ Secretaria de Cultura, 2015). Algumas referências importantes para a discussão: Antônio Arantes (1984, 1987, 2001, 2007, 2010), Sérgio Miceli (1987), José Reginaldo Gonçalves (1988, 2002), Maria Cecília Londres Fonseca (1996, 2005. 2006a, 2006b, 2009), Márcia Chuva (2003, 2012), Regina Abreu & Mário Chagas (2003), Gilberto Velho (2006), Manuel Filho; Cornélia Eckert & Jane Beltrão (2007), José Ricardo Oriá Fernandes (2010); Marla Prado (2013) fala sobre patrimônio cultural em Cachoeira. 38 Pessoa no candomblé que já fez a obrigação de sete anos e deixou de ser um iniciado, iaô. Iaô, por sua vez, é a pessoa iniciada no candomblé que deu a sua primeira obrigação. Quando a pessoa é feita (para o assunto ver Miriam Rabelo (2014), Roger Sansi (2009), Lucas Marques (2016) e Márcio Goldman (2012)), ela tem de dar comida ao seu santo, o que acarreta em ficar recolhido dentro do terreiro, no roncó (pequeno quarto destino à feitura) por um período determinado que varia de acordo com o tempo de iniciação, com o tamanho da obrigação dada e com o santo da pessoa. Dar comida ao santo chama-se obrigação.

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Filha de Iansã, é natural de São Paulo. Naquela noite, ela ganharia o título de cidadã

cachoeirana. Havia pessoas de diversos terreiros. A sessão foi longa. A vereadora que

havia indicado Ebome Nice, Maria Lúcia Costa Santos, saudou Oyá39 ao início da noite.

Foram homenageadas ainda Rosângela Aparecida Cordaro, dona do estabelecimento

Identidade Brasil (pousada que traz quartos temáticos de orixás), e a professora da UFRB

Francisca Helena Marques, que trabalha com cultura popular e samba de roda. Em sua

fala, a última cobrou dos vereadores a casa do samba de Roda de Dona Dalva40.

Rosângela falou que sabia que, se estava ali, era por permissão de Deus e dos Orixás.

Depois da fala de Ebome Nice, uma das mulheres que a acompanhava cantou

sobre um negro que ajudava a outros negros e de viagens de navios negreiros quando

guerreiros e guerreiras africanas foram pisoteados. A Filarmônica Minerva Cachoeirana

tocou em diversos momentos da sessão. O hino de Cachoeira ao início, uma homenagem

ao seu presidente que recebeu o título de cidadão cachoeirano. E, ainda, o hino nacional

ao final.

O hino de Cachoeira diversas vezes evocado aqui e nas sessões solenes exalta

muitos dos elementos que apareceram ao longo deste texto. A Independência da Bahia,

sua herança e como ela conformou um povo heroico: Mocidade vibrante e altaneira!/

Revivei, constelada de sóis!/ Toda glória de nossa Cachoeira/ De seus filhos amados

soldados e heróis!/ Daquele sangue bendito, que deram nossos avós/ Ao prélio, em

transe inaudito/ Ainda existe e ferve em nós!/ Em nós! A ideia de que o futuro está ligado

ao passado, e que o progresso vem do heroísmo: Façamos grande o nosso porvir/ E a

essa voz que se expande/ Devemos Seguir!/ Marchar!/ Marchar!/ E progredir!/ Lutar!

Lutar!/ Florir! Florir! E o lugar que se ocupa na história consequente da guerra passada:

Revivei, terra heróica e fremente!/ Que com sangue, denodo e vanglória/ Escrevestes teu

nome eloquente/ Nos anais de ouro supremo da história./ Exaltemos nossa terra, sempre

forte e varonil./ Legionária de uma guerra que engrandecera o Brasil. O hino se encerra

com a noção de amor pela cidade e o amor é caracterizado como abrasador e libertador.

39 Outra forma de se referir a Iabá (orixá feminino) Iansã. 40 Dalva Damiana de Freitas é a mais famosa sambadeira da cidade de Cachoeira. Trabalhou na fábrica de charutos Suerdick, onde começou o Grupo de Samba de Roda Suerdick e suas composições. Dona Dalva é também uma irmã da Boa Morte. Conhecida pelo sorriso no rosto e olhar doce, acolhe a todos que na sua Casa de Samba batem à porta. Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia desde 2012, tem há anos uma relação de parceria com a professora Francisca Marques.

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As datas comemorativas estão, portanto, entrelaçadas. Como pudemos ver pela

descrição da sessão solene em comemoração ao aniversário da cidade, o 13 de março

enaltece o 25 de junho. As comemorações da independência, por sua vez, começam

sempre no dia primeiro, como se vê no folder da prefeitura com a programação do 25

de junho de 2015, que se prolonga mês adentro.

9) Programação 25 de junho de 2015, fonte: página da Prefeitura de Cachoeira no Facebook

Temos a impressão, assim, que o mês de junho é composto de festas. O início de

todo evento da cidade é caracterizado pela alvorada de fogos às 6 horas da manhã. No

dia 1 de junho, acontece a levada dos Paus da Bandeira às duas extremidades da cidade

no período colonial: os bairros do Caquende e da Rua da Feira. Os Paus da Bandeira,

também conhecidos como paus cabeludos, são duas grandes hastes rodeadas de folhas

com pequenas bandeiras do Brasil em seu topo e fazem referência às lutas da

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independência. No discurso oficial, eles simbolizam a demarcação do território da

cidade colonial, pontuando seus extremos.

Em geral, tanto no Caquende, quanto na Rua da Feira, pessoas aguardam e

assistem de suas casas ou nas praças onde os Paus da Bandeira são erguidos. O cortejo

do dia 1 de junho de 2015, por exemplo, fez o percurso descrito acima acompanhado

pelos vereadores da cidade, e seus vereadores mirins, assim como pelo então prefeito,

Carlos Pereira. A Lyra Ceciliana foi encarregada de tocar ao longo da procissão e os hinos

de Cachoeira e do Brasil em cada ponto. O cortejo acabou no Candomblé do Monte, por

detrás da Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Monte.

Após ser cumprida a tarefa de colocar os mastros nos seus respectivos lugares, a

passeata segue em direção ao Monte, para a casa de Mãe Lira. Os músicos, tocando

um dos cânticos do candomblé de caboclo, param em frente à casa. Primeiro,

entram as autoridades – o prefeito, juiz, delegado, etc. – para se servirem da mesa

farta que, lá dentro, já os aguarda. Em seguida, vêm os demais. Enquanto isso,

comida e bebida são servidas a todos, até mesmo àqueles que não conseguiram

entrar. Depois de alguns instantes, ouve-se entoar o samba: ‘Oh! Meu Santo Antônio

de bela coroa. Pelo amor de Deus, Santo Antônio não me deixe à toa!’ (Sousa Júnior,

2005: 77, grifos adicionados)

O dia primeiro de junho também marca não apenas o começo dos festejos

cívicos, mas também o início das festas de uma das casas de santo famosas de Cachoeira,

o Candomblé do Monte. Fundado por Mãe Lira, seus festejos se iniciam com uma missa

às 18h na Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Monte. Esta casa de candomblé está,

assim, “intimamente integrada com as tradições da cidade. Durante todo o dia, são

preparados pratos típicos do Recôncavo, desde os variados bolos à tradicional frigideira

de bacalhau” (Sousa Júnior, 2005: 76). Ao fim da missa, as pessoas se encaminham ao o

terreiro, que fica logo atrás, descendo uma ladeira, para se juntar ao cortejo que chega

no fim da noite.

A “programação cívica” do mês de junho culmina no desfile do dia 25. São

entrelaçadas, assim, diversas celebrações: a programação cívica, o calendário litúrgico

do terreiro do Monte e a trezena de Santo Antônio, seguida pela festa do santo no dia

13 de junho, e, ainda, o São João, dia 24. A trezena de santo Antônio também começa

no primeiro dia do mês. Por conta disso, Dona Zilma me contou que: o São João começa,

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na verdade, na trezena de Santo Antônio. Assim como as festas cívicas, as festas

religiosas também estão entrelaçadas.

Ao longo de todo o mês as ruas já começam a ser ocupadas por madeiras em

formatos de fogueiras e a cidade vai paulatinamente se enchendo, seja de pessoas de

outras cidades que vêm curtir a festa, seja de cachoeiranos que moram fora, mas não

perdem um São João. Essa época do ano é marcada por diversos sabores,

principalmente o do amendoim cozido e do tradicional licor de Cachoeira, para aquecer

o tempo frio. Tanto a comida quanto a bebida são oferecidas pelas pessoas em suas

casas. Além do sabor, e do cheiro de madeira queimada e milho cozinho, essa época é

marcada por diferentes sons.

Acompanham os carros de som as músicas dos diversos shows que são realizados

na cidade entre os dias 22 e 26, variando a cada ano de acordo com o dia de São João.

Acompanham também os sopros das sinfônicas os atabaques das roças de axé. Pois no

dia 13, dia de Santo Antônio, temos festa de Ogum em alguns terreiros da cidade e no

dia 24, dia de São João, temos fogueira de Xangô em outros.

Esse mês de tantos santos é também o início dos festejos do caboclo da

independência. Na programação acima, o caboclo aparece no dia 24 – dia em que em

cortejo ele é levado para os mesmos extremos percorridos pelos Paus da Bandeira. No

dia 27, por sua vez, a cabocla aparece juntamente com o caboclo para que os dois sejam

conduzidos à cidade “co-irmã” (como escrito na programação cívica), São Félix, para o

desfile que acontece no dia 2 de Julho, quando os festejos do 25 se encerram. Os festejos

cívicos acabam, portanto, justamente no dia do caboclo, por acaso também o dia da

Independência da Bahia.

As pessoas falam muito pouco da Cabocla, referenciada apenas nesses

momentos da programação cívica. A sua aparição ao lado do caboclo no Cortejo do 2 de

Julho de Salvador foi controversa:

Em 1846, o presidente Francisco José de Souza Soares de Andréia, um português

naturalizado brasileiro, achava o caboclo ofensivo aos portugueses e insistiu que

patriotas adotassem um símbolo mais neutro, Catarina Álvares Paraguaçu, a índia

semilegendária que ajudou os primeiros portugueses na Bahia. Irritados, os patriotas

se recusaram a abandonar seu símbolo querido, mas, face à insistência de Andréia,

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aceitaram que uma cabocla acompanhasse o caboclo no Dois de Julho. Ela nunca

alcançou a popularidade do seu companheiro. (Kraay, 1999: 60)

Nas religiões afro-brasileiras, no entanto, a entidade caboclo também faz

referência a diversas caboclas. Embora os mais populares em Cachoeira sejam seu

Tupinambá, seu Boiadeiro, seu Juremeiro, seu Gentileiro e seu Eru, a cabocla Jurema

não fica atrás em devoção. Além disso, todas são importantes presenças que habitam

águas e matas, a quem se deve pedir licença e demonstrar respeito.

Curioso, por isso, notar uma ausência na programação do folder acima: o

encontro do caboclo e da cabocla ao fim do “imponente desfile cívico”. Ao fim da tarde

do dia 25 de junho, os dois se encontram na Ponte Dom Pedro II e são conduzidos até a

Casa de Câmara e Cadeia. Já que ela estava em São Félix e ele, na Rua da Feira. Antes de

chegar ao seu destino final, o cortejo pára na Praça da Liberdade (Praça Teixeira de

Freitas), popularmente conhecida como Praça 25, quando é proferido um discurso

honrando aqueles que lutaram pela independência em frente ao Monumento da

Liberdade. Na Casa de Câmara e Cadeia, o caboclo e a cabocla ficam expostos do lado

de fora onde aguardarão até o dia 27 para serem levados a São Félix.

O encontro da cabocla e do caboclo é um momento especial. Vilson Caetano

Sousa Junior (2005) fala como o caboclo Juremeira está diretamente ligado à trajetória

espiritual de Mãe Lira, fundadora do Candomblé do Monte, citado acima. “Algumas

pessoas cansaram de ver ele [Seu Juremeira] acompanhar o desfile cívico do dia 25 de

junho, dia em que o caboclo e a cabocla de São Félix saem às ruas” (Sousa Junior, 2005:

78). Acely Araújo me contou certa vez que um amigo seu de Salvador, que é do

candomblé, foi a trabalho à Cachoeira neste período. No dia 25, este rapaz foi tirado do

seu quarto de hotel pela noite. Ele havia se despedido de todos da sua equipe alegando

que queria apenas descansar e que não sairia. No entanto, foi tirado e só voltou quando

o dia amanheceu. Nunca mais ele colocou os pés em Cachoeira.

Na segunda sessão deste capítulo eu apresentei alguns dos autores que

trabalharam com a festa do 2 de julho em Salvador e os diferentes significados em torno

do caboclo. Se como nos falou Hendrik Kraay (1999) acima, inicialmente o caboclo não

significava o ideal que anos depois se consolidou no trabalho de Gilberto Freyre, do mito

da democracia racial, aos poucos o discurso baiano em torno desta figura foi se

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transformando e encarnando a ideia de “democracia das três raças”. No ano de 1987,

por exemplo, foi lançada uma revista em comemoração aos 150 anos da cidade de

Cachoeira. Nela, aparecia uma imagem do caboclo em procissão com a legenda: “Carro

do Caboclo: a fusão das raças nas lutas pela independência”.

10) Fonte: fotografia retirada pela autora da Revista de Comemoração dos 150 anos da cidade de Cachoeira

Se para o discurso oficial o caboclo da independência é a “fusão das raças nas

lutas pela Independência”, já vimos que para o povo-de-santo ele é o dono da terra. Ele

é uma força capaz de tirar alguém do quarto contra a própria vontade e dar caminho

para as pessoas fazerem o santo. O caboclo, assim, não é apenas uma figura cívica que

representa patriotismo. Ele é uma presença fundamental para o cotidiano e vida das

pessoas de santo. E mais, ele é o dono daquela terra.

Desta forma, enquanto uma noção de cultura é ensinada nas escolas a partir da

lógica do patrimônio histórico e cultural, outras noções habitam a cidade. Nos discursos

das sessões solenes, em algumas conversas de rua e nas entrevistas, as pessoas falam

como a própria ideia de cultura se torna institucionalizada, parte das categorias do

poder público. Mas, ainda assim, isso difere das presenças – não em um sentindo

binário, em que uma exclua a outra, mas sim em uma forma de coexistência. Coexistem,

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como a Ebome na sessão solene e como o cortejo cívico que termina no terreiro tocando

cânticos para caboclos e depois samba para Santo Antônio. Essa presença da cultura que

se celebra oficialmente nas escolas e nos desfiles cívicos, no entanto, não é a presença

que informa um saber sobre as forças que habitam certas ruas da cidade. Esse segundo

saber tem a ver com o que é vivido. O primeiro saber é estatal e apropriado pelas

pessoas enquanto tal, na forma de direitos. Um saber que acredita que o mundo pode

ser explicado a partir de narrativas históricas. O segundo, é feito de olhos atentos e

palavras medidas.

A cidade é marcada, portanto, por um calendário que envolve festas religiosas e

cívicas. Estes eventos são também demarcados nos espaços. As procissões e os desfiles

cívicos percorrem as ruas de Cachoeira, sempre limitadas ao perímetro colonial. Do

Caquende à Rua da Feira. As festas acontecem no porto, na beira do rio, centro da

cidade. O palco de cada uma delas varia ao longo do ano. Na festa do 13 de Março, os

shows normalmente acontecem na Praça do Faquir. O São João é no Jardim Grande.

Embora o Caquende seja o núcleo indígena, segundo Cacau, e a Rua da Feira faça parte

da Recuada, a história que se conta nos desfiles da Independência da Bahia é a história

oficial que, como abordada na segunda sessão, prevaleceu. Mas há outras narrativas

que resistem e permeiam. A história dos exércitos negros. A história do próprio caboclo.

E as histórias que se contam para relembrar as presenças na cidade.

O convite aqui agora se estende. Vamos caminhar pelas ruas por onde não

passam as bandas marciais. Pelas ruas repletas de segredos. Pelas ruas com as quais se

deve ter muito cuidado. Iremos para a Recuada.

5) CAMADAS NA RECUADA, AS HISTÓRIAS DAS ESQUINAS

Embora a história dos tempos de glória de Cachoeira seja ainda exaltada nas

sessões da Câmara e nas narrativas de algumas pessoas, os protagonistas dela foram

aos poucos deixando a cidade e o Recôncavo ao longo do século XX. Foi neste período

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que, assim, a região deixou de ocupar uma posição destacada nos índices de produção

econômica nacional e passou a compor os índices de pobreza do país41.

Voltemos à “resistência silenciosa do ebó” de Edmar Santos (2009), mencionada

na segunda sessão deste capítulo. Seu trabalho analisa os jornais do começo do século

XX que circulavam na cidade de Cachoeira e sua luta ferrenha contra todos os signos

relacionados à África, lidos à época como incivilidade. Neste momento de declínio da

economia baiana, como já exposto, a elite local buscava, através da exaltação da riqueza

histórica, reafirmar a importância do estado no âmbito nacional. Mas acontecia, ao

mesmo tempo, um êxodo no recôncavo.

Edmar Santos (2009), assim, analisa a forma como os discursos dos jornais desta

época, especificamente da folha A Ordem, contribuíram para a estigmatização e

repressão dos candomblés e tudo ligado à cultura afro-baiana. Em seu trabalho, o autor

fala da Recuada e se detém na rua Levada do Chafariz, conhecida como rua Santo

Antônio.

Uma curiosidade advém de um exemplo dessa ocupação territorial afro-baiana.

Refiro-me à rua da Levada do Chafariz, um dos espaços reconhecidos de moradia dos

últimos africanos da cidade e jamais denunciado no periódico A Ordem por

realizações de sambas, batuques ou candomblés. As terras da rua pertenciam à

Santa Casa de Misericórdia e, através de arrendamentos, temos pistas de que lá

foram reinventados laços de solidariedade entre os africanos e seus descendentes

(Santos, 2009: 160, grifos no original).

A Recuada é um quilombo urbano, disse-me Badinho – ator e dramaturgo

cachoeirano. Por detrás da rua Santo Antônio tem um morro e no alto deste morro tem

41 De acordo com os dados do IBGE, em 2016 o salário médio mensal em Cachoeira era de 2 salários mínimos e 48,6% da população possuíam rendimento nominal mensal per capita de até ½ salário mínimo (este e outros dados estão disponíveis no site https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/cachoeira/panorama acesso em 17/08/2018). O século XX também foi marcado pelas cheias devastadoras do Rio Paraguaçu até a construção da barragem da Pedra do Cavalo na década de 1980: “A inundação de 1914 começou no dia 23 de janeiro. Era Intendente Municipal o Dr. Ramiro Vilasboas e Governador do Estado, o Dr. JJ Seabra, que não poupou os esforços necessários para enviar ajuda a cidade, cujo povo, apavorado buscava os pontos mais elevados, como Largo do Monte, o Alto do Caquende, Alto da Mangabeira, entre outros. Morreram afogadas, uma criança e dois homens. As águas só retornaram ao leito do rio em 7 de fevereiro. Os piores anos de inundações foram 1910,1911,1912, 1914 e 1915. A cidade que já vinha empobrecendo perdeu sua vitalidade comercial e, anos depois, uma inundação ocorreria em 1964.” Página do Facebook do Informativo Cultural Olha a Pititinga (https://www.facebook.com/apititinga/), matéria do dia 20/03/2015, grifos adicionados.

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uma casa enorme que pertence às irmãs Celina e Conceição. É ali que Badinho conta

que começa a Recuada, um quilombo de sete malês livres, que eram negos de ganho.

Quando cheguei em Cachoeira, encontrei uma casa para alugar na rua atrás do

Bradesco. A casa azul, número 4, fica justamente na rua Santo Antônio, oficialmente rua

Levada do Chafariz, vizinha de porta da casa da capela devota ao nome que batiza

popularmente a rua. Foi nesta rua que comecei a entender o trecho da música cantada

por Maria Bethânia: trezena de junho é tempo sagrado na minha Bahia. A trezena de

Santo Antônio acontece de um 1 a 13 de junho. As pessoas se reúnem na igreja para

rezar ao santo, comer comidas típicas desta época do ano, arrecadar alimentos para

doação e sambar, dentro da capela. Em alguns dos muitos terreiros da cidade também

é realizada a trezena, com as mesmas rezas, comidas e sambas dentro do salão. A

trezena marca o começo das festas de São João. A igrejinha de Santo Antônio também

é azul42.

Dona Zilma, moradora da rua e uma das organizadoras dos treze dias de reza,

nasceu na Ilha de Itaparica e foi para Cachoeira morar com o marido, que é cachoeirano.

Contou que sua mãe é devota de Santo Antônio e que ela mesma possui muita fé neste

santo. Com relação à organização da trezena, me falou que a cada ano a vontade é maior

e, mais, afirmou que o São João de Cachoeira começa na rua Santo Antônio.

Quase dois anos depois que cheguei e me instalei, descobri através de Rose, filha

da terra e uma grande amiga, que a minha casa foi construída por um senhor filho de

Ogum. Ele construiu a casa em oito dias, dizem. Uma vez ao me encontrar na porta de

casa, Badinho anunciou: Você está no lugar certo sem saber! Foi aí o começo de tudo, o

começo da rua da Recuada dos malês.

A Recuada é a zona não-central do perímetro colonial de Cachoeira. Existem

muitos mundos nesta Recuada. Ela abarca alguns dos bairros que hoje são considerados

centrais, como a Pitanga, a Levada do Chafariz, o Rosarinho, mas também outros já

periféricos como a ladeira Manuel Vitório, a Caixa D’água e o Alto do Tamarindeiro. Além

da Recuada, temos outros bairros que também foram moradas de negros, considerados

zonas rurais no começo do século XX, como a Rua da Feira e a Ladeira da Cadeia. Nestes

42 Santo Antônio, na Bahia, é Ogum, cuja cor é azul.

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dois bairros que hoje fazem parte da cidade, juntamente ao Caquende, Tororó e Terra

Vermelha, começaram os candomblés de toque da cidade de Cachoeira. Só pelas

divisões da Recuada é possível perceber que Cachoeira é dividida em muito mais partes

que os três distritos do IBGE. São muitas as zonas rurais e bairros que a compõem.

Os candomblés de toque foram instalados historicamente nas localidades

expostas acima porque os batuques eram proibidos no centro da cidade. As grandes

festas eram, portanto, realizadas na zona rural onde se era possível o uso dos atabaques,

bem como ter um salão espaçoso para a dança dos orixás. Esta é uma estrutura de festa

mais próxima a que conhecemos nos terreiros atualmente, como me disse Cacau

Nascimento.

Recuada é um espaço recuado da área formal de expansão urbana pela qual

passou a cidade de Cachoeira no final do século XIX e todo decorrer do século

XX. Essa localidade é muito importante porque ali estava concentrada toda

população escrava e toda população liberta de africanos daqui da cidade de

Cachoeira. É muito importante porque nessa localidade, por conta dessa rede de

solidariedade que se estabeleceu nessa localidade, surgiram igrejas. Como a Igreja

Nossa Senhora do Rosário do Santíssimo Sacramento do Sagrado Coração de Maria

do Monte da Rua Formosa, também conhecida como Irmandade dos Nagôs, e essa

igreja foi construída em 1842. Dez anos mais tarde eles construíram um cemitério,

que é um cemitério de africanos ou cemitério dos acatólicos onde estão sepultados

todos os pais de santo e mães de santo da cidade de Cachoeira e a maioria dos

africanos como se pode ver nas lápides que ali se encontram. (Cacau Nascimento no

vídeo sobre Gaiaku Luiza43)

Núcleo urbano onde residia a população africana de Cachoeira, assim como os

seus descendentes, a Recuada abarcava “uma área conhecida como Galinheiro, uma

suposta referência a galinhas ou africanos gruncis, e uma outra conhecida como Corta

Jaca, nas proximidades do atual mercado” (Parés, 2013: 180). Cacau Nascimento (2010:

18) também se refere a essa mesma região, só que de forma mais abrangente: “alguns

nomes antigos de ruas ainda são igualmente preservados, tais como Corta Jaca,

Galinheiro, Curral Velho, Pitanga, embora tenham adquirido denominações oficiais”:

43 “Gaiaku Luiza: FORÇA E MAGIA DOS VODUNS”, 52min; direção, roteiro e edição: Soraya Públio de Castro Mesquita. Realização: IRDEB - TVE Televisão Educativa da Bahia (2004/05). O vídeo pode ser acessado através do link: https://www.youtube.com/watch?v=m1hw72ltbgE (último acesso 21/04/2017).

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Nesse processo, o núcleo residencial da Recuada configurou-se como um nó onde se

estabeleceu comunicação e informação entre os espaços urbano e rural, além de

núcleo formador de instituições religiosas de cunho africano de Cachoeira e de

outras localidades de sua área de influência. Apontei minuciosamente que a Recuada

caracterizou-se como um espaço de convergência de africanos de diversas

etnicidades provenientes de diversas localidades do Recôncavo açucareiro e

fumageiro e que esses africanos mantinham relações sociais, religiosas e afetivas

antigas. (Nascimento, 2010: 18)

Na Recuada, portanto, “moravam africanos, a maioria ganhadores e ganhadoras

libertos, que conquistaram condição econômica e financeira estáveis e exerceram papel

de liderança política importante” (Nascimento, 2010: 184). Estes africanos livres e

urbanos estariam ainda “ligados a escravos de engenhos localizados na fronteira/limite

do Iguape (zona de canaviais) com a vila/cidade de Cachoeira” (Nascimento, 2010: 184),

e foram também “responsáveis pela construção de igrejas, cemitério e estiveram

envolvidos na formalização de cultos afro-religiosos e irmandades, como a Irmandade

da Boa Morte” (Nascimento, 2010: 184).

Cacau Nascimento (2010: 16) se refere ao “núcleo residencial da Recuada como

um espaço de formação de identidades africanas no Recôncavo baiano”. Em sua casa,

que fica em frente ao prédio da Irmandade da Boa Morte, em uma das ruas mais centrais

da cidade, rua Rui Barbosa, onde também se encontram o prédio da Minerva

Cachoeirana e a entrada para o Fórum da cidade, ele me explicou a localidade do que

chama de Recuada:

Fora disso, quer dizer, no fundo do mercado municipal, onde tem aquela igrejinha,

onde mora a Dona Dalva do samba, aquela zona ali é chamada zona recuada, quer

dizer, recuada do processo de expansão urbana formal pela qual passou a cidade de

Cachoeira. Ali era uma zona, esse daí foi o objeto da minha dissertação de mestrado,

era uma zona habitada por africanos, só africanos. Africanos e filhos de africanos.

Não tinha um cara, um branco da terra, um cara da minha cor que morasse ali. Não

há registro de pessoas. Então, aquelas ruas todas eram habitadas, onde morava

Dona Dalva eu falei pra ela assim, Dona Dalva morava aqui um africano, esqueço o

nome dele agora, que ela ficou assim impressionada quando ela soube que morava

um africano que era um cara de candomblé, ele foi fundador de um terreiro de

candomblé que ainda existe mas tá desativado. Existe tudo mas não está

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funcionando, né, parou. Esse cara foi autor de um terreiro de candomblé, criador.

(Cacau Nascimento, entrevista em agosto de 2015)

Aqui é importante perceber o mapa mental da cidade de Cacau e como as

pessoas vão sendo a ele relacionadas. Pessoas vivas e pessoas mortas. Ele faz referência

à casa de Dona Dalva para mostrar que no lugar de onde está falando morou um africano

importante que fundou um dos candomblés da cidade, hoje desativado. É também se

referindo às pessoas importantes na cidade que Cacau fala que a Recuada era uma zona

de muita força, com casas carregadas de axé, onde se formaram muitos candomblés,

onde moravam africanas e africanos poderosos. Assim como, para dizer que Cachoeira

era um lugar de pessoas extremamente mágicas.

Então seu Bobosa fala assim, olha isso aqui, Cachoeira é uma cidade problemática

no sentido de que aqui na recuada habitavam africanos e tinha o lugar onde ele

morava, né, ali onde tem o abastecimento de água, a estação de tratamento de água

de Cachoeira que é chamado o alto do, da... ladeira Manuel Vitório. Então essa

ladeira Manuel Vitório era uma zona que era chamada de Galinheiro. [...] Então, eu

tô falando que os grunsis eram os malês de Cachoeira. Então esses malês eles, aí, seu

Bobosa fala que só entrava naquela zona, no Galinheiro, quem tinha negócio, quer

dizer, você não ia para lá à toa, você ia para lá se você fosse um deles. Aí eu perguntei

pra seu Bobosa ‘Por que, seu Bobosa?’ Ele falou assim, porque eles ficavam armados

e fardados, fardados e armados de porretes, armas brancas. Eles ficavam armados

de armas brancas para impedir que as pessoas entrassem naquele lugar, não

permitiam que entrasse naquele lugar. E que eles eram tão poderosos, isso seu

Bobosa falava, que eles plantavam maxixe, jiló, quiabo e tá, tá, de manhã cedinho e

quando era de noite eles já colhiam os frutos daquela planta que ele plantou de

manhã cedo. (Cacau Nascimento, entrevista em agosto de 2015)

Na sessão sobre a cidade-porto, eu trouxe a fala de seu Adilson sobre Zé de

Brechó. Não foi apenas ele quem me falou desse famoso feiticeiro africano. Cacau

Nascimento e Badinho contam histórias sobre ele, assim como o antropólogo Nicolau

Parés (2013). Zé de Brechó habitava essa região conhecida como Galinheiro.

Badinho conta, por exemplo, que os negros até o século XIX não podiam andar

na Rua da Matriz (a principal daquele período – atual rua Ana Nery), sendo obrigados a

passar por fora, dando a volta pela Recuada. Em uma de suas peças no Cine Theatro

Cachoeirano, ele contou que foi Zé de Brechó quem acabou com isso. Um dia ele passou

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por essa rua e um menino branco ficou gozando com a sua cara, dando risada dos beiços

dele. Zé apenas disse, pois fique aí rindo. Num deu outra, às 22 horas naquele dia a

família do rapaz foi bater na porta de Zé para pedir para que ele fizesse o menino parar

de rir. Foi graças a Zé de Brechó, assim, conta Badinho, que os negros passaram a poder

caminhar na principal rua da cidade.

Mas não era apenas o Galinheiro que era uma zona perigosa. A Recuada inteira

era composta por histórias. André, um amigo de Cacau Nascimento, ogan e dono de um

bar na região do Curiaxito – que faz fronteira com o Cucuí, onde tem uma igreja de São

Cosme e São Damião no alto de uma ladeira, e com os bairros da Rua da Feira e do

Viradouro – disse a Cacau que naquela região as pessoas já nasciam feitas. André, que

tem mais ou menos oitenta anos de idade, disse a Cacau que as pessoas na idade deles

que nasceram na região da Recuada já nasceram feitas. Nas casas dessa região,

habitadas por tantos africanos, muitas pessoas foram iniciadas – feitas nos quartos. Os

quartos das casas eram também quartos de santo.

Quantas pessoas foram iniciadas, foram feitas dentro de casa porque não era um

hábito você fazer o santo de uma pessoa dentro de um terreiro de candomblé, até

porque os terreiros de candomblé eles não eram com essa configuração que a

gente vê hoje. Era completamente diferente. Era uma residência, como essa daqui,

era uma residência e o dono da residência era uma pessoa, um babalorixá, uma

ialorixá e ela iniciava pessoas dentro da sua casa e no dia da mostra, de dizer que

aquela pessoa tava feita, numa sala como essa se botava um banco, botava,

arrumava, botava um não sei o quê, e as pessoas [Cacau começou a bater palma

nesse momento] faziam um candomblé de palma, palmilhado como eles falam, não

era aquela coisa. Esses candomblés que a gente vê nessa estrutura atual eram uma

coisa rural, uma coisa das periferias, dos arrabaldes, né, mas dentro da cidade de

Cachoeira que tinha várias casas que se batia candomblé, você não batia com

atabaque porque a polícia no outro dia estava lá pra impedir ou na hora que tivesse

tocando, então era aquela coisa discreta, batendo palma [bateu palma novamente].

Era muito comum aqui em Cachoeira esse tipo de candomblé. Aí hoje mora uma

pessoa nessa mesma casa que um dos quartos é aonde a mulher pariu o filho dela.

Porque, por exemplo, a minha mãe, ela teve nove filhos, nenhum foi nascido em

hospital. Todos nasceram de parteira. Então eu devo, e eu nasci na Rua dos Artistas

que é no centro dessa coisa, então ele tava falando isso comigo, é bem provável que

você tenha nascido dentro de um quarto, onde sua mãe pariu você, foi o quarto onde

há cem anos atrás, naquela época era o quarto de um santo ali que se fazia orixá, ali

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se matava, se sacrificava animais de quatro pés, animais de pena, aves, pra poder

fazer as obrigações. Então você nasce dentro de um roncó, você nasce dentro de um

quarto de santo, então você nasce com a energia que continua emanando daquilo

ali, que continua, então... são esses perigos. (Cacau Nascimento, entrevista em

agosto de 2015, grifos adicionados)

Por conta dessas histórias, e da força do lugar, a Recuada torna-se um lugar

espiritualmente poluído.

Então até hoje os terreiros de candomblé que tem ali na imediação, quando existe

um processo de feitura de santo de uma pessoa, você procura os lugares menos

poluídos desse lugar poluído para poder transitar porque não pode. Tem o cemitério

dos africanos, tem o outro cemitério ao lado, tem um cemitério lá em baixo, que é

onde se sepulta as pessoas ainda hoje, tem aquela rua que é uma rua perigosa, tem

aquela outra que não tem coisa, tem ali uma encruzilhada. Então você sai ali pela

escadinha que você vai sair ali naquela rua que tem o Banco do Brasil, na Rua da

Feira, na Rua do Fogo... então se evita transitar por aquela rua, pela aquela artéria,

por aquele conjunto ali, porque é um lugar que não se pode, esse é um dos perigos

da cidade. (Cacau Nascimento, entrevista em agosto de 2015)

Como Cacau, Badinho também fala que há terreiros em várias ruas da cidade,

casas comuns que são, na verdade, casas de axé. A corrente começa aqui e termina em

Feira de Santana, neste caminho há três pontos onde se deve fazer o que tem que se

fazer. Cachoeira, e principalmente a Recuada, é, portanto, composta de pontos com os

quais é preciso ter cuidado, principalmente quando se está de corpo aberto.

Então ele, seu Bobosa fala que ali era um lugar extremamente perigoso nesse

sentido. Até hoje, aí isso me interessa, até hoje existe uma certa, uma certa...

escrúpulo, um certo temor, um certo medo da comunidade cachoeirana e isso não

se restringe somente às pessoas ligadas ao candomblé, mas que faz parte do

imaginário religioso cachoeirano, né, esse medo, porque ali é um lugar perigoso,

né, ali é um lugar carregado de axé, ali as pessoas, ali moravam muitos africanos

e muitos africanos ligados ao culto dos orixás. Muitos malês, muitos malês que eram

figuras extremamente respeitadas, respeitáveis e perigosas. Aí eu tenho esses

documentos aqui de policiais, cópias de documentos policiais, que o chefe do

quarteirão daquela zona, que Cachoeira era dividida em três quarteirões, do

Caquende, do centro da cidade e dessa zona da recuada, que é uma zona muito

grande, que o cara que era designado pela prefeitura para ser o chefe, o responsável,

o fiscal desse quarteirão era geralmente uma pessoa de candomblé, era sempre uma

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pessoa negra, uma pessoa de relações sociais com aquele lugar, porque era difícil.

Era um lugar considerado poluído, violento, é... sabe, um lugar, um lugar que não

se ia. Era um lugar que não se ia. Ninguém se atrevia a estar ali porque era um

lugar muito perigoso. [mas isso na Recuada inteira ou só na Manuel Vitorino?] Na

recuada inteira. Na recuada inteira. Era um lugar que para o imaginário da

sociedade local era um lugar de promiscuidade onde estavam as mulheres

promiscuas, sexualmente promiscuas, os homens flagrantemente imorais, os

capoeiristas, os ladrões, os salteadores, sabe. Então essa fama ainda existe ali até

hoje, mas, embora, claro, ali resida pessoas de, de... respeitáveis, trabalhadores, pais

de família. Mas a pecha do lugar ainda é a mesma pecha de cem anos atrás, é um

lugar intransitável, ninguém quer ir, se evita. (Cacau Nascimento, entrevista em

agosto de 2015, grifos adicionados)

Os perigos espirituais se confundem com outros perigos no imaginário da

sociedade local. A recuada era então vista como um lugar de promiscuidade. O próprio

Cacau transita entre esses dois discursos, diferenciando as pessoas que ele chama de

promíscuas dos apontados como trabalhadores e pais de família. A Recuada é ainda

ambiguamente perigosa, assim como o são os bairros que antes a compunham e que

hoje são a zonas periféricas de Cachoeira.

Durante a lavagem d’ Ajuda, que ainda se realiza na cidade de Cachoeira, uma música

entoada durante o cortejo faz referência a esse controverso espaço negro. A letra

diz o seguinte: Mataram meu boi / lá na Recuada / mataram meu boi / não me deram

nada. A bem humorada letra revela uma fina ironia diante dos setores que

criminalizavam esses espaços. (Santos, 2009: 60)

A ideia de perigo está relacionada à histórica criminalização de um espaço

habitado por pessoas negras – que, como disse Cacau, era conhecido por morarem as

mulheres promíscuas, os homens imorais, capoeiristas e ladrões dentro do imaginário

da sociedade local. Mas não apenas. A Recuada é um lugar que se evita e intransitável

por diversos motivos. Por ser um lugar violento. Mas também por ser um lugar de feitiço.

O medo da magia da Recuada, assim, existia entre algumas pessoas a partir da mesma

lógica racista do temor e criminalização dos espaços negros; mas também entre outras

pessoas que possuíam um conhecimento sobre o lugar. Diziam que ali moravam

poderosos feiticeiros capazes de plantar de manhã e colher à noite. O perigo espiritual

da Recuada, portanto, tem a ver com as histórias vividas no lugar e com as coisas que ali

foram feitas, assentadas. E assentar um lugar é estabelecer um dono para ele.

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Aí seu Bobosa me falava assim, olha, a casa de fulano de tal assim, assim, tem lá um

pé de cajá, que esse pé de cajá era assentamento de um, de um orixá pertencente a

um cara chamado não sei quem que morava naquela casa em 1900... sabe, que

morava naquela casa em 1700, 1895. Aquela casa ali, é não sei o quê, não sei que, e

o cara que comprou aquela casa caiu na asneira de decepar, o filho dele morreu e ele

foi pro hospital e até hoje tá com aquela forma. O cara tá detonado porque o cara

de repente tava gozando de saúde, jogando bola, tomando cerveja e de repente ele

vai lá e derruba uma árvore para poder fazer alguma coisa no quintal, fazer uma

piscina e aí a filha dele sofre um acidente e morre e ele tem um problema orgânico e

ele tá inutilizado pro resto da vida, tá lá de cama. Que naquela casa ali, não sei o que.

Então é uma cidade em que as casas, determinadas casas, possuem, possuem

coisas feitas, coisas plantadas, coisas e aquilo, e na África, dentro do candomblé,

aquilo que se planta, não se arranca, não se tira. Aquilo... aquilo que foi assentado,

você não pode desfazer, aquilo fica pro resto da vida... Então são essas nuanças do

perigo de Cachoeira, né. (Cacau Nascimento, entrevista em agosto de 2015)

Como dito, portanto, o perigo da Recuada não está apenas na chave de um medo

discriminatório do que é entendido como negro, desconhecido e exótico, mas no fato

de ser um lugar poluído, com cemitérios e encruzilhadas que guardam histórias. Esses

locais estão em uma cidade onde se é possível nascer feito dentro de um quarto que já

foi roncó. Nasce feito por conta da energia que continua emanando. Por conta do que já

foi feito. Afinal, aquilo que se planta, não se arranca, não se tira. Aquilo que foi

assentado, você não pode desfazer sem as medidas necessárias que apenas um

conhecimento acerca da espiritualidade pode lhe proporcionar.

Nesta Recuada do período colonial resistia um candomblé palmilhado, como nos

disse Cacau. Aos poucos, portanto, este lugar foi sendo constituído como espaço de

resistência do candomblé. Um quilombo, como nos fala Badinho. Para transitar, pois,

neste espaço é preciso conhecer quem nele habita. Mas remanescer não se restringiu à

Reucada.

Além do quilombo Obá Tedô ou Batédo fala-se da presença de outros quilombos na

zona rural de Cachoeira. Por exemplo, na Terra Vermelha, ao sul do riacho Caquende,

próximo ao Engenho Tororó, parece ter existido um quilombo chamado Malaquia ou

Malaquias. Fala-se também que nesses quilombos se teriam organizado algumas

revoltas escravas que aconteceram em Cachoeira nos anos 1826, 1827 e 1828,

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porém a documentação histórica permanece silenciosa a esse respeito. (Parés, 2013:

181)

Quando passamos a contar a história da cidade através desses lugares, o que

passa a ser evocado são outras noções de resistência e liberdade, diferentes daquelas

dos discursos oficiais. Descentra-se do homem como o libertador e construtor de coisas

para passar a conversar com um mundo em que há assentos que não podem ser

desfeitos; e para falar de terras que não podem simplesmente ser invadidas e tomadas

a partir de uma lógica de extermínio. Essa outra lógica, que dialoga com quem povoa a

cidade, é uma que resistiu. A partir dessa forma de pensar o mundo através de uma

espiritualidade corpórea atenta aos perigos e assentamentos, só é possível habitar

novas terras – mesmo a elas sendo atirados – pedindo licença ao dono da terra.44 Faço

aqui referência às relações entre os diversos povos africanos que foram levados para

Cachoeira durante o período colonial e lá se relacionaram com quem ali já estava, os

indígenas, que depois foram idealizados na figura da entidade caboclo. Discutirei isso no

segundo capítulo da tese.

6) A HISTÓRIA PORTUGUESA QUE FICOU AQUI SÃO ESSES PRÉDIOS AÍ, QUE CAEM

Das margens do Paraguaçu, em plena América do Sul, só remanescente ficará.

Nengo Vieira

Ao longo das primeiras sessões deste texto tentei mostrar como o discurso oficial

da cidade de Cachoeira constrói uma história oficial marcada por prédios e pessoas

ilustres. A partir da Recuada, busquei inverter essa lógica através de outras formas de

viver e conhecer que resistiram na história da cidade. A já referia revista de

comemoração dos 150 anos de Cachoeira é um exemplo da importância dos prédios

para o discurso oficial:

O ouro e a cana-de-açúcar exerceram papel definitivo na criação do belo e do

mistério de suas logradouras: ruas, praças, casas e igrejas. Recrutados pelos

senhores de engenho como mão-de-obra eficaz e de baixo custo para gerir suas

lavouras, o elemento negro é parte inerente deste processo, a exemplo da

44 Há um verso da música “Tudo de novo” de Caetano Veloso que diz: Minha mãe me deu ao mundo/ De maneira singular/ Me dizendo a sentença/ Pra eu sempre pedir licença/ Mas nunca deixar de entrar.

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construção dos seus mais valiosos monumentos arquitetônicos, como Igrejas,

conventos e solares, datados do século XVIII. Dentre as obras que expressam a

grandeza deste período destacam-se a Casa de Câmara e Cadeia, decorações

internas da Igreja da Ordem 3ª do Carmo, cujo esplendor barro exprime a

importância da talha e da azulejaria cachoeiranas. (1987: 5-6, grifos no original)

O “elemento negro” aparece como construtor desses monumentos feitos de

azulejos portugueses. Na Recuada, vimos que as ruas, praças, casas e igrejas têm muito

mais do que apenas a história heroica para nos contar. Vimos com os autores e as

pessoas da cidade que este foi um núcleo importante de resistência na cidade de

Cachoeira. Essa resistência se deu principalmente através da formação de candomblés

que, em sua maioria, se concretizaram no período pós-abolição:

Embora seja difícil datar com precisão a fundação dos outros candomblés, é provável

que vários deles funcionassem só a partir da abolição da escravidão, em 1888. Em

São Félix, a tradição oral lembra do terreiro de Neves Moreira de Ogum e do terreiro

de Cajazeiras – fundado pelo crioulo Luciano Barreto de Ogum Bomi, conhecido

como tio Salu. Nos subúrbios de Cachoeira, no caminho da Terra Vermelha, José de

Vapor, neto de escravos nagôs e parente de Anacleto do Capivari, liderou a casa

Aganjú de Deus, ou talvez Aganjú de Dê. No centro urbano de Cachoeira, no Beco do

Sabão, já na virada do século XX, funcionou o candomblé nagô de Maria Agueda de

Oliveira. Sinhá Agueda era de Iemanjá e nasceu em alto-mar, quando a sua mãe, a

africana tia Sofia de Olissá, vinha da África. Maria Felicidade da Conceição, de origem

nagô e conhecida como tia Malaqué de Xangô, abriu uma casa de africanos por trás

do atual Chafariz, na casa nº 6, e foi sucedida pela sua filha carnal, Maria Galdeça da

Conceição, falecida em 1910 (avó paterna de gaiaku Luiza e seu Geninho). Na Lagoa

Encantada, no caminho de Belém, Porfira, conhecida como Aleijadinha, tinha outro

candomblé famoso pelos seus presentes à mãe d’água. Segundo a lenda, esses

presentes oferecidos na Lagoa Encantada apareciam depois no dique do Tororó, em

Salvador. Também dessa época lembram-se os nomes de Canuto, que faleceu com

avançada idade em 1914; pai João, um temido “feiticeiro” jeje; tio Luiz e tio Fado,

entre outros (Parés, 2013: 197).

Importa aqui não se deter na formalização da religião do Candomblé, como o

estudo de Luis Nicolau Parés (2013) se propõe, mas na noção de mundo que ampara

essa formação e a noção de resistência que ela implica. Se na sessão anterior eu falei

desse conhecimento que informa um lugar perigoso – como ainda vemos na citação de

Parés (2013) acerca do temido “feiticeiro” –, agora eu quero me deter no contraste.

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Vimos o que os prédios nos falam e vimos também o que as pessoas nos falam. Mas, o

que fica afinal? Passamos agora a falar com Ana Clara Amorim sobre as pessoas que

remanesceram. Ela nos apresenta uma outra forma para se pensar o quilombo: como o

lugar que se cria para sair do inferno.

Que existe uma história ali que o transformou num lugar diferenciado

justamente para não ser o fim do mundo. Você formou o quilombo

justamente para que ali não seja o seu inferno. Você saiu do inferno e montou

um quilombo para que justamente aquilo ali não seja o seu inferno. (Ana

Clara Amorim, entrevista em abril de 2017)

O discurso oficial acompanha um certo mapa da cidade, centrado no perímetro

colonial e nos grandes prédios da colônia: igrejas, sobrados, Casa de Câmara e Cadeia.

Mas há diferentes formas de mapear a cidade, e, por consequência, de habitá-la. Após

mais de dois anos de campo eu entrevistei uma grande amiga já referenciada aqui, Ana

Clara Amorim, conhecida como Duca. Andar pelas ruas da cidade com ela é parar em

praticamente toda esquina com pessoas a cumprimentando. Duca é professora de

história no distrito de Santiago do Iguape e vice-diretora do Colégio Estadual Eraldo

Tinoco, mas também já deu aula no centro da cidade, no Colégio Estadual da Cachoeira.

Dona de uma oratória impressionante, Duca sempre me falava sobre os prédios da

cidade e como eles não diziam nada a ela. Tudo que é do Brasil foi a gente que construiu.

A música, a comida, a dança. E o que foi mesmo que ficou dos portugueses na nossa

cultura? Dos portugueses tudo o que ficou pra mim são esses prédios aí, que não me

falam nada. Só aquele prédio mudo ali.

A entrevista começou com Duca falando sobre a experiência de dar aula em uma

comunidade quilombola. Era este o ponto de partida que ela queria dar a nossa

conversa.

A vivência prática de estar na comunidade de Santiago do Iguape trouxe isso

para mim, porque eu diariamente convivo com pessoas que são

remanescentes realmente de regiões quilombolas e que estão ainda

buscando sair daquele ambiente de isolamento geográfico. Então, assim,

sempre o quilombo precisava ter um isolamento geográfico, à época, hoje já

não precisa mais. Hoje é o inverso. Hoje o quilombo ele precisa sair, mas não

é sair no sentido geográfico também não, não é que as pessoas precisam sair

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de lá pra cá, mas é que as coisas precisam ir para o quilombo para que o

quilombo saia do processo de isolamento geográfico do mundo. Então, o

quilombo precisa sair, precisa ser visto, precisa ser mostrado, as pessoas

precisam disso. E, essa veia, assim, determinante para isso é justamente a

necessidade de sobrevivência. (Ana Clara Amorim, entrevista em abril de

2017, grifos adicionados)

O que fica, afinal, é essa ideia de sobrevivência. Na sessão da Recuada eu falei de

resistência. Sobreviver, para Duca, não significa manter prédios portugueses. Sobreviver

significa remanescer – como na música de Nengo Vieira na epígrafe dessa sessão. A

sobrevivência aqui, portanto, é contrastada com o êxodo referido acima ao longo do

início do século XX: os remanescentes dos europeus não estão mais aqui.

A gente está num país que, por exemplo, tem, eu falo muito dos prédios, né, do

patrimônio tombado. Esse patrimônio material que foi tombado, onde a gente vê

prédios que caem, que viraram ruínas, que é o que a gente tem da herança

portuguesa mesmo, europeia no Brasil, são prédios que, quando não são

conservados por uma instituição ou por um herdeiro de um patrimônio, eles viram

ruínas, eles não sobrevivem sozinhos, entendeu? Então a gente tem museus aí

estáticos que não dizem nada, se não tiver uma pessoa que chegar lá mostrando o

que significou aquele imóvel, você não vai saber. São coisas que estão ali

simbolicamente e totalmente sem passar nem um tipo de expressão. No entanto, aí

eu venho, as tradições culturais, elas estão vivas. Elas estão vivas. O cabelo black tá

muito vivo. Então, por exemplo, a gente precisa ter um cabelo black para poder a

gente dizer: eu estou num país que negou a cultura africana, mas eu entendo que a

cultura africana é o que tem hoje no Brasil. O que que a gente tem hoje para mostrar

internacionalmente? Prédio? Não é. É a cultura que foi essa que sobreviveu aos

processos realmente de necessidade de sobrevivência. Então, essa minha

experiência lá, ela me mostra isso. Ela me mostra que o dendê até hoje ele tá lá, vivo,

fazendo parte da vida das pessoas. Fazendo parte da vida do Brasil. Onde é que você

fala em Bahia e não fala em acarajé? E acarajé é dendê, né? Então você faz a

associação automática. A capoeira viva dentro do Brasil. Então, assim, a gente

precisa lembrar que são esses elementos que realmente fazem o nosso país. (Ana

Clara Amorim, entrevista em abril de 2017, grifos adicionados)

O argumento de Duca acerca do patrimônio cultural se aproxima das

apropriações da prefeitura e daqueles acionados nas lutas a favor do respeito e da

preservação das religiões afro-brasileiras. Mas me parece, no entanto, mais radical. Ela

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fala que é uma hipocrisia continuar cultuando as tradições europeias: quem é que

mantém as tradições europeias aqui? Nós que fomos renegados. A defesa do que

sobreviveu é sempre evocada se opondo aos prédios que caem, porque há tradições

que permaneceram de um povo que foi desrespeitado por aqueles a quem os prédios

se referenciam. Porque eu que sou de um núcleo que foi segregado, para quem foi

negada uma cultura, vou continuar a tradição de um núcleo que se acha superior, que

não me respeitou?

Deixa esses prédios cair, gente. Deixa. Essa porcelana portuguesa tá aí por que

mesmo? Que você não pode arrancar uma cerâmica da parede que você vai preso,

pra quê? Pra quê que essa cerâmica portuguesa tá aí? Pra nada, derruba e faz outra

coisa. E os prédios têm que cair pra fazer outro. Cadê os portugueses que não vieram

consertar os prédios? Cadê? Cadê os herdeiros? Os herdeiros deixam o prédio aí, cair.

Já, por exemplo, os terreiros estão sendo revitalizados, sabe? Todo um trabalho,

porque é aquilo que eu tenho. Eu tenho isso. Então eu preciso realmente valorizar

isso, preciso trabalhar em cima disso aqui. (Ana Clara Amorim, entrevista em abril de

2017)

Eu perguntei então à Duca acerca das histórias que eu sempre ouvia da cidade

ao que ela respondeu: as histórias de Cachoeira, essas das entrelinhas, dos populares de

Cachoeira, elas não eram contadas na cidade, dentro da escola, elas eram contadas nas

esquinas. Contou-me, assim, da igreja de Nossa Senhora do Amparo que era uma igreja

que pertencia a uma irmandade de homens negros. Essa igreja foi queimada em

represália à luta desempenhada por essa agremiação pela libertação dos escravos.

Era uma irmandade semelhante à irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Eu

acho que você sabe que a Irmandade da Boa Morte elas fazem uma esmola para

fazer a festa. Essa esmola ela era para comprar alforria. Então essa irmandade que

tinha do Amparo, que era de homens negros, ela também tinha essa proposta de se

agremiar para poder estar tentando libertar líderes negros para poder lutar contra a

escravização. Eles foram e simplesmente queimaram a igreja, acabaram com tudo,

para poder desarticular completamente a irmandade e a agremiação. Muitos foram

mortos também, foram assassinados, e eles ficaram completamente acuados por

conta dessa postura, dessa represália. (Ana Clara Amorim, entrevista em abril de

2017)

Ana Rita Fernandes uma vez me contou que o professor Valter Barreto

mencionou em sala de aula a história de um senhor de escravos no Rosarinho. Quando

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a escravidão foi abolida, ele trancou todos os seus escravos na senzala e tacou fogo.

Essas duas histórias nos falam da violência do período escravocrata e como certas

narrativas persistem e relembram esses momentos. Duca contrasta, assim, a exaltação

da independência às outras histórias da cidade.

E eu vejo assim, Cachoeira, a gente fica muito preso a essa coisa da heroica

Cachoeira. Aí eu vou falar a você a questão do 25 de junho, eu não vejo qual é a

proposta de Cachoeira ser capital do estado no dia 25 de junho, eu não entendi até

hoje pra que que isso serve. Por que Cachoeira uma vez Dom Pedro fugindo das

guerras veio parar aqui, um dia, aí virou capital do estado aqui um dia? Imagine o

cara veio se borrando de medo de lá, se hospedar aqui, aí a gente vai, ô porque Dom

Pedro ele saiu correndo lá, todo cagado já, pra se esconder em Cachoeira, palmas

pra ele. Ele e todo mundo com tudo na cabeça se picou para aqui. Sim, e aí gente? É

por isso que Cachoeira é melhor que outro lugar do mundo, é? Dom Pedro tem

quanto tempo que morreu já, gente? Pelo amor de Deus, por favor. O que que

acrescenta? O que que acrescenta pra gente Cachoeira ser capital do estado no 25

de junho? Despesa. Acarreta despesa porque vem aquela comitiva toda comer e

beber, mobiliza toda uma cidade, um monte de gente que não sei o quê, tem gente

que compra roupa e tudo para poder estar lá naquela palhaçada. Pra quê? A troco

de quê mesmo? A troco de absolutamente nada. A troco de nada. Enquanto você vê,

por exemplo, outras referências aqui. Você vê um Tamba Xavier, você já ouviu falar?

Tamba Xavier é uma pessoa. Um louco, né? Porque, andava pela rua, chutava as

coisas, mas um artista maravilhoso que contava sobre Cachoeira de uma maneira

que, Ave Maria, Tamba Xavier, no alto da loucura dele, ele contava a história de

Cachoeira toda. Contava tudo. Ali na câmara, embaixo, tem um museu Tamba

Xavier. Tamba contava tudo. E ele contava com esses detalhes em relação à questão

do negro em Cachoeira, Tamba contava essas histórias. Mas Tamba era louco,

Tamba era louco. Aí fizeram um museu ali, não tem nenhuma obra dele lá, mas tem

o nome dele. Ele fazia coisas com argila. Tem um filho dele que continua fazendo, um

menino da Pitanga. Não sei se é filho ou neto, é neto eu acho. Então Tamba ele

falava, tanto que o museu é onde, aquela parte ali debaixo do museu, é onde era, ali

era uma prisão de negros, por isso que o nome é Tamba Xavier. Por que Tamba falava

muito essas histórias, contava muita história, essas histórias daqui de Cachoeira.

(Ana Clara Amorim, entrevista em abril de 2017, grifos adicionados)

A diferenciação que ela faz das figuras de Tamba Xavier e Dom Pedro tem a ver

com o que ela está chamando da importância do que ficou em oposição ao que está

caindo. A lógica que ela aciona é a do que precisa ser valorizado e o que não precisa.

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Então por exemplo você pega ali Tamba que falava tanto e você pegou e fez

ali, aquilo ali acabou e era um cara que, embora seja louco, mas era um cara

que tinha a preocupação de tá fazendo a história oral dele, né, contando. E

Dom Pedro, veio para aqui fazer o quê mesmo? Eu não consigo associar. E aí

a gente fica vivendo dessas historinhas idiotas, entendeu? Eu não consigo

fazer associação nenhuma que me renda um tipo de... o que que acrescenta?

Acrescenta o quê? Não acrescenta nada para a gente isso aí, entendeu? É

muito simbólico. É disso que eu falo, a gente fica perpetuando (resgatando,

resgatando não, perpetuando) essas coisas que não são mais nossas, não nos

representam mais isso aí, entendeu? Por conta de uma cultura que impõe que

a gente precisa continuar valorizando o português. (Ana Clara Amorim,

entrevista em abril de 2017)

Esse contraste é também trazido para a questão da língua e do vocabulário. Quer

dizer, que você tem um badi enorme, por exemplo, substituir bunda por badi. Badi é uma

palavra de origem extremamente africana. O uso de palavras africanas no vocabulário

cotidiano é para Duca uma questão de afirmação: é uma maneira de você dizer, eu tô

aqui e eu preciso aparecer, eu preciso surgir. A afirmação, portanto, está diretamente

ligada à ideia de sobrevivência.

Mas quando você traz esses elementos populares, né, de um outro idioma e você

comunica-se bem dentro daquilo ali, é bom, é maravilhoso. Por que você tá vendo

que existe uma cultura que está ali se sobrepondo àquela imposta. Ela está dizendo

assim ó eu estou aqui, eu também faço parte. Ela vai se incluindo, devagarinho,

sorrateiramente, mas ela precisa dizer, eu estou aqui, eu faço parte disso. Então, é

muito gostoso quando você percebe que a sobrevivência impõe que você precisa

estar se afirmando. Isso é uma questão de sobrevivência, se afirmar é pra

sobreviver. Por que se, por exemplo, se você não deixa o seu cabelo black, você não

tá se afirmando, não tá. Você vai continuar se, eu não acho que usar cabelo liso é se

negar enquanto negro, eu não acho exatamente isso, mas a gente precisa usar o

black, precisa usar o black para afirmar que é negro, entendeu? É meio estranho eu

dizer isso, mas acho que dá para você entender. Eu não acho que o liso, que alisar o

cabelo se nega enquanto negro, mas é preciso você ser black para você se afirmar,

pô, para você dizer assim: e daí? Você tá me entendendo? E daí, eu posso, sim, não

tem nada que me impeça, isso é lindo também. (Ana Clara Amorim, entrevista em

abril de 2017, grifos adicionados)

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Através do ponto de vista de Duca, a afirmação implica sobrevivência e tem que

ser trazida para os espaços ocupados na própria cidade. Um exemplo, sobre as festas de

candomblé atualmente realizadas nas praças, Duca fala que é preciso trazer para a praça

pra poder entender quem é que tá sobrevivendo aqui, porque quem não sobreviver, caia

fora, entendeu? Quem não conseguir sobreviver, se saia de baixo. (Ana Clara Amorim,

entrevista em abril de 2017)

Muitos elementos que aparecem na fala de Duca nos ajudam a finalizar o

argumento deste Capítulo I – A inversão. Há uma disputa de narrativas. Na literatura

sobre a Independência da Bahia, fala-se sobre uma disputa com o sul do país,

representado pela nova capital, Rio de Janeiro, nos termos já expostos acima de uma

“missão patriótica” de resgate da Bahia no cenário nacional, sendo a independência um

projeto de nação concebido em termos da elite local (Albuquerque, 1999; Leite, 2005).

Esse ideal patriótico é ainda hoje ressaltado para se falar de Cachoeira como uma cidade

heroica habitada por um povo honrado e aguerrido. Nessa cidade, como disse o orador

da sessão solene, Patriotismo é dever de todo cidadão. Cacau Nascimento e Seu Adilson

também falaram de disputa, o primeiro de uma acadêmica nas formas de construir a

história da Bahia e o segundo acerca dos seminários de Belém da Cachoeira e de São

Paulo, e as figuras interessantes que pela Bahia passaram. Aqui neste texto, diante

destas disputas, interessa atentar para o não oficial. Interessa seguir a lógica da

resistência. Uma resistência que não é apenas espiritual, mas também epistemológica.

Ao longo das diferentes formas de se narrar a cidade de Cachoeira, pudemos ver

como a história oficial foi sendo construída no discurso oficial do governo e dos

historiadores locais, assim como as outras histórias que remanesciam nas esquinas. O

importante aqui é notar que não há uma história oficial contra outras histórias de

Cachoeira. As duas coexistem. Uma busca a manutenção de prédios coloniais e informa

a noção de patriotismo. A outra a permeia. Existe uma cultura que está ali se sobrepondo

àquela imposta, como disse Duca, e que vai se incluindo, devagarinho, sorrateiramente.

Da perspectiva de Ana Clara Amorim a preocupação com os prédios, e com a

manutenção de tudo aquilo ligado à cultura portuguesa pelas pessoas que foram por ela

relegadas, são uma hipocrisia. Ela vai, assim, na contra-mão do que algumas pessoas da

própria cidade estão dizendo de uma grandeza do passado, em contraste com um

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presente de decadência. Por isso seu pensamento nos ajuda a inverte o mundo. Para a

narrativa da grandeza do passado, presente no hino cachoeirano, por exemplo, o futuro

será grande porque o passado o foi. Para Duca, não. O desenvolvimento futuro só é

possível através da afirmação e resistência de quem sobreviveu a um passado de

repressão.

Na escola da qual ela é vice-diretora, Eraldo Tinoco, foi elaborado um projeto em

que os alunos irão dar vida aos personagens das imagens feitas no muro do colégio pelo

artista local Luís Macedo, conhecido como Look Boy ou Luíslook. Eles estão montando,

cada uma daquelas imagens vai ter uma história, um entorno. Os alunos da escola irão

realizar uma biografia dos personagens do muro e vão também vivê-los através de uma

peça.

Tá bem interessante porque quando eles escrevem, eles vão retomar o que eles

fazem no dia a dia. Fulano é marisqueira, não sei o quê. Eles contam detalhes assim

que só quem vive para conhecer, palavras que a gente diz, poxa, que isso? Eu

pergunto a eles, que isso? E eles vão lhe explicar palavras que eu assim não conheço,

esquemas lá da agricultura, da pesca, que eu também não conhecia. Aí eles vão

falando e eu digo, poxa, que interessante isso aqui, eles vão trazendo a vivência

deles. Porque, assim por exemplo, eu vou dar aula de geografia e vou falar da

indústria têxtil? Vou. Mas eu preciso falar também da pesca, muito mais da pesca do

que da indústria têxtil, eu preciso dizer a eles um pouco como é que funciona, preciso

inclusive dizer a eles porque é tão desvalorizada a pesca. Então eu digo para eles,

inclusive faz parte do nosso trabalho, dizer pra eles o porquê que a zona rural é tão

descredenciada. É o processo capitalista. É o processo capitalista. A gente, na divisão

internacional do trabalho, a gente é produtor de matéria prima, que é desvalorizado,

que vende barato para as indústrias multinacionais transformarem em produtos

industrializados e mandar pra cá pra gente comprar mais caro. Eles precisam

entender isso. Eles precisam entender porque que o pai não quer que eles sejam

pescadores, porque que a mãe não quer que seja marisqueira, eles precisam

entender porque não quer que seja agricultor, não é porque é ruim a profissão não,

é porque é desvalorizado em detrimento de um esquema capitalista. (Ana Clara

Amorim, entrevista em abril de 2017)

Quero destacar aqui a ideia do que é valorizado e o que é desvalorizado dentro

desta lógica de disputa e resistência, pautada em diferentes narrativas. Só quem vive

para conhecer o que resistiu, sobreviveu. Quem vive a mariscagem ou a pesca conhece

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estes trabalhos que possuem suas formas próprias de percepção, de vocabulário e de

técnicas. Ser marisqueira ou pescador não é, portanto, pior, mas sim desvalorizado. Esse

conhecimento desvalorizado é a resistência epistemológica que me referi acima, essa

que luta contra a lógica de que uma cidade é construída a partir da subjugação dos

povos. Resistência epistemológica e espiritual se fundem na forma de viver e pensar

uma cidade carregada de perigos. É preciso conhecer os lugares (cemitérios,

encruzilhadas) para saber por onde caminhar, o que evitar. Não se evita a recuada

inteira porque ela é violenta. Evita-se certos pontos da Recuada porque eles são

perigosos. Essa forma de viver a cidade resistiu, já que o que foi assentado não pode ser

desfeito. Ao contrário dos prédios, que viram ruínas. Para inverter, portanto, é preciso

deixar de valorizar o português para se afirmar, valorizando outras formas de conhecer.

O que Duca está dizendo aqui difere de uma veneração dos lugares como

patrimônio histórico, muitas vezes acionadas nas formas de se contar a história pelas

pessoas autorizadas a falar. Qual a importância no mundo espiritual desse patrimônio

que fez da Cachoeira colonial porto, pasto, posto e pouso, nas palavras de Cacau

Nascimento? Duca está interessada no que sobreviveu. A questão aqui é que a inversão

se dá em uma cidade que tem um monte de prédios e ruínas, mas também muitos

terreiros. É para este lugar que a fala de Duca nos leva: para a importância de quem

remanesceu e manteve a cidade viva. O porto, pasto, posto, pouso significou passagem

e movimento. Trouxe muita gente para novas terras. Trouxe gente e muito mais. Foi um

outro povoamento. Aos donos da terra, somaram-se as presenças de além-mar.

Mãe Dionízia e as pessoas de santo, como explicita o próprio Cacau, estão

interessadas em saber quem são as donas e donos das matas, das águas, das esquinas,

das encruzilhadas, para saber dos perigos e para pedir licença na passagem ou na

morada. Tanto a sobrevivência quanto os perigos tem a ver com o dia-a-dia. Com o que

está presente. Tem a ver com um mundo cujo dono da terra é o caboclo e o candomblé,

lugar de resistência.

Voltemos no texto.

Para conformar essa resistência espiritual e epistemológica, o caboclo se funde

com o pensamento afro-baiano em um mundo cujo saber sobre é construído a partir de

diversas presenças. Doné Maria Conceição nos fala da relação dos caboclos com os

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orixás. Com suas palavras aprendemos que o caboclo é um conquistador: tem lugar que

o orixá não vai, mas o caboclo vai. E, ainda, que os caboclos são filhos da terra e os orixás

precisam da terra, pois precisam das folhas para fazer os banhos e para curar as doenças.

O caboclo detém a sabedoria da terra. Essa sabedoria é que faz do caboclo, e de sua

linha, feitores das folhas. O caboclo é o rei da terra, não se fecha a porta para os deuses

da terra, você tem que receber ele na sua casa. Doné Maria Conceição fala que quem

deu caminho para a sua mãe de santo ser feita foi o caboclo.

É preciso atentar para a relação entre negros e indígenas na construção dessa

resistência. Chegamos, aqui, a um ponto importante apreendido pela história contada

por Ubiratan Castro à Acely e pela fala de Doné Maria Conceição: quando o orixá se

confunde ao negro e o caboclo ao indígena. Quem ensinou aos negros se embrenhar nas

matas foram os índios, que também lhes ensinaram a respirar debaixo da terra. O

caboclo dá o sentido da geografia, da saúde e da defesa da terra. A relação entre negros

e indígenas dentro do conhecimento construído a partir da espiritualidade afro-

brasileira será discutida na próxima parte da tese.

Na introdução deste primeiro capítulo eu fiz um convite: fazer comigo a

passagem da Cachoeira heroica, patrimônio nacional, cidade monumento – e todo o

conhecimento envolvido nessas palavras-chave – para a Cachoeira cujo dono da terra é

o caboclo. O movimento de inversão deste texto surgiu nesse mundo do seu Tupinambá.

E é a partir desse mundo que iremos voltar o nosso olhar para a literatura no Capítulo II

- Os Outros. Deixaremos os prédios e a cidade heroica para trás e olharemos para o

candomblé a partir dos antropólogos. Mas lembrando quem foi que aqui nos trouxe: a

cabocla, o caboclo e a sua relação com as pessoas que remanesceram.

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CAPÍTULO II

Os outros

Os dois mundos se confundem no

candomblé. Os deuses e os mortos se misturam com

os vivos no terreiro, ouvem as suas queixas,

aconselham, concedem graças, resolvem as suas

desavenças e dão remédio para as suas dores e

consolo para seus infortúnios. O mundo celeste não

está distante, nem superior, e o crente pode

conversar diretamente com os deuses e aproveitar

da sua beneficência. Eis a razão do extraordinário

vigor do candomblé, que tem resistido com sucesso

ao terror policial e às campanhas alarmistas dos

jornais.

Edson Carneiro (1948)

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1) EU NASCI MULHER, PORQUE MULHER BURRA NASCE HOMEM

As noites no ponto de acarajé de Gilvânia, além de muito saborosas, eram

sempre muito divertidas. Contadora de histórias, seu jeito debochado de gritar e falar

alto se misturava com o uso ligeiro e perspicaz das palavras, seja para elogiar alguém,

seja para colocar algum desentendido em seu lugar. Numa das noites em que estava em

seu ponto comendo um acarajé, Gilvânia esbravejou com alguém que havia lhe apertado

a mente: Oxein, ninho, tá pensando o quê? Eu nasci mulher, porque mulher burra nasce

homem. A provocação dessa baiana de acarajé abusada inspira o título desta tese, a

inversão do mundo. Suscita ainda duas reflexões a respeito da literatura antropológica

sobre o candomblé. Uma mais evidente, a ser tratada aqui apenas brevemente,

relacionada a uma hierarquia silenciosa e tácita que associa inteligência aos homens. E

uma segunda, que nada mais é do que a apropriação de sua maneira de inverter o

pensamento, e que tomará a maior parte deste capítulo: quero olhar para uma

hierarquia silenciosa e tácita entre o trabalho de campo e a análise teórica na

antropologia.

A inversão de Gilvânia nos convida a pensar, assim como fazem Stengers, Despret

& coletivo (2011), que essa mesma hierarquia silenciosa e tácita que associa a

inteligência aos homens se faz no mundo da academia, onde grande parte da literatura

consagrada e citada continua a ser formada por homens brancos. As autoras falam de

uma “fronteira invisível” que esconde o que quer que seja que bloqueie as carreiras de

mulheres em detrimento da de homens. Embora haja diversas explicações para a

existência dessa fronteira, como as jornadas desiguais de trabalho, tudo acaba sendo

deixado de lado como questões pelas quais não se deve “criar caso”45 – afinal de contas,

sempre haverá alguém para assegurar que falar de desigualdade de gênero nas Ciências

45 “Naturally, we could have posed this question again at a certain moment of our journey, when statistics began to show that, at the university as in many other places, careers differed noticeably according to whether one was a man or a woman (and especially if one was a woman who had a child). And today, in one way or another, we can think that these statistics speak about us: even though both of us have “made a career”, why is neither one of us a full professor? Had we been blocked by what is called the “glass ceiling”, this sort of invisible boundary which, on average, men may cross over whereas it blocks the careers of women with an equivalent diploma? The explanations that take into account this invisible boundary are not lacking: first of all, the massively unequal division of family duties, not to mention a host of little differences that we bear witness to ourselves, but which, for us, were not worthy of making a lot of fuss over.” (Stengers, Despret & collective, 2011:8)

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Sociais é uma grande bobagem. Uma simples recitação de nomes de grandes e

conhecidas antropólogas o comprovaria.

Gilvânia, no entanto, nos mostra, através do seu jeito debochado, que é preciso

olhar para a construção dessa ideia de mulher burra. Por que, então, apesar da grande

quantidade de antropólogas, as bibliografias dos nossos cursos continuam sendo

compostas majoritariamente por homens? E, ainda, por que as escolas renomadas são

recheadas de mulheres, mas encabeçadas por homens? As mesmas pessoas que bradam

não haver desigualdade no corpo acadêmico escondem as pesquisadoras mães que são

excluídas de processos seletivos nos concursos públicos e as mulheres negras que

ocupam pouquíssimos dos cargos docentes na academia (Silva, 2010; Queiroz & Santos

2016)46. Mas o que isso, afinal, tem a ver com a inversão do mundo cachoeirano? Tendo

Cachoeira tantos terreiros, uma primeira incursão na bibliografia me levou aos estudos

das religiões de matriz africana. É preciso, pois, inverter e olhar: quais são os grandes

nomes evocados quando se fala em candomblé na Bahia?

Em carta a Arthur Ramos em 1938, Edison Carneiro diz ter encontrado “miss”

Ruth Landes e com ela “estar andando” pelos candomblés de Salvador, não contendo

sua surpresa: “Ela é admirável – e muito mais inteligente do que nós podíamos imaginar”

(Freitas Oliveira & Lima, 1987: 180). Em nota com relação a esta mesma carta, Vivaldo

da Costa Lima chamou o livro A Cidade das Mulheres de Landes ([1967] 2002) de

“jornalismo etnológico”, ainda que tenha tecido elogios a este trabalho:

Nesta “crônica juvenil” – como Ruth Landes chamou este livro – que é um painel

abrangente e sensível da vida do povo-de-santo da Bahia, encontram-se evocados,

com grande agudeza e humor, figuras como a do babalaô Martiniano do Bonfim,

vividamente descrito na sua casa do Caminho Novo, no Taboão; de Menininha do

Gantois e da sua jovem filha Cleusa; de Felipe Xangô de Ouro; de Sabina da Barra e

de muitos outros pais e mães de santo da Bahia. Plena de compreensão, a descrição

de sua visita, com Carneiro, à velha mãe de santo Floriana Bianchini, com noventa e

46 Inúmeros são os trabalhos de intelectuais feministas que refletem sobre desigualdade de gênero, sobretudo nos centros como o Pagu, na Unicamp; as pesquisadoras relacionadas à Revista de Estudos Feministas do IEG/UFSC; como também o Neim, na UFBA. Para trabalhos relacionando gênero e raça no Brasil, ver Lélia Gonzalez (1983), Sandra Azeredo (1994), Jurema Weneck (2010), Ângela Figueiredo (2008), Djamila Ribeiro (2017), Sueli Carneiro (1995), entre outras. Uso aqui o trabalho citado de Isabelle Stengers, Vinciane Despret & coletivo (2011), por tratar especificamente do ambiente acadêmico e suas novas formas de produtividade que produzem ainda mais exclusão.

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dois anos de idade e já vivendo a vida de sua mãe Oxum em seu velho terreiro do

Engenho Velho de Federação. (Freitas Oliveira & Lima, 1987: 181, grifos adicionados)

A forma como o trabalho de Landes foi e é tratada nos estudos afro-brasileiros

não é novidade (Healey, 1996; Corrêa, 2000; Figueiredo, 2008). Sua obra foi duramente

criticada por Arthur Ramos e Melville Herskovits (Healey, 1996; Corrêa, 2000).

Seu livro, publicado em inglês em 1947 e só traduzido para o português em 1967,

era conhecido apenas dos pesquisadores interessados no estudo dos candomblés da

Bahia e, assim mesmo, visto com certa complacência, dado que era apresentado

como uma reminiscência de sua estadia aqui, muito mais do que como resultado de

pesquisa. (Corrêa, 2000: 241)

A Cidade das Mulheres, no entanto, é uma das etnografias mais ricas deste

período, como o próprio Lima (1987: 181) aponta: “um painel abrangente e sensível da

vida do povo-de-santo da Bahia”. No texto de Landes, a cidade de Salvador e as pessoas

que nela habitam aparecem de forma viva, não escondidas por detrás de argumentos

que buscam entender a estrutura ritual do candomblé e sua relação com o riquíssimo

acervo mitológico, isto é, o par mito-rito tão apreciado nos meios antropológicos.

Pessoas e entidades estão ali nas descrições da autora. Ainda que suas incursões teóricas

com relação à questão racial no Brasil e suas teses sobre o “homossexualismo” dos pais

de santo sejam facilmente questionáveis, pois eivadas de preconceito, não me parece

ser esse o motivo pelo qual ela não apareça por diversas vezes como uma intelectual

que escreveu sobre o candomblé. Até porque posturas preconceituosas com relação aos

homens que recebem santo estão presentes em muitos dos cânones e, principalmente,

na obra de Edison Carneiro. Ainda hoje, a predominância feminina no candomblé de

Salvador defendida por Landes é combatida por antropólogos que trabalham com

religiões afro-brasileiras. Júlio Braga (2014), por exemplo, dedicou um livro inteiro para

contra-argumentar Landes, afirmando a importância dos homens no candomblé baiano.

Ordep Serra (1995) faz um rápido percurso pelas relações entre alguns

intelectuais e os terreiros baianos em “Jeje, nagô e companhia”, trabalho que critica

parte da literatura antropológica que ficou conhecida como debate da “pureza nagô”,

principalmente a obra Vovó Nagô, papai branco de Beatriz Dantas (1982). A literatura

mencionada é praticamente toda composta por homens. Serra inicia uma das suas

muitas subseções do texto com Nina Rodrigues, passando rapidamente por Manoel

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Querino e Arthur Ramos. Em seguida, fala mais detalhadamente das contribuições de

Edison Carneiro até chegar em Jorge Amado e Roger Bastide, para finalizar com Pierre

Verger. Ruth Landes, Donald Pierson e Melville Herskovits aparecem apenas como

influenciados pela forma de se fazer pesquisa de Edison Carneiro, através de uma

relação intensa com as comunidades de terreiros. Nesta incursão, Serra aponta para o

jeito respeitoso com que esses intelectuais se relacionaram com o povo-de-santo, bem

como as suas contribuições em termos políticos e acadêmicos. Embora eu concorde com

a sua crítica à obra de Beatriz Dantas (1982) – como veremos à frente –, incomoda na

leitura desta sessão do texto que o elogio do autor quanto à relação respeitosa entre

intelectuais e terreiros deixe de lado nomes de autoras, como o de Juana Elbein dos

Santos.

Olhando para a forma como A Cidade das Mulheres foi recebida por esse

ambiente masculino de estudos (Figueiredo, 2008), Mariza Corrêa (2000) aponta para,

inclusive, uma inversão operada pela norte-americana: “ao colocar as mulheres no topo

e os homens na base, Landes invertia a classificação simbólica da relação

masculino/feminino da sociedade na qual esses cultos se inscreviam” (2000: 245).

Corrêa, nesse mesmo texto, mostra outra importante questão. Uma das críticas de

Ramos e Herskovits ao trabalho de Landes, segundo a autora, tinha a ver com a “sua

ênfase nas relações raciais, num momento em que a antropologia passava a dar ênfase

a explicações culturais” (Corrêa, 2000: 242, grifos no original). A autora relembra que

Gilberto Freyre, voltando dos Estados Unidos sob a influência de Franz Boas, teria sido

“um dos primeiros intelectuais brasileiros a sublinhar a importância da troca da noção

de raça pela de cultura para explicar o país” (Corrêa, 2000: 238). O empenho freyreano

de substituição do conceito de raça pelo de cultura, assim como os debates e relações

que envolvem a (assim batizada por Arthur Ramos) “Escola Nina Rodrigues” também

não são novidade ao se refletir sobre a história dos estudos afro-brasileiros no Brasil (cf.

os diversos artigos em Sansone & Pinho, 2008; Pinho, 2010; dentre outros).

A mobilização desses conceitos, raça e cultura, assim como a sobreposição dos

dois, são importantes para o nosso argumento, como se verá com detalhes mais adiante.

A forma como este debate influenciou os trabalhos subsequentes sobre as religiões afro-

brasileiras nos leva para um segundo aspecto da inversão inspirada pelas palavras de

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Gilvânia. Pois não é apenas uma questão de gênero que sua provocação suscita. Para

além do questionamento – quem são os grandes nomes da literatura que ficou

conhecida como Estudos Afro-brasileiros? –, ela também nos faz perguntar: qual outra

hierarquia silenciosa há para se inverter na literatura? Não se trata aqui de elaborar uma

antropologia do campo antropológico no Brasil que pensa relações de gênero. Pretendo,

neste segundo capítulo, apontar para como dentro do próprio argumento da disciplina

há uma relação hierárquica estabelecida entre o mundo do candomblé (chamado pelos

antropólogos de campo ou material etnográfico) e o mundo do candomblé na literatura

(referido como teoria).

A inversão nos incita a um movimento que levanta algumas questões. Qual é o

nosso ponto de partida no momento em que construímos textualmente nossas análises,

o campo ou a teoria? A relação tensa entre estes dois polos tão caros à antropologia é

o foco deste capítulo. Para isso, será preciso olhar para os textos prestando atenção ao

lugar em que está o mundo na composição das análises. Onde está o campo no

momento em que ele se torna texto? Em relação com ou dentro dos modelos

antropológicos? Procuro, assim, discutir como o campo se torna subsumido em

discussões teóricas dentro da antropologia.

O caminho ao qual Cachoeira nos convida, portanto, segue. Estamos agora

contaminadas pelas presenças. A intenção aqui não é esgotar essa imensa literatura,

mas prestar atenção na forma como esses trabalhos são escritos, como os conteúdos

são hierarquizados, o que entra e o que fica de fora para compor aquilo que se

reconhece como “análise”. Atentando para a ausência das presenças e, em alguns casos,

a própria ausência das pessoas com as quais pesquisadores fizeram campo. Ao percorrer

uma série de trabalhos, tinha a seguinte pergunta em mente: o que acontece na

passagem do trabalho de campo para o texto em que tanta coisa se perde?

Mas essa é apenas uma introdução. Sigamos para os trabalhos agora. Para isso,

ao pensamento perspicaz de Gilvânia, acrescentaremos o verso de Caetano Veloso: a

força que vem dessa pedra que canta Itapoã, fala Tupi fala Iorubá47. Tânia Almeida

47 Trecho da música de Caetano Veloso, Two Naira Fifty Kobo. Lançada no álbum Bicho em 1977, o título da música se refere a um valor na moeda nigeriana. Este álbum, com influências da música africana, foi lançado após viagem realizada pelo autor e Gilberto Gil à Nigéria.

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Gandon (1997) pergunta se teríamos que ser poetas para perceber a “relação

legendária” entre negros e indígenas na história brasileira. Ela trabalha com fontes

escritas e orais, concentrando-se no bairro de Itapuã, em Salvador. Segundo a autora,

Itapuã é uma palavra Tupi que significa “a pedra que ronca”. A pedra que ronca fala tupi

e fala iorubá. Orixás e caboclos contaminaram a poesia de Veloso. Por que também,

como o apelo sugerido por Gandon, não os deixar contaminar nossos textos

antropológicos?

2) TENSÕES POLÍTICAS NUMA EMERGENTE CIÊNCIA BRASILEIRA

Em entrevista concedida por Gilberto Freyre ao Diário de Pernambuco sobre o II

Congresso Afro-Brasileiro, o autor pernambucano reclama da falta de organização do

evento que aconteceria em Salvador no ano de 1937. Depois de receber o convite do

baiano Edison Carneiro, Freyre mostra-se preocupado com a falta de tempo hábil para

organizar um evento de tal porte, ainda mais após o sucesso do primeiro encontro

realizado em sua terra natal e por ele orquestrado:

Pouco lhe posso adiantar sobre o assunto. Só há dois ou três dias soube, por uma

carta do escritor Edison Carneiro, que ia realizar-se um segundo Congresso Afro-

Brasileiro na Bahia. Receio muito que vá ter todos os defeitos das coisas

improvisadas. Deveria ser muito maior o prazo para os estudos, para as

contribuições dos verdadeiros estudiosos. Os verdadeiros estudiosos trabalham

devagar. A não ser que os organizadores do atual Congresso só estejam

preocupados com o lado mais pitoresco e mais artístico do assunto: as “rodas” de

capoeira e de samba, os toques de “candomblé”, etc. este lado é interessantíssimo

e na Bahia terá decerto um colorido único. Mas o programa traçado no 1º Congresso

foi um programa mais extenso e incluindo a parte árida, porém igualmente

proveitosa, para os estudos sociais, de pesquisas e trabalhos científicos. (Freitas

Oliveira, 1987: 128, grifos adicionados)48

48Esse trecho faz referência a uma entrevista concedida por Gilberto Freyre, em Recife, ao Diário de Pernambuco, publicada “na edição de 13 de novembro de 1936 de ‘O Estado da Bahia’, sob o título ‘Em torno do segundo Congresso Afro-Brasileiro’ e o subtítulo – ‘Falando ao Diário de Pernambuco o escritor Gilberto Freyre diz do seu receio que o certame se marque dos defeitos das coisas improvisadas’” (Oliveira, 1987: 129). Tal reportagem foi trazida por Waldir Freitas Oliveira (1987: 128-129) em sua reflexão acerca da carta de Edison Carneiro a Arthur Ramos de novembro de 1936, que mencionava a organização do II Congresso Afro-Brasileiro.

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Freyre se mostra preocupado com o tempo destinado ao preparo dos

“verdadeiros estudiosos”. Sua preocupação se estende aos aspectos pitorescos para os

quais os organizadores estariam então voltados. As “rodas” de capoeira e de samba,

assim como os toques de “candomblé”, apenas assim apresentadas, ficariam na ordem

do espetáculo, caso não fosse possível, conjuntamente, oferecer tempo hábil para

aqueles que constroem as teorias socias analisando e explicando esses fenômenos. No

decorrer do seu comentário, Freyre traz outras discordâncias.

Estou informado pelo escritor Édison Carneiro que é, seja dito de passagem, um dos

nossos africanologistas mais inteligentes, que se pleiteará uma subvenção do

Governo do Estado para o 2º Congresso Afro-Brasileiro. Discordo radicalmente. Creio

que esses Congressos de estudiosos deviam ser como foi o 1º Congresso Afro-

Brasileiro reunido no Recife, inteiramente independente dos Governos ou de

qualquer organização política com interesses partidários ou fins imediatos. Essa

independência foi um dos traços característicos do 1º Congresso – o do Recife, e

para afirmá-lo, José Lins do Rego, Cícero Dias, Mário Lacerda de Melo, eu e alguns

outros tivemos de propor resistência enérgica aos que pretenderam deformar

aquela reunião de pesquisadores e de estudiosos, prestigiada pela colaboração de

africanologistas como o professor Herskovits, num ajuntamento demagógico e de

cor partidária. (Freitas Oliveira, 1987: 129, grifos adicionados)

Incomodava ao pernambucano, além das “apresentações pitorescas”, a

politização do evento resultante da participação financeira do governo do estado da

Bahia. Ao criticar o envolvimento político, Freyre deixava claro que, para ele, ciência e

política não deveriam se misturar. Ao final da matéria, Gilberto Freyre pontua de forma

mais aberta sua crítica aos trabalhos de Nina Rodrigues, contrapondo as próprias

premissas dos estudos que seriam apresentados em Salvador com aquelas do primeiro

congresso do Recife, sob sua organização.

Creio que o fato do Congresso Afro-Brasileiro do Recife ter encarado o negro e o

mestiço de negro, não como um problema de patologia biológica, a exemplo do que

fez o próprio Nina Rodrigues – que era um convencido da absoluta inferioridade do

negro e do mulato – mas como um problema principalmente de desajustamento

social, representa uma conquista notável para os estudos sociais brasileiros e de

profunda repercussão política. Mas não me parece que os congressos afro-

brasileiros devam resvalar para a apologia política ou demagógica da gente de cor.

Seria sacrificar todo o seu interesse científico de esforço de pesquisa e de colheita

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e interpretação honesta de material que ainda está sendo reunido. (Freitas Oliveira,

1987: 129, grifos adicionados)

Uma das maiores preocupações de Gilberto Freyre parecia ser, portanto, a de

que os organizadores deste segundo congresso pudessem “assegurar um ambiente de

independência e probidade científica” (Freitas Oliveira, 1987: 129). Com essas palavras,

Freyre deixava claro que haveria uma diferença de ênfase na organização dos dois

eventos. Em Recife, as reflexões partiriam da perspectiva de que “negros e o mestiço de

negro” seriam um problema de desajustamento social – e não uma patologia biológica

como queria Nina Rodrigues. Tal perspectiva teria permitido um esforço de pesquisa e

interpretação do material propriamente científico, que, como vimos, demandaria

tempo. O esforço que se fazia em Salvador, no entanto, parecia-lhe distinto em termos

de enfoque analítico. Seria apressado. Apenas para fins políticos. Um esforço

demagógico. Político, portanto, não científico.

A resposta de Edison Carneiro às palavras de Gilberto Freyre “ficaria inédita por

mais de vinte anos” (Corrêa, 2000: 239). E “ainda que estivesse implícita na

apresentação do volume que reuniu os trabalhos apresentados ao II Congresso Afro-

Brasileiro” (Corrêa, 2000: 239), foi apenas em seu livro de 1964, Ladinos e Crioulos, que

ele explicitamente procurou se contrapor às acusações de Freyre. Mariza Corrêa (2000)

destaca alguns trechos deste curto texto (datado de 1940) que resumiriam as

discordâncias entre as escolas baiana e pernambucana:

Esta ligação imediata com o povo negro, que foi a glória maior do Congresso da

Bahia, deu ao certame “um colorido único”, como já previra Gilberto Freyre. Arthur

Ramos, em carta que me escreveu sobre a entrevista ao Diário de Pernambuco, dizia:

“O material daí, que [Gilberto Freyre] julga apenas pitoresco, constituirá justamente

a parte de maior interesse científico.”. O Congresso do Recife, levando os

babalorixás, com sua música, para o palco do Santa Isabel, pôs em xeque a pureza

dos ritos africanos. O Congresso da Bahia não caiu nesse erro. Todas as ocasiões

em que os congressistas tomaram contato com as coisas do negro foi no seu

próprio meio de origem, nos candomblés, nas rodas de samba e de capoeira.

(Carneiro, 1964: 99, grifos itálicos no original, grifos em negrito adicionados)

O que esse episódio nos mostra é justamente a diferença de premissas

mencionada por Gilberto Freyre. Para Edison Carneiro, importava o campo nos “meios

de origem”, uma premissa ligada ao envolvimento político com essas comunidades, mas

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também à concepção analítica de pureza. Para o pernambucano, ao contrário, “as coisas

do negro” eram apenas exibição, pois lhe interessava mais a análise dos estudos sociais,

daí a insistência no tempo de preparo necessário aos intelectuais. Para um, a probidade

científica advém do campo, para outro, da academia.

Desta resposta, Corrêa (2000) ainda destaca o seguinte trecho: “O Congresso

prestou a homenagem que devia a Nina Rodrigues – inexplicavelmente negligenciado

pelo Congresso do Recife – proclamando-o o pioneiro incontestável dos estudos sobre

o negro no Brasil” (Carneiro, 1964: 101). Mas, por que Edison Carneiro e Arthur Ramos

faziam questão de proclamar Nina Rodrigues “pioneiro incontestável” apesar do seu

convencimento da “absoluta inferioridade do negro”?

No contexto baiano não era assim tão simples diminuir a importância dos

estudos de Nina Rodrigues. Apesar das suas teorias racialistas, o envolvimento do

maranhense com as comunidades de terreiros, principalmente do Gantois, foi marcado

pela crítica à forma violenta com a qual os negros foram até então tratados. O autor, em

seu clássico Os africanos no Brasil (Rodrigues, 1932), após apresentar uma série de

reportagens da época que denunciavam o funcionamento de candomblés, lamenta que

a própria imprensa baiana, ao tratar do assunto, revelava-se tão desorientada como os

senhores de engenho. Os jornais, desse modo, pregavam e propagavam “a crença de

que o sabre do soldado de polícia boçal e a estúpida violência de comissários policiais

igualmente ignorantes hão de ter maior dose de virtude catequista, mais eficácia como

instrumento de conversão religiosa do que teve o azorrague dos feitores” (Rodrigues,

1932: 354). Diante dessas notícias, o autor ressalta outra questão clássica dos seus

trabalhos, a sobrevivência:

A eloquência destes documentos não tolera sofismas. Deixam eles de fora de

qualquer dúvida não só que as práticas religiosas dos Negros persistem no Brasil,

como ainda que cada vez mais alastram e se difundem na população de cor, do

Estado da Bahia pelo menos. Mas o que deles sobressaem em admirável destaque é

a extraordinária resistência e vitalidade dessas crenças da Raça Negra. Para apagá-

las tudo tem sido debalde: a antiga e tão prolongada repressão, desumana por vezes,

sempre violenta, dos senhores de escravos e dos feitores, como a intervenção, não

menos violenta, da polícia; os incessantes reclamos da imprensa, como a instigação

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das outras classes, para que seja erradicado o mal. (Rodrigues, 1932: 362-363, grifos

no original)

Como bem demonstra Lisa Castillo (2010: 105), apesar de Rodrigues

compreender o “africano como intelectualmente inferior ao europeu” e considerar “as

desigualdades sociais entre brancos e negros no Brasil como consequências naturais”,

“o racismo de tal perspectiva foi acompanhado por uma nostalgia paradoxal pela perda

dos africanos no Brasil e uma solidariedade paternalista para com a religiosidade

africana, a qual o levou a reivindicar o fim da perseguição aos candomblés”. Segundo a

autora, Manoel Querino – que publicou diversos textos em periódicos na mesma época

que Rodrigues – teria rejeitado uma das teses do maranhense com relação à posição

“marginalizada do negro na sociedade brasileira”, que não seria consequência de uma

suposta inferioridade biológica, mas um problema que “decorreu das desigualdades

raciais institucionalizadas na sociedade brasileira durante a escravidão” (Castillo, 2010:

111). A relação de Nina Rodrigues com a opressão era, portanto, ambígua. Ele defendia

que pudessem exercer sua religiosidade, mas argumentava que sua marginalidade

advinha de uma “inferioridade biológica”.

Esse maior envolvimento com os terreiros aparece, pois, como uma das

principais influências em seus discípulos. Para a realização do II Congresso, a mobilização

política de Edison Carneiro foi muito maior do que a simples participação financeira do

governo do estado da Bahia, que tanto incomodou Gilberto Freyre, poderia indicar.

A estratégia de Carneiro de envolver o povo de santo na produção de discurso sobre

o candomblé foi baseada na convicção que constituía um mecanismo importante na

luta para a legitimação social desta religião. Isto fica muito claro numa série de

artigos organizados por ele em 1936, nos meses anteriores ao II Congresso Afro-

Brasileiro. Os artigos, publicados no jornal O estado da Bahia, tiveram uma função

dupla. Primeiro, promovia-se uma imagem mais positiva do candomblé perante a

sociedade baiana, trazendo à cena rituais populares já percebidos como lúdicos e

inofensivos, como os presentes à “mãe-d’água”, mostrando também o lado humano

do povo de santo, então representado nos jornais como marginal. Segundo, Carneiro

queria sinalizar aos terreiros, de forma concreta, que representações escritas, apesar

de terem sido utilizadas para difamar as tradições religiosas afro-brasileiras, também

podiam ser utilizadas como aliadas. Desta forma, ele queria mostrar as possibilidades

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que o II Congresso proporcionava para o povo de santo na luta contra a perseguição

policial. (Castillo, 2010: 120-21)

Esse trabalho em série de reportagens “constituiu uma ruptura importante com

representações anteriores na imprensa, que incentivavam as batidas da polícia e

retratavam os líderes religiosos do candomblé ora como charlatões, ora como

criminosos” (Castillo, 2010: 122). Esse era o tipo de matéria diária à época (Luhning,

1995; Braga, 1995) em um contexto em que “para o povo de santo, ‘sair no jornal’

significava ter sido alvo da violência policial” (Castillo, 2010: 122). O esforço de Carneiro

era, assim, o de “construir uma nova maneira de relacionar-se com representações

textuais e fotográficas e, portanto, com a sociedade baiana” (Castillo, 2010: 122).

Além de entrevistas com sacerdotes, a série de artigos organizada por Carneiro

também anunciava a participação de intelectuais de renome no Congresso, entre

eles Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de

São Paulo; Arthur Ramos, professor da Universidade do Rio de Janeiro e editor de

uma série de livros de divulgação científica da editora Civilização Brasileira; o

sociólogo Gilberto Freyre e os pesquisadores norte-americanos Donald Pierson e

Melville Herskovits. Assim, Carneiro revelou à sociedade baiana que conhecidos

intelectuais nacionais, e até norte-americanos, não compartilhavam do preconceito

contra as religiões afro-brasileiras, então considerado normal na Bahia. Para os

terreiros, o apoio desses pesquisadores influentes significou uma oportunidade

importante para prosseguir com uma antiga estratégia de sobrevivência no

candomblé: a de forjar alianças com pessoas que ocupavam posições de poder na

sociedade. (Castillo, 2010: 126-27)

O empenho político de Carneiro para este 2º Congresso Afro-Brasileiro,

juntamente com o babalô Martiniano Eliseu do Bonfim e a ialorixá Aninha, materializou-

se com a consequente criação da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, que buscava

regulamentar as casas de candomblé. Mas, principalmente, protegê-las das

perseguições e batidas policiais.

Os congressistas aprovaram uma resolução sobre a liberdade das religiões africanas

e outra encarregando a Comissão Executiva de criar um organismo que congregasse,

democraticamente, os chefes de seita da Cidade e do Estado. Para demonstrar a

importância popular do Congresso, a Comissão Executiva, quatro meses depois de

encerrados os trabalhos, recebeu o mais amável dos convites, partido do velho

candomblé do Alaketo, chefiado por mãe Dionísia, para lá comparecer oficialmente,

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pois na ocasião do Congresso, a casa do candomblé estava sofrendo reparos e era

impossível nos receber. A 3 de agosto de 1937, fundava-se a União das Seitas Afro-

Brasileiras da Bahia. (Carneiro, 1964: 101)

Carneiro ficou assim conhecido como “um dos primeiros defensores da plena

liberdade religiosa do candomblé na Bahia” (Lima, 1987: 151) e “buscou redefinir os

argumentos de Nina Rodrigues em favor da liberdade religiosa à luz de sua atuação

como intelectual comunista” (Rossi, 2011: 152). Seu próprio clássico Candomblés da

Bahia, lançado em 1948, é destinado a um público maior. O autor o define como um

“roteiro dos candomblés da Bahia, súmula dos conhecimentos já adquiridos sobre a

concepção do mundo peculiar à população de cor e sobre a estrutura e o funcionamento

das suas casas de culto” (Carneiro, 1954: 11).

Retomando a expressão irônica de Gilberto Freyre, assim, Carneiro fala como a

publicidade do evento contribuiu para criar um ambiente de tolerância:

Este “colorido único” teve, pelo menos, uma vantagem: acabou com o espantalho

que ainda eram, para as classes chamadas superiores da Bahia, os candomblés.

Muita gente graúda, que se inscrevera como congressista, ficou sabendo que os

negros não comiam gente nem praticavam indecências durante as cerimônias

religiosas. A publicidade do Congresso, nos jornais e pelo rádio, contribuiu para criar

um ambiente de maior tolerância em torno dessas caluniadas religiões do homem

de cor. (Carneiro, 1964: 100)

Se para Gilberto Freyre, portanto, o “colorido único” do congresso baiano seria

algo negativo, para Carneiro ele foi uma das suas principais conquistas. Tal divergência

com relação à organização destes eventos aponta, como já vimos, para uma diferença

crucial entre a maneira como cada um concebia o que era uma análise propriamente

científica na antropologia. Para o pernambucano, ciência e política deveriam se

desvencilhar. Para Carneiro, elas estavam intrinsecamente relacionadas. A forma de se

fazer as pesquisas e apresentá-las publicamente tem a ver, assim, com um maior ou

menor envolvimento com as populações com as quais se trabalha. Ordep Serra (1995),

como dito na introdução desta segunda parte, exaltou o jeito respeitoso como muitos

dos intelectuais filiados à escola baiana se relacionavam com os terreiros. Tal

envolvimento implicou em contribuições acadêmicas e políticas. O que Gilberto Freyre

chamou de pitoresco, era, para as pessoas de santo, de extrema importância. Por isso,

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foi ainda apontado no trecho da carta de Arthur Ramos a Carneiro como o que

constituiria “justamente a parte de maior interesse científico” (Carneiro, 1964: 99).

A diferenciação entre estas perspectivas seria composta, de acordo com Corrêa

(2000), por três elementos, e teria consequências para a formação da antropologia no

Brasil enquanto uma disciplina independente:

(...) a primazia no estudo das relações raciais, atribuída pelos primeiros ao médico

Nina Rodrigues, a evidente ênfase dos baianos numa atuação política e, o que foi a

marca do seu trabalho nessa época, a “africanização” da Bahia, com tudo o que isso

implicava – a começar pela eleição de certos centros de culto como “puros”, por

oposição aos cultos “híbridos”. (Corrêa, 2000: 239)

Para além da primazia atribuída a Nina Rodrigues no estudo das relações raciais

e da ênfase política, como aqui já explicitado, as diferenças entre os autores apareciam

no próprio foco das análises. Freyre estava preocupado com as relações sociais dentro

do que ele considerava ser a sociedade brasileira; Ramos e Carneiro, por sua vez,

estavam interessados nas religiões africanas, influenciados pelos estudos de Rodrigues

do “fetichismo africano”, mas ao mesmo tempo buscando desviar de suas pretensões

evolucionistas. O primeiro levava para a uma ideia de hibridez porque a ênfase era na

construção de uma identidade nacional, o segundo para um ideal de pureza pela ênfase

na religião como um grupo fechado onde seria possível encontrar sobrevivências

africanas.

Ao longo da década de 1930 (com exceção do período de organização do 2º

Congresso), assim, a disputa no campo teórico passa a ser personalizada nas figuras de

Gilberto Freyre e Arthur Ramos em decorrência do esforço analítico dos dois em se

desvencilhar do conceito de raça. Tanto Ramos quanto Freyre procuravam neste

momento estabelecer a antropologia como disciplina, afastando-se ao máximo da

perspectiva médica dos primeiros estudos sobre o negro, tomando a si como patronos

dessa nova abordagem. Não à toa, eles lançam livros com títulos pretenciosos no mesmo

ano, Introdução à Antropologia Brasileira (Ramos, 1943) e Problemas de Antropologia

Brasileira (Freyre, [1943] 1959).

O esforço de Freyre era de definir o que seria o ofício da antropologia ao

distanciá-la das outras ciências, em crítica clara aos trabalhos em medicina de Nina

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Rodrigues e mesmo aos de cunho mais psicológicos de Arthur Ramos. O autor

pernambucano procurava redefinir as “linhagens” que vinham sendo estabelecidas por

Ramos com a intenção de “corrigir”, no Recife, a “orientação errada” dos trabalhos de

Nina Rodrigues. Considerando-se “discípulo brasileiro de Boas”, caberia, portanto, a

Freyre “a primazia da renovação dos estudos antropológicos no Brasil” (Silva, 2008:

292).

Essa primazia também encontrou respaldo no I Congresso Afro-Brasileiro, realizado

em Recife, em 1934 e organizado por Gilberto Freire. Este encontro pioneiro de

estudiosos e praticantes das religiões afro-brasileiras buscou de certa forma,

expandir a influência do grupo do Recife numa área em que Artur Ramos e sua escola

cada vez mais se projetavam: – a dos estudos etnográficos sobre o negro tendo como

ponto de partida seu universo religioso. A “Escola Baiana” estava, contudo, de tal

forma consolidada que o próprio Congresso do Recife teve de reverenciá-la na

resolução votada pelos participantes de se publicar o retrato de Nina Rodrigues nos

seus anais. Outra demonstração de reconhecimento da posição de prestígio de Artur

Ramos foi o convite que lhe fez Gilberto Freire para prefaciar o segundo volume dos

anais do Congresso. (Silva, 2008: 292)

Apesar da importância dada a Nina Rodrigues por Arthur Ramos e da sua

insistência em homenageá-lo no prefácio acima referido por Silva (2008), a formação da

antropologia como disciplina no Brasil exigia uma mudança conceitual. O problema

racial – com foco no problema do negro – apresentado pelos primeiros estudos passa a

assumir outra linguagem: torna-se o problema da mestiçagem. Para resolver essa

questão, ao mudar o “objeto de pesquisa”, do negro para o mestiço, tanto Freyre quanto

Ramos acionam o conceito de cultura como uma “saída de emergência” (Pinho, 2010:

170).

Arthur Ramos em Introdução à Antropologia Brasileira conceitua de forma

explicita essa passagem do termo de raça para cultura. Osmundo Pinho (2010)

argumenta que estes termos se substituem apenas para recompor “o mesmo jogo

discursivo”, o que fica claro nas palavras do alagoano:

Muito depois haveria de se provar que o pretenso mal da mestiçagem é um mal de

condições deficientes de meio social e cultural. Se substituirmos na obra de Nina

Rodrigues os termos biológicos de Raça e Mestiçamento pelas noções de CULTURA

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e Aculturação, as concepções adquirirão completa e perfeita atualidade (Ramos,

1962: 57 apud Pinho, 2010: 171, grifos no original)

Já no prefácio de Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre ([1931] 2000) diz que a

diferenciação entre os termos é o que “assenta todo o plano” de seu ensaio sobre a

família patriarcal brasileira em que o negro aparece como escravo, um dos elementos

desta formação:

Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do Professor Boas que primeiro me

revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os

efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a

diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente

genéticas e o de influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de

diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio.

(:45)

Como já apontado no argumento de Pinho (2010), e de diversos outros autores

(cf. Corrêa, 2011; Silva, 2008), por mais que neste primeiro momento os estudos que

ganhavam força na década de 1930 buscassem se afastar da ideia de raça tal como posta

por Nina Rodrigues, há mais uma continuidade do que uma ruptura. Pinho (2010: 170)

chega a afirmar que “se raça ou cultura, não importa tanto assim, o que importa é criar

condições para que se produza um povo adequado aos imperativos da civilização ou do

progresso”. O conceito de cultura aparece, então, como chave para resolver o novo

problema da mestiçagem, “câncer que corroía a pretensão branca” ao se tornar

“elemento operador da integração nacional e ao mesmo tempo de sua modernização

caracterizada como subordinante” (Pinho, 2010: 172). Mais do que uma real oposição

ao conceito de raça, no que se refere às desigualdades e à situação da população negra

brasileira, o conceito de cultura aparece assim como uma continuidade em nova

roupagem.

Ironicamente também, a perspectiva ‘racista’ de Nina Rodrigues, explicitamente

condenada por seus discípulos, parecia ser mais reveladora dos conflitos sociais que

eles negarão em nome de uma harmonia racial e social, do que as noções de

‘sincretismo’ ou ‘aculturação’ utilizadas por eles para nomear esta harmonia ao

substituir a noção de raça pela de cultura. (Corrêa, 2001: 257)

Mas, o que toda essa discussão conceitual tem a ver com o argumento principal

desta segunda parte da tese? Volto a pergunta aos textos desses pretensos patronos:

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onde estão as pessoas com as quais os teóricos fizeram pesquisa neste processo

disciplinador da antropologia brasileira?

Tanto nos textos de Ramos quanto nos de Freyre, as pessoas desaparecem

subsumidas ao seu esforço analítico de se afastar da noção de raça; ou ainda na busca

por uma teoria geral, seja nacionalista, seja psicologizante. Ainda que Arthur Ramos

([1934] 1988a) tenha sido consagrado Ogan no terreiro do Gantois – um cargo honorífico

–, o povo-de-santo aparece pingado aqui e ali, perdido nas suas descrições rituais e em

meio às notícias de jornais que traz para seu argumento. Ou mesmo perdidas no diálogo

com Nina Rodrigues, que parece pautar todo seu texto, e com outros autores dos quais

toma dados dos mais diversos campos de pesquisa, desde o continente africano até

Cuba. Já as presenças se fazem ver como coletas mitológicas, por vezes de segunda mão,

e através da descrição de seus cantos. Em seu texto “Os mythos de Xangô e sua

degradação no Brasil” (Ramos, [1934] 1988), por exemplo, após mencionar diversos

relatos do mito de Xangô no continente africano, tirados de estudos de outros

pesquisadores, Ramos conclui que no Brasil este mito se degenera.

Xangô passou ao flok-lore brasileiro. Transpoz o circulo bahiano do culto yorubano

e avassalou os próprios terreiros bantu-fetichistas. O seu poder de absorpção foi

enorme. No Brasil, Xangô não é só hoje o orixá yorubano. É um termo geral,

incorporado ao patrimônio da língua e à larga esteira do nosso folk-lore. Xangô é um

orixá; é o próprio lugar das cerimônias fetichistas ou o fetichismo negro-brasileiro,

tout court; é uma entidade fantasmal escondida dentro do nosso inconsciente folk-

lorico. Xangô é uma ponte de união psíquica entre a África e o Brasil. (Ramos, [1934]

1988: 54, grifos no original)

Ao demonstrar como Xangô passa de um orixá a folclore brasileiro, o autor chega

à conclusão de que ele é também “uma ponte de união psíquica entre a África e o Brasil”.

O empírico, portanto, importa apenas como base para uma generalização. Hierarquiza-

se, assim, dados etnográficos (muitas vezes oriundos de outros trabalhos) e análise

nesta ciência emergente.

Ironicamente, nesta busca para fundar a antropologia brasileira, Arthur Ramos

se aproxima do procedimento analítico de Gilberto Freyre, ainda que suas conclusões

teóricas sejam distintas. Na epígrafe do seu Problemas brasileiros de antropologia

(1959), por exemplo, Freyre traz as palavras de Evans-Pritchard: “When we get

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accustomed to the anthropological way of looking at human cultures and societies, we

move easily from the particular to the general and back again”. Parece ser essa a

ambição de Freyre.

A dimensão empírica seria para Gilberto Freyre o que ele entende como “traços

culturais” de um lugar particular, o Nordeste. Deste lugar, ele se movimenta para uma

teoria social geral do Brasil. Mais tarde, da nação, ele ainda transnacionalizará sua

análise para a nação-mãe, Portugal, fundando, assim, as ideias luso-tropicalistas que

fomentarão o colonialismo tardio no continente africano49. A análise para Freyre,

portanto, precisa estar no nível da generalização com a qual se constrói as leis gerais. O

empírico desenquadrado do debate teórico torna-se, pois, pitoresco.

Freyre não parece, assim, estar interessado nos donos das matas e

encruzilhadas, mas sim no balanço (dos quadris) da mestiçagem que produz o brasileiro

ou o luso-tropical. Como, por exemplo, o artigo “Acontece que são baianos” ([1943]

1962), em que Freyre usa a pesquisa de Pierre Verger para falar dos brasileiros

retornados à Nigéria.

Talvez nenhum dos esforços de documentação fotográfica de interesse sociológico

ou antropológico já empreendidos por M. Pierre Verger iguale em importância a

coleção que o perito francês acaba de colher na África sobre um dos grupos

culturalmente híbridos que ali se encontram: descendentes de africanos que, tendo

estado no Brasil – principalmente na Bahia – regressaram à África, portadores de

costumes, hábitos, estilos de vida que aqui adquiriram; ou a que se afeiçoaram para

sempre. (...) Mas regressado à África abrasileirados, abaianados, aportuguesados em

vários dos seus hábitos, gostos, costumes e até vícios. (Freyre, [1943] 1959: 267-268)

Importante perceber que na obra de Gilberto Freyre brasileiros, baianos e

portugueses são definidos a partir de suas características comuns, vistas através dos

seus hábitos, gostos, costumes e, claro, vícios. São transformados assim em um só, o

luso-tropical. Ficam de lado as pessoas que dão um “colorido único” a um mundo que

não é homogêneo. De lado fica também a violência que foi o balanço dos quadris da

“mestiçagem” no Brasil.

49 Houve um recrudescimento do colonialismo com a instituição do Estado colonial em 1930, período do Estado Novo salazarista (Thomaz, 2005, 2006), altamente pautado nos ideais luso-tropicalistas. Estas mesmas ideias, transformadas em mitos do bom português apto a se misturar, ajudaram a encobrir as violências de uma guerra colonial brutal que já se iniciava (Thomaz, 2007).

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O esforço em trazer um pouco desse debate para este texto, mesmo que isso

faça com que as pessoas de Cachoeira desapareçam por instantes, tem como propósito

enfatizar a importância que a mobilização dos conceitos como raça e cultura exerceu

nos trabalhos que irão se consolidar como os Estudos Afro-brasileiros50. Os Congressos

aqui mencionados se mostram fundamentais na mudança de nomeação das próprias

escolas antropológicas. Em crítica posterior aos resultados do congresso, Carneiro

(1964) – chegando mesmo a afirmar que estes estudos “muito mal fizeram à inteligência

do problema do negro” – diz que “várias organizações surgiram, por essa época, com o

qualificativo de afro-brasileiras, orientando as suas atividades de acordo com o que se

supunha, na concepção popular, que fosse o ponto de vista científico” (:115).

É a partir dessa época que “o pensamento sobre as raças, a questão da

miscigenação e o problema negro se transferem da área de estudos racialistas para os

estudos etnológicos dos anos 30” (Pinho, 2010: 164). Relações raciais passam assim a

ser compreendidas “por meio de uma essencialização da miscigenação, fiel da balança

da unidade cultural nacional” (Pinho, 2010: 164).

A partir desta perspectiva, os congressos Afro-brasileiros dos anos trinta (1934 em

Recife e 1936 em Salvador) podem ser vistos como uma das instâncias onde se

coagula e negocia, de modo ao mesmo tempo institucional e discursivo, a

reivindicação por um olhar mais sensível à interpenetração de saberes distintos,

eruditos e populares, na perspectiva de dignificar a cultura negra e de fundá-la como

substrato para cultura nacional. Este movimento, bem caracterizado como a

instalação de uma certa postura política e intelectual, parece representar a

50 Para a relação entre esses conceitos nas obras de Gilberto Freyre e Arthur Ramos, e o problema da mestiçagem que os autores buscavam dar conta, ver Pinho (2008, 2010), Corrêa (1998, 2000, 2001) e Silva (2008). Cito mais longamente as palavras de Osmundo Pinho sobre o assunto: “O que a história da escola esclarece é a imbricação entre interesses de controle e disciplinamento social metamorfoseados como preocupações eugênicas, sanitaristas, médicas, psiquiátricas, etc. O que em Nina aparecia como um desafio, ‘esfinge do presente’, a demandar um esforço de superação pelo bem do interesse nacional, reaparece em Ramos e em Freyre como aculturação e miscigenação, em uma palavra, assimilação. Agora a questão é como transformar a massa desordenada de cafuzos e mulatos, em parte integrante do corpo nacional, degluti-los, canibaliza-los, como na inspiração modernista, tão loquaz na formação de certo imaginário freyreano. Raça e cultura participam assim de um mesmo continuum estratégico inserido no movimento mais amplo de acomodação entre uma elite branca, ou orientada por valores simbolizados como brancos e ocidentais, e a grande maioria da população, num ambiente de modernização. Este encontro tenso, tantas vezes tematizado nas artes e na cultura popular nacionais, atravessa a história deixando para trás um rastro de carne e sangue” (Pinho, 2010: 171-172)

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consolidação dos estudos afro-brasileiros, chamados por Ordep Serra com certa

ironia de afro-brasilianismo (Serra, 1995).” (Pinho, 2010: 180)51

A articulação desses saberes distintos, eruditos e populares, se dá na análise que

busca entender uma cultura nacional. Isso é fundamental para a antropologia

emergente. Pinho (2010) faz ainda outro desdobramento desta vertente, focando no

que chama de Estudos Afro-Baianos.

Escolhi, não sem alguma vacilação, chamar de Estudos Afro-Baianos a versão baiana

destes Estudos Afro-Brasileiros que parecem marcados pelo desejo de controle e

disciplinamento, e pela folclorização e entronização da cultura. Estes Estudos Afro-

Baianos consolidaram um temário específico sob uma forma institucionalizada nos

textos e em estruturas organizativas como a universidade. Estes conteúdos parecem

bem representados pela idéia de anterioridade da cultura africana e pela vontade

colecionante (o espírito do colecionador de borboletas). Baseados, além do mais, na

ênfase na assimilação ou mestiçagem, os Estudos formam um arcabouço para a

interpretação do Brasil que reserva um lugar determinado para afrodescendentes,

“pretas de fogareiro” ou “velhos feiticeiros” (...). (Pinho, 2010: 183)

A referência ao lugar dos afrodescendentes como “pretas de fogareiro” ou

“velhos feiticeiros” está relacionada ao texto de Freyre ([1934] 1937) que encerra o

Novos Estudos Afro-Brasileiros, compilação dos trabalhos apresentados no 1º

Congresso.

A technica do Congresso foi inteiramente nova. Não só nenhuma pompa como quase

nenhuma burocracia. Sentaram-se em volta da velha mesa, na cabeceira da qual se

sucederam os presidentes, conforme o assumpto do dia, não só doutores, com

grande erudição de gabinete e de laboratório, como ialorixás gordas, cozinheiras

velhas, pretas de fogareiro, que trouxeram do fundo de cozinhas de mucambos

receitas de quitutes afro-brasileiros quase ignorados; negros de engenho como

Jovino, cujo trabalho cheio de erros de português e de saudades do tempo

almanjarras saiu no primeiro volume de Estudos; babalorixás como Pae Anselmo;

rainhas de maracatu como Albertina de Fleury, cujo nome pareceu a José Lins do

Rego, de heroína de romance de Proust; outros analfabetos e semi-analphabetos

51 Nas palavras do próprio Ordep Serra (1995: 164): “O novo regionalismo nordestino dedicou-se a celebrar a mulatice, a originalidade sincrética da civilização tropical, valorizando também a herança africana como característica da rica bizarria da cultura do Nordeste, de tal modo que resultou quase sempre em inscrever no registro do exótico a presença negra no Brasil. As mais diversas manifestações afro-brasileiras vieram assim a situar-se na rubrica do folclore: a religião, a arte, a culinária, as técnicas corporais e de trabalho nas comunidades crioulas receberam o carimbo deste rótulo.”

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inteligentes, com um conhecimento directo de assuntos afro-brasileiros, de que

muito se aproveitou o Congresso; (...) Gente que se voltara para o assunto e

descobrira nessas “coisas de negro” mais do que simples pitoresco: uma riqueza

nova de emoção, de sensibilidade, até mesmo de espiritualidade; uma parte grande

e viva da verdadeira cultura brasileira; a arte dos Villa-Lobos e dos Cicero Dias nas

suas raízes mãos profundas”. ([1934] 1937: 348-349)

Se há articulação de saberes distintos, esta se faz por meio de uma clara

hierarquia. O pitoresco, como indício da “verdadeira cultura brasileira”, informa aquilo

que realmente importa: a análise científica dos “verdadeiros estudiosos”. Para Pinho

(2010: 183), no entanto, nesta construção teórica “o lugar determinado para

afrodescendentes” continua deslocado das circunstâncias sociais que o sustentam e,

portanto, ainda folclorizado. O continuum entre raça e cultura forneceria o

enquadramento analítico para os trabalhos que pretendiam fundar a antropologia

brasileira através de uma perspectiva generalizante carente de gente. O cotidiano do

povo de santo, por exemplo, mal aparece. Em meio a pretensões que buscavam fundar

uma disciplina, aquilo que forma o mundo das pessoas, suas formas de vê-lo e percebê-

lo, construindo conhecimento por meio da espiritualidade no dia-a-dia, fica de fora.

O caboclo, por exemplo, fundamental para a primeira parte desta tese, é para a

escola baiana o signo da degeneração – falarei sobre isso adiante. Quem dispendeu mais

tempo tentando descrever o culto aos caboclos foi Manoel Querino, autor resgatado

por Arthur Ramos, mas bastante esquecido neste debate. Por diversas vezes ele foi

considerado não intelectual, mas excelente pesquisador de campo. Nas cartas trocadas

entre Edison Carneiro e Ramos (Freitas Oliveira & Lima, 1987), o primeiro critica

duramente os textos de Querino, considerados por demais descritivos. Não por acaso,

Querino é um dos poucos não brancos nesse corpo científico que se formava.

O interesse aqui, no entanto, não é fazer antropologia dos autores canônicos dos

estudos afro-brasileiros. Muitos já o fizeram (Azeredo, 1986; Corrêa, 1988, 1997, 1998,

2000; Schwarcz, 1993; Maio, 1999; Massi, 1989; Silva, 2008; Rossi, 2011). Refletir sobre

o que incomodou Freyre na organização do II Congresso nos ajuda a olhar para a

literatura produzida após este momento. Os fios que irão guiar a nossa costura são esses

que muitas vezes guiam os trabalhos antropológicos: probidade científica e

envolvimento político. Como tentei brevemente mostrar, no caso dos estudos afro-

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brasileiros, essas duas questões estão intimamente ligadas aos debates em torno dos

conceitos de raça e cultura. E, por fim, espelham também as diferentes formas de

denominar esses mesmos estudos: afro-brasileiro, afro-brasilianista e afro-baiano.

Fiquemos com a atenção a esses fios – probidade científica e envolvimento político, o

uso dos conceitos raça ou cultura, e as escolas às quais os intelectuais se filiam. Por fim,

atentemos para a forma como são então mobilizados para se construir análises

antropológicas.

3) UM OLHAR MAIS SOCIOLÓGICO, CULTURA E RELAÇÕES RACIAIS

Voltemos às discussões em torno do livro de Ruth Landes ([1967] 2002), A Cidade

das Mulheres. Ao recordar as críticas de Melville Herkovits e Arthur Ramos à probidade

científica da obra da norte-americana, Mariza Corrêa (2000) faz um interessante

movimento analítico. Dois autores saíram em defesa de Landes contra seus consagrados

críticos, Franklin Frazier nos Estados Unidos e Edison Carneiro no Brasil. Para Corrêa,

estes embates tinham como fundo uma divergência nos métodos de pesquisa de cada

um desses autores.

Corrêa explicita a diferenciação da Escola Baiana através das correspondências

trocadas entre os discípulos de Nina Rodrigues:

A correspondência trocada entre ambos, pouco antes de E. Carneiro se transferir

para o Rio de Janeiro, mostra uma assimetria na relação: o jovem mulato baiano

procurando o apoio do professor de medicina, branco, já consagrado. Sua produção,

no entanto, parecia ser importante para o professor, na medida em que trazia dados

etnográficos de um cenário local do qual este estava afastado, mantendo também

acesa a atuação política regional e, nela, a importância do nome de Ramos para essa

atuação. (Corrêa, 2000: 247)

Como podemos ver neste trecho, há uma troca entre Edison Carneiro e Arthur

Ramos importante para o desenvolvimento da pesquisa de cada um deles. Como

demonstrado através das desavenças em torno do II Congresso Afro-Brasileiro, o

envolvimento político e a relação de Carneiro com os terreiros em Salvador eram

intensos. É esta intensidade que marca a diferença metodológica entre os dois autores.

Para Ramos, como vimos no trecho acima, morando no Rio de Janeiro já há muitos anos,

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a troca com Carneiro lhe fornecia material etnográfico ao qual não teria acesso de outra

forma. Em texto publicado somente após o falecimento de Arthur Ramos, ao defender

o trabalho de Ruth Landes, Edison Carneiro (1964: 225) demarca essa diferenciação

afirmando que seu amigo era “consciente de que seu contato pessoal com os

candomblés da Bahia era superficial”.

Arthur Ramos tinha iniciado suas pesquisas a respeito da situação do negro no país

como médico psicanalista e depois derivara para as ciências sociais. Como

consequência, seus primeiros estudos empíricos são estudos psicológicos e seus

estudos subsequentes são estudos históricos, nos quais compila estudos anteriores

ou realizados por outros. O trabalho de campo era um componente pequeno na sua

bagagem de pesquisa. (Corrêa, 2000: 247, grifos adicionados)

A divergência metodológica na academia norte-americana parecia similar. Os

trabalhos de Ruth Landes e de Donald Pierson, ambos conhecidos pelo longo período

em que passaram realizando pesquisas no Brasil, contrastavam com o de Melville

Herkovits. Se no Brasil Edison Carneiro saiu em defesa dos ataques de Ramos a Landes,

nos Estados Unidos foi Franklin Frazier quem enfatizou o caráter científico da pesquisa

da autora. Frazier argumenta que através do trabalho da autora podia-se perceber a

importância do candomblé como “centro de vida social” e não apenas “um centro de

culto e de festas religiosas” (Frazier 1942: 472)52. Livio Sansone (2002: 9) afirma que

Frazier teria uma recusa à “construção do negro como ser intrinsecamente cultural”, já

que em sua perspectiva era preciso mais do que um olhar para as religiões africanas, era

preciso não perder de vista as relações raciais. Segundo ele, ainda, esta recusa estaria

presente também em Guerreiro Ramos53.

52 Louis Marcelin (1996: 9) aponta para outra diferenciação teórica entre Melville Herkovits e Franklin Frazier com relação à concepção de família afro-americana. Segundo o autor, Frazier “se propunha a estudar as práticas familiares dos negros como expressão da desorganização consequente do sistema escravagista. Haveria uma tábula rasa que teria arrebatado ao negro seu passado familiar. Frazier – que era ele próprio negro – estava preocupado com os processos que dinamizavam as relações raciais, inevitavelmente no sentido da assimilação. Essa assimilação, conforme seu argumento, se dava por etapas: se o negro está sem família hoje, é por causa de seu passado de escravo.” Marcelin (1996: 9) continua: contra essa “tese da tábula rasa, Herskovits se insurgiu. Segundo ele, Frazier, ao tirar do negro sua história, fazia do negro um alvo fácil para as teorias racistas. Ao contrário, trata-se de revalorizar o passado negro, é preciso remontar à África para apreender os sentidos de suas práticas familiares”. 53 Ver Figueiredo & Pinho (2002: 197) para uma análise em torno dos trabalhos que refletem sobre a cultura dos negros, que seria um “problema do negro estudado de uma perspectiva eurocêntrica”, em contraposição àqueles que olham para as desigualdades raciais.

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A oposição de Landes à posição de Herkovits é paradigmática – ao passo que ele

lutava para impor sua visão sobre as “sobrevivências africanas” nas comunidades

de negros americanos, Landes mostrava em seu livro que as relações sociais baianas

eram uma adaptação local de tais tradições, ponto defendido também por Donald

Pierson. O debate de Herkovits com Frazier, aliás o único pesquisador norte-

americano negro a ter feito parte do grupo que veio ao Brasil, na época (e, não por

acaso, o único dos pesquisadores sobre a situação do negro brasileiro que não se

tornou ogã de nenhum terreiro na Bahia), já sugeria essa separação de perspectivas.

(Corrêa, 2000: 249, grifos adicionados)

Como já apontado na introdução deste capítulo, uma das críticas de Ramos e

Herskovits ao trabalho de Landes, segundo Mariza Corrêa, tinha a ver com a “sua ênfase

nas relações raciais, num momento em que a antropologia passava a dar ênfase a

explicações culturais” (Corrêa, 2000: 242, grifos no original). É interessante notar aqui

que a construção do argumento de Corrêa nos leva a associar as autoras e autores

conhecidos por longos períodos em campo a um olhar mais atento às desigualdades

sociais. Esta forma de olhar, mais tarde, deixará de ser uma questão antropológica para

se tornar central a alguns estudos sociológicos de intelectuais brasileiros.

Em Ladinos e Crioulos, livro tardio em que publica a crítica à reação de Arthur

Ramos ao trabalho de Ruth Landes, Edison Carneiro (1964) afasta-se analiticamente do

período inicial de consolidação dos estudos afro-brasileiros. Além disso, tece duras

críticas a Ramos, por quem até então nutria uma admiração profunda, conforme

mostram as cartas trocadas entre eles (Freitas Oliveira & Lima, 1987). Neste momento,

Carneiro parece se aproximar mais ao que ele denominou posteriormente de Estudos

dos Negros Brasileiros, ao tempo em que se afastava de seu primeiro enfoque na

religião. “Eu mesmo não pude fugir à correnteza nos primeiros tempos, mas creio ter

destruído o esoterismo dos estudos do negro com o meu Candomblés da Bahia, escrito

com a intenção declarada de servir à compreensão e à fraternidade entre os brasileiros.”

(Carneiro, 1964: 108). Sua análise passa, assim, a ser colocada dentro deste debate

(desta forma de olhar) tido como mais sociológico das relações sociais voltadas à

questão racial, o que o afastava do âmbito da cultura para o qual o estudo da religião

lhe levava.

O interesse com que nos devemos lançar à pesquisa não deve cifrar-se,

mecanicamente, à descoberta de sobrevivências, nem à verificação sumária da

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influência do negro, mas captar os processo atuais, de cada época e de cada região,

por meio dos quais certos traços se conservaram em relativo estado de pureza,

outros pereceram e ainda outros, dotados de maiores atrativos, encontraram o

caminho para a sua aceitação social. A busca desses processos, que foram muitos e

variados, deve ter uma finalidade duplamente útil – reconstituir as etapas vencidas

pelo negro como parte da sociedade brasileira e retirar deles o ensinamento que

contenham para a solução dos problemas nacionais. E, para falar com franqueza, não

estou muito certo de que a antropologia, tão cheia de si por haver descoberto o ovo

de Colombo da cultura humana, possa cumprir a contento esta simples tarefa.

(Carneiro, 1964:117)

A sua desilusão com a antropologia parece apontar para uma nova gama de

interesses de pesquisa, relacionados, como os anteriores, ao seu posicionamento

político. Dessa forma, ele propõe uma reorientação destes estudos. Tal reorientação

significaria,

(...) para os pesquisadores, a liquidação do esoterismo que os tem cercado e,

consequentemente, o encerramento definitivo do espetáculo do negro. E, para que

esta reorientação redunde na melhor qualidade dos estudos, tornam-se necessárias

melhor capacitação científica e maior dose de pesquisa, condições que valorizam e

dão permanência a trabalhos desta natureza, e maior probidade na apresentação

dos resultados da observação – a sua exata localização no tempo e no espaço e a

resistência mais decidida às generalizações, sem dúvidas fáceis, que têm viciado o

pensamento brasileiro nestes últimos anos. (Carneiro, 1964: 118, grifos

adicionados)

Ora, se não era essa a perspectiva de autores da primeira fase dos estudos afro-

brasileiros, de sempre generalizar a partir do particular, cada um à sua maneira como

vimos acima. A ênfase dada aqui por Edison Carneiro à “maior dose de pesquisa” que

fornece uma “maior probidade” – isto é, maior proximidade ao material etnográfico –

é, portanto, fundamental para marcar o seu afastamento do que, segundo ele, tem

“viciado o pensamento brasileiro nestes últimos anos”.

A diferenciação colocada por Corrêa (2000) com relação à forma de se fazer

pesquisa no debate que envolveu Ramos, Herskovits, Frazier, Carneiro e Landes é, nesse

sentido, ainda mais interessante. Como vimos, os estudos mais etnográficos se voltam

para a discussão do problema do negro no Brasil através de um olhar para as relações

raciais, se aproximando de um viés sociológico. O que é o caso dos trabalhos de Franklin

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Frazier e Donald Pierson. Este último, por exemplo, trouxe as preocupações em torno

das quais se firmava a Escola de Chicago, “sobre a integração de ‘diferentes’ na vida

urbana e a utilização de dados agregados” (Pinho, 2008: 11) 54.

A questão aqui é que a partir da clivagem que diferencia trabalhos considerados

mais descritivos de outros consagrados como teóricos, outras clivagens, hierarquizadas,

apareciam. Quais eram os pressupostos da classificação que distinguia “científico” de

“descritivo”? Neste momento, aquelas pesquisas de cunho mais etnográfico se

aproximavam do problema do negro apontado por Carneiro (1964), através de uma

abordagem mais atenta às desigualdades nas relações sociais, à medida em que se

afastavam do que havia sido até então delimitado como o problema dos Estudos Afro-

Brasileiros. Contudo, aqueles considerados mais teóricos – legitimados pela noção de

probidade científica e afeitos a generalizações culturalistas – tornavam-se cânones na

nascente Antropologia Brasileira. Edison Carneiro é um cânone dos Estudos Afro-

Brasileiros pelo seu trabalho com os candomblés da Bahia, não pelos seus Estudos do

Negro Brasileiro.

Começava a se desenhar a partir de então, como fui apontando com relação aos

trabalhos que se voltavam para as relações raciais, uma outra diferenciação neste

campo: entre uma sociologia da desigualdade racial e uma etnografia da cultura negra

(Pinho, 2008 e 2010; Figueiredo 2008; Silva 2008; Figueiredo & Pinho 2002). A década

de 1950 com o Projeto Unesco55 foi fundamental para consolidação desta nova

clivagem.

54 “As inúmeras tabelas que Pierson apresenta, sobre as diferenças na ocupação entre negros e brancos na Bahia, não foram capazes, entretanto, de convencê-lo da prevalência estrutural de desigualdades erigidas em bases raciais. Seria preciso esperar que Florestan Fernandes, e outros pesquisadores, muitos dos quais estrangeiros, engajados no Projeto Unesco, fizessem uso de dados agregados para denunciar, 60 anos após a abolição da escravatura, a persistência da desigualdade racial no Brasil. A vereda aberta por esses estudos quantitativos consolidou-se posteriormente, e de modo crítico, na obra de Hasenbalg (1979) e Valle Silva (1999)” (Pinho, 2008: 11). 55 A dimensão que as teorias luso-tropicalistas e da democracia racial brasileira de Gilberto Freyre tomaram em outras terras fez com que, na década de 1950, a Unesco promovesse um grande projeto para estudar as relações raciais no Brasil e verificar esta possível singularidade de relações harmoniosas: “(...) poderíamos dizer que a escolha do Brasil pela UNESCO mantinha uma estreita relação com as preocupações advindas do pós-guerra, visando acabar com as consequências da crença na existência de raças e do racismo. O Brasil, portanto, teria um bom exemplo a dar ao mundo, qual seja, a convivência harmônica entre as diferentes raças, já que aqui as raças não eram biologicamente consideradas” (Figueiredo, 2015: 156).

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Se, notadamente com o Ciclo da Unesco e o convênio Columbia/Estado da Bahia, nos

anos 1950, a sociologia dedicou-se a flagrar com recursos metodológicos específicos,

como o uso de estatísticas e dados agregados, padrões impessoais de desigualdade,

que se descreveriam como de base racial, a antropologia, caudatária da tradição dos

estudos afro-brasileiros, dedicou-se, nos anos heroicos de formação da disciplina, e

a até bem pouco tempo atrás, à documentação de aspectos culturais – ou seja,

estruturas simbólicas performadas – justamente daquilo que se instituiu

canonicamente como Cultura Negra nos anos 1930. (Pinho, 2008: 11)

Alguns autores da coletânea Raça: novas perspectivas antropológicas (Pinho &

Sansone, 2008) apontam para essa divisão e analisam as diferentes formas como os

conceitos de raça e cor foram sendo construídos, deixados de lado e depois retomados

ao longo da história das ciências sociais brasileiras. Quero aqui enfatizar não o debate

em si, mas a influência da clivagem posta entre um viés sociológico voltado para raça, e

outro antropológico voltado para cultura. Continuaremos, assim, no âmbito da

transformação dos Estudos Afro-Brasileiros na antropologia.

4) A FASE PÓS-RACIALISTA DOS ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS56

Depois da década de 1930, os “novos estudos afro-brasileiros” na antropologia

foram caracterizados pelo distanciamento dos estudos raciais e culturalistas norte-

americanos de até então, passando a surgir uma influência francesa que era

caracterizada pela substituição da “busca pelas formas com que a África se dissolveu no

Brasil pelos pedaços indissolúveis da África que teriam” aqui permanecido (Silva, 2008:

297). Fazendo parte de uma delegação de professores estrangeiros, o francês Roger

Bastide se destacou como estando à frente desta jornada ao chegar ao Brasil, em 1938,

para integrar o quadro docente da recém criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras

da Universidade de São Paulo, bem como a formação de seu Departamento de Ciências

Sociais (Silva, 2008: 297).

Como já dito com relação ao debate em torno dos termos raça e cultura, muitas

vezes ao se analisar a bibliografia antropológica apenas de uma perspectiva de

comparação entre autores, o que em geral fica de lado são as próprias pessoas com as

56 Osmundo Pinho (2010).

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quais os pesquisadores trabalharam em campo e que, portanto, os ajudaram a construir

suas análises. Quando se debruça mais detalhadamente sobre esses trabalhos,

principalmente os de Edison Carneiro, vê-se, no entanto, que eles são recheados de

nomes. Lisa Castillo (2010) fala da divisão entre os estudos até a década de 1930 e os

que vieram depois por meio da descrição de quais eram os terreiros privilegiados pelos

intelectuais em cada época.

De fato, a fama etnográfica do Opô Afonjá, incipiente na década de 1930, só

consolidou-se após a morte de Aninha e Martiniano (em 1938 e 1943,

respectivamente), nos anos de 1940, sob a liderança de Mãe Senhora. A imagem

dessa nova Ialorixá como a seguidora da tradição mais pura decorria não apenas de

seu parentesco espiritual com Aninha. Foi reforçado também pelo seu parentesco

biológico, como bisneta carnal de Obatossi, lendária ialorixá do Engenho Velho.

(Castillo, 2010: 140)

Na grande maioria dos trabalhos que discute candomblé na cidade de Salvador,

há sempre a presença das mesmas figuras para se contar a lendária história que marca

a Casa Branca, antiga roça da Barroquinha transferida para o Engenho Velho, como

primeiro terreiro da cidade. Obatossi, Iyá Nassô, Martiniano Eliseu do Bonfim,

Menininha do Gantois, Dona Pulquéria, Mãe Aninha, Mãe Senhora e outras referências

sempre aparecem nas narrativas. Se o cânone acadêmico é marcado pela presença

masculina, as mulheres estão em grande número nas etnografias. A repetição da

narrativa se dá pela característica oralidade das pessoas com as quais as pesquisas eram

realizadas nos terreiros de Salvador. Lembrando que “as fontes escritas para uma

história do Candomblé são, afinal, as fontes orais da narrativa” (Lima, 1987: 64), aquilo

“que disseram os pesquisadores – de Carneiro a Verger, – foi recolhido na tradição oral

das casas-de-santo: seus mitos, suas, por vezes, contraditórias genealogias, suas

racionalizações sobre o tempo e o espaço” (Lima, 1987: 64).

À época de Nina Rodrigues e Arthur Ramos, o terreiro visitado pela maioria dos

intelectuais era o Gantois. Como vimos acerca do II Congresso Afro-Brasileiro, a

presença da Ialorixá Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá se tornou cada vez mais forte nos

trabalhos de Edison Carneiro. Como Lisa Castillo colocou, é este o terreiro que irá

receber as incursões etnográficas depois da década de 1930, quando Mãe Senhora já

estava à sua frente.

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Na época em que Mãe Senhora assumiu a direção do terreiro, estava começando

também um novo fluxo de pesquisadores à Bahia, agora predominantemente

estrangeiros, entre eles Roger Bastide e Pierre Verger, os quais, nas décadas

seguintes, se tornariam autores referenciais no cânone etnográfico sobre o

candomblé. No final da década de 1940, esses dois estudiosos se afiliaram ao Opô

Afonjá, como também o fizeram muitos intelectuais brasileiros, entre os quais pode-

se citar: Jorge Amado, Carybé, Mário Cravo, Vasconcelos Maia, Antonio Olinto, Zora

Seljan, o pintor Rubem Valentim, o jurista pernambucano Rui da Costa Antunes e

Moises Alves. (Castillo, 2010: 140)

Roger Bastide e Pierre Verger inauguram assim a “fase pós-racialista dos estudos

sobre o negro” (Pinho, 2010) na Bahia e consolidam o Ilê Axé Opô Afonjá, principalmente

o primeiro, como o lugar de excelência da cultura nagô, “expressão mais sofisticada da

civilização africana no Brasil” (Pinho, 2010: 125). Embora pouco se possa saber do

terreiro através das leituras de seus textos, Bastide se consolida como alguém que

estava preocupado com a “mentalidade africana, a estrutura cultural profunda dos ritos

e mitos, a genealogia do pensamento religioso, e a reposição da África como

anterioridade que explicaria o ‘porquê’ dos candomblés pela sua origem” (Pinho, 2010:

124-25). As próprias palavras de Bastide com relação ao seu O candomblé da Bahia são

bastante elucidativas da teoria antropológica que ele irá construir.

Nossa tese principal foi consagrada ao problema das transformações, das

interpenetrações e das metamorfoses resultantes do contato entre civilizações. Mas,

mesmo que os traços de “culturas” africanas tenham sofrido modificações, na

verdade o candomblé não deixa de constituir um sistema harmonioso e coerente de

representações coletivas e de gestos rituais. Mesmo se a religião africana subsiste

porque responde a certas funções ou a certas necessidades, isso não impede que o

candomblé tenha sua estrutura e que essa estrutura mereça estudo paciente e

especial. Assim, pois, neste trabalho, não nos preocupa a busca da origem africana

ou não-africana deste ou daquele traço, nem o possível sincretismo deles com os

da civilização luso-brasileira; indicamos ao leitor, quanto a esse ponto, nossa tese

principal. Estudaremos o candomblé como realidade autônoma, sem referência à

história ou ao transplante de culturas de uma para outra parte do mundo. Não nos

preocuparemos também com o enquadramento das descrições em sistemas de

conceitos tomado à etnografia tradicional ou à antropologia cultural. Não porque os

desdenhemos, mas porque nos parece mais útil abrir horizontes do que caminhar

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por sendas já percorridas. (Bastide, [1958] 2001: 23-24, grifos no original, negrito

adicionado)

Cultura em Bastide, portanto, desvencilha-se de vez do debate com o termo raça

e se aproxima cada vez mais da ideia de uma cultura entendida como estrutura

simbólica. As preocupações dos pretensos fundadores da antropologia brasileira são

claramente rejeitadas pelo francês. O sincretismo luso-tropical de Gilberto Freyre ou a

tese de aculturação de Arthur Ramos nada acrescentam ao entendimento da

mentalidade africana.

Enquanto a aculturação não penetrou até o âmago das mentalidades, ou enquanto,

em consequência do princípio de corte, as mentalidades não mudaram senão em

certos domínios, político, econômico, mas não religioso, a reinterpretação se faz

sempre através dos valores, das normas, dos ideais africanos. (Bastide, [1960] 1971:

532, grifos adicionados)

A disposição analítica de Roger Bastide parecia ser a de configurar um fundo

simbólico comum aos cultos africanos no Brasil, o que fez com que Ordep Serra (1995:

129) consagrasse a sua obra como “o mais profundo ensaio de interpretação sinótica

das religiões negras do País”, até pelo menos a década de 1990. De acordo com Márcio

Goldman (2011: 416), Bastide teria empreendido uma “tentativa de construir um

quadro mais amplo dessas religiões” ao mesmo tempo em que procurava “sustentar a

ideia de que existiria uma complementaridade entre os ‘métodos’ da ‘pesquisa

etnográfica’ e da ‘interpretação sociológica’” 57. A causa do autor francês era, assim,

extremamente importante, pois procurava mostrar “que esses cultos não são um tecido

de superstições, que, pelo contrário, subtendem uma cosmologia, uma psicologia e uma

teodiceia; enfim, que o pensamento africano é um pensamento culto” (Bastide, [1958]

2001:24). Além disso, é inegável o seu envolvimento com o povo-de-santo de Salvador.

O foco de Bastide na mentalidade, no entanto, afasta-o na sua análise de pessoas e

57 De todos os autores que podem ser categorizados como clássicos dos estudos das religiões de matriz africana, Roger Bastide é sem dúvida um dos mais aclamados. Sua proposta teórica é retomada, ainda que com críticas, por diversos trabalhos. Mácio Goldman (2011: 425) propõe que tomemos Roger Bastide como “cavalo de santo”, ou seja, como “meio de transporte da palavra, do saber e da vida” do povo-de-santo. O trabalho de Bianca Soares (2014), por exemplo, inspirada pelo trabalho de Goldman (2011) e de Ordep Serra (2014) procurou “retomar a tentativa levada a cabo por Roger Bastide (1971) no sentido de construir um quadro sinótico, tal qual Serra (1995) definiu o empreendimento de Bastide, das religiões de matriz africana no Brasil” (Soares, 2014: 11-12). Ver ainda o dossiê (Contra)Mestiçagens Ameríndias e Afro-americanas organizado por Panzzarelli, Sauma & Hirose (2017).

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entidades com quem ele convivia no Ilê Axé Opô Afonjá para se voltar a expressões que

seriam próprias ao pensamento africano manifestado no candomblé.

Para Bastide os estudos afro-brasileiros anteriores deixavam de lado a característica

que o seu olhar, treinado por uma forte tradição filosófica francesa, não poderia

deixar de perceber: a presença no mundo dos candomblés de uma metafísica sutil

cujo entendimento deveria ser o principal objetivo da investigação antropológica.

(Silva, 2008: 299, grifos adicionados)

Em um debate com a academia francesa da época, Roger Bastide tinha um ponto

a defender com relação ao seu conceito de “pensamento africano” que, de acordo com

suas pesquisas, “não pode ser definido nem pela participação de Lévy-Brühl, nem pela

classificação de Durkheim. Ambas são complementares, a classificação não sendo uma

classificação de seres, como entre os ocidentais, e sim de forças e participações”

(Bastide, [1958] 2001: 257). A participação seria, pois, mítica, não mística, ainda que o

místico aqui não contradissesse o que é lógico (Bastide, [1958] 2001: 260). Para o

candomblé, assim,

(...) é a tradição mítica que fornece ao mesmo tempo os quadros dos mecanismos

de pensamento, das operações do comportamento humano e, finalmente, das

trocas sociais, enquanto em nossa sociedade é preciso inverter a ordem dos

elementos, passar das trocas sociais para o comportamento, deste para os

mecanismos das operações lógicas e, finalmente, para as ideologias. ( Bastide, [1958]

2001: 265-66)

As entidades aqui existem, mas dentro de uma estrutura de pensamento

lógico/classificatório – “desejoso de encaixar entre si os compartimentos do real e de

fornecer ao pensamento um mecanismo operatório” (Bastide, [1958] 2001: 261). As

presenças seriam forças e participações que respondem a um raciocínio matemático de

um princípio de cultura irredutível.

Mesmo quando a miscigenação as misturou por meio da união sexual, ainda assim

essas etnias não se fundiram umas nas outras, conservando cada qual, apesar de

tudo, certo número de traços culturais irredutíveis e agrupando-se em “nações”. Na

Bahia não existem mais hoje indivíduos eves, iorubás, angolas e congos, mas essas

“nações”, todavia, sobreviveram sob a forma de candomblé, ritual ou musicalmente

diferentes. Assim como os indivíduos tinham pensado sobre a coexistência e as

relações das coisas, foi preciso, no Brasil, pensar sobre a coexistência e as relações

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dos povos. Pois bem! Para isso os negros adotaram essa genealogia matemática de

que falamos, podendo-se dizer que ela constitui uma primeira tentativa de sociologia

africana. Apolinário Gomes de Mota, falando da “vassoura de Nanã Burucu”,

formada de raminhos reunidos por uma tira de pano em que estão costurados

búzios, conta que o número dos búzios indica a “nação”: “O nagô deve ter doze

búzios, o jeje deve ter oito, o congo deve ter dezesseis, o xambá deve ter doze”. Não

se pode mostrar de maneira mais clara que a numeração é um processo operatório

que age, e não simples mística cristalizada, uma vez que é aplicada aos fatos novos

de maneira a permitir que se possa pensar a respeito desses. (Bastide, [1958] 2001:

261)

O mundo vivido das pessoas de santo se perde no salto para o que é considerado

propriamente analítico, onde o que conta é a estrutura simbólica. O foco na

racionalidade embaça a vista da espiritualidade. A própria existência das entidades é

subsumida num esquema analítico particular: nas sobrevivências africanas que estariam

no âmbito da mentalidade e que operariam processos classificatórios diante da nova

configuração social imposta pela convivência entre outros povos, eves, iorubás, angolas

e congos, que foram transformados em nações nesta nova configuração. O candomblé

seria, então, o locus privilegiado para o analista desvendar “a memória coletiva negra

desencarnada” que teria se recolocado “sob condições sociológicas determinadas

através da prática do culto.” (Pinho, 2010: 126). Nesta perspectiva, “o candomblé não é

apenas uma religião, mas um modo de reconstrução de vida africana no Novo Mundo,

uma reconstrução guiada pela ‘mentalidade africana’” (Pinho, 2010: 126).

Para Bastide, portanto, a reconstrução da vida africana se dá através de

processos simbólicos e matemáticos, como o exemplo dos búzios e a sua relação

numérica com as diferentes nações do candomblé. Neste esquema, as entidades são os

ancestrais africanos desta mentalidade. Mas e as entidades conhecidas no encontro com

os povos das novas terras, não os de origem africana, como o caboclo? Com relação ao

uso das ervas em terra brasileiras, por exemplo, Roger Bastide argumenta:

Para agir, isto é, para tratar de seus doentes ou para preparar os banhos das

candidatas à iniciação, era preciso primeiro “refletir” sobre um mundo vegetal novo.

E foi aplicando o esquema operatório do simbolismo que o fez. Conseguiu inserir nos

quadros de sua classificação as “ervas” brasileiras, da mesma forma que o botânico

ocidental, ao explorar um país novo, consegue situar espécies vegetais

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desconhecidas dentro dos quadros da classificação de Lineu. (Bastide, [1958] 2001:

262)

Já havíamos aprendido com Doné Maria Conceição, no primeiro capítulo desta

tese, que quem havia ensinado aos negros sobre as ervas foram os donos da terra, os

caboclos. Para ela, o aprendizado se dá a partir de uma relação estabelecida com

entidades que se fazem presentes; para o analista, o aprendizado indica nada mais do

que um esquema operatório, um raciocínio matemático.

Os trabalhos dessa nova fase francesa que teve Roger Bastide como mentor são

assim marcados por temas caros à teoria antropológica: pares de oposição e a

composição mito-rito que compõe uma estrutura/mentalidade na qual se encaixam, por

vezes transformam, as práticas do candomblé. A ideia de sobrevivência africana persiste

em um invólucro de cultura representada nas casas tomadas como mais puras, do ritual

nagô – como quer o subtítulo da obra de Bastide O candomblé da Bahia: rito nagô. Nagô

é uma categoria chave, desde Nina Rodrigues, das análises antropológicas do candomblé

de Salvador – criticado, como veremos adiante, pelo trabalho de Beatriz Dantas (1988)

através do debate que ficou conhecido como “pureza nagô”.

No contexto cachoeirano, o trabalho de Vilson Caetano Sousa Júnior (2005) –

cuja dedicatória é à Iemanjá “que se transformou em pedra para tomar conta da cidade

de Cachoeira” –, explora como a ideia de nagô aparece nas histórias contadas pelos mais

velhos da cidade. A concepção de nagô aqui parece se afastar da que seria usada nos

terreiros de Salvador, geralmente relacionada aos candomblés de nação queto.

As aproximações com os candomblés de Cachoeira levou-nos a perceber que os

terreiros desta cidade foram capazes de elaborar um modelo ritual próprio,

autodenominado nagô, e mais, que a nação nagô falada, a que estes se referiam,

possuía história e características próprias, além de remeter a nomes de africanos que

não aparecem na cidade de Salvador ou que, até então, não foram referendados

pelos estudos afro-brasileiros. (Sousa Júnior, 2005: 25, grifos adicionados)

A questão aqui é que ao se concentrar nas casas nagôs, muitos autores deixavam

de lado muito do que compõe o dia-a-dia na cidade de Salvador, além de cair na

repetição já apontada: mesmas casas, mesmos nomes. Trabalhos mais contemporâneos

enfatizam as relações de pessoas e entidades fora dos terreiros, assim como a presença

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de diversos cultos realizados nas casas das pessoas (Rabelo, 2011 e 2014; Galrão, 2011;

Tall, 2012; Conceição, 2015, Wafer, 1991).

Orixás, exus, erês e caboclos são forças atuantes na vida das pessoas que

acompanhei: adensam as relações dos seus médiuns com familiares e vizinhos,

mobilizam e põem em diálogo a casa e o terreiro. Entre esses sujeitos, a descoberta

e consolidação de laços com as entidades sagradas muitas vezes antecederam o

estabelecimento de vínculo formal com algum terreiro, ocorrendo no contexto de

empreendimentos religiosos domésticos ou quase domésticos e mesmo no espaço

familiar. (Rabelo, 2014: 64)

Numa perspectiva que se centra apenas no local do terreiro e nos rituais que lá

são realizados, o que é entendido como mitologia dos orixás se sobrepõe às vivências e

aparecem como “representações coletivas” que possuem “toda a força das tradições”.

Constituindo-se em “mecanismos de operação lógica para apreender o real. Exatamente

como os ritos, que além disso estão ligados aos mitos, constituem métodos de

manipulação da mesma realidade” (Bastide, [1958] 2001: 265).

Ao contrário do que ocorre em obras centradas nos terreiros de Salvador, as

pessoas da cidade abundam nas fotos de Pierre Verger. O mesmo, contudo, não se pode

dizer de seus escritos. Ele próprio admite isso: “Não estava entre minhas intenções

descrever ‘os costumes e crenças estranhas de uma população africana’. Eu fazia aquela

pesquisa para mim mesmo e para meus amigos da Bahia” (Verger, 1982: 257). Seu

pequeno livro Artigos (1992) é um bom exemplo disso. São páginas e páginas de

descrição dos mitos sem referência às situações de enunciação das pessoas que lhe

narraram. Além do mais, parte das fontes analisadas com relação ao mito das Iyamí, por

exemplo, são textuais de antigos pesquisadores e viajantes. Parece assim tratar-se de

uma compilação com o propósito de ser eventualmente usada para uma comparação

de cunho estruturalista. Qual a diferença, assim, entre povoar textos com fotografias e

descrever narrativas míticas literais?

Embora Verger fosse conhecido crítico de trabalhos acadêmicos e da própria

linguagem escrita, na passagem para o seu texto, perdia-se a sua intensa relação com as

pessoas e mesmo o seu conhecimento adquirido ao longo de tanto tempo de pesquisa

e amizade com as pessoas no Brasil e no continente africano. Como bem afirmou Jerôme

Souty (2011: 157), “com Verger, o diálogo acontece em campo, mas pouco no texto. Ele

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comunicou a subjetividade dos atores, a vivência das situações e a poesia dos rituais

mais pela imagem que pelo texto.” Como veremos mais adiante, a forma é essencial

para comunicar a poética do mundo vivido.

Verger transcreve os saberes orais da forma mais fiel possível e não reinterpreta as

falas dos atores. No entanto, somos forçados a constatar que, em suas obras

etnográficas, quase não se ouve a voz direta, singular e individualizada de seus

informantes: eles permanecem anônimos e sem identidade visível. Os meios ou os

intermediários e o contexto pelos quais essas informações foram coletadas são

citados com frequência, (...) mas os fatos são apresentados muitas vezes como fatos

culturais, impessoais e anônimos. Não se percebe a presença direta de atores

individuais. (Souty, 2011: 156-157)

Essa forma de escrita de Verger fica clara no seu debate com Juana Elbein dos

Santos. A autora ficou conhecida por inaugurar o conceito de pesquisa para o

candomblé “desde dentro” que permitiria uma “desmistificação de ideologias

importadas e superpostas” (Elbein do Santos, [1975] 1986: 20).

O etnólogo, com raras exceções, não tem desenvolvimento iniciático, não convive

suficientemente com o grupo, suas observações são, na maioria das vezes, efetuadas

“desde fora”, vistas através de seu próprio quadro de referências; raramente ele fala

a língua de seus pesquisados e frequentemente recebe informações por intermédio

de tradutores que, por sua vez, conhecem mal a língua do etnólogo. A observação

parcial, a pouca convivência, não lhe permitem distinguir os fatos acidentais ou

excepcionais, nem distinguir os ciclos ou sequências, nem as relações entre objetos

dispersos ou de ritos aparentemente diacrônicos. Mesmo a utilização de uma

terminologia vinda de sua própria área cultural ou profissional o levam, às vezes, a

deformar o material observado (a célebre interpretação dos fenômenos e possessão

em crise de epilepsia, para citar apenas um exemplo). Isso leva a descrições

fragmentárias – ou mesmo totalmente deturpadas, obscuras – que podem induzir a

graves erros àqueles que utilizam esse material como base de construções teóricas.

Os exemplos abundam.” (Elbein do Santos, [1975] 1986: 18)

Embora engajada politicamente com a comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá, esse

mundo, o próprio mundo da autora, no entanto, perde-se na sua mais famosa obra

antropológica, Os Nàgô e a morte. A autora marca sua perspectiva através do uso da

linguagem: enfatiza a grafia iorubá, ao passo que estrangeiriza palavras do português,

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como terreiro, ao usá-las entre aspas58. As pessoas aqui são também ofuscadas pela

estrutura simbólica, não possuem nome, voz, presença e tornam-se “integrantes” que

“vivem e absorvem os princípios do sistema”, por meio “da iniciação e de sua

experiência no seio da comunidade” (Elbein dos Santos, [1975] 1986: 37).

A atividade ritual engendra uma série de outras atividades: música, dança, canto e

recitação, arte e artesanato, cozinha etc., que integram o sistema de valores, a

Gestalt e a cosmovisão africana do “terreiro”. Os membros da comunidade Nàgô

estão unidos não apenas pela prática religiosa, mas, sobretudo, por uma estrutura

sócio-cultural cujos conteúdos recriam a herança legada por seus ancestrais

africanos. (Elbein dos Santos, [1975] 1986: 37-38, grifos no original)

Logo no início de seu trabalho, Juana Elbein do Santos ([1975 1986: 14-15) deixa

claro de quais estudos ela pretende se afastar: “não entra em nosso propósito tratar dos

grupos aculturados”. Seu trabalho focaria, pelo contrário, nos “grupos tradicionais bem

representados pelas comunidades” dos três terreiros aqui já mencionados (Casa Branca,

Gatois e Ilê Axé Opô Afonjá), que fundam a narrativa de origem dos candomblés na

“cidade que mereceu a alcunha de Roma Negra, graças à grande sacerdotisa Nàgô, a

célebre Ìyálôrìsà Aninha” (Elbein dos Santos, [1975] 1986: 14-15, grifos no original).

Elbein dos Santos define tais casas como os “lugares de culto Nàgô (...), onde, até hoje,

se continua a praticar a religião tradicional negro-africana no Brasil” (Elbein dos Santos,

[1975] 1986: 14-15, grifos no original). Pontua, assim, onde foi realizada a sua pesquisa.

Do “terreiro” mais antigo que se conhece – onde se instalou o primeiro culto público

de Sàngó – situado na Barroquinha e, depois, transferido para o Engenho Velho onde

existe até hoje, o Ilé Iyé Iyá-Nàssó, derivam o Ilé Ósôsì nas terras conhecidas com o

nome de Gantois e enfim o Àse Òpó Àfòjá, em São Gonçalo do Retiro, onde foram

efetuados os estudos de base do presente trabalho e que utilizarei a título de

referência. (Elbein dos Santos, [1975] 1986: 14-15, grifos no original)

Por fim, as imagens ao final de seu livro demonstram bem a teoria proposta pela

autora, na medida em que prescinde de qualquer influência do lugar de onde elas foram

58 Juana Elbein dos Santos redefine conceitos caros aos estudos que até então haviam sido feitos nos candomblés de Salvador, como o de axé: “O áse de um ‘terreiro’ não é ‘o líquido que contém um pouco de sangue de todos os animais sacrificados’ com ‘um pouco de todas as ervas que pertencem aos diversos òrìsà’ (E. Carneiro 1948: 116-117, e citado por R. Bastide, 1961: 86), é um poder de realização, transmitido através de uma combinação particular, que contém representações materiais e simbólicas do branco, do vermelho e do preto do àiyé e do òrun” (Elbein dos Santos, [1975] 1986:42-43, grifos no original).

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tiradas. Não importa, pois, se na Nigéria, Benin, Cuba ou Bahia, já que não se está

olhando para pessoas, mas para a representação analítica do que seria nagô.

Em 1982 a Revista Religião e Sociedade publica um debate acalorado que

representa bem algumas das visões correntes nesta época. Com o volume intitulado

“Debate da Tradição Nagô”, os artigos que integram o dossiê trazem grandes nomes

como os já citados Juana Elbein dos Santos e Pierre Verger, como também Beatriz

Dantas, Patrícia Birman, Carlos Vogt e Peter Fry. A revista começa com um debate

teórico entre os dois primeiros.

O texto de Verger tece duras críticas à obra de Juana Elbein dos Santos. O ponto

principal do argumento do autor é uma suposta inexatidão dos dados da autora com

relação ao mito que faz referência às divindades Oduduá e Obatalá. Segundo Verger,

Elbein dos Santos “fundamenta então agora uma teoria bastante sofisticada,

confundindo, entretanto, e reunindo sob mesma designação noções que são na

realidade diferentes, sem haver mesmo entre elas nenhuma relação de significado”

(Verger, 1982: 9-10).

Existe na autora uma tendência um pouco hoffmanesca para as almas-do-outro-

mundo, as feiticeiras e Exus. Ela tem todo o direito de seguir suas inclinações, mas

onde estamos menos de acordo é quando, partindo de dados inexatos, algumas

vezes manipulados, ela edifica “sistemas” de uma lógica impecável, muito bem

acolhidos, diga-se de passagem, nos congressos científicos internacionais, mas que,

examinados com cuidado, são um tecido de suposições e de hipóteses

inteligentemente apresentadas, não tendo nada a ver com a cultura dos Nagô-Iorubá

e correndo o risco de contaminar as tradições transmitidas oralmente, ainda

conservadas nos meios não-eruditos. Nós não estamos mais no tempo de Nina

Rodrigues, quando as tradições eram ainda bastante fortes para negar e rejeitar as

extravagâncias do padre Baudin, do tenente-coronel Ellis e de compiladores e

intelectuais diversos. (Verger, 1982: 10, grifos no original)

A resposta da autora não fica atrás em termos de dureza e crítica. Juana Elbein

dos Santos chama Pierre Verger de colonialista, paternalista e conservador, fascinado

“pela beleza” e pelo “exotismo” do “bom primitivo”, limitando-se a fotografá-lo e

descrevê-lo o que se aproximaria dos “compiladores, contadores de histórias, de ritos,

de heróis” (Elbein dos Santos, 1982: 11). Explicitando a influência de seu orientador,

Roger Bastide, Juana Elbein dos Santos afirma que Verger se sente ameaçado “pela

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competição, em base igual, de uma filosofia outra que não a sua” (Elbein dos Santos,

1982: 3). O embate aqui é quanto à forma da análise de mitos. Verger acusa a autora de

usar com inexatidão dados referentes aos mitos dos orixás e de Exú, um problema,

portanto, de imprecisão do material etnográfico. Tal imprecisão resultaria em uma

análise que não tem “nada a ver com a cultura dos Nagô-Iorubá”. Elbein dos Santos, por

sua vez, o acusa de não ter descoberto ainda “as subjacências simbólicas, a relação do

visível com o invisível, do movimento com o gesto, do transcender do discurso manifesto

dos mitos e ações estruturadores de identidade” (Elbein dos Santos, 1982: 11). Um

problema, pois, de se limitar ao material etnográfico e não valorizar a passagem para o

nível analítico.

Repetimos que não se trata apenas de divergências acadêmicas ou de uma

probidade científica manipulada, de compreensão e/ou tradução de algumas

palavras ou traços. Trata-se do enfoque de conjunto, de radicalizar os conceitos de

percepção, de comprometimento público e de responsabilidade histórica. Tem razão

o sr. Verger, não estamos mais na época de Nina Rodrigues. Mudam os donos dos

códigos. A antropologia, as ciências sociais, estão se descolonizando. Hoje, os países

africanos e latino-americanos, as chamadas “minorias”, estão estruturando novos

institutos e novos cientistas. Ainda em dificuldades, os intelectuais estão se

questionando. Depois de tantos genocídios, guerras pela independência e lutas, o

exercício decidido da descolonização e a afirmação de alteridades como “sujeitos

sociais” numa coexistência dialética e democrática nos parece ser o melhor caminho

para nossas nações substancialmente pluralistas. (Elbein do Santos, 1982: 14, grifos

adicionados)

A autora tem razão. Mudam os donos dos códigos. E código antropológico é tudo

o que temos à vista ao atravessarmos as obras sobre candomblé. Assim se faz

antropologia, com o material etnográfico subordinado aos diferentes códigos e modelos

analíticos dos mais variados autores. Até aqui, aprendemos mais sobre a disciplina do

que sobre o mundo das pessoas de santo. É em torno de disputas acerca da probidade

científica que os antropólogos parecem se concentrar. Quem é mais exato que um, mais

teórico que outro. Ou ainda, em torno de disputas conceituais e narrativas míticas.

Iremos ainda para mais um destes embates – o da “pureza nagô” – e para a segunda

fase da escola baiana, onde sobrevivências passam a significar resistência.

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5) MISTURAS: FOI DEUS, IEMANJÁ MESMO E MINHA MÃE IANSÃ

Ainda que Beatriz Dantas ([1982] 1988) faça uma discussão com os trabalhos até

aqui mencionados, de Nina Rodrigues a Juana Elbein dos Santos, nesta sessão

contrastarei a sua obra com os trabalhos de intelectuais baianos a partir da década de

1970. Quero aqui mais uma vez atentar para as categorias com as quais o candomblé

passa a ser conceituado. A escola baiana continua sendo marcada pela fala masculina e

pelo envolvimento político. Esse último parece ser, em Dantas, a fonte maior de

improbidade, o perigo que ameaça a pureza analítica.

O artigo de Beatriz Dantas “Repensando a pureza nagô”, no já mencionado

dossiê de 1982, parece ser o resumo da obra Vovó Nagô, papai branco ([1982] 1988).

Seu título foi inspirado na história de vida de Dona Bilina, mãe-de-santo de uma casa de

candomblé “puro” no bairro de Laranjeiras, em Sergipe. O terreiro de Mãe Bilina é o

principal lugar usado por Dantas para combater o que seria um ideal de pureza nos

terreiros baianos. O artigo resume também a própria crítica que aparece nos outros

textos do dossiê com relação ao que eles conceituaram como “pureza nagô” (Dantas,

Birman, Fry & Vogt, 1982). Esta categoria seria uma “representação dos intelectuais”

que, estando supostamente diante de “tradições de origem africana” cuja fonte seria “a

memória coletiva negra”, constituíram “um saber sobre o “afro”, com o objetivo de

manter o negro no seu lugar, o lugar de dominado” (Dantas, 1982: 16).

Ao transformar esta categoria nativa em categoria analítica, prática que teria se

iniciado com Nina Rodrigues e se firmado com toda uma corrente de estudiosos do

candomblé da Bahia apegados aos africanismos, os antropólogos teriam contribuído,

especialmente na Bahia, através da construção do modelo jeje-nagô, tido como o

mais puro, para a cristalização de conteúdos culturais que passam a ser tomados

como expressão máxima de africanidade e através dos quais se representará o

africano. Essas representações não se construíram independente das estruturas de

poder da sociedade, assim como não escaparam a elas as relações dos antropólogos

com seus objetos de estudo, os candomblés “mais puros”, dos quais eles vão se

tornar ogãs e intermediários com o mundo dos brancos. (Dantas, 1982: 17)

Os termos antropológicos aqui perdem espaço para uma linguagem considerada

mais sociológica. Estruturas de poder, lugar do dominado e sociedade são noções usadas

para criticar uma perspectiva de análise que ressalta “a valorização do nagô, concebido

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como o africano mais puro e, portanto, mais exótico”, transformando, assim, “o negro

em africano e o familiar em exótico” (Dantas, [1982] 1988: 201). Para a autora, tal ponto

de vista leva a uma “celebração do africano” que “traz em seu bojo um movimento de

retorno à África, que se faz, sobretudo, no plano do simbólico” (Dantas, [1982] 1988:

201). A noção culturalista/estruturalista de influência francesa é atacada por uma noção

de cultura, muito próxima à de Gilberto Freyre, que se distancia da raça, e de qualquer

ideia de africanidade, buscando colocar o candomblé dentro da sociedade nacional.

Contra uma pureza africana, ela elege uma mistura brasileira.

Apesar da sua interessante estratégia comparativa de olhar para os diversos usos

das categorias acadêmicas ao longo do tempo – racialistas, psiquiátricas, culturalistas,

antropológicas –, a autora, empenhada em criticar os trabalhos feitos na Bahia, usa o

seu campo apenas para confirmar suas hipóteses. Dona Bilina aparece em seus textos

com o propósito de confirmar uma tese formulada em relação a um debate

antropológico pré-existente ao campo. É a noção de pureza e a distinção conceitual

entre religião e magia que guiam o argumento de Dantas ([1982] 1988: 230): “a ‘pureza’

é o recorte que é feito sobre os cultos afro-brasileiros que são classificados segundo um

critério moral e valorativo (puro/impuro), e esta operação recobre as linhas do

‘domesticado’ e do ‘perigoso’.”

A oposição antropológica entre pureza e contaminação foi justamente o que Beatriz

Dantas (1988) considerou ser a base da ancoragem teórica da etnografia do

candomblé. Partindo de uma análise das diferenças entre as ideias sobre o que

constituía a “pureza africana” nos terreiros da Bahia e de Sergipe, Dantas inferiu que

as divergências entre os dois lugares apontavam para uma influência exercida pelos

antropólogos sobre o povo de santo da Bahia. (Castillo, 2010: 16)

Peter Fry ([1982] 1988: 16), no prefácio do livro de Dantas, afirma que a “África

da Dona Bilina, então, não é a dos terreiros nagôs da Bahia”. Esta “descoberta”

justificaria a “aventura antropológica de tentar desvendar os processos através dos

quais se produzem várias áfricas no Brasil, várias formas de cultuar a tradição africana”

(Fry (1982, 1988):16). A importante premissa de que as identidades são construídas ao

longo de processos sociais e históricos cai na total rejeição da ideia de africanidade. Daí

o título Vovó nagô, papai branco, que enfatiza a mistura brasileira. E se essa ênfase é

derivada de um olhar a processos sociais e históricos, é um olhar tal que evita abordar

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um aspecto central desse processo social e histórico, a escravidão brasileira. Sobre a

narrativa trazida por Dantas da história de vida de Mãe Bilina, Ordep Serra afirma: “a

figura dominante em sua memória vinha a ser um fantástico Papai Branco, presença

protetora pairando sobre a de Vovó Nagô. Impossível não ler na sua teologia a violência

terrível do branqueamento” (Serra, 1995: 157). O título é, portanto, duplamente

violento e desrespeitoso: em nome de um debate conceitual em torno da “pureza

nagô”, ignora-se a violência implicada na mistura; em nome da rejeição da noção de

raça, resvala-se na negação do racismo denunciado pelos próprios agentes históricos,

que Peter Fry e Carlos Vogt (1982) chamam de “produtores de cultura negra”.

Beatriz Dantas ignora, ainda, toda uma série de novos estudos que surgiram na

Bahia na década de 1970. Ao final dos anos cinquenta, foi fundado o Centro de Estudos

Afro-Orientais (CEAO) na Universidade Federal da Bahia (UFBA), marcando o que

Osmundo Pinho (2010) chamou de uma “segunda vertente” dos estudos baianos. A

preocupação agora seria “compreender o candomblé como uma instituição social, com

sua organização, estrutura hierárquica e relações com a sociedade envolvente” (Pinho,

2010: 125). O nome de Vivaldo da Costa Lima surge, assim, através de sua dissertação A

Família-de-Santo nos Candomblés Jeje-Nagôs da Bahia defendida em 1977, como “um

exemplo e paradigma a que se seguiriam muitos trabalhos contemporâneos” (Pinho,

2010: 125).

Nesta segunda vertente, a idéia de candomblé como cultura de resistência, idéia já

prefigurada em Bastide, ganha densidade. É da convergência destas duas posturas

que se decantaria uma terceira síntese que se cristaliza como a imagem do

candomblé para a reafricanização. Neste caso com ênfase forte tanto na idéia de um

saber essencial profundo africano guardado nas casas de axé e transmitido as novas

gerações, como na convicção de que a religião é combustível para resistência e

organização política. (Pinho, 2010: 125)

Vilvaldo da Costa Lima aparece assim como grande conhecedor do povo-de-

santo de Salvador, tendo iniciado na década de 1960 “um amplo levantamento dos

terreiros de candomblé da Bahia, na direção do Setor de Estudos Sociológicos e

Antropológicos do CEAO” (CEAO/UFBA, [1995] 1997: 16). Sua dissertação de mestrado,

nas suas próprias palavras, seria “um panorama organizacional e estrutural dos

candomblés baianos”, mas também “uma tentativa de interpretação de determinado

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fato etnolinguístico e de seus reflexos na atualidade cultural e política da Bahia” (Lima,

2010: 307). Ao fazer a passagem do conhecimento para a escrita, no entanto, entidades

e pessoas também se perdem em meio à busca por generalizações e explicações

linguísticas em uma estrutura simbólica e social, e em pares de oposição, como atestam

dois de seus artigos: A direita e a esquerda no candomblé da Bahia e Transe e possessão

no candomblé da Bahia (Lima, 2010).

Assim como os dois Congressos Afro-Brasileiros na década de 1930, outros dois

eventos foram organizados pelo CEAO na UFBA, agora nas décadas de 1980/90, para

reunir pessoas-de-santo e intelectuais: os Encontros de Nações de Candomblé. Vivaldo

da Costa Lima, na abertura do primeiro encontro, afirma que ao final dele estaria certo

de que “teremos todos uma visão mais abrangente desse complexo sistema de crenças,

de ritos e de poder, que são as casas-de-santo da Bahia.” (CEAO/UFBA, 1984: 11). Já na

abertura do segundo encontro, Jeferson Bacelar exaltou o primeiro, que segundo ele:

(...) representava para os personagens aqui nominados a consagração de uma luta,

não apenas deles, mas também de vários outros intelectuais, para o entendimento

e a legitimação do candomblé como religião. Graças a Deus, aos Orixás, aos Voduns,

aos Inquices, aos Caboclos, a todos que respeitam o Outro, em especial os aqui

homenageados, apesar dos obstáculos e incompreensões ainda existentes, cada vez

mais o candomblé se afirma como a religião do povo. (CEAO/UFBA, [1995] 1997: 16-

17)

Bacelar exalta aqui justamente o que Beatriz Dantas dedicou um livro inteiro

para combater: a aliança entre pessoas de santo e intelectuais. Além disso, é também

neste contexto que a ideia de africanidade como categoria política é cada vez mais

pensada como resistência. Nas palavras de Makota Valdina:

Considerando que as religiões tradicionais africanas estão estreitamente

relacionadas com o jeito de viver, de agir, de pensar do africano tradicional, creio

que desde o tempo em que para cá foram trazidos, mesmo vivendo na condição de

escravos e nas senzalas, os negros africanos construíram jeitos de viver com sua

religiosidade de origem, recriando-a e reconstruindo-a ao longo do tempo no novo

espaço, na nova realidade, até chegar a forma como hoje vivemos e praticamos o

que chamamos de candomblé. Imagino ter sido nos quilombos, nos primeiros

agrupamentos de negros que estes buscaram organizar as primeiras formas de

expressão de sua religiosidade na nova terra. De lá para cá, por conta do racismo,

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das perseguições, da discriminação existente entre nós, bem como da forma oral de

transmissão, muito deve ter-se perdido com o passar dos anos. Contudo, algo tem

sido conservado e entre nós sobrevive, como marca de identidade com esses grupos

que contribuíram para a nossa formação afro-brasileira. (CEAO/UFBA, [1995]

1997:45)

Outros nomes também apareceram nesta segunda vertente, como o de Yêda

Castro Pessoa, a partir de um viés etnolinguístico. Assim como o de Júlio Braga, para

quem o Candomblé era um inegável “foco de resistência contra-aculturativa da

população negra e de sua cultura face à sociedade baiana que ainda se espelhava, na

primeira metade deste século, preferencialmente nas ideologias e nas formas de viver

ocidentais” (Braga, 1995: 19-20). Ao contrário desta perspectiva, como já apontado, as

autoras e autores do debate da “pureza nagô” combatem veementemente a ideia de

resistência.

O movimento de legitimação dos candomblés, que se inicia com os intelectuais

evolucionistas apresentando o nagô como a forma mais adiantada das religiões

africanas, contrastando-o com a magia dos outros povos, acompanha de perto o

movimento de aproximação mítica com a África, da qual o nagô constituiria o

representante mais “puro” e mais autêntico. Ao autenticar cartorialmente com o

carimbo da ciência a “pureza” e “autenticidade” dos candomblés nagôs, os

intelectuais estão fazendo com os produtores de cultura negra uma aliança que

extrapola as fronteiras da academia (Vogt & Fry, 1982). Isto vai ter repercussões na

expansão do modelo de culto pelo território nacional, interferindo, inclusive, nas

linhas seguidas pela repressão policial que, ao menos temporariamente, ajustará o

eixo legal/ilegal ao eixo Religião/Magia. Esta aliança afetou, a meu ver, não só a

expansão do modelo nagô mas a própria configuração deste, cristalizado a partir de

recortes e seleções dos traços culturais presentes nos territórios baianos

autenticados como “mais puros” pelos intelectuais. (Dantas, [1982] 1988: 242)

De acordo com esta perspectiva os verdadeiros agentes históricos são,

aparentemente, os intelectuais, que teriam o poder de afetar tanto o povo-de-santo, na

cristalização dos traços culturais autenticados pelos antropólogos, quanto a corporação

policial, cuja atuação repressiva aos terreiros se pautaria pela classificação feita nas

obras antropológicas. Se assim fosse, seria necessário demonstrá-lo histórica e

etnograficamente, por meio de trabalho de campo na Bahia. Pois afirmar que os estudos

antropológicos fizeram com que certos terreiros fossem protegidos em detrimento de

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outros é passar por cima de diversos episódios de violência, inclusive contra casas

“tradicionais” (Braga, 1995; Luhning 1995, dentre outros).

Já foram muitas as críticas tecidas a esta perspectiva, principalmente pela forma

como mães e pais-de-santo da Bahia aparecem no trabalho de Dantas ([1982] 1988).

Ora, desde que esses cultos foram perseguidos, proibidos, censurados, atacados de

diversas formas (em nome da civilização, do progresso, da consciência cristã do povo

etc.), e, apesar de tudo, não desapareceram – antes permitiram até mesmo, no caso

dos ritos “de nação”, a marcação de diferenças étnicas –, impõe-se a idéia de

resistência. Esta pode variar em grau, mostrar-se maior ou menor, de acordo com

fatores históricos, sociológicos etc., pode assumir diversas formas, cifrar-se em

estratégias diferentes, mas merece atenção empresa, ainda quando se acha no

limite extremo do compromisso, da negação, do branqueamento. Caracterizar a

resistência como uma infrangível obstinação em manter imóvel um acervo de

crenças e ritos transplantados, é absurdo; desconhecer suas rupturas, quebras,

alterações, distorções, contradições, vem a ser no mínimo, ingenuidade; traduzi-la

nos termos de um projeto político definido, consciente, coerente, do povo-de-santo

unificado, passa de fantasia; mas ignorá-la é tolice. (Serra, 1995: 157-58).

Ao negar o conceito de africanidade e o seu uso político, bem como a própria

ideia de sobrevivência como resistência, os autores que defendem uma análise crítica

em torno do “debate da pureza nagô” acabam por deixar de lado muito do que importa

para as pessoas de santo. A “visibilidade social como caminho para lutar contra a

intolerância religiosa” (Castillo, 2010: 190) foi fundamental para a busca por respeito às

práticas religiosas de matriz africana, e pela própria possibilidade de viver sua

religiosidade.

Entretanto, estabelecer uma relação direta, reflexa, entre a “escola baiana” e os

rumos assumidos pelo movimento dos negros baianos, seria ingenuidade ou má-fé.

Primeiro, porque a “escola baiana” jamais se constituiu em um bloco homogêneo,

sendo palco de grandes cisões e conflitos. Segundo, porque indicaria os negros como

receptáculos vazios das argumentações dos intelectuais, o que jamais ocorreu. Por

exemplo, a valorização da cultura dos negros assumida pelos intelectuais da década

de 1930, refletia a força do mundo negro-africano vigente em Salvador naquele

momento. Por sua vez, o processo moderno de reafricanização, com sua vertente

politizante, jamais poderia ser atribuído aos intelectuais de maior expressão da

“escola baiana”, em grande parte vinculados à perspectiva dos mitos da democracia

racial e cultural. A reação, por exemplo, dos bantos à hegemonia nagô, não obstante

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muitos intelectuais valorizassem as outras nações, teve sempre como mote, haver

sido ela uma criação da Academia. (Bacelar, 2001: 140-41)59

Neste sentido, Jeferson Bacelar aponta para uma nova visão que foi sendo

construída pelas pessoas que integravam o CEAO. “O candomblé é não somente uma

religião com complexa cosmologia e sofisticado ritual, mas se afirma também,

historicamente, como a mais importante instituição política da etnia fundante do nosso

processo civilizatório” (CEAO/UFBA, [1995] 1997:15-16). Quando a chave da ideia de

sobrevivência passa para a de resistência, muda uma rigidez do que seria considerado

“tradição africana” e o candomblé se transforma em algo adaptável, como já dizia Roger

Bastide: “candomblé que se fez sempre ortodoxo na preservação de suas tradições que

remontam a África, mas adaptável perfeitamente às circunstâncias e à dinâmica da

sociedade envolvente” (CEAO/UFBA, [1995] 1997:15-16).

Vamos, assim, retomar o que Ordep Serra (1995) chamou de afro-brasilianismo,

noção que seria adotada por Gabriel Banaggia (2008) para categorizar os trabalhos de

Beatriz Dantas (1988), Yvonne Maggie ([1975] 2001) e Stefania Capone (1999).

O que chamei de “afro-brasilianismo” corresponde a uma formação ideológica

subjacente a grande parte dos estudos sobre as religiões negras do Brasil. Mas seria

uma profunda injustiça reduzir aos estreitos limites dessa ideologia toda a produção

antropológica sobre o assunto, pois grande parte dela os transcende e tem um valor

inegável. Se eu tivesse de caracterizar de modo muito sumário a visão "afro-

brasilianista”, assinalaria estes seus componentes: a despolitização da problemática

do negro e dos cultos afro-brasileiros, em cuja abordagem se oblitera, nessa ótica, a

violência da desigualdade interétnica neste país; a minimização da presença dos

negros na História, a visão dos negros (ou do povo-de-santo) como gente sem

história; a tentativa de apartá-los da sociedade brasileira, convertendo-os em seres

exóticos; a tendência a encará-los como desprovidos de criatividade cultural e,

portanto, limitados a reproduzir de modo mecânico modelos de culto, formas de

expressão religiosa “primitiva” ou, ainda, segundo uma nova receita, o que os

"intelectuais” (= os brancos) os fazem pensar. (Serra, 1995: 189)

59 Stephania Capone (1999) irá retomar o argumento de Beatriz Dantas para criticar um movimento que ficou conhecido como reafrizanização nos candomblés. Este processo, na cidade de Salvador, se deu nos terreiros, movimentos sociais negros e blocos-afros de carnaval. Este debate está fora do escopo desta tese, para uma análise crítica, porém politizada acerca deste movimento, ver Patrícia de Santana Pinho (2004) e Osmundo Pinho (2010). Jeferson Bacelar (2001) e Júlio Braga (1995) também falam sobre o assunto, mas não como foco principal.

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O que todos esses debates nos dizem é de uma dificuldade destas teorias, ao

transformar dados etnográficos em análises, em lidar com a pluralidade do mundo. A

persistência do candomblé parece ser o pano de fundo de muitas dessas pessoas que

resolveram se debruçar sobre o assunto. Linhas e linhas, escolas e escolas, já tentaram

responder à pergunta das sobrevivências. Na história, o clássico debate entre

afrocêntricos (Michael Gomez e John Thornton) e crioulistas (Sidney Mintz e Richard

Price) é também levado para a antropologia a partir da ideia de sincretismo religioso –

entre sobrevivência africana ou mestiçagem; assimilação, aculturação ou cultura luso-

tropical60. Tratava-se de um processo analítico que buscava “isolar traços de culturas

originais puras que teriam se mesclado para formar manifestações socioculturais

específicas” (Goldman, 2017: 24).

Como bem se sabe, a constituição das ciências sociais no Brasil, e da antropologia

brasileira em particular, passou justamente pela relação entre os diferentes “grupos”

que teriam constituído, ou deveriam constituir, a chamada “nação brasileira”. É por

isso que há quase duzentos anos, dois temas articulados vêm aqui ocupando,

explícita ou implicitamente, o campo dessas ciências: a “mestiçagem” e o

“sincretismo”. (Goldman, 2017: 13)

Clara Flaksman (2017: 157) divide as noções de sincretismo, tanto dentro da

teoria quanto dentro das visões das pessoas de santo, em dois grupos. Um defende que

o “sincretismo foi simplesmente uma tática de conservação da religião dos escravos

africanos para cá trazidos à força” e outro argumenta pela “plasticidade e a capacidade

de incorporar as alteridades como características constitutivas do próprio candomblé”.

Uma dessas posturas, que vê o sincretismo como estratégia de resistência, tenderia a

desejar que ele fosse extinto, já que tal estratégia não é mais necessária. E outro,

conviveria com a sua continuidade.

Eu não pretendo abordar a questão do sincretismo aqui, tampouco os seus

desdobramentos teóricos. Trata-se não de menosprezar este debate, mas enfatizar

menos o sincretismo tal como aparece na teoria e mais para como ele aparece no

mundo. O que, afinal, “os produtores da cultura negra” dizem a respeito do assunto?

60 Não irei aqui discutir o sincretismo dentro da literatura. Para uma revisão sobre as obras que abordam o assunto, ver Sérgio Ferretti (2013). Para mais do debate ver: Ferretti (2004, 2006); Abdias do Nascimento (1978, 1980); Reginaldo Prandi (1991); Maria Stella de Azevedo Santos (1993); Ordep Serra (1995) e Vagner Gonçalves da Silva (1995); Panzzarelli, Sauma & Hirose (2017), dentre muitos outros.

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Algumas mães-de-santo, por exemplo, fizeram declarações contra o sincretismo em um

“Manifesto das Ialorixás Baianas contra o Sincretismo” de 1983 (Consorte, 2006;

Flaksman, 2017), com especial ênfase para Mãe Stella de Oxóssi, hoje à frente do Ilê Axé

Opô Afonjá. Desta mesma visão, próxima ao primeiro grupo que Flaksman (2017)

apontava, compartilha Ana Clara Amorim, Duca – que conhecemos no primeiro capítulo

desta tese. Em nossa entrevista, ela me perguntou o porquê das pessoas do candomblé

serem tão católicas. Para Duca, o sincretismo é algo que deveria ser cortado.

Que harmonia das religiões? Aquilo não existe. Aquilo nunca existiu. Eu acho que

dificilmente a gente vai ver existir, porque a gente tem uma vida muito curtinha. Mas

aquilo não existe, gente. Aquilo lá foi uma baita de uma palhaçada, eu acho. Por

exemplo, a gente ainda tem a endemonização da religião do candomblé. Tudo que

advém, se você citar alguma coisa, mais específica assim de negro, as pessoas

associam ao candomblé e automaticamente fazem associação ao demônio. E fazem

associação ao demônio como se ele fosse a figura má que domina a maldade, porque

o demônio, ele tem lá a sua função, mas as pessoas fazem associação automática

como se ele comandasse a maldade. Então, se você usa um turbante, é coisa de

negro, é coisa de candomblé, é coisa do demônio. Vai contaminar-me com a sua

maldade, entendeu. Então a gente precisa acabar com isso, a gente precisa acabar

com isso. A gente não precisa mais ficar provando a ninguém que a gente é de

candomblé, que não é de candomblé, é do demônio, não é do demônio. A gente tem

que acabar com isso, parar com isso. Todo mundo tem que mostrar sua cara mesmo,

botar seu turbante, bote sua conta. É por aí. Ninguém mais precisa esconder nada,

gente. Eu acho massa quem não esconde assim, sabe como é? (Ana Clara Amorim,

entrevista em abril de 2017)

A questão de mostrar a cara e cortar o sincretismo, para Duca, não está

relacionada à devoção, mas à história. Ela explica:

É lógico que, assim, eu não vou desrespeitar quem tem devoção por quem quer que

tenha. Mas a igreja católica, ela sufocou a religião do candomblé, ela sufocou. A

Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, assim como outras irmandades

formadas por homens negros e mulheres negras, elas se formaram para poder

adquirir alforrias, para poder ajudar a luta contra a escravização e aí você faz um

disfarce, que é o nosso sincretismo, e você termina perpetuando a veneração à

Maria. Nada contra Maria, acho ela linda, ótima, maravilhosa, mas eu acho que você

perpetua a cultura, essa cultura europeia da qual eu estou falando, essa cristã,

ocidental, você continua perpetuando isso porque é importante continuar

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valorizando a cultura europeia, entendeu? Já caiu no gosto popular, então vamos

continuar. Mas a veneração à Maria, a ideia não era ser uma festa católica, para a

igreja, era um disfarce. Quem é do candomblé sabe que nas entrelinhas daqueles

rituais, não é Maria. Então eu fico me perguntando: por que continua? Hoje a gente

não precisa mais estar escondendo essas coisas. A gente precisa mostrar a cara. (Ana

Clara Amorim, entrevista em abril de 2017)

Na sua disputa contra o sincretismo, o problema não é Maria ou Jesus, mas o

cristianismo ocidental, que não a representa. O problema para ela é a lógica de uma

religião que foi criminosa e sufocou outro tipo de religiosidade, que não deixou, por sua

vez, de resistir. É preciso, portanto, parar de perpetuar o que não é nosso e afirmar,

valorizar o que resistiu e não precisa mais ser disfarçado ou escondido, revertendo,

assim, a tendência de embranquecimento que uma noção de mistura propõe.

Mas há ainda outras formas com as quais as pessoas-de-santo olham para um

mundo plural. Como alguns autores têm colocado, é preciso mostrá-las, mas sem

desprezar a importância política da sua negação e nem esquecer a violência histórica

que o sincretismo implica:

(...) os adeptos do candomblé admitem perfeitamente a legitimidade de outras

religiões e insistem no caráter singular do seu rito, descrevendo a dedicação ao

mesmo como uma necessidade imposta a determinadas pessoas (ou grupos) por

Deus, pelos orixás, pelo destino. Mesmo aqueles que se dedicam ao culto dos orixás

e se dizem também católicos, fazem diferença entre candomblé e catolicismo: não

pretendem que a prática simultânea dessas religiões constitua uma nova religião, na

qual tanto o rito católico quanto o culto dos orixás estejam compreendidos e

superados. Identificando-os como católicos e omom orixá, estimam ainda válido e

legítimo o espiritismo, por exemplo, de que se sentem próximos (embora, em geral,

não se declarem espíritas), e estão prontos a aceitar a pertinência, o valor de outros

cultos, de que emprestam elementos ou com os quais não se ligam. Admitem mesmo

que entre diversos ritos religiosos e o candomblé pode haver comunicação, e até

sem que isso implique comprometê-los.” (Serra, 1995: 15)

E, ainda, temos o olhar de Sandra Bispo, do Terreiro de Oxumaré e da Ordem

Católica do Rosário dos Pretos. No II Encontros de Nações de Candomblé, ela buscou

refletir sobre a sua parte católica:

O sincretismo é uma visão de mundo. Ela vai se modificar com a própria dinâmica

social. Não consegue, de fato, chegar na sua essência, no seu âmago e arrancar o seu

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credo verdadeiro na sua nação, na sua vivência. Enquanto que na Irmandade do

Rosário, a religião católica me parece mais contemplativa, na religião do axé ou você

vive ou você não vai para lugar nenhum. É religião vida, é religião/ar que você

respira, é o próprio sangue que corre em suas veias. Não adianta fazer de conta

porque você não engana ninguém. (CEAO/UFBA, [1995] 1997: 39)

Como dar conta de falar de algo que é vida, ar e sangue? Talvez não seja através

das nossas próprias categorias. E nem da nossa forma de escrever. Pois, o mundo que

escapa é um mundo, neste caso, vivido cotidianamente a partir de uma espiritualidade

expressa material, corporal e afetivamente – no cuidado ao se andar na cidade, nas

esquinas que se evitam, nas comidas preparadas ao sabor das entidades, na relação com

o rio, correntezas e matas. Na tentativa de racionalizar e explicar esse mundo, as

presenças deixam de o habitar.

Mãe Dionízia sempre fazia referência a Deus. Que Deus e eles mesmos lhe

acompanhem. Graças a Deus e debaixo de Nossa Senhora, eu tenho uma Mãe. Foi Deus,

Iemanjá mesmo e minha mãe Iansã. Acima deles, só Deus. Ao falar que alguém havia se

tornado evangélico, ela dizia que tinham entrado para a lei de crente – caso de muitas

pessoas em sua família. Ela nasceu no dia de Nossa Senhora do Rosário, padroeira da

cidade da Cachoeira. Todo dia 7 de outubro, uma missa é rezada em seu terreiro. Não

posso chamar isso de sincretismo religioso se ela própria não o faz. A força de Deus

mesmo, dos santos, inquices, caboclos, orixás e bons irmãos de luz não cabe nessas

palavras.

6) AQUILO QUE O CABOCLO FAZ, O NEGRO NÃO DESFAZ

Foi o caboclo quem nos deu a mão e ajudou na inversão do mundo realizada no

primeiro capítulo desta tese, inspirada pelas palavras de Duca e Gilvânia. É este mesmo

caboclo quem pouco aparece na literatura até aqui discutida. Para os clássicos da escola

baiana, ele era símbolo de degeneração. Como lá em cima apontei, é Manoel Querino

quem vai se debruçar um pouco mais sobre o que até então era chamado, desde Nina

Rodrigues, de “candomblé de caboclo”. Querino foi justamente aquele considerado um

bom pesquisador de campo porque convivia com a comunidade de terreiro. Não foi, no

entanto, consagrado teórico.

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O livro Costumes africanos no Brasil (Querino, [1938] 1988), uma coletânea de

artigos, foi publicado em 1938 por iniciativa de Arthur Ramos, quinze anos após a morte

de Manoel Querino. O editor da Civilização Brasileira achou por bem explicar em seu

prefácio a importância de publicar um trabalho como o do pouco conhecido autor, ainda

que esse carecesse de análise. Foi preciso, assim, dispender notas explicativas ao longo

das páginas. Em sua 2ª edição, “revista e ampliada”, às notas de Ramos, foram

adicionadas outras de Raul Lody (1988).

O seu livro “A Bahia de outrora”, escrito sem preocupações de sociólogo, é um

magnífico repositório de observações de todo um passado da vida social baiana.

Muita coisa terá o estudioso a colher nesta interessante documentação:

sobrevivências africanas, autos populares, vida social no século passado, múltiplas

questões sociológicas a que apenas teria que dar uma nomenclatura científica:

mobilidade social, distâncias sociais, problemas de casta e de classe, “color line”,

assimilação, aculturação... que sei mais? O que outros fizeram com relação a outros

setores da civilização brasileira, fê-lo Manuel Querino, na Bahia, modestamente, sem

alardes, sem exibição científica, mas com os mesmos propósitos de análise das

relações de raça e de cultura, principalmente entre o africano e o luso-brasileiro, na

nova sociedade em formação. (Ramos, [1938] 1988: 14, grifos adicionados)

O livro estava ali para ser apreciado como material etnográfico por outros

pesquisadores. Embora com os “mesmos propósitos de análise”, a falta de “exibição

científica” fazia do trabalho apenas uma “documentação”. Um dos artigos de Manuel

Querino que compõe a coletânea, “Candomblé de Caboclo”, foi publicado inicialmente

na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em 1919 (Lima, 1987). Nele, o

autor descreve um ritual de caboclo mostrando como seus toques de atabaque diferem

dos cultos aos orixás, bem como as comidas ofertadas. Para Vivaldo da Costa Lima (1987:

82), “Querino, embora muito resumidamente, dá uma importante contribuição ao

estudo que ainda não se fez em profundidade, sobre os candomblés de caboclo na

Bahia”.

A ausência apontada por Lima está relacionada aos propósitos analíticos dos

próprios pesquisadores de até então, explorados nas sessões anteriores. O foco no

caboclo bagunça uma literatura que pensa a “estrutura ritual” dos cultos. É o próprio

caboclo que, quando chega, dita suas músicas e diz quem ele é (Chada, 2006).

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No desenrolar das "festas" [de caboclo] pode-se observar que os movimentos das

danças e os cânticos são tirados em sua maioria pelos próprios caboclos, muitos

deles primando pelo improviso dos versos, variando com aquilo que o índio quer

transmitir à assistência. Existem muitos índios que, ao se incorporarem nos filhos-

da-casa, emitem recados ou sotaques com endereço certo e, quem é dono da

carapuça, põe na cabeça. (Ribeiro, 1983: 61-62)

Um saber sobre o candomblé que se restringe ao “sentido ritual”, através da

análise de mitos, reduz, portanto, esse universo a uma dada estrutura simbólica. Ficam

de fora as miudezas do segredo. As chegadas repentinas que abrem caminhos. Se “as

lendas dos orixás são relativas aos seus feitos no tempo passado, as estórias dos

caboclos são da atualidade” (Ribeiro, 1983: 67-68). O caboclo desaparecia, assim, dos

trabalhos que se concentravam em narrativas mitológicas e origens africanas. Edison

Carneiro, por exemplo, se disse “desajudado” com relação ao “candomblé de caboclo”:

Carneiro se confessa “desajudado”, certamente, que nos dois planos de um

pesquisador: na bibliografia de apoio e no próprio trabalho de campo. Àquela época

pouco se escrevera sobre o “candomblé de caboclo”, considerado mesmo por

Carneiro, como uma forma empobrecida das tradições “pobríssimas dos negros

bantos”, como escreveria em Religiões Negras. Mesmo em seu livro seguinte, Negros

Bantus, Carneiro expressa, no capítulo “Candomblés de caboclo”, sua opinião

restritiva a esse tipo de candomblé e chega a prever o seu futuro desaparecimento.

O candomblé de caboclo, entretanto, com o tempo, passaria a ser o que atualmente

significa na Bahia: uma outra nação de santo. Certo é que Carneiro nunca aceitou a

identidade mítica dos “caboclos”, embora tivesse sugerido, mais tarde e mais

simpaticamente, a dinâmica do seu sincretismo formativo, quando tratou dos

encantados caboclos, em 1948, com o seu já clássico Candomblés da Bahia. (Lima,

1987: 81-82, grifos adicionados)

Arthur Ramos ([1934] 1988: 75) chegou a falar que a existência dos caboclos era

uma “intromissão de entidades da mítica ameríndia nas práticas fetichistas dos negros;

daí a denominação de candomblé de ‘caboclo’ (mestiço de índio)”. E ainda achou

“curioso” o “sincretismo dos orixás fetichistas com as divindades dos mitos ameríndios

e elementos do folclore branco” (Ramos, [1934] 1988: 75), grifos no original).

A epígrafe deste capítulo mostra como o envolvimento político e a convivência

de Edison Carneiro com as pessoas de santo, apesar de agarrado às suas premissas

analíticas, deixava passar para o seu texto algo a mais. Aqui e ali é possível se deparar

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com frases como “4 de dezembro: dia em que é certo haver chuvas e trovoada”

(Carneiro, 1954: 15). Quatro de dezembro é dia de Iansã, dona dos raios e dos ventos.

Ou ainda o título desta sessão: “aquilo que o caboclo faz, o negro não desfaz”. Essa frase

foi citada por Jocélio Teles dos Santos: “Edison Carneiro (1981: 135) transcreveu em

junho de 1936 um depoimento sobre os Candomblés da Bahia: ‘o jeje chega e arranca o

toco. Vem o angola, tira as foia. O caboclo, mais forte, leva logo a raiz’” (Teles dos Santos,

1995: 63). Luís Sérgio Barbosa também menciona que “o que o caboclo fazia ninguém

desmanchava, esse era o ditado” (CEAO/UFBA, [1995] 1997: 89).

O pioneiro artigo de Carmen Ribeiro (1983), por exemplo, é povoado de

caboclos. Nele, conhecemos o caboclo Itaguará, que botava vista no bairro de Sertanejo,

em Salvador. Seu Pedra Preta, que comia um quilo de fumo de corda acompanhado de

um litro de mel. O caboclo Jurataí, da rua dos Ossos no bairro de Santo Antônio, que

bebia em uma caneca que cabia mais de litro de cerveja e apareceu numa foto. Seu

Mineiro que dançava por cima de vivas brasas. O caboclo Serra Negra que depositava

em uma erva o seu idioma para passar a falar português nas sessões. Uma tribo de índios

Antropófagos. O cismado caboclo Tumbancé, que curava com a boca. Seu Pena Branca

que falava e dava consultas, mesmo em uma médium surda e muda. E o caboclo

Boiadeiro que reuniu dois irmãos brigados.

Na antropologia, foi Jocélio Teles dos Santos (1995) quem se dedicou com mais

profundidade a um estudo sobre o caboclo nos terreiros de Salvador olhando

efetivamente para a entidade que é ali cultuada. Tanto ele, como Raul Lody (1977)

começaram suas análises descrevendo a origem da palavra “caboclo”. O objetivo de

Teles dos Santos era “compreender a inserção, nos candomblés, de uma entidade

denominada Caboclo que é identificada como sendo de origem indígena” (Teles dos

Santos, 1995: 9). Vimos um pouco deste debate no primeiro capítulo. A busca pela

origem do culto aos caboclos dentro dos candomblés, contudo, remete o autor a uma

ideia de africanidade, da qual o caboclo aparece como variação no contexto brasileiro.

O Caboclo seria assim uma das variantes canônicas, entre outras, do sistema

religioso afro-baiano, no qual há uma valorização política das origens africanas (em

particular a iorubá) e diversas combinações, assimilações e integrações, mesclando

várias referências culturais, a partir de um campo de significações aberto a

procedimentos analógicos e comparativos. Face às hesitações interpretativas – que

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refletem, ainda, as relações intrínsecas ao meio intelectual e religioso –, a

reabilitação teórica do Caboclo passa pelo simples reconhecimento de sua

presença maciça nos candomblés baianos de todas as nações e do vigor da

imaginação religiosa afro-baiana. (Teles dos Santos, 1995: 146, grifos adicionados)

Reconhecendo a presença maciça dos caboclos nos candomblés baianos, Teles

dos Santos (1995: 147) conclui que o caboclo é afro-brasileiro: “o Caboclo é menos

brasileiro do que apresenta ser e mais ‘africano’ do que se poderia crer”. Menos

brasileiro porque “imerso num universo de referência africano e sendo sempre

reiterado como o elemento autóctone – ‘o verdadeiro caboclo é o índio’ – essa entidade,

que constitui um verdadeiro anátema nos candomblés, é, por assim dizer, afro-

brasileiro” (Teles dos Santos, 1995: 147). O momento da Independência da Bahia

aparece aqui como “a ascensão do Caboclo, que é seu símbolo por excelência”. Todas

as apropriações de suas comemorações constituíram-se, nesse sentido, como uma

grande contribuição para a construção dessa “representação multiforme em que a

referência básica é o índio, mas que nele não se esgota, pois inúmeros são aqueles

Caboclos que se diz provirem de além mar” (Teles dos Santos, 1995: 147).

Ao olhar para o caboclo, ainda, este trabalho mostra a importante relação entre

negros e índios nas narrativas das pessoas de santo:

Tudo faz crer que, ao fugirem dos senhores, os escravos procurassem refúgio nestas

aldeias, onde os índios Tupis, Guaranis e Tapuias, com desconfiança, começavam

então através de gestos e presentes a se aproximar, dando guarida aos fugitivos, por

não aceitarem violência e nem aprisionamento, e daí, ao se esconderem nas matas,

os índios começaram a ensinar aos negros a encostarem o ouvido no chão, o banho

das folhas, o voar dos pássaros e suas mandingas do mato. Daí é que se fizeram os

contatos entre os negros e índios. Os índios ensinaram a usar sua luz, que servia

para andarem na noite, que era feita de luz de pau-brasil e candeia. Então

começaram a observar seu ritual, onde também tinham os seus preceitos, pois

existia na aldeia o seu pajé. Nos preceitos tinham significados: a lua, as águas dos

rios, do mar, lagos, o sol e o seu Deus Tupã. Eles também invocavam espíritos de

seus mortos, para darem mais força. Os negros, vendo tudo isso, acharam alguma

assimilação com seus orixás. E os africanos Angola (bantus), por serem mais

significativos com seu linguajar, foram os que mais se aprofundaram dentro do culto

dos índios, e até o candomblé de angola não deixou de ter obrigatoriamente sua

festa de caboclo e, através desses, vem também outras divindades, guias como

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nosso bom, querido e aceito o grande Boiadeiro e o Marujo. (Teles dos Santos, 1995:

136, grifos adicionados)

Ainda que Jocélio Telles dos Santos (1995) se esforce por argumentar que o

caboclo é mais africano do que brasileiro, porque fruto de uma procedimento analógico

e comparativo do sistema canônico afro-baiano – argumento que ressoa o de Roger

Bastide –, o riquíssimo acervo de narrativas na sua pesquisa de campo revela que a

relação entre negros e índios é pensada pelas pessoas de santo a partir de uma história

de “violência e aprisionamento”.

O trabalho de Vilson Caetano Sousa Júnior (2005) está também repleto dessas

narrativas. O autor percorre o uso do termo nagô nas histórias que escutou dos mais

velhos em Cachoeira e optou, em um de seus capítulos, por transcrevê-las na íntegra.

As pessoas recheiam o seu livro. Muitas vezes, nagô, “entendido como africano” (Sousa

Júnior, 2005: 51), se contrapunha ao índio, chamado de caboclo. É o Sr. Ambrósio Bispo

Conceição, o já aqui mencionado no primeiro capítulo, Ogan Boboso, com seus 99 anos

de idade, quem lhe conta: “O nagô veio da África. O Brasil mesmo pertence à parte

africana porque eles quando vieram de lá pousaram aqui e, portanto, eles foram saindo

de lá pra cá, foi se aprumano, aprumano... Mas aqui mesmo é a língua guarani. Aqui é

caboco” (Sousa Júnior, 2005: 51). Nas palavras de Dona Galdina Silva, a finada Mãe

Baratinha: “todos são nagô. Agora tem o nagô ijexá, nagô jeje, nagô ketu. É uma

separação. Mas, na palavra mesmo original do candomblé do mundo, todos somos

nagô. Só não o caboco, que é índio mesmo” (Sousa Júnior, 2005: 49).

Esta diferenciação, entre caboclo e orixá, é sempre feita: “caboclo come caça,

pode comer tudo o que ele possa caçar e, em nosso entendimento, só poderia comer

aquilo que se encontra na terra dele. O que vem da África não é comida de caboclo”

(Barbosa, [1995] 1997: 94). O próprio Manoel Querino ([1938] 1988: 73) já falava da

diferença no preparo da comida, para o caboclo “o azeite-de-dendê ou de-cheiro não é

admitido no condimento das iguarias”.

Vilson Caetano Sousa Júnior (2005) fala, ainda, de uma religiosidade que

ultrapassa as fronteiras dos terreiros. É aí que o caboclo aparece. Ele está nas casas de

axé, mas está também nas matas, nas águas, nas ruas. Bem como os orixás.

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Em linhas gerais, como já observamos, a palavra nagô não está atrelada

exclusivamente ao universo dos candomblés de Cachoeira. Todavia, é a partir destes

que tal expressão vai ser articulada. Afinal, a cidade nunca abriu mão da fama dos

seus feitiços. Estes, ainda hoje, atraem muitas pessoas. Por outro lado, a população,

como vimos, nutre uma dívida com os fundadores da cidade, seus primeiros

habitantes, donos das casas que nunca saíram de tal lugar, os africanos, chamados

de escravos, os quais, além das famílias, deixaram com a população a sua religião

– o candomblé. (Sousa Júnior, 2005: 51, grifos adicionados)

Quando as pessoas de santo olham para estas entidades, elas narram uma

história de encontro entre negros e índios. Uma história de violência e escravidão. Ao

mesmo tempo, como Carmen Ribeiro (1983) bem colocou, as histórias dos caboclos são

da atualidade. E essa atualidade das histórias dos caboclos tem a ver com a forma com

que essa narrativa afeta o cotidiano. As narrativas refazem o passado, apresentando o

caboclo como o índio que não aceita violência e aprisionamento, daí a sua relação com

os escravos negros. E fazem o presente, já que o caboclo é entidade que ajuda a curar o

mundo numa cidade como Cachoeira, cuja população “nutre uma dívida” com nagôs e

com caboclos. Voltarei a isso mais adiante.

Os textos compilados nos anais dos Encontros de Nações de Candomblé

organizados pelo CEAO são também ricos em histórias sobre essa relação. Para estes

eventos, foram chamados mães e pais-de-santo das diversas nações que compõem o

candomblé de Salvador, dentre elas, a nação de caboclo. No segundo encontro, o

Xicarangomo Esmeraldo Emetério de Santana (Seu Benzinho) da “Nação-Angola”

respondeu à pergunta se existia influência do caboclo na nação-angola afirmando que

“Existe muita!”:

E é uma coisa absurda não se respeitar o caboclo. Caboclo é o dono da terra. E assim

está se correndo um perigo muito grande de querer botar os donos pra fora. É

mesmo que esse pessoal de terras que estão brigando a toda hora. Porque, quando

chegaram aqui, os africanos, sejam de Angola, Benin, etc., encontraram os

tupinambás. Eles é que são os donos da terra. (...) Na hora que algum escravo

conseguia fugir, eles “omicidiavam” os caboclos, guardavam “eles” na aldeia. E,

quando os capitães-do-mato iam procurar, metiam-lhes flechas. O maior guardião

dos africanos foram os caboclos. Ai de mim se não fossem eles! Tem muitas “casas”

que não querem as “filhas dançando com caboclo”, elas não dançam nos seus

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terreiros, mas “rodam com caboclo” em outros terreiros. (Santana, 1984: 46, grifos

adicionados)

Se Teles dos Santos (1995) conclui que o caboclo é afro-brasileiro, Xicarangomo

Almiro Miguel Ferreira do Candomblé-de-Caboclo reafirmou, no primeiro encontro, que

o caboclo é o dono da terra e é brasileiro:

Mas o caboclo é mais velho, porque os outros vieram de lá pra cá, e ele já estava

aqui. Ninguém foi buscar “ele” não. Ele já estava aqui. Ele é o dono da terra. E por

que, agora, se expurga o dono de suas casas? Se acha que caboclo não tem prestígio,

se acha que caboclo não é “feito”, se acha que ele não tem pai, nem mãe, que nasceu

num ôco-de-pau? Caboclo não nasceu assim, não. Ele tem pai, mãe, tem tudo.

Caboclo é uma “nação”, tem bandeira, tanto quanto outra qualquer, mas não é

bandeira de [orixá] Tempo como botam. Ele tem bandeira, porque a bandeira dele é

a Nacional. É a Bandeira Brasileira, verde, amarela, “Ordem e Progresso”. O Brasil

não é uma nação? O caboclo não é brasileiro? Não se canta esta cantiga para ele?

Brasileiro, brasileiro/ Brasileiro, imperador/ Brasileiro que é que sou. (Ferreira, 1984:

65, grifos adicionados)

Talvez a dificuldade de uma literatura engajada politicamente, como a do próprio

Jocélio Teles do Santos (1995), em olhar o caboclo como brasileiro tal como as pessoas

de santo o narram se dê por conta da maneira como o caboclo havia aparecido na

literatura, associado à identidade nacional freyreana. Foi através dessa perspectiva que

o caboclo foi apropriado no discurso oficial da Independência da Bahia. Ao dizer que a

“ascensão” do caboclo se deu por ocasião da Independência, sendo ela vista como um

fato histórico, Teles dos Santos (1995) pode cair no perigo de silenciar a narrativa de

pessoas como Xicarangomo Almiro Miguel Ferreira, que diz: “ele já estava aqui”. Na

narrativa das pessoas de santo que conta a violência da escravidão, o caboclo é brasileiro

porque dono da terra, não um brasileiro mestiço. Dono da terra, “ele foi o maior

guardião dos africanos” (Santana, 1984: 46).

É possível ver essa relação, ainda, na fala do Babalorixá Luís Sérgio Barbosa

presidente da Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro, durante o segundo evento.

Como já havia comentado ao final do primeiro capítulo da tese, a forma como se contam

essas histórias faz com que o índio se confunda com caboclo e orixá com negro. “Com a

passagem dos tempos, houve o entrosamento de africanos com os caboclos, nas tribos

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e fora delas. Desses encontros e amizades, foi possível a constituição de várias famílias,

onde nasceram filhos de africanos com caboclos” (CEAO/UFBA, [1995] 1997: 87).

Os caboclos espiavam mas não era permitida a sua participação. Os africanos

vetavam. Os caboclos passaram a reclamar. Alegaram que os africanos vindo para

o Brasil, nada trouxeram e quando aqui chegaram se valeram do que encontraram,

e tudo que existia aqui no Brasil era dele, o caboclo. As terras, as folhas, os rios, as

pedras e tudo mais que os africanos estavam usando era de propriedade dos

caboclos (índios). Com esse entendimento os caboclos começaram a romper a

barreira com o aparecimento de incorporações de caboclos nas pessoas possuidoras

de mediunidade. Os filhos-de-santo dos zeladores, alertavam aos seus pais-de-santo:

“os caboclos estão entrando”. Era um Deus nos acuda, mãos na cabeça e tudo mais.

(CEAO/UFBA, [1995] 1997: 88, grifos adicionados)

O Babalorixá Luís Sérgio Barbosa estava ali para falar do “caboclo e suas

andanças” (CEAO/UFBA, [1995] 1997: 87) e que caboclo, como orixá, também tem

fundamento: “vim falar sobre o índio e se não falei adequadamente, me desculpem.

Porque o índio tem seus segredos e nos segredos do índio, muita gente não penetra.”

(CEAO/UFBA, [1995] 1997: 104):

Não seria eu quem deveria fazer esta palavra. Mas tive dificuldade em encontrar

uma pessoa que tivesse a coragem de falar do índio aqui, nesta casa, hoje. Na função

de presidente da entidade, não poderia deixar esta lacuna aberta, porque o caboclo,

nos terreiros de candomblé é o S. Francisco. É ele quem faz os seus movimentos

para que se possa conseguir alguma coisa que se almeja. (CEAO/UFBA, [1995] 1997:

87, grifos adicionados)

Esta fala do babalorixá aponta para o segundo aspecto das narrativas que

relacionam indígenas e negros: como se diz em Cachoeira, da própria natureza do

caboclo. Luís Sérgio Barbosa mostra aqui movimento e andança. Por isso as mãos na

cabeça, era um Deus nos acuda porque o caboclo aparecia. Além disso, nos mostra que

é através dos seus movimentos que o caboclo ajuda as pessoas. É de movimento

também que Paula Galrão (2011: 19) fala em seu trabalho. Seguindo “os caminhos das

entidades”, ela toma “o caboclo como ponto central” (Galrão, 2011: 20), o “nó sob o

qual se expandem relações” entre as redes de pessoas e entidades com as quais fez

pesquisa. Ao olhar movimento, ela não procura encontrar a origem.

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As origens da inserção do caboclo nas religiões afro-brasileiras podem até ser dúbias,

no entanto, não é meu interesse aqui precisar um ponto zero da chegada dessas

entidades. O que é importante salientar é que elas se imiscuíram nos cultos e

ocupam hoje lugar central em muitos terreiros de Candomblé, Umbanda e até

grupos domésticos como o estudado neste caso. O caboclo se mostrou uma

entidade de movimento não apenas na fala dos meus interlocutores (como uma

entidade de maior agilidade, que dança mais, se locomove e transita com maior

intensidade em relação aos orixás), mas também pela enorme circulação entre

grupos religiosos. Esta transitoriedade pode ser interpretada a partir de um

movimento que partiu da Umbanda ao Candomblé, após o movimento de

dessincretização que ocorreu neste grupo de culto, e que influenciou a passagem de

integrantes e entidades para outra religião. Este é o argumento de Stefania Capone

(2009) ao mostrar como exus e pomba-giras foram ressignificados segundo este

trânsito religioso. No entanto, apesar deste tipo de análise considerar um continuum

entre os grupos, não concebe que o trânsito religioso acontece em uma via de mão

dupla e de forma constante. Com isso quero afirmar que pessoas e entidades vêm

e vão, e estas entidades, neste movimento, são obrigadas a ser constantemente

ressignificadas. (Galrão, 2011: 63, grifos adicionados)

Em alguns textos recentes, os movimentos mencionados pela autora e as

próprias presenças pipocam em diversos lugares: “mesmo não atuando num terreiro de

candomblé, o caboclo faz parte do universo religioso da maioria dos seus adeptos.” (Tall,

2012: 85). E pipocam agindo no mundo: “nem sempre as entidades seguem à risca

aquilo que as pessoas consideram como mais adequado” (Galrão, 2011: 66).

Vilson Caetano de Sousa Júnior (2005: 123) ainda afirma que “a figura do caboclo

é algo fundamental para manutenção dos cultos afro-brasileiros na cidade de Cachoeira,

sobretudo daqueles que se auto denominavam nagô”. Como venho aqui argumentando,

falar “das ‘casas’ de Cachoeira sem mencioná-los, deixaria uma lacuna significativa”

(Sousa Júnior, 2005: 123).

Durante a pesquisa, percebemos que estes ancestrais brasileiros encontram-se o

tempo todo ao lado dos orixás nagôs e dos vodus daomeanos. Na maioria das vezes,

não somente ligados diretamente à vida espiritual das lideranças religiosas, mas à

fixação do próprio culto em um determinado local. A história da casa de Mãe Lira de

Iemanjá não é diferente. É seu caboclo, Juremeira, quem vai não somente garantir a

sua projeção como sacerdotisa, mas também lhe presentear a casa onde ela passará

a dar assistência espiritual às pessoas. (Sousa Júnior, 2005: 123)

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Novos trabalhos, assim, questionam muitos dos pontos de partida das

perspectivas mais clássicas, como a ideia de nações de candomblé (Passos, 2016), a

própria ideia de mestiçagem (Panzzarelli, Sauma & Hirose, 2017) 61, e a restrição da

possessão às estruturas institucionais religiosas dos terreiros, deixando de lado a

“possessão doméstica” (Galrão, 2011). Com os trabalhos sobre Cachoeira, não é

diferente. Luiz Cláudio Dias do Nascimento (2010) e Luis Nicolau Parés (2007) trabalham

com a tradição oral para falar do candomblé Jeje em Cachoeira, contrapondo-se ao

grande enfoque na nação queto de Salvador. Os trabalhos recentes de Luísa Mahin do

Nascimento (2016) e Luísa Mesquita Damasceno (2017) mostram a religiosidade

cotidiana da cidade.

As presenças, portanto, estão nestes trabalhos. As relações entre pessoas e

entidades aparecem mais do que um ideal de estrutura ritual e mitológica. Luísa Mahin

do Nascimento (2016) faz uma abordagem cotidiana da relação com Cosme e Damião,

e toda multiplicidade que isso implica em Cachoeira, com erês, Ibêji e Doum. Dona

Cleonice, por exemplo, ascende vela para os santos todos os dias, quando conversa com

eles – “todo dia de manhã e à noite” (Nascimento, 2016: 65). Já Dona Caçula afirma:

Minha avó sempre disse assim: “Olha, se a gente tem o orixá e ele quer que as coisas

sejam feitas à maneira dele e não à nossa maneira, tem que ser respeitado”. Então

a gente teve essa formação e a gente continua seguindo a orientação deles. Os

caboclos, os erês, eles dizem a cor que eles querem da festa. O ano passado eles

disseram que queriam uma chuva de arco íris aqui e aí nós fizemos o arco íris com

61 As autoras e autores do já citado dossiê (Contra)Mestiçagens Ameríndias e Afro-americanas (Panzzarelli, Sauma & Hirose, 2017) procuram pensar o sincretismo através de um procedimento deleuziano de “minoração por extração do elemento dominante [o branco]” (Goldman, 2017: 24). “Novamente, não há nada de abstrato aqui. Muitos dos coletivos apresentados neste dossiê elaboram a relação afroindígena em termos explicitamente míticos. O que significa elaborá-la simultaneamente em seu caráter extensivo e intensivo, em sua molaridade histórica e em sua molecularidade criativa. É apenas desse modo que conseguem escapar tanto da variável majoritária dominante “brancos”, como da captura que sempre ameaça toda linha de fuga, a saber, o rebatimento dos devires nas identidades ou mesmo nos pertencimentos, ainda que estes sejam os de uma minoria. O devir-minoritário-afroindígena traça uma linha de fuga não apenas em relação ao muro branco da maioria como também ao buraco negro da captura por qualquer espécie de identidade de minoria” (Goldman, 2017, 19). Embora eu ache que essa é uma contribuição importante para a antropologia, a tentativa de pensar o caboclo nesta tese não é à partir de uma perspectiva de matriz afro-indígena. Ao trabalhar com Cachoeira, é impossível não falar das presenças, entidades como caboclos. É daí que parto, do que foi aprendido lá, e não de uma teoria primeira que constrói elaborações “míticas da relação afroindígena”. Busco refletir sobre formas de se comunicar o mundo vivido pelas pessoas, e não apresentar explicações que são pensadas como “propriamente antropológicas – ou seja, etnográficas, comparativas e generalizantes” (Goldman, 2017: 16).

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bolas. E aí eles dizem que querem que toda criança seja bem tratada, “não quero

ninguém reclamando com as crianças que cheguem aqui. Se elas bagunçam, deixem

bagunçar que a festa é minha, não é sua”. (Nascimento, 2016: 65)

Luísa Mahin do Nascimento, a autora, mais conhecida como Mahin, é

cachoeirana. Foi com ela que entrei em contato quando ainda em 2014 pretendia visitar

a cidade. Como boa cachoeirana, ela nos fala das singularidades de sua terra “cada canto

da cidade, cada costume, cada comida conta uma história tramada de realidade, ficção,

mitologia, filosofia” (Nascimento, 2016: 36):

Tem festa de São João e no dia 24 de junho se acende fogueira para Xangô ou Sogbô

em alguns terreiros de candomblé; tem sambas de roda; bumba meu boi; festa de

Santa Bárbara na igreja com fogueira e oferenda de caruru; tem feira livre e sua

economia do sagrado; tem padre macumbeiro e pai de santo ou mãe de santo

católica; tem gente perambulando pelas ruas manifestadas de caboclos e outros

encantados; tem gente que ficou doida porque recebeu zorra ou feitiço de alguém e

nunca conseguiu se curar; dentre outros inumeráveis enredos próprios da cidade.

(Nascimento, 2016: 36)

Paula Galrão (2011: 46) aprendeu na casa de Zezé “aquilo que dizem sobre a

religiosidade baiana”: ela “está em todos os aspectos de nossas vidas”. Aprendeu

também que existem “entidades espirituais que realizam trabalhos no nosso mundo a

fim de ajudar pessoas e cumprir sua missão” (Galrão, 2011: 46). Foi Sultão das Matas

quem lhe mostrou.

Sultão das Matas está presente na vida de Zezé e das mulheres que frequentam sua

casa das mais diversas maneiras: ele é entidade que as ajuda resolver problemas

familiares e de saúde, que administra os encontros religiosos realizados na casa de

Zezé, é aquele que aconselha na lida com os maridos e filhos, e que as têm como

filhas, lhes dando carinho e fazendo reclamações quando necessário. (Galrão, 2011:

25)

Luísa Damasceno (2017), por sua vez, realizou sua pesquisa no terreiro de Mãe

Dionízia, o Oiá Mucumbi. Através das histórias de alguns dos filhos e filhas de santo da

casa, ela falou das “linhas” que compõem o caminho espiritual de cada um. O

movimento está aqui nos trajetos percorridos pelas pessoas e na presença cotidiana das

entidades. Um dos filhos de santo, Roque, lhe disse que as entidades são “pé de vento”.

Numa das primeiras sessões que pude acompanhar na casa de Mãe Dionízia, conheci o

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caboclo Tupinambá de Roque. Foi o primeiro que vi e um dos que mais me marcou. Seu

Tupinambá é uma das entidades mais potentes que já tive o privilégio de conhecer na

vida. Em festa para Oxóssi, Ele não deixa ninguém ir embora cedo, com tanto rei e rainha

na sala, eu não vou ficar sozinho. Roque fala à autora:

Os orixás são pé de vento. Não só os orixás, mas todas as entidades. Por que vento?

Ninguém pode pegar um orixá, ninguém pode pegar o vento. Na mesma hora em

que estão aqui, estão ali. São espíritos que estão em tudo quanto é lugar. Podem

estar assentados na África, mas onde você estiver, eles estão ali te vendo. Vento!

Vento está em tudo quanto é lugar ao mesmo tempo! (Damasceno, 2017: 50).

E mesmo Manoel Querino ([1938] 1988) já trazia em sua análise o movimento

dos caboclos. Quando descreve o seu ritual, ele fala que os “encantados chegam à

cabeça das mulheres”. E que, ao longo da festa, “quem está com o santo corteja as

pessoas presentes segurando-lhes as mãos, dá dois saltos perpendiculares, abraça-as de

um lado e do outro, faz-lhes algumas determinações, dá-lhes conselhos e retira-se”

([1938] 1988: 74).

Em alguns desses trabalhos, no entanto, o ponto de partida ainda é a teoria:

“nações do candomblé”, “mestiçagem” e “possessão”. Estes são conceitos caros a uma

disciplina que busca explicar e classificar outros conhecimentos, “mentalidades”, a

partir de uma perspectiva racional. Que busca generalizar a partir do particular. O

caboclo, no entanto, não é afeito a generalizações. Ele é a própria pluralidade. Ao olhar

para caboclos e entidades contidos nesses novos trabalhos, outras possibilidades se

abrem para compor narrativas etnográficas nos estudos das religiões de matriz africana.

Narrativas que sejam mais plurais, como o caboclo. Que não engessem o mundo vivido

em generalizações, porque como Roque ensina, “orixás são pé de vento”.

Segundo Miriam Rabelo (2015) o mundo do candomblé é um mundo que precisa

ser aprendido, e ele nos convida a repensar as premissas racionalistas sobre o que deve

vir a ser uma análise e a reaprender o que pode ser uma narrativa etnográfica (Kofes,

2001; Kofes & Manica, 2015). Cristiane Santos Souza (2015) se propõe a pensar a partir

de diferentes fontes – registros de observações, relatos biográficos, fotografias,

reprodução de fotografias de álbuns de família, cartografias e desenhos –, sem, no

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entanto, “hierarquizá-las na construção das análises” (Santos Souza, 2015: 347). Seu

texto é, assim,

(...) um breve arranjo (etno)gráfico a partir do material coletado, com vistas a

sinalizar para o que penso ser um caminho profícuo de apropriação e reflexão desse

material. Dessa forma, de maneira ainda experimental, a tentativa deste texto é

apresentar algumas possibilidades analíticas. (Santos Souza, 2015: 347)

Como já dito, ao deixar de lado a presença do caboclo e as próprias narrativas

sobre o encontro entre indígenas e negros, muitos pesquisadores perderam o que me

parece fundamental: a espiritualidade vivida cotidiana e corporalmente. Partir da

presença das entidades no candomblé para entender a sua origem transforma o dono

da terra em uma “representação simbólica do que seria a cultura indígena para esses

terreiros” (Teles dos Santos, 1955: 13). O que se perde quando se explica o caboclo dessa

maneira são as suas diversas formas de existir no mundo – como indígena, Seu

Tupinambá; como sertanejo, Seu Boiadeiro; como sereia, Indaiá; ou às vezes até como

estrangeiro. Se é o Caboclo que quando chega no terreiro conta a sua história, por que

não escutá-la?

Bianca Soares (2014: 24) apresentou em sua tese a cidade de Belmonte, no sul

da Bahia, conforme lhe “apresentou vovó Mariana, preta-velha de Dona Marota,

zeladora da única casa espírita da cidade que estava aberta na época em que” realizou

a pesquisa. Suas palavras vinham em resposta à afirmação da autora de surpresa pela

quantidade de preto-velho e caboclo que trabalhava nas casas de santo da cidade:

Aqui teve muita matança de gente. Era tudo aldeia que foram destruindo, matando

homem, mulher, criança, velho, matando tudo. Até a natureza, os animais... Depois,

vieram os negros e mataram também. Mataram e escravizaram. Por isso que essa

terra tem carrego, porque tem muito sangue nela. Tem muito ódio. E por isso que

tem tanto velho e caboclo trabalhando, que é para limpar esse lugar. (Soares,

2014:24)

Em Cachoeira também são muitas as histórias do “carrego” por causa do sangue

ali derramado. Como nas palavras de Vovó Mariana, isso “afeta a vida de quem vive

nessa terra e é matéria de trabalho para os pretos-velhos e caboclos, que limpam o

lugar.” (Soares, 2014: 24). As narrativas aqui apresentadas nos mostram como os índios

eram aqueles que resistiram e ensinaram sobre as folhas deste mundo. Hoje, são eles

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os que “arrancam a raiz” e fazem os trabalhos mais pesados de limpeza e cura. Bravo,

guerreiro, aquele que abre caminhos e quebra demanda. Eles se comunicam com as

pessoas e levam os recados. Muitos são os que recebem caboclos que vêm ao mundo

para trabalhar. Caboclos que não aceitam dinheiro, exigem que seja tudo na caridade.

Paula Galrão (2011) aprendeu em seu trabalho que os caboclos, assim como os orixás,

além de habitar o mundo, também habitam os corpos das pessoas. É preciso pois cuidar

deste corpo para recebê-los. O mundo passa assim a ser vivido através de cuidados

diários. Composto por encontros diários. E por muita força, já que o que caboclo faz,

não se desfaz.

7) A FORÇA QUE VEM DESSA PEDRA QUE CANTA ITAPOÃ, FALA TUPI FALA IORUBÁ

A questão aqui é que ao elaborar grandes esquemas e generalizações a literatura

deixa de lado o cotidiano miúdo que compõe, inclusive, o nosso trabalho de campo.

Maria das Graças Rodrigué (2001) tenta, através do ritual das águas para Oxalá,

entender como o pensamento do candomblé fez com que a cidade de Salvador se

vestisse de branco toda sexta-feira. Vanda Machado (2013), através da descrição de um

projeto pedagógico no Ilê Axé Opô Afonjá, fala do conhecimento daqueles que têm a

“pele da cor da noite”. Denize Ribeiro (2013) vai estudar a fome através da concepção

de comida para as pessoas de santo. Em cada um destes trabalhos, que não foram

defendidos em departamentos de antropologia, as pessoas aparecem. Vestidas de

branco quando se precisa. Construindo uma escola com outra pedagogia pautada no

“pensamento africano”. Comendo e dando de comer, a pessoas e orixás, porque comida

é vida no candomblé. Não se trata, evidentemente, de não dialogar com a teoria – as

próprias autoras não deixam de fazê-lo, ao trabalhar com termos como ritual, pedagogia

e segurança alimentar –, mas de não perder as pessoas quando se faz análise.

O longo percurso aqui percorrido entre os textos canônicos sobre candomblé na

Bahia teve como objetivo olhar para como este conhecimento antropológico foi

construído ao longo dos anos. Os modelos implicam também um modo de fazer. Na

antropologia apresenta-se os debates acionando no texto conceitos antropológicos. Isso

é visto como análise. Tudo nestes debates é posicionado em relação a modelos

antropológicos mais amplos – como o do conceito de cultura que busca superar o de

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raça, ou o da mestiçagem, da aculturação, da mentalidade africana, da estrutura

simbólica, da sociedade envolvente, da estrutura social ou simbólica. Tudo o que

acontece em campo se encaixa, assim, nesses enquadramentos. Inclusive as falas das

pessoas. O que não cabe, fica de fora. Há uma luta, uma tensão no processo de escrita.

E, em geral, as pessoas acabam por ficar indexadas aos debates. O estilo narrativo que

se escolhe também dita a análise que se faz: conceitos, interlocutores, para quem se

escreve, quais as falas das pessoas recortadas e apresentadas, qual a forma do texto.

O movimento deste texto busca fazer com que a análise antropológica não

transforme o que as pessoas estão pensando, mas ao contrário, que seja transformada

pelas pessoas. As presenças estão no mundo. A pergunta parece ser: o que afinal de

contas isso nos diz? As presenças nos dizem que o candomblé é uma maneira de ser e

estar no mundo. Mas essa simples resposta não cabe na força dos orixás, caboclos,

inquices e bons irmãos de luz.

Como vimos no primeiro capítulo, Cachoeira é cheia de histórias. As histórias

da Recuada são essas mesmas que Vilson Caetano Sousa Júnior (2005) aprendeu com as

pessoas mais velhas. Muitas dessas histórias são ouvidas em todo canto na cidade. Como

as do Vapor, que já não navega mais no mar do Paraguaçu: “a embarcação que se movia

sem a ajuda dos ventos e dos remos e sobre um de seus tripulantes, Zé do Vapor, que

trabalhava na cozinha” (Sousa Júnior, 2005: 62).

É imprescindível, ao falar do candomblé nagô na cidade de Cachoeira, mencionar os

nomes de tios e tias africanos/as e pessoas profundamente conhecedoras das

“coisas da seita”, como diversas vezes ouvimos. Homens e mulheres que tinham o

poder de adivinhar sem utilizar nenhum instrumento adivinhatório, que se

transportavam de um lugar para o outro na forma que queriam ou que tinham o

poder de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Homens e mulheres,

comerciantes, donas de casa, donos de roça, barraqueiras, ganhadeiras ou que

simplesmente viviam da profissão de “curador” ou curandeira, que traziam a velha

Cachoeira de seu tempo resolvida com seus bozós, como Porfíria de Ogum, sempre

referida pelos entrevistados como Aleijadinha, além dela são citados: Tia Águida de

Iemanjá, Pai João, temido como grande feiticeiro, Judite de Aganju, a mulher que se

transportava para a África na forma de um pássaro, ao lado de outros nomes como

Maria Benedita, Juliana, Maria Democrata, Tio Anacleto, Zé do Vapor, ou mesmo um

sacerdote chamado Da Lama. (Sousa Júnior, 2005: 54-55)

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A presença das entidades está em cada esquina da cidade. Está nas histórias da

Pedra da Baleia, da Lagoa Encantada, da construção da Ponte Dom Pedro e da barragem

da Pedra do Cavalo. Como é possível ver na narrativa de Maria Ferreira dos Santos e

Irineu Ferreira:

A charqueada é um local que fica a 200 metros de distância da região onde foi

construída a barragem. O terreiro ficava mais ou menos 300 metros de distância para

dentro. Hoje tudo está debaixo d’água. Tanto que, quando eles começaram a

construir essa barragem, foram várias construções. Ela várias vezes desabou, porque

era um local onde os antigos, os pais de santo, botavam muitos presentes. Inclusive,

o nosso, aqui, era na Pedra Lisa. Há 50 anos, os presentes eram colocados ali. A

empresa veio construir a barragem, não fez nenhuma oferenda para os orixás da

água e foi muita morte, muita carnificina. A gente sentia o fedor de gente humana,

tudo soterrado aí. Nós fomos, pedimos ao administrador da barragem e fizemos uma

oferenda. (Sousa Júnior, 2005:107)

Muitas dessas histórias falam de problemas espirituais advindos da falta de

cuidado com as entidades. Das entidades em ação no mundo, vista pelos seus efeitos na

vida da cidade. Como também mostra a narrativa de Luís Magno:

O terreiro mulssurumi abaixo da Lagoa Encantada. Ele acabou porque Seu Paulo

Catuaba não passou o segredo. Ele sabia o segredo que o pai e o avô dele passou. O

avô veio da Costa, o pai, não sei. Ele era pra passar para um filho, ou preparar um

parente da família para deixar. Ele não preparou. O que aconteceu com Paulo? Os

filhos de Paulo quase todos têm problemas espirituais. Só os homens, quase todos

tem problemas mentais... Para você ver a força da coisa. Ele era para ter passado

para uma sobrinha. Essa sobrinha mora hoje na Ladeira Manoel Vitório, chama-se

Miluzinha. A mãe dela era herdeira desse terreiro. Paulo Catuaba morreu, ela ficou

com medo de assumir o cargo e entrou nos crentes. Aí o orixá deu um prazo para ela

sair dos crentes. (Sousa Júnior, 2005: 69)

Mesmo que muitas vezes não contempladas, com Vovó Mariana aprendemos

que as entidades trabalham duro para limpar e curar o mundo. O candomblé está

presente, assim, em uma forma de viver a cidade que não é restrita aos terreiros. É “um

candomblé ensinado nas ruas, no samba de roda, ao lado de outras manifestações

culturais. É tudo isso que se denomina nagô ou, ainda, que é compreendido como a

nação de ancestrais itinerantes” (Sousa Júnior, 2005: 118).

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O que importa, portanto, não é a vida que se restringe ao interior do terreiro. É

o que está nele, mas também fora dele. É uma forma de se viver o cotidiano. Não passar

atrás de um poste em determinado lugar. Pedir agô quando vir um ebó, chamar por

proteção quando cruzar com o que é ofertado para outrem. Pedir licença antes de entrar

no mato. Pedir permissão para entrar na água. Pedir para que os caminhos estejam

abertos quando se entra na estrada. Usar branco ou roupas claras nas segundas, quartas

e sextas-feiras. Usar umbigueira para curtir a Festa d’Ajuda, a festa no mês do povo da

rua, em novembro. Prestar atenção aos sonhos. É passar alfazema, ou pemba, para ir ao

trabalho. É viver em um mundo mobilizado por diversas forças.

Essa forma de viver está também no jeito de falar. Mãe Beata de Iemanjá

acentuou a importância do caboclo: “Quem não tem o seu caboclinho? Quem não coloca

sua frutinha no mato para a natureza, que caboclo é natureza.” (CEAO/UFBA, [1995]

1997: 102). E dona Ceci: “O nagô-vodunsi é o nosso, o nagô que tem encostado caboco”

(Sousa Júnior, 2005: 53). Também o babalorixá Luiz Sérgio Barbosa, “quando se vê um

bêbado na rua, fazendo graça, não fique por dentro. Ao redor dele, está uma avalanche”

(CEAO/UFBA, [1995] 1997: 103). Ou, ainda, com o deboche de Gilvânia, a ferocidade

perspicaz de Duca e a poesia de Mãe Dionízia. Tem que olhar, minha filha. Tem que

olhar. Para a forma. Para o que colocamos em primeiro plano. Para o que está de fundo.

Mas sem esquecer: desengano da vista é ver.

***

Foram três as vezes que eu encontrei com caboclos fora dos espaços de terreiros.

Todas elas foram ao lado de Gilvânia em seu tabuleiro, parada obrigatória toda terça e

quinta-feira. Ao voltar da capoeira, por ali ficava para quase sempre comer um acarajé.

Um dia Seu Marujo estava lá. Não o reconheci logo que vi. Achei que era seu cavalo – a

pessoa que o recebe –, um amigo de Gil. Não sei quando foi que percebi, mas logo ele

começou a me falar um bocado de coisa. Comprei-lhe uma cerveja. Estendemos a prosa.

Depois, ele se aproximou novamente de Gilvânia e ficamos dando risada. Outra vez, ele

já chegou da rua. O tabuleiro estava cheio. Cumprimentou a dona, deu em cima das

mulheres que ali estavam e depois saiu distribuindo conselhos. Não faltaram ofertas

para lhe encher o copo.

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Com Dona Jurema já foi diferente. Era dia da Festa de Iemanjá, em algum fim de

semana de fevereiro de 2017. Em dias de festa na cidade Gilvânia montava seu tabuleiro

no Jardim Grande, de frente para o Rio, que era para aproveitar o movimento. A festa

já chegava ao seu fim. Gilvânia havia guardado seu material e descansava um pouco

antes de ir embora, quando me aproximei para me despedir. Ao lado dela estava Dona

Jurema. Cumprimentei-lhe com um aperto de mão, ao que ela respondeu com um

abraço. Desatou a falar. Meus olhos se encheram de lágrimas. Agradeci e segui meu

caminho.

Era véspera de festa de caboclo. O ano, se não me engano, era 2016. Estávamos

na sala de Mãe Dionízia descansando depois de um dia de muitos trabalhos. Festa no

terreiro sempre exige diversos preparos. Dona Leninha, filha de santo e de sangue de

Mãe Dionízia, abaixou-se para lhe pedir a benção pois já ia descer para a sua casa. Não

foi ela, no entanto, quem levantou a cabeça. O caboclo Gentil chegou arrancando a bolsa

e já queria arrancar os brincos. Foi logo dizendo: achou que não ia me ver hoje, né, minha

véia. Mãe Dionízia o recebeu com olhos cheios d’água.

Sempre tive dificuldade em considerar as vivências nas pesquisas que fiz como

“material etnográfico”. Logo, a dificuldade aumentava no momento em que eu tinha

que fazer “análises”. Em Cachoeira, tudo ficou ainda mais acentuado. Muitos foram os

pesquisadores que falaram do tempo de aprendizagem no candomblé. Como ele é

longo. Demorado. Exige paciência e silêncio. Como Jocélio Teles dos Santos

(CEAO/UFBA, [1995] 1997: 85): “e fui compreendendo – porque hoje eu sei que o

candomblé, como disse Valdina, é um aprendizado, mais que uma religião é vida, é

resistência, é política”. Mas assim também é com a vida. E, logo, com todos os trabalhos

de campo. À medida que o tempo ia passando, mais distante eu me sentia da

perspectiva analítica que me forçava a explicar o mundo. Como eu transformaria tudo

aquilo que aprendi em uma linguagem contextualizada a partir de modelos

antropológicos, e descontextualizada do mundo cachoeirano? (Strathern, 2014).

Decidi, não sozinha, porque ninguém anda só, olhar para o mundo da

antropologia e invertê-lo a partir do que aprendi em Cachoeira. Depois desse percurso,

ofereço à leitora uma nova proposta: e se por alguns instantes fossemos nós, as

antropólogas, a não entender certas coisas? O terceiro capítulo desta tese é uma

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tentativa de repensar os termos do que seria uma análise antropológica ao dar ênfase à

forma. A intenção é que Cachoeira contamine a escrita com seu ritmo. De fala. De dança.

Com seu cheiro. Com seu sabor. Com suas presenças.

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CAPÍTULO III

O mundo

Gosto de ouvir, mas não sei se sou hábil conselheira. Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E, no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta. E,

quando de mim uma lágrima se faz mais rápida do que o gesto de minha mão a correr sobre o meu próprio rosto, deixo o choro viver. E,

depois, confesso a quem me conta, que emocionada estou por uma história que nunca ouvi e nunca imaginei para nenhuma personagem

encarnar. Portanto, estas histórias não são totalmente minhas, mas quase que me pertencem, na medida em que, às vezes, se

(con)fundem com as minhas. Invento? Sim, invento, sem o menor pudor. Então, as histórias não são inventadas? Mesmo as reais,

quando são contadas. Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E,

quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo

que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência.

Conceição Evaristo (2011)

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1) SÃO 16 FALANGES, CADA UMA TEM UMA DONA

Para Cachoeira, pela permissão.

Ih, minha filha, esse rio aí tem é história. Da ponte Dom Pedro até a Pedra da

Baleia são 16 falanges, cada uma tem uma dona. Eu sei, vivi muito, meu pai era

marítimo e meu avô trabalhava em cima do mar. Foi assim que Maria Dionízia dos

Santos me respondeu ao pedido para entrevistá-la. No dia de Nossa Senhora do

Rosário, 7 de outubro, de 2016, Mãe Dionízia fez 80 anos. Suas filhas contam que ela

recebeu santo pela primeira vez quando tinha apenas oito meses de idade. Quase

morreu. A mãe assustada a levou a um pai de santo, que acalmou Santa Bárbara,

pedindo-lhe paciência e que esperasse. Quando Dionízia tinha sete anos, Iansã Menina

veio de vez a esse mundo.

Logo cedo Mãe Dionízia começou a atender. Contam que Santa Bárbara levava

gente de tudo quanto era canto para a porta de sua casa. Pessoas que ninguém nunca

tinha visto e que precisavam de ajuda. Por muitos anos Mãe Dionízia trabalhou sem

receber. O terreiro Oiá Mucumbi, do qual é zeladora, fica no Alto da Levada. O acesso

a ele é por uma escadaria de degraus irregulares pela orla da Faceira. É uma das vistas

mais bonitas da cidade de Cachoeira. De frente para o rio Paraguaçu. Fica de frente

também para a Pedra da Baleia, palácio de Iemanjá Ogunté. Pra gente é só uma pedra,

pra ela significa um palácio. Perguntei se eu podia usar o gravador, ela perguntou o

que eu queria saber. Tem certas coisas que não podem ser gravadas. Anotei o que

pude no meu caderno.

Quando cheguei à sala de sua casa, estavam as crianças no sofá assistindo o

desenho “Carros”. Uma delas me deu o lugar para sentar. Era uma sexta-feira, e antes

de se juntar a nós, Mãe entrou para o quarto onde joga falando que hoje só não mexia

com coisas de búzios. Estava toda de branco, com a guia de Oxalá transpassada no

peito. Cabeça coberta. Primeiro ela disse que não poderia falar muita coisa pois sua

cabeça já não era mais a mesma, ela já não guardava. Mas daí desandou a falar.

Seu avô contava muita história sobre essas águas. A Pedra da Baleia, disse ela,

tem duas entradas pelo farol. Uma pela frente, outra por debaixo da soleira, pelas

esquerdas. Uma entrada e uma saída. De um desses lados, há a bacia de Iemanjá. A

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saída é pela esquerda e a entrada pela direita. Antigamente, quando era lua cheia, as

pessoas viam Iemanjá, bem bonita, cantando em cima da pedra, um canto lindo. Mais

tarde um de seus filhos e um de seus netos também participaram da nossa conversa.

Explicaram então que só se podia pular de um lado do farol, que dos outros, pela

frente, por trás e pelo outro lado, era tudo pedra.

Antes, Mãe contou a história de uma das enchentes do rio, que aconteceu quando

ainda nem era nascida. Mãe Dionízia nasceu em 1936: são quase 80 anos de cansaço

de vida, minha filha. Disse que era sua avó, seu avô e sua mãe quem contavam que,

depois que a enchente abaixou, era muita lama na maior praça de Cachoeira, o Jardim

Grande. Havia tanta sujeira que todo mundo se encontrava ali para limpar o que tinha

ficado. As águas haviam passado do palanque, o coreto da praça. A enchente quase

arrasa Cachoeira, mas não se lembrava qual tinha sido o ano.

Depois da enchente, o mar ficou claro. Havia um jardineiro que morava perto do

Jardim Grande e sempre cuidava do lugar, todo mundo o conhecia. Pois no sábado à

noite depois da enchente e depois de tudo limpo, esse jardineiro viu uma coisa muito

grande nas águas. Achou estranho, afinal não tinha notícia de nenhum navio para

aquele horário. O navio tinha uma luz muito clara, parecendo dia. Era um navio que

vinha todo iluminado com uma luz azul. Iluminava a cidade toda. Ele parou em frente

ao tiro de guerra, ali onde tem a escada duas irmãs. Dele, saltaram três mulheres

lindas, cada uma com uma tesoura nas mãos. Elas foram até a praça colher as rosas

que havia por lá. Depois que elas foram embora, o jardineiro caiu sem fala. Teve um

negócio e no dia seguinte quando o viram caído, foram socorrer. Levaram para o

hospital, mas ele não tinha boca para falar nada. Foi uma mãe de santo quem

descobriu o que havia ocorrido quando a ela o homem foi levado, para olhar. Ele tinha

visto três mães d’água. As flores sempre sumiam do jardim, mas ninguém nunca tinha

visto quem é que as colhia.

A conversa seguia emendando uma história na outra. Mãe Dionízia me contou o

que sua cabeça lembrou das histórias das águas do Rio Paraguaçu, que eram o norte

de nossa conversa. Do pilar do meio da ponte quem é a dona é Iemanjá Abomi. Da

ponte dom Pedro até a pedra da baleia são 16 falanges, tem muito mistério, cada uma

delas tem uma dona, uma mãe d’água: cada porto governa uma sereia das águas.

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Usou porto e falange como sinônimos. Na época em que o Vapor ainda navegava no

mar de Cachoeira, todo navio que passava pela Pedra da Baleia apitava em sua altura

para avisar no porto que estava chegando. Por conta disso, Iemanjá desceu em uma

casa de candomblé em Salvador, falou que o apito a incomodava e que não queria

mais que os navios passassem por ali buzinando. Desde então, os navios passaram a

apitar na altura do Tororó ou antes até.

No porto da Faceira tinha um nego d’água. Não era todo mundo que via não, ele

só aparecia para quem queria. O povo deixou de tomar banho ali pela noite com medo

dele. Era um negão forte, coroa, muito escuro, que ficava ou na água, ou sentado na

beira do rio. Todo mundo que via, assustava, dava uma carreira. Às vezes quando

alguém via, corria gente para ir lá ver, mas as pessoas não viam não, só tinha um que

via. Nunca mais ele apareceu. Mãe Dionízia falou que ele não apareceu mais por conta

do que as pessoas falavam, entidade invisível não se xinga.

E continuou. Agora... quem ele queria levar, levava.

Por trás dos quiosques ali na orla do Caquende há três pedras. Uma delas é a

pedra de Oxum ou dos Marujos. Uma vez a mãe pequena da casa, filha de Iemanjá

com Obaluaê, foi levar um presente para Oxum. Quando estava para colocar as coisas

na água, ouviu um gemido que estremecia o rio todo. Foi então que Oxum apareceu da

cintura para cima, chamando por ela. A filha, que a acompanhava, gritou assustada e

desapareceu – qualquer pessoa tem medo. Era entre cinco e cinco e meia da manhã. A

mãe pequena falou que era uma moça muito bonita, com os cabelos compridos que

cobriam todo rio.

Esse mar tem muita coisa, muita riqueza e muito encanto.

Mãe Dionízia teve dezeseis filhos, oito ficaram e oito a vida quis levar. Dos oito

que ficaram, nem todos seguiram seu caminho na religião. Contou-me, assim, a

história de uma de suas filhas, que é cristã – da lei de crente. Aconteceu quando elas

foram levar um presente à Pedra da Baleia. Mãe colocou as pessoas para ir no barco, e

foi por último. Quando chegou lá, sua filha estava tremendo, chorando, querendo

descer, querendo se encontrar com uma moça muito bonita que havia visto, com um

vestido branco que cobria todas as águas. Quem a segurou fora sua comadre, filha de

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Iemanjá, que não vira, no entanto, a moça que chamava por sua filha. Só ela é quem

viu. Conseguiu contar apenas depois de três dias o que havia acontecido: tinha visto

essa moça linda chamando por ela na água. Parecia que as estrelas estavam caindo no

rio, havia um clarão. Sua filha, ainda que não fosse feita no santo, é filha de Iemanjá

com Oxum.

Isso foi coisa já vista mesmo, minha filha. Já se viu muita coisa e ainda se vê. Essas

águas têm muito mistério. Os zeladores de santo não dão valor a essas águas. Ao

poder delas.

Contou então a história de sua irmã, Inês, que teve parte das duas pernas

amputadas por causa da diabetes e faleceu em 2017. Quando Inês era menina, ela era

muleque-macho e ia sempre numa canoa para a Pedra da Baleia com as amigas, na

maré baixa. Ficavam lá curtindo, pulando do farol até a maré começar a encher.

Naquela época, a maré esvaziava até aparecer um banco de areia no rio onde as

pessoas ficavam tomando sol. Descobria até o meio do canal, mas hoje não acontece

mais. Teve um dia que, quando a maré já vinha enchendo e antes que todos fossem

embora, Inês resolveu dar um mergulho, como sempre, mas demorou para voltar. Foi

quando apareceu só a mão dela na superfície do rio, alguém então falou que Inês

estava se afogando. Correram para tirá-la de lá e puxaram, puxaram. Fizeram

massagem até ela voltar. Não tinha bebido um gole de água. Depois ela contou que

havia encontrado uma moça debaixo da água que a chamou para lhe mostrar o seu

palácio. Ela foi descendo, descendo, passou por uma água barrenta, uma água alva

brilhante – que quase não se enxergava de tanta luz –, depois uma água azul, outra

verde, e depois uma outra água que foi onde o pessoal veio resgatá-la, dessa ela não

voltava mais. Ela só não foi no palácio porque não deu tempo. Inês é filha de Iemanjá

com Oxalá. Depois desse dia, ela chegava só até a beira do rio e dali tomava banho de

cuia. Nunca mais entrou na água. Mãe Dionízia, Inês e todos os seus irmãos foram

nascidos e criados em Cachoeira.

Quem não conhece esse rio, não adianta... Isso tudo é lenda que nós temos. Já

aconteceu muito caso nesse rio, é um rio muito poderoso. Essa lama aí, é uma areia

movediça, tem que tomar cuidado.

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Mãe Dionízia tinha uma filha de santo de Oxum de Itajuípe, ao sul do estado. Na

época, ela tinha cinco anos de feita. Mãe Dionízia contou que essa filha de santo sua

tinha uma irmã que era a maior fura roncó, gente que fica andando em tudo quanto é

candomblé, levando e trazendo intriga e fofoca, mas não tem fé. Essa moça queria

acompanhar a entrega do presente para as Yabás, orixás femininos, das águas. O

presente acontece todo dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição. Mãe

Dionízia disse que não queria que essa pessoa fosse, pois não confiava nela. Se

perguntou o porquê dela querer entregar o presente em sua casa, já que morava num

lugar rodeado de água do mar, perto de Ilhéus. Mas, com esse coração relaxado que

tenho, quando a moça ligou, ligou não!, pois naquela época não tinha telefone,

mandou uma carta pedindo para colocar também um presente no dia 8, Mãe Dionízia

foi consultar o seu santo. No desengano da vista, o jogo falou para ela tomar cuidado.

O santo disse que ela fazia o que quisesse, mas estava avisada que a moça possuía

uma entidade muito perigosa. A moça então foi. Quando chegou no terreiro, pediu a

benção, tratou Mãe Dionízia muito bem. Olha, minha filha, graças a Deus e debaixo de

Nossa Senhora, eu tenho uma Mãe que é muito forte e que cuida muito bem de mim, e

que eu cuido muito bem dela também. No dia 8 pela noite, todo mundo entrou no

barco grande que ia leva-los até a Pedra da Baleia. Era lá que os presentes das águas

seriam entregues. Todo mundo levou uma barca para Iemanjá.

A maré estava cheia, para mim, para todo mundo a maré tava cheia. Mas de

repente ela secou. O barco chegou na pedra e não gostou da pedra, encalhou e subiu,

ficou com a popa toda encostada no farol. Esse barco era para virar, minha filha...

Olha, eu sou muito difícil para ter medo das coisas, mas dessa vez eu procurei o meu

coração no lugar e não achei. Então foi a gente dentro daquele barco e o coro comendo

e a gente pedindo. Foi Deus, Iemanjá mesmo e minha mãe Iansã. O pessoal que vinha

de canoa tentou mexer no barco, e nada. Então a gente foi descendo, um a um. E nesse

dia eu fui mesmo, primeiro as mais velhas da casa. E a gente em cima da pedra,

rezando e o coro comendo, o batuque, e a gente rezando. Pedindo maleme. E foi

pedindo...

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Pedir maleme, como em uma oração. Bater a cabeça no chão e pedir socorro,

socorro pra todas as falanges espirituais que tem, quando a gente está em apuros,

canta maleme.

Dias depois foi todo mundo levar uma barca para Iemanjá e foi quando viram o

precipício do qual tinham escapado. Aquilo era castigo. A história se espalhou por toda

Cachoeira, foi um comentário só. Veio um pai de santo de Mangabeira para ver o que

tinha acontecido, tirou retrato e disse que essa casa tinha santo, tinha força. Outra

mãe de santo de São Félix, Dona Mariah, também veio ver o que tinha acontecido e

disse que não era para ter voltado ninguém daquele barco, essa casa tinha proteção.

Era um barco enorme que carregava areia para construção. Depois do ocorrido, Santa

Bárbara veio e disse que não ia deixar ninguém morrer não, que só queria mostrar que

tinha essa força contrária que ia passar o pé em todo mundo. Mas que ninguém ficasse

preocupado não, pois ela estava segurando.

Ninguém nunca tinha visto uma coisa daquela, que o barco subiu a pedra e a popa

ficou em pé, de cima do farol. Daí você pensa que não tem nenhuma responsabilidade

quando vê essa pedra. O barco só saiu dali com três dias de trabalho do dono e dos

homens com canoas durante a maré vazia. Nunca vi uma coisa dessa e não quero ver

mais. Tudo isso me aconteceu aí nessa Pedra da Baleia, nessas águas doces, poderosas.

Num suspiro, Mãe cansou de falar: saiu tudo da cabeça, minha filha, essas coisas

do passado.

Pediu uma laranja a alguém, pois estava com a boca seca. Do tempo que fiquei lá,

três pessoas pediram para falar com ela ao telefone. Algumas entraram e lhe fizeram

perguntas. Depois seu filho, conhecido como Tonho, se aproximou, sentou e

perguntou se eu escrevia. Disse então que eu deveria um dia sentar na Pedra da Baleia

e a sentir, para escrever. Que deveria ir também ao Engenho da Vitória, hoje uma ruína

na beira do rio.

Foi nessa hora que a conversa engatou novamente e Mãe Dionízia contou de uma

prima, Fulô, que era bem miudinha, da mão pequena, que ainda carregava as marcas

das correntes no tornozelo. E ele emendou dizendo que mesmo depois do fim da

escravidão, ainda havia escravos ali. As pessoas trabalhavam no engenho, que foi

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passando de geração em geração, tanto do lado dos negros quanto do lado dos

brancos. Mãe falou que o engenho era lugar de gente muito rica. Que tinha tudo lá,

que não precisava comprar nada na cidade. Hoje em dia, quando se fica naquele lugar,

ainda se escuta o choro e o grito das mulheres e crianças, pois teve muita criança

assassinada ali, já que só podia ficar filho homem. Tonho tratou logo de dizer que

agora ela estava falando da parte espiritual, e ela disse imponente que sim. Mãe

Dionízia contou ainda a história de uma mulher que teve o filho tirado com uma

semana de nascido e que ela nunca mais viu, só teve a notícia de que ele tinha virado

doutor no estrangeiro. Era filho do senhor do engenho.

Começaram então a contar histórias da construção da segunda ponte de carro,

antes da Pedra do Cavalo, e da construção da própria barragem. Contaram que foi

muito difícil construir as duas, que teve um rio de sangue de tanta gente que morreu

na construção. Aquele lugar tinha dono, e ele não queria deixar construir. Perguntei se

a ponte Dom Pedro tinha sido assim também e Mãe falou que sim, muitos negros

tinham morrido naquela construção. Mãe Dionízia falou ainda que na época da

construção da barragem, quando o pessoal chegou para trabalhar, havia uma serpente

enorme na Pedra do Cavalo. Todos saíram correndo dali.

Voltando ao rio, Tonho falou que o farol se chama Pedra da Baleia porque ali era o

lugar de descanso das baleias na época de navegação, antes da construção da

barragem, quando havia ainda navio no rio. Ele mesmo tinha visto. E mais: ali do lado

da pedra, na bacia de Iemanjá, é fundo, fundo mesmo, ninguém que vê pode ver o

fundo. Mãe complementou lembrando de novo da entrada e saída da pedra. Era por ali

que as baleias passavam e justamente onde uma ficou descansando.

Falaram ainda dos lugares encantados que tinham donos e que foram sendo

soterrados pelo homem. Ali no caminho para Salvador, havia a Lagoa Encantada,

morada de Oxum. As pessoas que por ali ficavam viam os animais indo beber água e

afundando, sumindo na areia movediça. Contam que quem afundava lá, ia parar no

Dique do Tororó, em Salvador.

Mãe Dionízia é uma das pessoas que mais me ensinou ao longo dos meus dois

anos e meio em Cachoeira. A cada conversa, sua forma de falar da vida ficava ecoando

na minha cabeça. Em um dos dias que fui vê-la para pedir a benção antes de uma

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longa viagem, era São João e ela estava triste. Sua casa já não era tão cheia como em

outros anos. Ela não podia comer seu feijão com mocotó, seu amendoim cozido, nem

tomar seu licor. Não podia ir à rua ver o forró.

Com lágrimas nos olhos, relembrou de quando sua mãe estava bem velhinha e ela

a trouxe para sua casa, para ser cuidada. Sua mãe não gostava de gente escura. Mas

eu falava, mãe, a senhora é negra, seu pai era negro, sua mãe era negra. A senhora

está falando que não gosta de você mesma. Disse que, mesmo assim, ela fechava a

cara quando alguém de sua cor chegava perto. Olhou para mim e disse: mas se alguém

assim como você aparecesse, ela sentava do lado e sorria. Mãe Dionízia tomava o seu

café, sentada na sua mesa embaixo de uma janela, sempre aberta. Da janela, via-se o

Paraguaçu e a Pedra da Baleia. Olhando para fora, ela suspirou cansada. A gente

caminha com o tempo, minha filha, hoje em dia o corpo já não dá mais coragem.

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2) AMACI

Para toda gente do Oiá Mucumbi, a benção.

Amaci. Preparado com folhas sagradas, maceradas no pilão ou com as mãos, em

infusão. Usado para banhos de limpeza.

Depois de fazer a vista – olhar nos búzios ou na água –, anota-se a receita

apressada.

Tome seu banho antes do sol cravar de manhã ou às seis horas da tarde. Durante

sete dias, não vá sujar o corpo. Nada de bebida. Rua depois da meia-noite. Dendê.

Pimenta. Carne de porco. Namoro. Use roupas claras. Proteja-se nos horários abertos –

seis horas da manhã e da noite, doze horas da manhã e da noite. Não vá usar a folha

errada. Preste atenção nos sonhos: o que os orixás estão lhe dizendo?

Coloque a brasa no turibo, junte incenso, mirra e benjuí. Defume o corpo e a casa.

Acenda uma vela de sete dias. Em um prato branco com um pouco de água, azeite

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doce e mel de abelha acenda uma vela na intenção do santo de linha de frente e dos

donos dessa cabeça.

Oxum está na frente, jogando água no fogo para abrir os seus olhos. Mas o barco

é pesado. Carga por cima de sobrecarga. Coisa do santo e coisa da natureza. Não

confie demais em camarada. Chame por Deus e as águas para acalmar a cabeça.

Abra seus olhos com o caminho espiritual. Cuide de sua vida, senão vai passar os

dias só. O caminho está apertado, mas Ogum está dizendo que não está fechado.

Muito mistério a ser feito. Tá tudo misturado. Coloque tudo em seu devido lugar para o

povo conhecer. Um acerto com os espíritos. Das linhas da esquerda, ajeite que eles vão

colocar tudo no caminho. Oxalá está dizendo que está tudo na mão.

Tudo vai amenizar. O sonho vai mostrar o lugar certo, essa menina, onde você tem

que se cuidar.

A folha limpa o corpo, a folha limpa o ambiente, a folha cura.

Sem folha não tem sonho, sem folha não tem vida, sem folha não tem nada, já

dizia a música de Gerônimo e Ildásio Tavares, consagrada na voz de Maria Bethânia em

seu Brasileirinho. Durante as festas de terreiro, o chão é coberto por folhas. Quando se

faz o xirê – roda de toque e dança para entidades –, toca-se para Ossain, o senhor das

folhas. Neste momento, alguém mais velho da casa pega um balaio cheio de folhas

frescas e as joga nas pessoas presentes. A folha de mariô – palha do dendê – é

colocada nas portas e janelas de todo terreiro, mas também é colocada nos postes da

cidade em época de São João.

O cheiro da folha macerada transporta para o mundo do candomblé e é

acompanhado pelos cheiros do sabão da costa e da vela queimando. Esse mundo tem

a tonalidade da luz da vela, crepuscular. Esse cheiro da folha fresca macerada pode ser

sentido a qualquer momento do cotidiano cachoeirano. Às vezes no vento, outras

dentro de casa mesmo. Ele se mistura com o cheiro do dendê queimando ao fim da

tarde para fazer o acarajé. Ele se mistura com o cheiro que sobe do rio Paraguaçu

quando ele começa a secar. Ele faz o corpo adormecer quando junto a ele se escuta

um tambor bater.

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3) EM CACHOEIRA, QUEM É DE SANTO SE NÃO TÁ NA VISTA, TÁ NA CORRENTE

Para Dona Venina, com sua benção, e para Mile, onde deságuam histórias.

Em um dia quente de janeiro fui visitar Dona Venina, moradora desde muito da

Rua Santo Antônio. Há tanto tempo ela esperava pela minha visita e, mesmo assim, foi

tomada de surpresa. A entrada de sua casa dá em um longo corredor que termina na

cozinha. Ao longo dele, as portas dos quartos são fechadas. Antes de abrir para mim,

foi acalmar o cachorro que quase pulava do alto da janela com as minhas batidas no

portão de ferro. Seguimos para o quintal da casa depois da cozinha.

Dona Venina começou a me contar histórias enquanto varria o quintal. Disse que

tinha medo de água, pois por duas vezes ela já quase tinha ido. Ela ainda estar viva,

explicava, era coisa do santo. Contou que quando era bem nova, em um dia 8 de

dezembro – dia de Nossa Senhora da Conceição e da festa das águas em algumas casas

de axé –, ela estava na Cachoeirinha de Muritiba quando a água começou a levá-la. Foi

resgatada por sua mãe: ali foi o Ogum de minha mãe que me salvou, se ela não sabia

nadar?! A única testemunha do milagre que podia contar, dona Chiquinha, ficou cega

naquele dia.

Pariu suas primeiras filhas em casa, sozinha. As únicas que nasceram no hospital

foram as mabasas, as gêmeas Cosmilda e Cremilda. Kokoi veio primeiro, com três

quilos e pouco. Kekel vinha em seguida com um quilo e pouco, mas ela já não tinha

força para parir. Dona Venina não sabia que eram duas em seu ventre. Quando chegou

ao hospital com as duas cabeças coroadas em sua barriga marcadas cada uma por

uma cruz, a enfermeira antiga e conhecida disse que só saía dali quando nascessem as

duas. Dona Venina exclamou surpresa: que duas?! O médico novo ficou fazendo pouco

caso escovando os dentes com a caneta, falei para o doutor mais velho depois que

aquele descarado não tinha escovado o dente em casa e por isso estava passando a

caneta nos dentes. Foi para casa com as duas. Tem a barriga partida de cima a baixo

até hoje.

Em outro dia, eu fui à rodoviária almoçar em seu box, que é tocado por Rose, uma

de suas filhas e grande amiga. Dona Venina estava lá e me contou de quando havia

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sido feita. Meu ori quando nasceu, nasceu branquinho, branquinho. Meu santo é velho.

Eu, com vergonha, passei dois anos com a cabeça coberta. Se eu não podia dar a

ninguém cortar?!

*******

Em Brasília, cidade onde nasci, as pessoas perguntam quando conhecem alguém

qual é o seu signo do zodíaco. Em Cachoeira, perguntam qual é o seu santo. Muitas

contam também que quando eram pequenas brincavam de sacudir os ombros e o

corpo todo fazendo de conta que estavam dando o santo.

Os orixás, muitas vezes chamados de santos, são os guias das pessoas. Do

cotidiano e dos caminhos. Eles e as entidades, inquices, caboclos e bons irmãos de luz,

povoam Cachoeira. Mestre Bule-bule, certa vez no Cine Theatro Cachoeirano

perguntou, será que se houvesse um diálogo entre as divindades e os dirigentes, estes

conseguiriam colocar o pé no chão?

Cachoeira é envolta em mistérios. Todo mundo tem uma história de santo para

contar.

*

Jamile, uma grande amiga nascida na Ilha de Itaparica, fazia Serviço Social na

UFRB. Morou em Cachoeira por muitos anos. Morre de saudades de suas águas.

Depois que lhe apresentei o meu blog, um apanhado de frases das pessoas de

Cachoeira, ela passou a me mandar áudios no whatsapp contando as histórias pelas

quais passava pelas ruas da cidade. Eram sempre incríveis.

Um dia Jamile estava nos Correios. Estavam todos aguardando para serem

atendidos quando Djalma entrou. Djalma é conhecido e querido por todos. Contam

que ele já tinha sido muito rico e e até gerente da rede de supermercados Pereira.

Sempre de óculos escuros, bermuda e uma camisa, anda hoje pelas ruas da cidade

com um maço de cigarro debaixo do braço e um cigarro na mão. Quando tem show, é

visto dançando sem parar com seu jeito único de balançar um dos seus braços e

sustentar com o outro um microfone imaginário. Só não o imite, nem brinque com ele,

senão ele logo se reta e sai xingando. Para praticamente cada uma das pessoas

consideradas loucas na cidade, há uma história de feitiço por trás.

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Neste dia nos correios, Djalma entrou e pediu um cigarro para quem estava ali

presente. Saiu, mas voltou. Olhando para a Jamile, disse de supetão:

– Hoje é segunda-feira, dia de tomar banho de alfazema na cabeça. Você já deu o

presente a ela?

Todos riram.

– Oxe, oxe, Djalma, virou pai de santo, agora é?

Ele fechou a cara e se saiu, retado.

Em um outro dia, Jamile saiu para tomar uma fresca no fim de tarde. Ao passar

por uma mulher, velha conhecida das rotinas da vida, descansando numa sombra boa

que só naquele dia de calor, parou.

– Eu vou encostar aqui.

– Oxente, você senta se você quiser.

Logo para Jamile, que não leva desaforo pra casa.

– Ih, tá me botando pra fora, é?!

– Eu só boto pra fora quem não tem o pé dentro do axé, né, minha filha. Você tem

o corpo todo, não posso te colocar pra fora não.

E desandou a contar de sua vida à Jamile. Lá pelas tantas, disse que um rapaz com

quem trabalhava tinha feito de um tudo para acabar com ela.

– Aí, sá menina, eu bati cabeça e pedi pro meu Pai. Disse a ele que eu sou eu e

nicuri é coco pequeno, minhas costas de quiabo. Eu sou mais eu e minhas costas é de

quiabo!

Calou-se depois, retada.

As pessoas em Cachoeira estão sempre falando de proteção. Passe sua alfazema

para se proteger da inveja e para acalmar essa cabeça. É bom estar em dia com os

seus sempre que possível, já deu o presente a ela? O quiabo é comida importante para

o povo de santo. Preparado como caruru ou amalá, é o prato dos Ibêjis, as crianças, e

de Xangô, senhor da justiça e dos raios. Mas é também quizila de Egun, comida dos

espíritos dos mortos que faz mal se ingerida quando não se deve. Em limpeza para

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afastar esses espíritos, usa-se quiabo, maxixe e abóbora. Evita-se comê-los quando se

está em resguardo, momento de cuidado com o corpo que foi preparado aos orixás, ou

quando alguém do terreiro falece.

*

É Festa de Bêje na roça no mês de setembro! Na festa das crianças, distribui-se

aos convidados caruru. A feira fica lotada de quiabos sendo vendidos no cento. Cada

cem valem mais uns. Para quem não oferece caruru em casa ou no terreiro, não é

época boa para se comprar este legume. Cortado bem picadinho para caruru, quiabo

não rende, precisa mesmo de algumas centenas para alimentar tanta gente.

Estávamos no terreiro cortando quiabos. Neste momento, eram muitas as

histórias de erês, as entidades crianças, uma das mais amadas nas casas de axé e das

pessoas que as frequentam.

Oxê, lembra daquela senhora que fazia caruru todo ano, mas ficava murrinhando

prato de comida? Apois, a gente tava na festa e de repente a erê sumiu e depois de um

tempo voltou arfando. Perguntei onde ela tava, ela respondeu dizendo que tinha se

transformado em um cachorro e comido a panela inteira de caruru da senhora. Como

podia, ela tinha feito e não tinha dado a eles! Quando a senhora chegou na cozinha,

encontrou a panela lambida até o tacho.

*

Em um grupo de fiar contas, a conversa era animada. Dona Vera estava

apanhando do seu dologun de caboclo, uma conta de sete fios verde esmeralda. Disse

que não queria conta com candomblé não. O caboclo tá dando em mim. Esse é brabo.

É daquele que vem da mata e dá uns pulos. Eu não sou dessas coisas não, só não gosto.

Minha mãe já quebrou a cabeça. Ela é filha de sultão das matas. Outra então disse que

entendia o caso, e santo é gente?! Eu já levei foi muita porrada.

*

E ainda Dona Célia, moradora da Ladeira da Cadeia e filha da Roça do Ventura,

disse certa vez: dos meus orixás, um empacota, o outro leva. É por isso que não

frequenta cemitérios, nem hospitais.

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*

Babado é figura conhecida em Cachoeira. As pessoas da cidade o chamam pelo

nome, Tical. Entre os estudantes, no entanto, é conhecido mesmo como Babado. Está

sempre montada com seu black grisalho para cima, com panos brilhantes amarrados

na cabeça e na cintura. Um arraso. Acompanha toda cena espiritual da cidade. Vai às

festas de terreiro e é presença certa nas missas. Canta mais alto que todo mundo. Tical

mora na Kaanga, último bairro de São Félix em direção à Maragogipe. A porta de sua

casa é coberta de plantas. Sou de Oxóssi, as plantas crescem sozinhas. Atrás há um

enorme quintal. Nos apresentou às donas dos córregos que passam por ali. Ele mora

na mata e se alimenta dela. Quando Júlia me levou para visitá-lo, ele disse, a

genealogia é como a terra, não dá para ver o que está por trás e por dentro dela. O

mundo é espiritual. O que existe em Cachoeira é uma guerra espiritual.

*******

As referências em Cachoeira não são apenas aos orixás. Os santos católicos

também estão presentes no dia-a-dia. Parece casa de Santo Antônio, ninha, quando a

gente acha que não tem mais lugar para caber, chega um.

Se Cachoeira é envolta em mistérios e todos têm uma história de santo para

contar, é também um vai e vem de santos em seus andores nas datas festivas. São

todos enfeitados, carregados de flores e nunca deixam de receber toques e pedidos de

benção.

*

Agosto é o mês de muita gente. São Bartolomeu, Oxumaré, Obaluaê, São Roque. É

nesse mês, dia 16, que pipoca vira flor. A flor do velho Obaluaê e o andor de São

Roque percorrem as ruas da cidade.

Em São Francisco do Paraguaçu, um grupo de mulheres estava arrumando o andor

da procissão no antigo convento. O telefone de alguém tocou e ela logo reportou a

conversa: oh, fulana, ela mandou dizer que Nossa Senhora não vai não, hoje só vai sair

São Roque só.

Agosto também tem missa para São Bartolomeu na igreja, enquanto no terreiro

se acende vela para Oxumarê e se espera a chuva certa do dia de águas passar.

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Já setembro é mês recheado das balinhas que todos chamam de queimado e dos

carurus dos santos gêmeos. Dá caruru de Cosme quem nasceu nos meses de setembro

e outubro, ou quem tem filhos ou irmão gêmeos. Na igreja de São Cosme e São

Damião no alto do Cucuí, tem missa no dia 27 de setembro e tem procissão também.

São muitos os pedidos a esses santos tão presentes no cotidiano cachoeirano. Só tome

cuidado. Esse Cosme é uma coisa. Se prometeu, tem que cumprir. Ficou o aviso.

*

Durante uma missa para Nossa Senhora do Amparo, padroeira do Colégio

Estadual da Cachoeira, o membro da Irmandade falou: Nossa Senhora é a dona da

Cachoeira. Ou como conversámos em um grupo animado por cerveja, Duca, Rita,

Arthur e eu, eita que Nossa Senhora tem crédito nessa cidade, são quantas igrejas a

ela consagradas? Nossa Senhora do Rosário, na matriz e no alto do Rosarinho, Nossa

Senhora da Conceição do Monte e dos Pobres, no centro e no Caquende, Nossa

Senhora do Amparo, cuja igreja foi queimada, e a famosa Nossa Senhora d’Ajuda.

Ainda segundo o membro da Irmandade do Amparo, os fogos são a intensidade das

batidas do nosso coração em louvor à Maria.

*

Na roça não se tem preguiça pra nada, afirmou Dona Carminha, rezadeira do

Caquende, depois de não se surpreender com a informação de que Dona Cadu, uma

velha conhecida de quase cem anos, acorda às 4h da manhã para fazer cerâmica.

Deixamos sua casa logo em seguida, já rezadas, quando chegou um menino

trazendo um cavalo para ser também rezado.

Vou logo buscar alguma coisa para os olhos dele, não se pode rezar um bicho

enquanto ele olha para as pessoas, é ruim, faz mal. Entrou casa e quintal adentro para

buscar as folhas. E algo que vendasse o bicho. Logo começou a recitar e bater a folha,

Nossa Senhora, Virgem Maria...

*******

Não foi só uma vez que eu escutei que em Cachoeira tudo tem um fundamento

por trás. Cachoeira não é brincadeira. Dizem que lá se recebe com o vento. No dia em

que conheci Dona Leninha, ela alertou: em Cachoeira, nunca se bebe sozinha. Certa vez

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escutei Marcelino, uma importante figura da cidade, falar de sua relação com Gaiaku

Luiza em um evento na universidade. Quando ele era pequeno, ela lhe disse: meu filho,

feitiço existe. Depois de alguns anos em Cachoeira, não há como duvidar. Aquilo que

vemos, tocamos ou apenas sentimos estar presente, tudo existe nesse mundo.

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4) DOMÍNIO

A estrela de Davi é o símbolo do Domínio, do sangue derramado pelas religiões ocidentais.

Cristina Solimando

Cristina Solimando, Domínio. Desenho em cartolina. Cachoeira, 2015.

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Cachoeira, 10 de setembro de 2015. Cristina Solimando reflete sobre seu Domínio:

Saiu um rosto, um rosto do rio um pouco em desconforto. O vapor, que não lembro

bem o nome do vapor, as pessoas estão dançando, antigamente usavam os binóculos,

os golfinhos na frente, o golfinho transformando-se em sereia. Aqui um pouco a máfia

da, algumas mercadorias estão roubando, aqui com as canoas. Aqui o farol, a

transformação da baleia na pedra. A pescaria, aqui estão com as boias, as redes

colocadas para esperar os peixes. Tem dez anos atrás, tem mais, tem vinte anos atrás

era, passavam da escadaria, das pedras, passavam as canoas para levar as pessoas a

São Félix. Aqui, aqui a mão dela. O trem transportando pedras. Aqui coloquei os

neguinhos d’água que são os meninos que são entre crianças e sereios, os neguinhos

d’água que se chegam a ver, famílias falavam que quando lavavam a roupa não

podiam ficar muito tarde porque iam ver os neguinho d’água, se viam os neguinhos

d’água, era azar. Bueno, a cidade de São Félix, aqui cidade presépio, a cruzinha, vários

degraus de fileiras de casinhas, o Danneman, a casa de uma amiga Cláudia, Buena

Vida, atual construção moderna. A ponte, a igreja lá de São Félix, atravessamos. E

assumpção da Virgem, né, a Irmandade da Boa Morte, com capela d’Ajuda, aqui a

assumpção. Aqui a matriz. Aqui, descendo aqui, a quarta dos tambores. A quarta dos

tambores é uma coisa mais atual. Aqui é o cinema, a praça Teixeira de Freitas. Então

por aqui... é a aclamação, ah, a Aclamação é aqui. Um personagem muito interessante,

o professor Pedro Borges da maçonaria, “I never did”, ele disse. Você está falando

sério, professor? “I never did”. Aqui é o convento, o conjunto da Ordem Terceira, a

ordem Terceira do Carmo. Uma mãe de santo aqui cuidando deste túnel que vai

desembocar em Belém. O bispo, ele vai entrar dentro da igreja da ordem terceira e

antigamente ele aparecia na igreja de Belém. Entonces, quando ele aparecia na igreja

de Belém as pessoas achavam que era um deus, né, então, coloquei um rei, creiam que

era um deus. Aqui Santiago de Iguape, São Francisco, as igrejas aqui é o mesmo

personagem de Ananias ensinando umas performances. Rotas da Liberdade é atual, né,

o Kaonge. E as lutas dos cavalos, a masculinidade, né, os homens montados em, isso é

uma coisa minha, particular, né, o que é de Mali, os homens montados nos cavalos,

vestidos do mesmo jeito, representando a luta. Então interpreto como a luta das

reivindicações dos quilombos, representado pela masculinidade dos cavalos vestidos

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com roupas e os homens também. Aqui é a cena trágica do São Francisco de Iguape,

que antigamente colocavam os fugidos dentro daquele calabouço, quando subia a

maré ficavam afogados, então isto está acontecendo aqui, coloquei mais para aqui.

Um mapa seria uma coisa imensa para que entre tudo... mas, de todas as histórias.

Aqui coloquei Ossain, a transformação desses coqueiros em Ossain. Aqui os dendês,

estão fabricando o azeite de dendê no quilombo. Aqui também estão fabricando a

farinha e aqui algum adestramento de animais que as mulheres ficam ajudando

também, a escolher animais. Aqui estão indo pra feira, para vender os produtos na

feira. E a feira faltou o lugar da feira, que eu coloquei alguns, eu coloquei algumas

barracas. Aqui comecei a colocar as barracas. Aqui era a festa das quartas-feiras dos

tambores. Aqui as festas da rua. Ah, sim, aqui é aquela moça da quarta-feira dos

tambores, aquela senhora velhinha que eu não sei o nome dela. Aqui está se

amostrando bem, que ela vem com aquela coisa que, e os senhores tocando também

da quarta dos tambores. Tem Djalma dançando. E no último, que ficou, aqui fiz um

morro que vai para a saída da cidade, descendo as Kombis, aqui é a fazenda Santa

Cruz, a mangueira de lá. E o rio, o velho chico não sei de donde vem. Faltou colocar

aquela coisa cruel, que dizem que tem os corpos entre as pedras. Os terreiros, as

bandeirinhas brancas dos terreiros, as cadeiras dos terreiros que estão vazias, ainda

não começou a cerimônia. E o espírito do terreiro, é o cemitério dos negros, o cemitério

dos negros é um arranjo que fez Mãe Preta esses dias. O sofá de Mãe Preta. Aqui é a

terra do massapê, que é boa para cana de açúcar.

– E isso aqui, o que é?

– Salomão.

– É nos dias de hoje ou no passado?

– Tá misturado.

Terminamos o diálogo ao lado de uma amiga sua, Yassá, descendente de

indígenas do sul da Bahia. Neste dia, Cristina não me deu o mapa, disse que ia

acrescentar a história de Yassá no espaço que havia em branco, pois era muito

interessante. Yassá havia conhecido um músico da Minerva Cachoeirana em uma das

apresentações da filarmônica em Maragogipe. Apaixonaram-se. Ela foi então morar

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em Cachoeira. No dia em que fui buscar o mapa novamente, Cristina havia se

esquecido de acrescentar essa história, mas resolveu fazer ali na hora mesmo. Nunca

se fala dos índios...

Alguns dias depois, encontrei a artista na festa de caboclo do terreiro de Mãe

Preta, no Rosarinho. A festa acontece no período dos festejos de Cosme e Damião, no

fim de setembro. Cristina veio me falar que ficou pensando no porquê ela colocou a

estrela de Davi no desenho, pois eu havia lhe perguntado. Disse, então, que ela era o

símbolo do Domínio, do sangue derramado pelas religiões ocidentais. É a estrela de

Davi e de Salomão, que é anterior ao judaísmo.

Depois de 30 anos morando em Cachoeira, a argentina Cristina Solimando

recebeu o título de cidadã cachoeirana em sessão solene da Câmara dos Vereadores

no ano de 2015. A cidade contaminou a artista e seu desenho é um mapa que conta

histórias, tal como Cachoeira.

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5) VELHO DO BALAIO E O ENTERRO DA MEIA-NOITE

Histórias de Badinho.

Badinho é um conhecido artista da cidade, dramaturgo e ator. A primeira vez que

o vi foi em uma atividade de extensão da Professora Martha Rosa, do departamento

de história da UFRB. O projeto tinha como objetivo engajar os alunos a apresentarem

nas escolas de Cachoeira e São Félix os patrimônios da cidade, bem como as

importantes instituições que os mantêm. Badinho foi convidado a contar histórias.

Algumas dessas histórias também foram encenadas no Cine Theatro Cachoeirano.

Todas ricas em detalhes. Suas peças são engraçadas e intensas ao mesmo tempo.

*

O velho do balaio do Engenho da Vitória

Quando acabou a escravidão, um velho senhor negro ficou na terra que já morava

e tinha que plantar apenas o que o dono quisesse, que no caso era fumo, não podia

plantar outra coisa. Ele então achou uma capora bem longe para plantar banana.

Quando ia para a feira, escondia a fruta no fundo de seu cesto, por debaixo do fumo. O

capataz da fazenda um dia o viu com suas bananeiras. Matou o senhor e o enterrou

num local onde plantou uma bananeira. Dizem os feirantes que de sete em sete anos o

velho é visto cantando e vendendo banana no seu balaio.

*

Enterro da meia-noite

Um dia eu estava numa dessas encruzilhadas de Cachoeira com um amigo quando

um velho barbudo passou e perguntou: o enterro da meia-noite já passou? E depois

sumiu.

*

Período de resistência dos terreiros (1910-1920) e o sufoco dos terreiros de

Salvador e do Recôncavo

Na Cajada um sargento negro, cuja mãe era filha do terreiro, resolveu invadir

dizendo que ia dar uma surra no caboclo do pai de santo. E deu, o caboclo deixou.

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Quando o sargento chegou em casa, depois do trabalho, havia chagas em todo o seu

corpo. Depois desse caso, teve que fazer o santo. Saiu da polícia e começou a combater

as invasões de terreiro em Salvador.

Na Terra Vermelha, na casa do babalogum Miguel Pequeno, desceu o boiadeiro

durante a batida policial. O cavalo dos policiais chorou e mandou todos irem embora.

Pai Amílcar, do Capoeiruçu, deu um barra vento em dez soldados que pretendiam

invadir sua casa. Eles desceram dançando de saia até a delegacia, que era no Largo

D’Ajuda.

*

Os mais velhos são um segredo. Os que já morreram, levaram o poder.

*

Quem era nego de ganho, mesmo livre, não podia andar nas principais ruas da

cidade até o século XX. Na rua da Igreja Matriz, a praça principal, tinha que dar a volta

por trás. Quem acaba com isso é Zé de Brechó. Ele passava por essa rua quando um

menino ficou gozando com a sua cara e dando risada dos beiços dele. Zé apenas disse,

pois fique aí rindo. Num deu outra, às 22h naquele dia a família do rapaz foi bater na

porta de Zé do Brechó para pedir que o menino parasse de rir.

Outro caso parecido é de Salacó que estava na ladeira Manuel Vitorio quando uns

passaram de cavalo e fizeram uma piada com ele. Ele então fez com que o cara subisse

a ladeira de quatro e voltasse de costas não sei quantas vezes, e ainda bolasse no

santo. Este foi o primeiro filho de santo branco de Cachoeira.

*

Essas estórias são tudo verdade, são coisas que aconteceram. Cachoeira foi

resistindo através do candomblé. Cachoeira não é brincadeira. As pessoas chegam aqui

e acham que podem andar a qualquer hora. Nós somos a cura. Cachoeira não é

maldade. Candomblé é força, fé, resistência.

*

O Viradouro era uma Charqueada antigamente. Lá, havia um vaqueiro com ferro

de marcar que cheirava a enxofre. Às vezes ele era visto marcando os bois mortos.

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*

Tem o trem fantasma que foi um trem que caiu na ponte de cachoeirinha, no

buraco do inferno entre São Félix e Muritiba. Neste dia, todos os doentes do hospital

morreram. De sete em sete anos o trem passa, se ouve a buzina, mas não se vê o trem.

*

Cachoeira foi a mais perversa do Recôncavo em termos de escravidão. Na Rua do

Fogo, por exemplo, 88 negros foram queimados vivos. São espíritos que vagaram,

revoltados. A Boa Morte enterra os Egunguns: por que a Irmandade está aqui? E

também a quantidade de terreiros. Esses espíritos foram acalmando, mas a coisa

agora está pior do que antes.

*

Cachoeira é tudo túnel, você pisa nas águas. Cheio de galerias subterrâneas que

saem no rio. Toda Cachoeira a gente pisa em águas.

*

Cada orixá tem 21 folhas.

*

Tem terreiros em várias ruas da cidade. A corrente começa aqui e termina em

Feira de Santana. Neste caminho há três pontos onde se deve fazer o que tem que se

fazer, mas não posso contar.

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6) A ÁRVORE MURADA

Histórias de Cacau Nascimento.

Um outro problema exemplar é o de uma mulher, que é mãe de santo da minha

mulher. Ela tem uma casa aqui no fundo da câmara de vereadores. Então, eu conheci

os parentes dela, pessoas antigas, negras. Eles tinham uma casa e no fundo da casa

tinha uma jaqueira. Se fazia uma obrigação anual dessa jaqueira que vem do tempo

dos avós desse cara que na década de 70, tinha mais ou menos 80 anos de idade.

Então pessoas africanas, filhos de africanos. Essa mulher hoje deve ter uns 76, 77 anos

de idade, ela me contando essa história que de repente a família se dispersa, todo

mundo morre, então os que sobraram vão pra Salvador. E a casa ficou lá sem utilidade,

quer dizer não aluga, por causa do quintal, por causa da árvore, porque eles tinham

que eventualmente ir lá fazer essa obrigação. Até hoje se faz e ninguém cuidava da

casa. A casa tava começando a dar cupim, caiu uma parede, caiu um telhado, não sei o

quê. A casa estava desmoronando, a casa estava em estado de ruína. Então o que faz?

Reúne a família pra dizer olha, vamos vender a casa. Vamos vender a casa e acabou.

Não faz mais a obrigação lá, a gente faz uma coisa, pede, joga nos búzios pedindo para

nunca mais fazer e pega o que tem lá no pé da árvore e leva para o lugar. A gente

cuida em casa, não cuida mais na árvore. Só que o orixá disse que não, eu quero

continuar recebendo minhas obrigações aqui na minha árvore. Eu sou a árvore. Aí,

porra, e agora, velho? Agora e aí, vai vender ao cara? Aí fala assim, olha, eu gostaria

de lhe vender, mas eu quero fazer o contrato com você de anualmente você permitir

que eu entre aqui para fazer a obrigação. Não vai dar certo e não conseguia vender a

casa, a solução foi fazer um muro, reduzir o quintal, fazer um muro, um muro que

deixasse a árvore separada da área que seria vendida. O outro muro que é o do fundo

do quintal. Eles fizeram uma porta e tá lá num espaço assim de um metro, um metro e

meio uma árvore que eles eventualmente vêm, abrem pelos fundos e fazem a

obrigação. A solução foi essa. Então isso é um problema que você precisa levar em

consideração. Porra, Cachoeira é um lugar extremamente perigoso!

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7) EU FAÇO FEITIÇO, MAS NÃO SOU FEITICEIRA

Ao entrar nesta casa, Deus te abençoe. Ao sair, Deus te acompanhe.

(Escrito comumente pendurado nas paredes de casas de Cachoeira)

Estava a própria Mãe Dionísia sentada no sofá. Reclamava das dores no corpo.

Naquele dia havia ido um grupo de pessoas de Salvador em sua casa logo cedo. Na

sala, televisão, armário e sofás encapados com cores fortes. Quadros de santos. Santa

Luzia, São Jorge, Iemanjá, Bíblia, Espírito Santo, Jesus, Maria. Um cartaz antigo sobre a

festa de Iemanjá de algum outro ano na porta da sala de jogos. Esta, uma pequena sala

que estava sempre com a porta fechada. Pequena e escura, é um dos espaços mais

sagrados do terreiro. Vela, copo d’água, o dinheiro dos jogos. Na espera, os sons são

da televisão e do pagodão, bem altos, e, ainda, do tintilitar dos búzios.

Naquele dia, ela estava no seu sofá de sempre, com a capa vermelha e as imagens

de santos espalhados pela casa. Estava de bom humor, apesar do insistente telefone

que não parava nunca de tocar. As caras que ela fazia pareciam, como disse uma

amiga, Vivi, desenho animado ou filme de comédia. Depois que aquele grupo de

pessoas saiu, ela nos contou do perigo de desabamento do barranco atrás. A equipe

que tinha estado ali era do Iphan e havia feito a visita com a intenção de preservar as

casas de terreiros da cidade, já que a de Mãe Dionízia corre riscos em período de

chuvas.

Perguntamos sobre os banhos. Mãe Dionízia então falou o quanto o horário das

seis horas da tarde era bom e ruim ao mesmo tempo, que era a hora que tudo quanto

é tipo de espírito vinha. Contou que sua mãe saía sempre depois do trabalho e que um

dia, na rua do Caquende, uma mulher vestida de baiana com uma saia que rodava e

ocupava a rua inteira a chamou. Ela nem olhou. A moça então veio parar na sua frente

e lhe disse que naquela hora o mundo já não era dos homens. Não era para ela estar

ali. Ela estava avisando: a próxima vez que ela cruzasse aquela rua naquele horário,

não ia ser bom. Mãe Dionísia falou que sua mãe correu que só até chegar em casa, que

nem da ladeira se apercebeu. Mas hoje em dia nessa Cachoeira, ninguém não está

mais nem aí pra nada.

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O caminho para a casa de Mãe Dionízia passa pelo Caquende antes de chegar na

Faceira. No dia de domingo, este é um passeio de movimento. Mesmo com chuva.

Pode ter uma festa de quinze anos ou casamento ou, ainda, os resquícios da festa, no

Convento do Carmo. Festa na Igreja Batista ao lado do churrasco com cerveja nos

quiosques da orla. Crianças no parquinho e na beira do rio. O sinalizador da Pedra da

Baleia. Foi num dia assim que conheci Dona Leninha, uma das filhas de santo e de

sangue de Mãe Dionízia. Éramos três na sala de sua antiga casa. Hum, essa aí? É Iemajá

na cara fresca. Demos foi risada. Já essa outra ali, é de raiz. Antes de irmos embora,

Dona Leninha me deu as boas-vindas: Cachoeira é uma cidade difícil, pesada. Por conta

de sua história, né? Mas é linda.

Em julho, tem festa de caboclo no terreiro de Mãe. Todo dia dois, desde que não

caia numa sexta-feira. Se cair, a festa passa para o dia seguinte. Não se pode fazer

nada no dia de Oxalá. Naquele ano, Dona Leninha já estava de saída, ia se preparar em

casa para a festa de logo mais. De bolsa no ombro, abaixou-se para dar um beijo em

sua mãe que estava sentada em seu sofá de costume. Mas não foi ela quem levantou a

cabeça. O caboclo Gentil arrancou a bolsa num movimento brusco com o braço e já

queria arrancar os brincos também. Foi logo dizendo: achou que não ia me ver hoje,

né, minha velha. Mãe Dionízia o recebeu com lágrimas nos olhos e com uma felicidade

que não cabia no imenso sorriso que deu.

Foi mais de uma vez que escutei entre as pessoas da roça ou mesmo outras da

cidade que estavam ali, no candomblé, pela dor. A gente está aprendendo pela dor.

Mas foi Gegeo, neto de sangue e filho de santo de Mãe Dionízia quem melhor

expressou: Candomblé não é boniteza, é precisão.

Os mais velhos chamam de seita e muitas das casas realizam sessão de mesa

branca, dia de trabalho, limpeza ou cura, no terreiro em que não se bate tambor. As

árvores nas casas de axé são enlaçadas com panos brancos ou coloridos. Alguém mora

ali. Há também restos de vela na água. Restos de vela por toda parte. Ali naquelas

casas onde o axé é plantado, onde é feito o fundamento da força espiritual, cai-se no

santo. Recebe-se o orixá. Alguém lhe põe a mão na cabeça e faz seu o santo. Cuida do

seu corpo para que a entidade possa vir em terra. Tem gente que já nasce feita. Abiku.

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Há quem realize missa pedida e esmola cantada para custear os altos gastos com a

obrigação. O jogo de búzios, trabalho de vista, sustenta uma casa inteira.

Eu não sou feiticeira, como o povo diz. Eu faço feitiço, mas não sou feiticeira.

Mãe Dionízia um dia nos contou algumas das histórias de sua vida. Ela e suas filhas

sempre diziam o quanto Mãe sofreu. Inveja e perseguição. Era feitiço atrás de feitiço

jogado em seu quintal. Na infância de seus filhos, contam que havia um cachorro preto

que identificava as coisas feitas. Antes mesmo de qualquer pessoa ver, ele já estava ali

latindo e apontando. Um sapo com a boca costurada. A pemba jogada. Era de um

tudo.

Figura importante nas histórias de proteção contra feitiço é o seu Besen. Mãe

contou que o viu uma única vez. Ele estava ao seu lado na cama, grudei os olhos pra

não abrir mais... corpo de cobra, jiboia, e rosto de gente. Besen ainda apareceu certa

vez para uma pessoa que queria queimar a casa de Mãe Dionízia. Se ela atravessasse

aquele portão, não sairia dali viva. Besen era pai de Oxumaré e ela tinha os dois.

Começou falando dos filhos de Oxumaré, que era um orixá muito rico e que ninguém

podia mexer com seus filhos não. Disse também que eram rigorosos e que quem era

seu filho tinha que andar na linha. Começou a história daquele jeito que parece que a

gente não tá entendendo nada. Fala de um acontecimento e depois, à medida em que

continua contando, é que a história vai fazendo sentido. Disse que não queria passar

por aquilo nunca mais na vida, dormir com um monte de cobra debaixo da cama por

vários dias por conta de uma palavra que foi dita. Por dizer que não queria ser filha...

Contou então de uma visitante que não acreditava nas histórias sobre o Besen da

casa. Em período de festa, ela veio para ver. Estavam todos dormindo nas esteiras ali

pela sala mesmo. Naquela época, ainda não tinha o pagodô, o salão do terreiro. Mãe

disse que estava dormindo quando escutou todo o show, uma gritaria danada e

quando foi de junto para ver, a moça estava coberta dos pés à cabeça com um lençol

branco. Depois, recontando, Mãe não conseguia entender como ninguém havia

escutado, todo mundo dormindo junto e ninguém tinha escutado o show que a moça

fez. Ela tinha visto uma cobra enorme, disse que estava dormindo quando sentiu a

frieza no corpo e era uma cobra enorme que ela encasquetou que tinha entrado na sua

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sacola. Um absurdo ela achar que uma cobra enorme podia estar dentro da sacola. Ela

quis ir embora no dia seguinte, nem ficou para a festa.

Depois contou uma outra história como se fosse nessa mesma época. Em um

período de festas na casa, uma de suas filhas de santo queria ir para a praça. Não

queria, no entanto, ir por terra. Ela não queria ser vista com roupas de candomblé.

Conseguiram assim uma canoa. Quando chegaram de junto do porto para descer,

Iemanjá a pegou e ela caiu na água. Sorte que tinha um rapaz amigo meu por perto,

que era do axé, e que ajudou, suspendeu e tirou a moça da água. Ela que não queria

ser vista, teve que voltar por terra toda suja.

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8) NO QUARTO DE COSTURA

Para Dona Caroline, pela irmandade.

O Curiaxito é um bairro de Cachoeira que fica depois da UFRB, na direção da Rua

da Feira. Na Rua da Feira nunca houve feira, dizem. Esse era o antigo caminho que

levava à Feira de Santana. Seguindo por ele, chega-se ao bairro do Capoeiruçu. Do

Curiaxito, sobe-se uma ladeira que dá no Cucui de Cosme. Esse bairro no alto é assim

batizado porque há ali a Paróquia de São Cosme e São Damião da Igreja Católica

Apostólica Brasileira, cujo diocesano é o famoso Padre Roque. É também o local da

Irmandade dos Santos Mártires São Cosme e São Damião.

Era fim de ano quando fui com Rose na casa de Dona Luísa, no Curiaxito, para

buscar uma encomenda de roupas de ração e roupas de festa. As primeiras são usadas

em terreiros para fazer o trabalho na roça, como limpar o salão, varrer o quintal, fazer

o osé – a limpeza da casa –, além de todas as demandas em dias de festa. O final do

ano é a época de muitas festas nas casas de axé. Começa sempre no dia quatro de

dezembro, para Iansã. No dia oito é a festa das águas. Dia de levar uma barca cheia de

presentes para as Yabás que moram no Paraguaçu.

Entramos na casa pela garagem seguindo em direção a um quarto ali mesmo em

frente. É a sala de costura de Dona Luísa, costureira antiga da cidade. A sala possui

uma janela que dá para o quintal e uma porta que dá para a área de serviço de sua

casa. No quarto há uma cama, um armário e uma mesa com a máquina de costura.

Nos apertamos por ali na cama. Quando chegamos, havia uma moça lá com ela.

Dona Luísa, perguntou qual era o santo de Rose e ela só deu sua típica risada de

erê, mas não respondeu nada. A moça presente então disse que sempre davam Ogum

e Oxóssi a ela, metade homem e metade mulher no ano, mas que ela não era do

candomblé não. Perguntou qual era, no sincretismo, o santo de São Cosme, pois ela

gostava muito dele, e ainda tinha um irmão gêmeo que não parecia nada com ela. Sua

mãe costumava dar caruru, mas deixou de dar.

Uma vez fiz uma promessa a São Cosme e não contei a ninguém, ninguém,

ninguém. O que ela pediu havia sido dado, mas ela não pagou a promessa dando o

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caruru. Tempos depois, estava na praia quando seu irmão, que é gêmeo, chamou-lhe

para dizer que havia um recado para ela. Mas seu o irmão é da macumba, ninha?,

perguntou Rose. Ela disse que não, mas a esposa dele da época era. Um erê o chamou

numa festa, ou sessão, e disse para ele avisar à irmã que ela devia pagar o que estava

devendo. Ela nos contou isso imitando o jeito infantil de falar dos erês, e afirmou que

gostava muito dessas entidades, do jeitinho deles falarem. Repetiu que não havia

contado sua promessa a ninguém. Depois do recado, deu o caruru na casa de sua mãe.

Eu acredito mesmo que existe, que essas coisas existem. Foi quando Dona Luísa

anunciou: tudo existe nesse mundo.

A moça contou ainda de um outro caruru que havia dado em sua casa mesmo, ali

no Curiaxito. Neste dia apareceram três meninos sem camisa e descalços que ninguém

nunca havia visto, um parecendo índio, cabelo de cuia. Rose falou mais de uma vez que

era Cosme, Damião e Doum. Que eram três, não se pode esquecer Doum. A moça

repetiu diversas vezes que ninguém nunca tinha visto aqueles meninos, nem Antônia,

professora da escola que conhece todo mundo. Quando perguntados, os meninos só

falavam, domos dali, e ela ressaltou, com essa voz mesmo de criança! E apontavam

para cima, onde fica o Cucui de Cosme, só falavam isso, não respondiam mais nada.

Domos dali, dali.

Dali, do pé da ladeira do Cucui, a conversa na casa de Dona Luísa era interrompida

vez ou outra por Rose, que perguntava que planta era aquela ali e aquela outra acolá.

Seus olhos estavam atentos às folhas que cresciam no seu quintal.

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9) SAMBANDO COM SANTO ANTÔNIO

Para Dona Zilma.

Era dia de Nossa Senhora da Conceição, 8 de dezembro de 2015. Finalmente

passei na casa de Dona Zilma para uma conversa de fim da tarde. Moradora antiga da

Rua Santo Antônio, ela sempre me cumprimentava quando passava pela janela de

minha casa. Era ela também uma das principais organizadoras da trezena devota ao

santo padroeiro da rua em sua capela vizinha de porta de onde eu morava. Com as

graças de Deus e a intersecção de Santo Antônio, cada ano a vontade de organizar a

trezena é maior.

Quando cheguei em sua casa, Dona Zilma me mostrou ao fundo a bela vista que

tinha da cidade. De lá, dava para ver a Igreja de Nossa Senhora da Conceição do

Monte, Igreja do Monte como era mais conhecida. Olhe, já começaram os preparativos

para missa seguida de procissão. Isso indicava que não teríamos muito tempo de

conversa.

Sua mãe é devota de Santo Antônio e ela mesma possui muita fé nesse santo. A

capela demorou a sair. Foi promessa de muito político: João da Galinha, Raimundo

Leite, Dinho Farofa. Ela antes era uma cabana de palha. O terreno foi doação de um

devoto que havia alcançado a graça e agora pagava o santo. Quando ela foi

construída, só conseguiu ser inaugurada no último dia da trezena, 13 de junho, o dia

da Festa de Santo Antônio. Neste dia pela manhã, ainda estavam botando o piso! A

capela é o escritório do santo. Para as trezenas, a decoração é carregada em flores, o

altar tem roupa e as mesas toalhas.

Além da trezena, Dona Zilma acompanha diversas outras atividades católicas da

cidade. As novenas na igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Pobres, no Caquende.

O novembro de festas na Santa Cruz da Ladeira da Cadeia com lavagem, samba e

missa solene. Ela mesma nasceu no dia de Nossa Senhora das Candeias, 2 de fevereiro.

Quando nasceu, sua família fez uma panela de mungunzá, a canjica do sudeste. Sua

mãe teve 18 filhos. 12 vingaram. Dona Zilma é a caçula. Eu me acho uma pessoa de fé.

Além do santo devoto dono da rua onde foi morar, Santo Antônio, guarda suas preces

à Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora Aparecida e São Cosme e São Damião.

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Sou movida pela fé. Vou levando a minha vida debaixo de Deus Pai celestial e com

a intersecção de Santo Antônio.

***

Cheguei assim de mansinho, saco de compras na mão. Da janela de minha casa, já

via escutado na noite anterior que os alimentos destinados para doação naquele dia

eram o açúcar e o feijão. Passei no Super Souza mais cedo para já garantir. A reza tinha

começado há pouco tempo. Depois dela, logo começou a tocar a viola do samba-de-

roda, ali mesmo na igreja. De um lado, no alto, tinha uma Nossa Senhora Aparecida e

do outro, Santa Bárbara. O altar era enfeitado com flores frescas. Sambaram ali no

pátio mesmo, de frente a Santo Antônio, que nos dê licença, me dê seu salão para

vadiar! As pessoas sambavam em uma roda só, alternando quem era puxada para o

meio. Enquanto isso, a comida circulava para quem estava dentro e para quem não

cabia na pequena capela, mas acompanhava do lado de fora. O licor ficava apenas na

parte de fora, e o que esquentava quem estava dentro era o pé batendo no chão

ritmando a dança.

No terreiro, as rezas eram as mesmas, ó insigne português. Acabadas as orações,

Viva Santo Antônio! Palmas e fogos estourados, tambor e pandeiro em mãos. É hora

de sambar no centro do barracão. Uma pessoa por vez em volta da vela. Os ogans da

casa puxam o samba: Dona da casa me dê licença, ói me dê seu salão para vadiar. E a

dona da casa responde: Vamos tocar para Santo Antônio! Nos intervalos, bolo,

mungunzá e muito amendoim cozido. Aqui, o ritmo do samba em dança também é

dado pelo pé a bater no chão.

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10) É O CHEIRO DA FESTA D’AJUDA!

Para Lúcia de Badú, ela que é o brilho da festa. Para Pedro e Lulu, com muito amor.

Não é o som, é o cheiro. Você tá parada e de repente aquela coisa chega. Entra

pelo nariz e você não se guenta. É o cheiro da festa d’ajuda! Aí o jeito é seguir o

embalo, dizia Rita sobre a impossibilidade de ficar parada quando a banda de sopro do

Embalo d’Ajuda passa pelas ruas da cidade. A rua se enche de gente e o corpo de

movimento. É só ouvir os primeiros acordes.

A Festa d’Ajuda é uma das festas mais esperadas do ano cachoeirano. A rádio já

anuncia: a festa d’ajuda é a única que é nossa, do povo cachoeirano! Com o lema Ide e

fazei discípulos: uma igreja “em saída” no livreto do programa religioso da Festa

Litúrgica, o embalo é organizado pela Irmandade de Nossa Senhora D’Ajuda e envolve

diversos eventos ao longo de nove dias intensos. Os embalos com música, danças,

brigas e fantasias. E as missas e rezas na pequena Capela d’Ajuda.

A página do Portal A Ponte também faz a divulgação da programação:

Entre os dias 1º e 17 de novembro de 2015, a cidade de Cachoeira, no

Recôncavo Baiano, se fantasia para brincar na Festa D’Ajuda, que

homenageia a padroeira da primeira capela construída na cidade. A

comemoração completa 144 anos de tradição em louvor à santa católica.

Com uma extensa programação religiosa a parte profana é a maior

responsável pelo sucesso desse festejo entre a comunidade de Cachoeira e

novos turistas que chegam a cada ano.

(http://www.portalaponte.com/festa-dajuda-maior-celebracao-popular-de-

cachoeira-tem-programacao-com-9-dias-intensos/)

No primeiro domingo de novembro os caminhões do Bando Anunciador clamam:

Capela d’Ajuda já deu sinal, quem quiser sambar apareça! Chamado por todos de

Pregão, o bando anuncia o começo da festa com caminhões alegóricos enfeitados por

diversos grupos representando os bairros da cidade. Lúcia de Badú, da Irmandade de

Nossa Senhora d’Ajuda, aparece com a camiseta da Festa d’Ajuda transformada em

um vestido que arrasa no corpo. Os caminhões enfeitados fazem o percurso do embalo

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puxado pela charanga motorizada da organização, saindo pela manhã da Praça Maciel,

ao lado do Mercado Municipal de Cachoeira. Do Pregão, fica a expectativa para os

embalos que começarão dali a alguns dias.

Para o povo de santo, novembro é um mês espiritualmente perigoso. Mês não só

dos Eguns, os mortos do dia de finados, como daquelas entidades conhecidas como o

povo da rua. Exus, pomba-giras, o pessoal das esquerdas. Para pular o embalo, é

preciso se preparar bem com pemba e umbigueira, o famoso contra-egun. Os mais

velhos diziam que era preciso preparar também as ruas da cidade para a festa. A festa

d’Ajuda é a festa das ruas! O seu percurso abarca muitas das ruas de Cachoeira, sem

distinção.

Embalo é como o cheiro a que Rita se referia, indescritível. Embalo é a forma

como as pessoas chamam todos esses dias de festa. Mas embalo é também o caminho

da festa. E ainda o grupo formado pelos músicos de sopro, a charanga, e pelas pessoas

que o seguem. Cachoeira é muitas vezes narrada como se ser cachoeirano fosse ter um

mapa da cidade na cabeça. As histórias parecem contadas caminhando pelas ruas. O

Embalo d’Ajuda percorre essas histórias, não se restringindo ao perímetro colonial. Ela

sobe as ladeiras íngremes, as ruas consideradas perigosas, ela se espalha na cidade

como presença. As ruas são ocupadas com pulos seguindo o ritmo do sopro, com

alegria. É uma festa de muitas brigas também. Há um jeito de dançar muito

característico, com as mãos no rosto e os cotovelos para fora. Para quem veio pra isso,

há espaço para a agressividade. É uma festa cheia de confusão. Davi, namorado de

Mari, sobrinha de Rita e filha de Lúcia de Badú, disse uma vez, essa festa da ajuda é

polêmica, viu, todo ano é uma coisa. Pior que novela das 8.

Depois do Pregão, no segundo domingo do mês, acontece o Terno do Silêncio à

meia-noite com saída do Largo D’Ajuda. É hora de inverter Cachoeira. O silêncio aqui

significa fazer bastante barulho pelas ruas em plena madrugada. O terno sai do largo,

no alto onde fica a Capela d’Ajuda e uma das entradas da Irmandade da Boa Morte, e

de onde irão partir os Ternos ao longo de toda semana. É onde também acontecem os

Tríduos, na Capela, os três dias de celebrações e orações para Nossa Senhora D’Ajuda.

Na manhã seguinte, a rua se enche de água de cheiro. É a Lavagem das Baianas. Muita

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alfazema, panos brancos rendados e colares de conta coloridos. À tarde, tem o bloco

privado Luna Baby, de Luciana para as crianças da cidade.

Os demais ternos são mais curtos e também formados por esse embalo-caminho-

charanga-pessoas. Eles acontecem no fim da tarde, às cinco horas, antes das orações

que têm início às sete. Nas terças-feiras, temos o Terno das Crianças. É o momento dos

pequenos se fantasiarem e curtirem um trajeto menor. É o momento também de

Pedro e sua mãe Duca brilharem nas ruas com as fantasias mais criativas de Micheal

Jackson a Faraó egípcio. Nas quartas, o Terno é o do Acarajé com baianas, estandartes

e Samba de Roda. E nas quintas, o Terno das Cozinheiras vem colorindo as ruas com

aventais de chita e panelas na mão. A cada dia a expectativa é maior.

Na sexta-feira, antes do Tríduo, tem o Embalo D’Ajuda pelas ruas. É também o dia

das Malandrinhas, os homens travestidos de mulheres em homenagem ao rei do

reggae, Edson Gomes.

Há muito tempo que eu queria ter Um grande amor como você Que demorou, mas chegou

E minha vida se transformou Todo tormento já passou

Em minha vida tudo é amor Não esperava que um dia

Viesse ser feliz assim E nem sonhava que um dia

Você viesse me querer assim Pois não havia chance alguma

De um dia você ser minha Malandrinha, estou na tua

Estais na minha, malandrinha Malandra minha, estou na tua Estais na minha, malandrinha

Malandra minha Ô, malandrinha, malandrinha

Na Festa d’Ajuda a Missa é Festiva e acontece no sábado à noite, momento de

descanso dos ternos e embalos. Mas as ruas são ainda ocupadas pela procissão de

Nossa Senhora D’Ajuda. O cortejo com a imagem da santa padroeira percorre a cidade

em ação de graças. Os tríduos vão se enchendo ao longo da semana por aquelas

pessoas que estavam curtindo o embalo antes, ou por outras que gostam de apenas

acompanhar as orações. A missa lota a pequena capela. Momento de celebrar com o

Hino de Nossa Senhora d’Ajuda, que é a cara de Cachoeira.

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Oh! Virgem Mãe, perfume santo, pétala que afasta o pranto! Cachoeira abençoada... No vosso templo, por nós, sóis elevada!

Clemente invocação do Manto, do Rosário, um lindo canto! Vossa festa é rio na vida... Paraguaçu, água sagrada nos convida.

Nossa Senhora D’Ajuda querida!

Luzente amparo de Deus, dom que brilha! Capela viva do Espírito Santo,

Cachoeirano sorriso de encanto!

O ponto alto do embalo é mesmo o dia do Terno da Alvorada. Saindo às cinco

horas da manhã da Capela d’Ajuda, a charanga percorre ainda mais ruas da cidade que

os outros ternos e embalos. A cidade fica em festa até perto de meio dia. As pessoas

preparam fantasias, fazem feijoada pesadas para dar conta da manhã de folia e

acordam de madrugada para ir curtir.

– É agora que eu conheço Cachoeira! –, disse Carol ao subir pela primeira vez a

Ladeira do Orobó. Morava em Cachoeira já há uns quatro anos.

É no Terno da Alvorada que as pessoas se fantasiam das formas mais criativas

possíveis. Contam que antigamente existia ainda mais diversidade nas figuras como as

cabeçorras, pessoas fantasiadas com cabeças enormes. Os mandús, crianças de terno,

um pau atravessado nos braços e um pano de chita na cabeça formando um enorme

triângulo. Diiiiiiizem, como bem gosta de polemizar Ivanildo da rádio Olha a pititinga!,

também que mandús são eguns. Hoje em dia algumas pessoas retomam esses

personagens, mas as fantasias são mais variadas e contemporâneas.

– O quê, coisinho?! Nunca viu na Festa D’Ajuda não, foi?! Pois ele fecha, minha

filha. Tranca a rua e engole a chave – dizia Duca das fantasias fechação de Piteco.

Neste dia o embalo ganha proporções incríveis. São diversas bandas. Aquela

multidão de gente na rua, ora se perdendo, ora se encontrando com as diversas

bandas que passam a fazer parte do embalo, para além da oficial. Pulando, dançando,

bebendo. Quem não está nas ruas seguindo, está nas janelas de sua casa curtindo.

Como Rita falou, com o embalo chega seu cheiro. Aquele cheiro de muita gente junta.

E o corpo não fica parado. Como disse Lu, a cidade inteira vive a festa!

O resto do dia é de acalmar e dispersar as energias.

A segunda amanhece em silêncio.

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Mas a festa ainda não acabou. Depois do Terno da Alvorada e após um breve

descanso na segunda, a última terça-feira é premiada com o Terno da Saudade. Para

que ninguém fique já sentindo um vazio no peito. Quem não conseguiu curtir antes,

curte agora. Quem não quer que a festa acabe, se joga nesse último percorrer de ruas

com a charanga. Dizem também que esse é o momento daquelas pessoas que

apanharam na festa voltarem para bater. O embalo segue sem vontade de acabar e a

terça acaba dispersa nos bares da cidade.

Para o ano tem de novo.

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11) NÃO SEI SE É 25 PELO 25 DE JUNHO OU SE PORQUE É 25 HORAS

Para Nuno, querido autor da frase, e Jessiane, parceira insubstituível.

Foi Nuno, um amigo professor de história da UFRB, quem deu a melhor definição

para a praça 25: não sei se é 25 por causa da data ou porque é 25 horas. A assim

conhecida Praça 25 é um complexo de bares. Da Praça da Aclamação, onde fica a Casa

de Câmara e Cadeia (atual câmara dos vereadores), segue uma pista com um canteiro

no meio. Há comércios e bares nos dois lados. Ao fim desta rua, há uma outra praça,

Teixeira de Freitas, onde está erguido o monumento em homenagem à Independência

da Bahia. Nesta praça fica o Cine Theatro Cachoeirano, mais bares, e as ruínas do

antigo e grandioso Hotel Colombo. Fica na beira do rio Paraguaçu.

Foi Nuno também quem encasquetou que o meu trabalho era com os doidos da

cidade de Cachoeira, e sugeriu a primeira ideia de epígrafe para a tese. A famosa Na

sombra da noite, do são-felista Edson Gomes.

Na sombra da noite Acontecem coisas

Coisas que acontecem E quem madruga é quem pode ver Quem perambula é quem pode ver

Quem não tem sono é quem pode ver, now! Certas coisas que acontecem

Bem, bem lá em cima E os caretas passam olhando Às vezes passam censurando

E... às vezes passam se ligando Tá ligando, tá ligando

Na 25 as conversas se misturam com a bebida nas sombras das noites. Foi lá onde

escutei as primeiras histórias fantásticas da cidade de Cachoeira. Sobre os túneis do

Convento do Carmo. Os encontros com entidades. O aviso de que não se bebe só. As

histórias dos loucos da cidade e dos feitiços. Além disso, muitas vezes se bebia ali com

os famosos cantores de reggae da cidade e de São Félix, Sine Calmon e Edson Gomes.

Sine era presença certa. Às vezes simpático e falador, noutras bem agressivo. Sua

música Sinta e Kaya é vibrada sempre que toca, quando começa com seu solo de

guitarra.

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Eu disse para o irmão não viver de bobeira Eu disse para o irmão que não quer se tocar

Falei do passado sem falar na cor E mostrei para o irmão que o sol vai brilhar

Se o lance tá na cor, a coisa é essa Sinta Reggae, Reggae, Reggae

Se o lance tá na cor, a coisa é essa, é essa, é essa Cantando, "Reggando" pra quem quiser ver

Mas é o amor do bom Deus que vem dar No dia seguinte, pra gente sacar

A força que tem nesse nosso cantar Bahia, Jamaica, cantando Reggae

Numa noite Sine disse a Jamile ao lhe dar um abraço bem apertado.

– Eu bebo, minha mulher sabe que eu bebo, mas eu gosto de Jesus.

Apertou a minha mão e foi embora.

Nos primeiros anos em que eu estava lá, toda quinta-feira tinha a Quinta do Preto

Velho no bar de Paulo Lomba. Lomba só fecha seu Bar e Mercadinho do Preto-Velho

quando a última pessoa vai embora. Dizem que ele tem um exú assentado ali para

atrair clientes. É muito comum nos fins de semana e feriados movimentados faltar

dinheiro nos caixas eletrônicos da cidade, ainda mais depois que alguns bancos foram

explodidos. Lomba oferece o serviço de saque, mas cobra 10% do valor. Além de bar,

como o nome diz, é uma vendinha. Também aberta quando todos os outros mercados

estão fechados. O preço nos dá essa informação. O bar de Lomba não seria o mesmo

sem a alegria de Tianalva, uma celebridade do Facebook e entre os estudantes da

UFRB.

Enquanto a Cabana do Doidão toca música a noite toda, as pessoas bebem no bar

de Lomba. Há ali também o Bar de Dona Sute, que só aceita dinheiro e faz pratos

deliciosos. Fabynho monta sua barraca de beijú a partir de quinta-feira.

Em um dia, numa conversa aparentemente informal, um rapaz que estava falando

em pé ao lado de nossa mesa na Cabana do Doidão deu uma pausa e soltou:

– Os escravos passavam por aqui. Era bem aqui, com a cana nas costas.

Não brinque com a 25...

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12) NO TABULEIRO DO ACARAJÉ

Frases de Gilvânia.

Pois você está mais enrolado do que charuto na boca de bêbado. E nem venha que vou

te esculhambar na frente de toda a sua família.

*

Oxê, meu filho, eu trabalho até no inferno, coloco o diabo de um lado e trabalho do

outro.

*

Rá, mas olhe que descaramento. Boa de você que tem que sair de casa com sua boca, a

língua nem cabe dentro dela.

*

Oxein, ninho, tá pensando que eu sou o quê? Eu nasci mulher, porque mulher burra

nasce homem. Quero nada com você, não, meu filho, que hoje eu tô passando bem, no

dia que eu tiver passando mal eu procuro você. Ai, ai, vê se pode, tá achando que eu tô

chupando manga verde com sal na encruzilhada, é?

*

Tá pensando que eu tô passando fome pra querer comer uma tripa seca que nem você,

ninho?

*

Oxê, que é isso, ninho, lavou, tá nova! A semana não tem sete dias? Então, cada dia é

de uma. Tem gente que tem problema nos nervos, ainda bem que o meu é de

descaramento.

*

Em pleno trabalho de parto, ela entra no táxi.

– Bora, meu filho, que se você não apressar o passo, de motorista você vai ter que virar

parteiro!

Quando enfim chega ao hospital, já diz à enfermeira:

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– Chame logo o médico que vai nascer!!

– Mas a senhora não está nem gritando…

– Oxê, eu não gritei pra fazer, porque ia gritar pra sair?!

*

– Oh, ninha, troca esse aqui na farmácia para mim, por favor.

– Mas troca como, Gil?

– Você dá cinco miúdo e ela te devolve cinco pegado.

*

Estava no bar comendo água com as amigas.

– Posso colocar uma cerveja na tua mesa?

– Cê tá vendo eu bebendo aqui? Pois, então, se estou aqui é porque eu posso pagar.

– Mas você é ousada, viu.

– Nasci assim. Melhor do que tu, seu excomungado de pai e mãe.

*

Eu já gosto de comer ligeiro mesmo, ainda mais quando estou com vontade. Se não a

vontade fica no corpo.

*

Era a segunda bacia de acarajé e estava demorando mais que a primeira:

– Acarajé é invocado, não pode ter uma pessoa com pressa. Basta uma, e ele enjoa.

*

– Pimenta?

– Bem pouquinha…

– Tá ardendo, é?

*

Em Cachoeira, quem é de santo se não tá na vista, tá na corrente.

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*

Ih, tá pensando o quê, ninha, quando o homem quer saber mais do que Deus e acha

que tem o controle, Deus vai lá e muda.

*

Oxein, tá pensando o quê? Eu tenho santo e tenho rua, filha. Lá ele que acha que vai

sair por cima.

*

É o quê, seu cão? Você não é nem da macumba, nem da igreja, nem da lei de crente.

Você é do vento vago, da banda voou.

*

É o quê, ninha, num tá acreditando não, é? O ser humano é de momento, impulso. Um

fio desencapado.

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13) CACHOEIRANDO

Para Rita e Duca, companheiras de copo e de vida. Para Acely, pelas portas abertas.

E para Rose, pela doçura carregada em riso.

Rosseicleia Miranda cuida de um bar na rodoviária de Cachoeira. O bar é de sua

mãe, Dona Venina, mas ela tomou a sua frente desde que o trabalho começou a ficar

puxado demais para a velha. Cozinhar todos os dias, limpar, vender, ficar de pé e

negociar preços não é tarefa fácil. Ela prefere ser chamada de Rose. Abre um sorriso

de criança para todo mundo e é ávida por todo tipo de conhecimento. Um dia em

minha casa ela me perguntou: o que pesa mais, ninha, o conhecimento ou um saco de

cimento?

Cachoeira tem um ritmo de fala. Aprendi isso com muita gente, mas foi com Rose

que o ritmo ganhava uma sonoridade afetuosa. Toda vez que eu lhe oferecia água

gelada, ela me dizia: ah, ninha, quebre aí a frieza, vá. Ou ainda: oh, ninha, pere aí que

eu tenho que tomar o remédio, se não mais tarde eu vou cumê uma dor… E me contava

das suas confusões em casa, olhe, mas você não me deixe não, viu, fiquei foi retada.

Peguei liberdade no telefone e disse foi coisa a ela, fiz miséria em setembro pra ela me

escutar.

É de família. Sua irmã, Juci, não fica atrás. E cá, que tenho a língua ousada? Prefiro

é ficar calada. Ó, minha boca fechada, meu pé ligeiro.

A casa onde eu morava é na mesma rua da casa de sua mãe. Certo dia voltávamos

da rodoviária quando encontramos Dona Venina descendo a ladeira acompanhada de

outra senhora da Rua Santo Antônio:

– Oh, mãe, pai me ligou aqui desesperado querendo óleo, a senhora comprou?

– Hum… diga a ele que o brega que eu tava hoje não deu não.

– Olhe, dona coisinha, a senhora escutou a resposta de mãe, que desaforada?

– Ha, boa dela.

O pai de Rose é um famoso ogan de Cachoeira. Seu Dezinho anda sempre com seu

cajado de madeira bem polida e fosca, com sua boina e cabelos brancos. Um dia ele

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estava atravessando a praça dos correios quando puxou conversa com uma senhora

que sempre estava sentada por ali no banco da praça, magra e séria.

– Oi, meu amor… – disse ele ao se aproximar.

– O que é meu amor? Quando tu tava bom, era pra tua mulher, agora que não

presta mais quer vir comigo? Olhe, você me deixe, viu.

Cachoeira, terra em que confusão é barulho e fofoca é pagode, o deboche come

solto.

– Pois é, menina, o moço ofereceu um emprego bom danado, mas eu não pude

aceitar. Já tava complicado, né…

– Complicado como, seu Adilson?

– E tá casado não é tá complicado, menina?

Duca era outra mestre em boas frases, ah, coisinha, mas vamos combinar que tem

coisa que não precisa nem de milagre, nem de praga, né.

Não tinha espaço melhor para sentir esse ritmo do que a feira. Suas estruturas de

ferro ficavam montadas na cidade durante toda a semana, com exceção dos dias de

domingo. Mas o dia quente mesmo de fazer a feira da semana era sábado. Quanto

mais cedo melhor! Assim aprendi com Acely e Lúcia de Badú.

Num sábado fui acompanhar Duca na feira. O que era tarefa de quinze minutos,

demorou quase duas horas porque a cada barraca alguém parava para cumprimentar,

Ô, professora! Paramos em frente ao moço que estava vendendo pedaço de jaca no

chão.

– E quanto tá o pedaço?

– É dois, mas se você quiser me dar três, eu num fico chateado não.

Joelson é filho de santo de Mãe Dionízia do Oiá Mucumbi. Possui uma barraca na

feira e está lá praticamente todos os dias. Com a língua solta, boa de fazer piada, ele é

sem dúvida filho da terra.

Era tempo de festa de fim de ano no terreiro. Uma semana toda batendo pra um

bocado de gente. Uma semana de intenso trabalho.

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– E tu foi pra feira hoje, Joelson? Abriu a barraca?

– Nada. Não fui hoje e não vou na quarta, agora só na sexta. É tanto trabalho aqui

e eu ainda vou pra feira? Nada, o céu é muito longe, até que eu chegue lá!

A feira fica de junto do Mercado Municipal. Dentro dele, ficam as barracas de

açougue e farinha. Além de alguns restaurantes na parte de cima. Do lado de fora,

virado para a feira, há alguns bares. Palco de muita conversa.

Minha mãe e meu pai foram me visitar em Cachoeira. Morando em Brasília, meu

pai chegou pedindo logo um acarajé. Era de manhã. A essa hora, só tem acarajé na

feira. Sentamos em um desses bares do lado externo do mercado. Pedimos uma

cerveja para acompanhar o acarajé. Foi quando um rapaz se levantou de seu banco no

balcão e começou a discursar em alto e bom tom para todos ali presentes.

– Dona Canô era muito esperta. Ela roubou tudo que era de Cachoeira, levou tudo

pra Santo Amaro e disse que tudo quanto é coisa de cultura nasceu lá, aquela velha…

Um rapaz que havia entrado mudo, só não saiu calado, logo acrescentou, enfático:

– O samba de roda!

– Apois, o samba de roda! Aquela Dona Canô era é esperta… o samba de roda é da

Cachoeira!

Às vezes eu não precisava nem sair de casa, da janela mesmo escutava.

– Bom dia, o senhor sabe onde é a casa de uma mãe de santo por aqui?

– Rapaz, eu moro aqui há 18 anos e não sei não. Mas você não é a primeira pessoa

que me pergunta. É uma senhora bem magrinha?

– Né não… é uma fortinha.

– A maioria das casas aqui agora são de aluguel… mas deve ser lá no pé daquela

segunda ladeira.

Ao meio-dia, era certeza que o vendedor de quebra-queixo ia passar gritando bem

alto para quem queria e não queria ouvir. Olha o picolé, sorvete e quebra-queeeixo. Ou

ainda o carro da polpa. Olha a polpa, olha a polpa, olha a poooolpa! Olha a polpa,

freguesa! Criança chorou, não bate nela! Imediatamente dê um suco de polpa pra ela!

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Um dia eu recebi um pacote de presente. Na entrega, o carteiro pediu que eu me

identificasse.

– Como eu vou saber se é a senhora?

– O senhor quer que eu lhe mostre o documento?

– E o documento diz alguma coisa?

– Oxente, e não? Tem meu nome, o nome do pai, da mãe, os números…

– Documento mostra, mas não diz nada.

A praça dos correios é sempre movimentada. Desde cedo tem gente andando por

ali e gente na fila aguardando a loja abrir. Só abre às oito horas da manhã, mas antes

das sete já tem gente lá. Piorou ainda mais depois que o Banco do Brasil foi explodido.

Movimentada também é essa praça às seis horas da tarde, hora em que toca Ave

Maria na rádio. Nesse momento as pessoas se aproximam da caixa de som e do

acarajé de Nara, filha de Anália, que já está no fogo.

O ritmo está nesse cotidiano de barulhos, cheiros, feira, festas. Perdeu a festa,

foi? Para o ano tem de novo.

É um ritmo de corpo. Tá pensando o quê, rapaz? Capoeira não é hobby não.

Capoeira é responsabilidade.

É um jeito de falar. Hoje o sol está tremendo. Eita, que era meu pai que gostava de

falar assim, que tinha investigem. Lá na roça ele dizia: vixe… que tá me dando

encobrimento no coração. Dona Rita um dia disse, porque tem planta que quando a

gente coloca dentro de casa passa a noite chorando.

É a sonoridade do jeito de apelidar. Em Cachoeira o anúncio do show diz que tem

o apoio de Constâncio Bote Fé e o ingresso é vendido no quiosque de Todo Feio.

– Onde você está?

– No bar de Carlinhos.

– Que Carlinhos?

– Carlinhos… filho de Zé Fraqueza, em frente à oficina de Capadinho.

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Na praça dos correios também fica o bar de Zé Miúdo. Aberto o dia inteiro,

quando chega a noite, Zé coloca as mesas do lado de fora pela praça. O nome oficial do

estabelecimento é PQTRLV. Há várias versões para o significado dessa sigla. A mais

comportada é Pedro quer ter renda, lucro e vantagens. Contam que Pedro era o nome

de quem fundou o bar.

Numa noite estávamos sentadas ali quando Zuza, que segundo Duca é uma

polaca-cachoeirana, estudante de mestrado do Programa de Ciências Sociais, deu a

sua versão, consenso geral na mesa: Pedro quer ter revolução, love e vadiagem.

Quanto à versão não oficial, Zé Miúdo não quis dizer porque não havia homem na

mesa.

Noutro dia em Zé, a conversa era sobre Testemunhas de Jeová.

– Pois quando vejo que é Testemunha de Jeová batendo em minha porta,

insistindo num sábado de manhã, volto já pra casa e coloco minhas contas no pescoço.

Logo eles vão se embora sem nem dar bom dia.

Duca fez um rápido silêncio, mas logo provocou:

– Sim… contas de água, luz, telefone?

A risada foi geral.

Só em Cachoeira é possível fazer uma piada que faça tanto sentido com contas de

axé, com trocadilhos nas palavras do nome de bar e com a cosmopolita definição da

polaca-cachoeirana, revolução, love e vadiagem.

Afinal de contas, já nos dizia Rita:

– Em Cachoeira tudo cabe. Quem disse que essa cidade é pequena?

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14) A ROÇA DE DONA NORMA

Para Deise, com quem compartilho poesia-mar.

A roça é outro mundo.

Cachoeira é conhecida pelo barulho. Carro de som. Fogos de artifício. Pessoas na

rua. Música alta. A zona rural, por sua vez, é silêncio. Aquela calmaria que não é

barulhenta, mas que também não significa serenidade. Dona Norma, tinhosa, guarda

muita coisa dentro de si. Sua casa possui muitos relógios. Eles marcam sonoramente o

tempo a passar. Nenhum pode parar ou desajustar. Logo isso aconteça, ela corre para

reafirmar as horas. Naquele dia em que Deise nos levou para conhecer sua avó, Dona

Norma observou, preciso arrumar aquele ali depois. Sua casa fica situada no Cruzeiro,

depois de Belém da Cachoeira. Em seu terreno, seus filhos construíram suas casas.

Hoje, Dona Norma mora numa casa recém construída. A antiga, já desabitada,

permanece em sua terra. Mesmo que ninguém more mais ali, todos os dias, ela ainda

lhe abre as janelas.

– A senhora continua escutando o rádio?

– A natureza já não pede.

– Como assim, voinha?

– Depois do caso, não assisto mais.

O caso é a morte de seu marido que se foi há alguns anos.

Depois de comermos uma banana-da-terra cozida, fomos dar uma volta no

terreno. Olhar o fio de água que ali passa.

– Vão para o mato agora? Pois tomem cuidado com as bichas no chão.

As bichas eram as cobras comuns naquele mês de agosto.

Perguntamos à Dona Norma se ela já havia feito caruru em sua casa. Ela disse que

sim, mas aí teve barulho e a gente não fez mais. Barulho é confusão. Dona Norma não

gosta de sair de casa. Só desce para Cachoeira quando realmente precisa ou para ver

sua neta artista na universidade. Deise, ao contrário de sua avó, gosta do mundo e já

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criou asas. Uma é a companhia da outra. Em breve, serão substituídas pelas saudades.

Dona Norma permanecerá ali, onde o barulho é do tempo a passar.

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15) AUSÊNCIAS

Para o senhor da Faceira.

No caminho para a Faceira mora um senhor. A casa de janelas abertas de Dona

Norma me faz lembrar dele. Todas as vezes em que passava em frente à sua casa no

fim de tarde, à noitinha, ele estava lá, na mesma posição. Sentado à beira de sua porta

meio aberta. Damos boa noite, não nos responde. Parece que está em outro lugar.

Sempre escutando músicas tristes. Um bolero, daqueles sofridos que meu avô

escutava. Seus olhos contemplam o rio. Jessiane certa vez disse: ele deve estar lá,

naquele lugar – ou tempo – em que ela está. Aquela, que hoje ocupa o lugar vago ao

seu lado.

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16) AS PESSOAS VÃO DEIXANDO DE SER GENTE E SE TRANSFORMANDO EM DIVINDADE Para Mãe Dionízia, por tudo e com a sua benção.

É uma pessoa que já se transformou em divindade, basta olhar e ver. Quando vai

envelhecendo, há uma inversão, as pessoas vão deixando de ser gente e se

transformando em divindade, disse Jaime Sodré no documentário sobre a famosa

Gaiaku Luiza. Essa era a sensação que eu tinha toda vez em que ia ver Mãe Dionízia. Eu

só podia lembrar do dia em que estávamos, como de costume, na sala de sua casa

assistindo a TV. Uma novela que passava no “Vale a pena ver de novo”. Mãe, quando

escutou um personagem caricato que buscava fazer poesia com suas palavras,

murmurou baixinho, olha o jeito que ele fala. Ela estava prestando atenção na forma

como ele construía as frases, de um jeito que as tornava mais bonitas. Era assim

também que eu a escutava. Há tanta poesia na sua forma de viver o mundo, mas tem

que olhar, minha filha, desengano da vista é ver.

Desengano da vista é ver. Essa frase me soava como um alerta: preste sempre

atenção. Veja para se desenganar. Mãe aprendeu com a dureza da vida que era

preciso ter um coração grande, mas não dar bobeira. Desconfiar. Eu conheço farinha

que faz litro, aquele povo ali nunca carregou boa feição comigo.

Numa outra manhã, estava passando o programa de Fátima Bernardes e o

assunto era a redação do Enem, cujo tema foi intolerância religiosa. Estava entre as

entrevistadas do programa uma jovem negra. Do axé, ela afirmava da importância de

se falar em respeito e não tolerância, o preconceito contra o candomblé é racismo.

Mãe ficou atentamente escutando e ao final disse que era verdade. Bem séria. É

verdade e olhou para o lado de fora murmurando, a escravidão do povo negro. Olhou

para dentro de volta e emendou, quem é negro vai carregar a escravidão consigo para

o caixão, ela nunca acabou, nem nunca vai acabar.

Ao se despedir, Carol, sua filha de santo e uma grande amiga, colocou-se aos seus

pés no chão para lhe pedir a benção.

–Amanhã eu já viajo de novo, Mãe…

– Virou caixeira viajante, foi? – e deu uma risada gostosa.

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– É assim mesmo, minha filha, o mundo é grande, mas é dividido. A gente pára

onde a sorte está. Você tem que seguir para onde sua estrela aponta.

Fernanda, também filha de santo, daí comentou de uma conhecida sua que havia

entrado para a igreja, deixando sua vida no santo.

– Pois é, madrinha, eles foram lá e destruíram tudo que era do santo dela.

– Num gosto disso… Eu não tenho nada contra quem resolve entrar pra lei de

crente. O problema deles é querer mandar na casa dos outros, colocar os outros sob as

leis deles.

Outra filha de santo também se aproximou para pedir a benção e disse que já

estava indo, pois o namorado estava esperando em casa para o almoço.

– Tá comendo carne fresca, é? – deu risada, mas depois se lembrou:

– Mas você não está de resguardo, menina? Você não cozinha no fogão à lenha

pra tá sobrando fogo em casa.

A casa de Mãe é quase sempre muito movimentada. Moram ali alguns de seus

filhos de santo e sua neta de sangue. Mas sempre tem alguém de fora para fazer os

serviços do terreiro, almoçar, jogar búzios, apenas pedir a benção ou conversar.

Grande parte de sua família de sangue mora ali no bairro da Faceira e também sempre

está por lá. Uma de suas netas entrou na sala e puxou conversa.

– Tia disse que ia pôr cabelo de novo…

– Ela deve é tá com muito dinheiro, oxê. Todo mês fica nessa agonia, um bota e

tira danado, num tá vendo que a cabeça não quer?

Lene Pequena, que cuida de Mãe e da comida da casa, em seguida falou da

cozinha que alguém havia trazido banana prata.

– Vai querer, Madrinha?

– Ah, banana prata eu até como, mas como com respeito. Minha favorita é a

banana maçã. Agora, a prata, não pode misturar com fruta nenhuma.

– E que horas eu venho amanhã de manhã, Mãe?

– Num me tirando da cama…

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Filha de Iansã, todo dia 4 de dezembro que não caia em uma sexta-feira, tem festa

para santa em seu terreiro. Dizem que todo dia de Iansã é batizado com uma chuva

forte carregada de trovões. Mas naquele ano não choveu.

– Ah, mas está tendo trovoada sim…

E parou pensativa, daquele jeito seu de olhar para cima, que sempre vê algo onde

parece nada se ver.

– Em algum lugar está trovejando com certeza, não está sentindo esse

abafamento?!

Eu chegava em sua casa e às vezes ela não estava para papo. Ficava olhando de

sua janela o rio Paraguaçu e o movimento da rua, tomando nota de quem passava. De

quem ficava. Outras vezes, ela tinha uma resposta na ponta da língua.

– Mas a senhora está bem, Mãe?

– Só esse corpo, minha filha, que se pudesse eu trocava por outro. Mas, não tem

jeito. A gente caminha com o tempo, ninguém morre como nasce. Não vê que a gente

abusa de viver?

Tinha dia, então, que a conversa se alongava.

– Desse rio eu entendo, minha filha, meu avô era homem do mar. E dizia, vai ser

numa tarde de sábado, depois do meio-dia. Depois da feira. Cachoeira vai vir em

águas, vai se afogar. O porto de São Félix vai ser no alto da subida para Muritiba, junto

a um pé de piaçava e o de Cachoeira no alto da ladeira de Capoeiruçu, num pé de

mangue. Até hoje não aconteceu, mas vai saber, né? Eu não duvido.

Esse rio aí, tem é história. Contou certa vez sobre a enchente de 1989.

– A enchente como veio, foi embora. Da noite para o dia. Um mistério. Nem os

peixes acompanharam. Depois de uma semana, era menino, era velho, tudo catando

os peixes e os camarões se debatendo na rua enlameada.

No dia primeiro de novembro, perguntei se podia acender uma vela dentro de

casa.

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– Não, minha filha, vela para os mortos só fora de casa. Quando você acende para

seu orixá, ele vem ali receber, a mesma coisa é com quem já se foi… daí pode vir coisa

boa, assim como muita perturbação.

Olhou para cima e se lembrou do tempo em que a Filarmônica Minerva

Cahoeirana tocava nas ruas da cidade em direção ao akofan, o cemitério:

– Antigamente a banda da Minerva passava e ia no akofan nos dias de finados.

Tocando cada música triste... o padre seguia, mas as pessoas começavam a passar mal.

Iam parar no hospital, ou levavam pra igreja. Tinha gente que não guentava. Caía de

tristeza.

Ao ver as marcas na minha perna, perguntou:

– O que é isso, minha filha?

– É de nascença, Mãe…

Ela deu um riso de canto de boca e completou:

– Esses santo velho parece que são tudo assim, marcam seus filhos que é pra não

perder de vista.

Perguntei a ela com relação a roupa preta.

– Olha, minha filha, o ideal era você isolar de usar roupa preta, mas, só não pode

de jeito nenhum na segunda, quarta e sexta. Sexta é Oxalá, imagine ele, que só se

veste de branco. Quarta é a Iansã da casa, que tem a linha branca. E segunda, segunda

tem muito pretendente, é o velho, Iansã Balé, Nanã, os Eguns… quase a aldeia toda.

Contou então que quando ainda morava na parte debaixo da Faceira, ganhou uma

blusa preta com bolinhas brancas. Era linda! Numa quarta-feira, resolveu estrear a

roupa nova.

– Quando fui chegando de junto da Igreja de Nosso Senhor dos Passos, comecei a

sentir as costas pesadas já, parecendo que carregava um peso enorme... apressei o

passo, resolvi o que tinha pra resolver na rua e o peso só aumentava. Achei que ia cair

ali mesmo, a vontade era de sair rasgando a blusa. Quando cheguei em casa, a

primeira coisa que fiz foi tirar a blusa. Dei pra uma filha de santo que usou até gastar.

Tinha o tecido bom.

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Nunca mais usou nada preto.

No dia em que vi Mãe Dionízia dançar para Oiá era noite de lua cheia. Antes de

chegar ao terreiro, paramos na orla da Faceira para tomar um ar e subir as escadarias.

O rio estava cheio e tudo que ele refletia parecia dois. Eram duas as Pedras da Baleia

naquela noite. Ali pensei que as pessoas como Mãe Dionízia vão mesmo se

transformando em divindade. Enquanto dançava, já não se sabia quem estava ali.

Dionízia, com sua perna doente e seus 80 anos de cansaço de vida, ou Iãnsa Menina,

Oiá. Plena e dona da tempestade.

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EPÍLOGO

Pele, aquilo que não se fala

Cordeiro de Nanã

Fui chamado de cordeiro mas não sou cordeiro não. Preferi ficar calado que falar e levar não.

O meu silêncio é uma singela oração a minha santa de fé.

Meu cantar. (Meu cantar)

Vibram as forças que sustentam o meu viver. (Meu viver)

Meu cantar. (Meu cantar)

É um apelo que eu faço à Nãnaê.

Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê. Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê. Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê. Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê.

O que peço no momento é silêncio e atenção. Quero contar sofrimento que passamos sem razão.

O meu lamento se criou na escravidão que forçado passei.

Eu chorei. (Eu chorei)

Sofri as duras dores da humilhação. (Humilhação)

Mas ganhei, pois eu trazia Nãnaê no coração.

Mateus Aleluia e Dadinho

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Aquele foi meu penúltimo dia na cidade. Fui me despedir e pedir a benção à Mãe

Dionízia, os olhos já cheios d’água. Ela começou a falar, daquele seu jeito que parecia

que falava e não falava com a gente ao mesmo tempo. Contou a história de um homem

muito rico que não dava nada a ninguém. Se lhe pedissem esmola na rua? Nem pensar.

Esse homem terminou a vida sem nada, sendo ajudado pelo senhor que trabalhou com

ele por muitos anos.

Não se nega nada a ninguém, minha filha. Todo mundo chega aqui e vê essa força,

mas tem vezes que o que eu tenho é o que dá para as pessoas que estão aqui. Mas

se chega alguém e eu olho no olho e vejo no olhar, naquele olhar. Naquele olhar que

diz: “essa pessoa está passando fome”. Eu não nego. Não posso negar. Eu sei o que

é passar fome.

Chegando ao fim da história, Mãe ainda emendou: as pessoas vêm aqui e são

ajudadas, voltam para as suas cidades, conseguem um emprego e a gente nunca mais

ouve falar. Mãe Dionízia estava me dando um recado. Quando lhe disse que eu era

muito feliz por tê-la encontrado no meu caminho, ela apenas falou: mas os seus orixás

já me conheciam desde muito tempo.

As despedidas de Cachoeira foram todas repletas de lágrimas. As lágrimas me

fizeram pensar na responsabilidade de entrar na vida das pessoas. Essa responsabilidade

precisa ser tratada mais e mais em sala de aula nas nossas disciplinas de metodologia.

Também, que as desigualdades sociais e raciais em campo produzem desencontros e

encontros. Foi chorando com Carol, em um longo abraço de despedida que eu percebi

que tinha que escrever sobre isso. A cor da nossa pele perpassa a nossa relação, apesar

do carinho que sentimos uma pela outra. Vai sempre estar ali. Foi nas palavras dela

sobre as nossas diferenças raciais e o nosso afeto apesar destas diferenças que eu achei

uma forma para falar de algo presente em toda a minha trajetória acadêmica. Pois é

justamente pelo afeto e pela responsabilidade que não posso me esquivar a falar da

pele branca que carrego e da história que represento.

Não posso me furtar a falar sobre a opressão racial que opera no nosso país e na

nossa academia. Que opera na forma como construímos conhecimento e que tem

efeito, faz diferença em nossas pesquisas. Como o fato da maioria dos “nativos”

antropológicos terem a cor da pele distinta daquela que predomina no corpo de

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clássicos da nossa disciplina, no corpo docente dos nossos departamentos e, em sua

maioria, no corpo discente – o que, depois de muita luta, está mudando. Essa história

foi construída por muitos anos. Invadindo. Expropriando. Excluindo. Ignorando formas

outras de se pensar.

Também não posso deixar de falar da diferença racial em um país que genocida

a sua população negra. Em uma cidade com alta taxa de mortalidade de jovens negros.

Não posso me furtar quando eu tinha amigas que ficavam em apuros, fugindo da polícia,

com o coração na mão, por seus filhos estarem envolvidos com tráfico. Uma cidade em

que de vez em quando ouve-se tiros em plena luz do dia. Um lugar no qual mulheres e

pessoas trans são assassinadas das formas mais brutais possíveis (Júnior, 2018).

Ao comentar uma mesa intitulada “Mestiçagens e (Contra) Mestiçagens

Ameríndias e Afro-Americanas”, José Carlos dos Anjos (2017: 213) diz ter começado a

escrever o texto impactado por uma imagem: a surpresa de um pai cujo filho foi fuzilado

junto a outros quatro jovens com munição de guerra. “Uma imagem na verdade de algo

não muito extraordinário”, já que “é comum que jovens negros sejam metralhados nas

grandes cidades brasileiras”.

Sou afetado pelas mãos desse pai do jovem, o pai cujo filho foi assassinado pela

polícia e que afirma: “Mas isso aqui é munição de guerra! É munição de guerra!” Para

um pai cujo filho está morrendo, não interessa se foi morto por munição de guerra

ou por uma arma de calibre 38. O gesto ressalta justamente o fato de que o que

importa é o fato de que se está em estado de guerra racial. E que é no interior dessa

guerra racial que as diferenças efetivamente importam; que as diferenças que

importam lá fora devem importar também nas nossas teorias; isto é, que a gente

possa fazer antropologia em estado de guerra, como relatório de guerra, em que

guerra não possa ser muito facilmente lida como se fosse uma metáfora. Não

estamos fazendo como se estivéssemos em guerra, há uma guerra movida contra a

juventude negra! Essa é a diferença que importa. Então, os nossos mergulhos nos

textos nativos não podem, sob o risco da impertinência, se deslocar do estado de

guerra. (Anjos, 2017: 216, grifos adicionados)

Ao propor acompanhar a forma de narrar o mundo cachoeirano, procurei fazer

com que as diferenças que importam em Cachoeira importassem também nesta tese.

No mestrado, trabalhei com mulheres rurais na província de KwaZulu-Natal, na

África do Sul, em 2011 (Vale, 2013). Lá, como em Cachoeira, essas questões me

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atravessavam. Será que é possível ir além da pele, sem deixar de se responsabilizar pelo

que carregamos nela? Como, com corpos tão distintos, podemos criar relações, e criar

relações dentro dos nossos textos, respeitosas e afetivas? O caminho é longo. Ao lado

de Carol e Mãe Dionízia, os aprendizados foram sendo compostos desde a África do Sul.

Em grande parte, graças a Zodwa Mbogwa ou, como passei a chamá-la, ao aprender

com Nomusa que não se refere a uma mulher mais velha apenas pelo seu nome,

mamaZodwa.

Certo dia cheguei na sala da casa de mamaZodwa enquanto ela conversava com

outra senhora, que falava, falava. Entrei, deixei minhas coisas no quarto e sentei com as

duas no sofá. No meio da conversa mamaZodwa se virou para mim e disse que tinha um

presente. Depois que a senhora nos deixou, ela se aproximou segurando três folhas

escritas a mão: aqui está, minha filha62, eu escrevi a minha história para você. Meus

olhos se encheram d’água. E remendou, e você preste atenção, a minha história é muito

triste, eu chorei enquanto escrevia.

E foi assim que ela começou: eu sou Zodwa Mbongwa.

Uma senhora de 66 anos e moradora de Roosboom, a primeira grande área

restituída pelo governo sul-africano democrático pós-apartheid. Na década de 1970, ela

foi removida de sua terra, juntamente com sua mãe e seu filho, e levada para a township

de eZakheni. As townships eram as áreas urbanas designadas à população não-branca

na época do governo segregacionista. Tais regiões eram distantes dos centros das

cidades e até hoje povoam as zonas urbanas sul-africanas. MamaZodwa conta que com

uma corrente a polícia derrubou sua casa em Roosboom.

MamaZodwa estava sempre pronta a me dizer o que eu deveria escrever na

minha pesquisa, como, por exemplo, que as pessoas de Roosboom não possuem uma

clínica fixa e que a móvel fica debaixo de uma árvore: faça frio, faça chuva, faça calor ou

faça sol, as pessoas estarão lá em filas. Ou que eu deveria fazer perguntas, pois as

pessoas ali estão trabalhando e não dormindo. Ou mesmo quando em alguma reunião

eu não falava nada e ela me acertava: vai ficar aí só escutando? Ou ainda quando fomos

62 MamaZodwa costuma dizer que eu fazia parte de sua família de “além-mar” (overseas) e me chamava de my daughter. Mãe Dionízia, por sua vez, se refere como minha filha às pessoas como eu, mais jovens que ela.

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visitar um grupo de mulheres na casa de uma família bem-sucedida da região – cuja casa

possui uma estrutura feita de tijolos de cimento e não de barro, com carros, mobílias e

grandes televisões de plasma – e depois ela foi me levar para conhecer as pessoas que

estão sofrendo muito por lá: para você ver que existem pessoas bem e pessoas sofrendo

aqui nessa região. E quando, por fim, me mandava anotar as coisas que dizia, pois,

diferentemente dela que não precisava anotar nada pois guardava tudo em sua cabeça,

eu precisava escrever: eu quero que você anote tudo aí. As minhas perguntas iniciais do

projeto de mestrado foram assim sendo mudadas pela forma como as diferentes

mulheres com as quais trabalhei iam aparecendo no meu caminho e moldando o que eu

tinha de escrever, sendo diretamente como mamaZodwa, ou indiretamente, pelas

escolhas do que queriam me mostrar ou falar.

Seguindo o percurso do cotidiano de mamaZodwa, somado às narrativas a mim

direcionadas, construídas em falas ou no papel, conseguimos perceber diversos pontos

que poderiam ser seguidos. Na dissertação segui o caminho da importância dos

ancestrais, percebida através de grupos e rituais realizados pelas pessoas no seu dia-a-

dia.

É através das exigências rituais dos ancestrais que vão habitando aquele lugar –

em suas casas redondas, nas pedras que não vemos, na sua ação cotidiana – que

percebemos o significado da terra como signo de ancestralidade, como disse Aina

Azevedo (2013)63. Essa, por sua vez, implica uma temporalidade composta por vários

elementos como a bruxaria, que transforma vivos em ancestrais ou como a inveja,

contra a qual se busca a proteção da família que já não habita em corpos aquele mundo.

Para dar conta de um mundo assim composto, é preciso que possamos aprender a

escrever de uma forma que possa conectar variadas camadas da vida das pessoas e,

assim, entender a sua própria localização; desenvolvendo ferramentas de análise

apropriadas que dêem conta de suas experiências. Desta forma, argumentei à época, a

mobilização forçada do apartheid foi invasiva não apenas no sentido político-econômico

63 Para o assunto ver também os trabalhos de Antonádia Borges (2008a, 2008b, 2009), Marcelo Rosa (2008, 2009, 2011), Joyce Gotlib (2010) e Hylton White (2001, 2011).

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do cotidiano dos negros sul-africanos, mas também nas suas relações com os ancestrais

e com os próprios corpos, vivos ou mortos.

Com Zodwa Mbongwa e outras mulheres que conheci na África do Sul, aprendi,

portanto, que era preciso olhar o mundo de outras formas e duvidar das nossas certezas.

É preciso duvidar da noção de tempo. É preciso compor teorias com as palavras das

pessoas que não estão brincando. E respeitá-las, pois há nelas muito sofrimento.

*

1 de fevereiro de 2017. Barulhos de explosão. O Banco do Brasil e a Caixa

Econômica Federal, ambos no início da Rua da Feira, foram explodidos na madrugada.

De longe eu acordei assustada, sem entender o que estava acontecendo. As saídas da

cidade foram bloqueadas com carros em chamas. Apenas uma ficou liberada para que

o grupo passasse. Eles portavam armas pesadas. No dia seguinte me dei conta que até

então eu tinha tido o privilégio de não saber o som de um tiro, ou de vários.

Vieram as histórias depois. Disseram que o grupo gritava que o bonde do cangaço

chegou, enquanto passavam atirando em todas as ruas da cidade. Outros contaram que

havia três mulheres esperando na esquina da Lyra Ceciliana – esquina bem ao lado do

Banco do Brasil explodido e em frente à Caixa Econômica Federal que também tentaram

explodir – a van que as levaria para visitar seus maridos no presídio. Dizem que os

bandidos ao encontrá-las lá, apenas falaram que era para aguardarem na rodoviária. Há

ainda a história de uma senhora que naquela hora atravessava a ponte para São Félix

para pegar a ficha no hospital quando ataram fogo em um dos carros para bloquear a

passagem. Contam que um dos membros do bonde deu o braço à senhora e a deixou do

outro lado do rio Paraguassú.

Em outra situação eu chegava desavisada depois de passar apenas um dia em

Salvador. No último show do São João havia tido tiro na praça e no dia seguinte o

segurança do Supermercado Pereira foi assassinado em frente ao Bradesco.

Helicópteros tinham cruzado o céu de Cachoeira naquele dia. Havia toque de recolher.

Quando estava me despedindo de Mãe Dionízia, sua neta me perguntou se eu ia embora

sozinha, eram sete horas da noite. Disse que sim, sem entender qual seria o problema,

ao que Mãe acrescentou: quem tem fé em Deus, está sempre protegida. Quando cheguei

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à praça perto da minha casa, Gilvânia me contou sobre os helicópteros e o toque de

recolher.

É possível ser branca e recusar-se a perceber a racialização do mundo. Por isso,

foi apenas na universidade, uma UnB com cotas, e no meu primeiro trabalho de campo

na África do Sul ainda na graduação, que consegui dar sentido a algo que eu sentia, mas

não sabia conceituar. Não sabia conceituar porque há o privilégio de não se discutir

diferenças e desigualdades raciais brasileiras nas escolas particulares e nos ambientes

frequentados pela população branca de classe média. Foi apenas ao ir para a

universidade e ao começar a fazer pesquisas que pude escutar sobre a violência que a

pele branca carrega. Não poderia ser diferente em Cachoeira, cidade em que mais de

90% da população é negra. Impossível ignorar o fato de que muitas vezes em campo eu

era tratada de forma diferente, privilegiada. Ou ainda confrontada. Cotidianamente. Ser

branca é passar a ser chamada de senhora com apenas vinte e poucos anos de idade. É

ser elogiada por carregar determinados traços. Seu cabelo é tão lindo. Sua pele é tão

clara. Diferente dessa minha cara de negona. A violência corta as palavras. Como

pudemos ver no terceiro capítulo, Mãe Dionízia por mais de uma vez chamou a atenção

para a minha pele clara. Quando contou de sua mãe e apontou para mim, dizendo que

ela tratava bem pessoas como eu e que maltratava pessoas como Mãe Dionízia, quando

falou de escravidão, quando fez questão de me contar a história que abre esse epílogo.

São muitas as nuances aqui.

Na introdução eu mencionei como Cristiane Souza (2013) nos lembra que toda

enunciação, todo discurso vem de um lugar. A poeta e professora da UFBA, Lívia Natália

afirmou em 2015 na Festa Literária de Cachoeira (Flica): a palavra passa pelo meu corpo.

As palavras passam pelos diversos corpos. Glória Anzáldua ([1981] 2000) já dizia da

posicionalidade e da importância das experiências daquelas que estão nas fronteiras

para construir uma teoria mestiça – um ideal de mestiça completamente diferente da

mestiçagem do pensamento social brasileiro discutida no segundo capítulo. Muitas

autoras ressaltam exatamente como conhecimentos são situados a partir de corpos

histórico-políticos particulares (Haraway, 1988). Djamila Ribeiro (2017) escreveu sobre

a proposta de uma “teoria do ponto de vista feminista” ao “marcar o lugar de fala” como

um dos objetivos do feminismo negro. Tal marcação “se torna necessária para

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entendermos realidades que foram consideradas implícitas dentro da normatização

hegemônica” (Ribeiro, 2017: 59-60). Nesta perspectiva, lugar de fala não tem nada a ver

com essencialização, mas com marcação das diversas experiências.

O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar.

Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas

e outras perspectivas. A teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala nos

faz refutar uma visão universal de mulher e de negritude, e outras

identidades, assim como faz com que homens brancos, que se pensam

universais, se racializem, entendam o que significa ser branco como metáfora

do poder, como nos ensina Kilomba. Com isso, pretende-se também refutar

uma pretensa universalidade. Ao promover a multiplicidade de vozes o que

se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se

pretende universal. Busca-se aqui, sobretudo lutar para romper com o

regime de autorização discursiva. (Ribeiro, 2017: 69-70)

Ângela Figueiredo (2008) em sua reflexão sobre os estudos de gênero e raça nas

ciências sociais brasileiras dialoga com feministas afro-americanas que defendem uma

perspectiva epistemológica dada a partir de um “ponto de vista afro-centrado”:

Dito de outro modo, se a formação e institucionalização do campo das

relações raciais no Brasil ocorreram quase sem a presença de pesquisadores

negros (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2007); os estudos sobre gênero e raça

iniciaram-se de forma inversa, uma vez que a incorporação do tema relativo

à interseção das categorias de gênero e raça resulta, prioritariamente, do

interesse político e acadêmico das pesquisadoras negras (CALDWELL, 2007).

O ponto central aqui é o lugar da enunciação, isto é, a localização étnica-

racial, de classe e de gênero do sujeito que enuncia. Moraga e Anzaldua

(1983) e Mignolo (2000) lembram constantemente que sempre falamos de

uma localização particular nas relações de poder. As feministas afro-

americanas têm denominado esta perspectiva epistemológica, de “ponto de

vista afro-centrado” (COLLINS, 2000). Não pretendo dizer com isso que se

trata de um campo composto exclusivamente por pesquisadoras negras, já

que muitas antropólogas não negras têm contribuições importantes ao

tema; contudo, raramente a pesquisa sobre gênero e raça tem sido central

na produção da maioria delas. (Figueiredo, 2008: 240)

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É preciso intensificar nas salas de aula e nos nossos textos as discussões dessas

autoras que refletem sobre uma ciência que finge que não é feita por um corpo

localizado no mundo. Que finge que não há desigualdade. Que finge que existe o

universal.

Quando acadêmicos brancos reivindicam um discurso neutro e objetivo, eles

não reconhecem o fato de que eles também escrevem de um lugar específico

que, certamente, não é neutro, nem objetivo, nem universal, mas

dominante. É um lugar de poder.

Então, se meus escritos incluem emoções e subjetividade como parte do

discurso teórico, eles, então, relembram que teoria é sempre localizada em

algum lugar [porque] sempre é escrita por alguém. (Grada Kilomba, 2016)64

Não há mais aqui espaço para entrar nesse debate. Mas ele permeia a tese, como

tantos outros conhecimentos. O que essas autoras estão falando é de pluralidade na

construção do conhecimento acadêmico, lembrando-nos, assim, de algo que parece tão

básico: os nossos trabalhos são escritos por alguém com pele. Escritos por alguém que

esteve com outras pessoas para realizar a pesquisa. Pessoas essas que trazem para

esfera do conhecimento, além dos aspectos subjetivos e emocionais postos por

Kilomba, a desigualdade e a responsabilidade. Mas, também, a espiritualidade. Falei da

importância dos ancestrais na África do Sul. E falei que Mãe Dionízia disse que meus

orixás já a conheciam. Não há como escrever com essas mulheres sem olhar para a

espiritualidade como epistemologia construída em um mundo habitado por ancestrais,

orixás e diversas outras presenças. Como permear os nossos textos com essa forma de

viver de uma maneira que não seja apontando que “o outro crê”? Como permear o texto

com as diferenças e desigualdades da relação em campo, sem cinicamente apagá-las do

diálogo acadêmico? Como trazer as pessoas para o texto, pessoas que pensam, como

produtoras de uma forma de conhecer o mundo, e não como meros exemplos nativos

da teoria ou anedotas?

64 Tradução livre de Anne Caroline Quiangala do texto originalmente publicado em inglês na página oficial da autora. O texto é um excerto do livro Plantation Memories (2008), disponível em: http://www.pretaenerd.com.br/2016/01/traducao-quem-pode-falar-grada-kilomba.html (último acesso em 11/07/2018)

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Esta tese foi um exercício. A forma é fundamental para tentar responder a essas

perguntas. Ao percorrer o caminho proposto – Escrever Cachoeira; A inversão; Os

Outros; O mundo; A pele –, procurei trazer através das narrativas todas essas questões

que permeiam a construção de conhecimento. Ao invés de buscar generalizações que

tendem ao universal, busquemos pluralidades tal como o caboclo. No segundo capítulo

vimos como muitos dos debates na formação da antropologia brasileira giravam em

torno das noções de envolvimento político e probidade científica. Com Duca, no

primeiro capítulo, aprendemos que era preciso, além de sobreviver, afirmar-se. Isso

constitui o remanescer. O movimento de olhar para a forma desta tese é, portanto, além

de poético, político. Habitar o texto com corpos diversos. De gente e de presenças. O

corpo é fundamental nas experiências vividas em Cachoeira. Dos ensinamentos de Mãe

Dionízia, passando pela forma de pensar de Gilvânia e de Duca. O corpo está em cada

um dos textos do último capítulo.

As histórias ali contadas nos falam de movimento que flui. Em Cachoeira, não se

fica parado. A água corre. O tempo passa. A morte chega. Aprendemos assim de

presenças que moram em lugares. Aprendemos das correntezas do rio Paraguaçu que

já inundaram muito a cidade. Aprendemos das violências e sofrimentos da escravidão.

Das consequentes diferenças raciais que ferem as relações. Da sua presença no

cotidiano, através dos efeitos do sangue derramado, no passado e ainda hoje, .

Cachoeira é espiritualmente poluída. Esse mundo tem marcas. As histórias se justapõem.

Através da forma de narrá-las os elementos aparecem. O mundo aparece. Mas não se

estabiliza em explicações gerais e definitivas.

As narrativas são, assim, como as entidades de Roque, pé de vento. Estão em dois

lugares ao mesmo tempo. No mundo vivido e no mundo narrado. Em Cachoeira, na

escrita.

Ninguém pode pegar um orixá, ninguém pode pegar o vento. Na mesma hora que

estão aqui, estão ali. Podem estar assentados na África, mas onde você estiver, eles

estão ali te vendo. Vento! Vento está em tudo quanto é lugar ao mesmo tempo

(Damasceno, 2017: 50).

Orixá é vento! Candomblé é ar. A espiritualidade se respira. Talvez tenhamos que

começar a escrever como Mãe Dionízia e mamaZodwa falam, cada uma a seu jeito, para

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dar conta de contar o vento. Talvez ainda como a oração dos Tincõas, banda conhecida

por musicar pontos e cantos do candomblé, no Cordeiro de Nanã que abre esse epílogo:

O que peço no momento é silêncio e atenção. Quero contar sofrimento que

passamos sem razão. O meu lamento se criou na escravidão que forçado

passei. Eu chorei. Sofri as duras dores da humilhação. Mas ganhei, pois eu

trazia Nãnaê no coração.

Que Nanã abençoe sempre a Cachoeira e Iemanjá possa permanecer na Pedra

da Baleia olhando pelos seus. Odoyá, minha mãe.

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Page 269: Cachoeira & a inversão do mundo · Agradeço a Mãe Dionízia por todo aprendizado. Por ensinar a tanta gente que é preciso respeitar o mundo e as donas das falanges. Obrigada,

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