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(83) 3322.3222 [email protected] www.ceduce.com.br CABELO, CANDOMBLÉ E RESISTÊNCIA: PRECEITO RELIGIOSO NO COTIDIANO ESCOLAR Renato Alves de Carvalho Junior UERJ/PROPED [email protected] Resumo Essa pesquisa de mestrado ainda em curso, partindo das premissas dos estudos nos/dos/com os cotidianos, redes educativas e processos culturais, tem o objetivo de observar um grupo de crianças iniciadas no candomblé a partir de suas vivências na Escola Municipal Renato Leite, localizada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. A partir de suas experiências o presente trabalho pretende compreender, especialmente, as dificuldades e desafios de cumprimento dos preceitos religiosos em consonância com as atividades escolares. Considerando o racismo religioso presente nesses ambientes, como retornar à escola com a cabeça raspada após a iniciação? Quais os efeitos, sociais e litúrgicos, provocados pela queda e posterior crescimento dos cabelos no contexto do rito iniciático? Como a escola se relaciona com as crianças de candomblé? Palavras-chave: Candomblé, Racismo, Cabelo, Crianças de Terreiro. “Na Nigéria, vejo muitas meninas na escola serem extremamente humilhadas por não estarem com o cabelo ‘bem ajeitado’, só porque um pouco do cabelo que Deus lhes deu fica enrolado em lindos cachinhos crespos nas laterais da cabeça. Deixe o cabelo de Chizalum solto em grandes tranças, embutidas ou não, e não use pentes finos que não foram feitos pensando em cabelos como os nossos” Chimamanda Ngozi Adichie Introdução A realidade apontada pela autora na epígrafe não é exclusividade das escolas nigerianas. No Brasil de hoje a manutenção do racismo, sobretudo no ambiente escolar, ocorre principalmente a partir da afirmação de estereótipos pejorativos relacionados à negritude. Ao escrever acerca da identidade negra a partir do cabelo crespo, Nilma Lino Gomes 1 enfatiza que a escola é o primeiro local de rejeição ao corpo negro. Rejeição essa, que por sua vez, está intimamente relacionada ao 1 “Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, disponível em http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp- content/uploads/2012/10/Corpo-e-cabelo-como-s%C3%ADmbolos-da-identidade-negra.pdf

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CABELO, CANDOMBLÉ E RESISTÊNCIA: PRECEITO RELIGIOSO NO

COTIDIANO ESCOLAR

Renato Alves de Carvalho Junior

UERJ/PROPED – [email protected]

Resumo

Essa pesquisa de mestrado ainda em curso, partindo das premissas dos estudos nos/dos/com os

cotidianos, redes educativas e processos culturais, tem o objetivo de observar um grupo de crianças

iniciadas no candomblé a partir de suas vivências na Escola Municipal Renato Leite, localizada na

Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. A partir de suas experiências o presente trabalho pretende

compreender, especialmente, as dificuldades e desafios de cumprimento dos preceitos religiosos em

consonância com as atividades escolares. Considerando o racismo religioso presente nesses

ambientes, como retornar à escola com a cabeça raspada após a iniciação? Quais os efeitos, sociais

e litúrgicos, provocados pela queda e posterior crescimento dos cabelos no contexto do rito

iniciático? Como a escola se relaciona com as crianças de candomblé?

Palavras-chave: Candomblé, Racismo, Cabelo, Crianças de Terreiro.

“Na Nigéria, vejo muitas meninas na escola serem extremamente humilhadas por

não estarem com o cabelo ‘bem ajeitado’, só porque um pouco do cabelo que Deus

lhes deu fica enrolado em lindos cachinhos crespos nas laterais da cabeça. Deixe o

cabelo de Chizalum solto – em grandes tranças, embutidas ou não, e não use pentes

finos que não foram feitos pensando em cabelos como os nossos”

Chimamanda Ngozi Adichie

Introdução

A realidade apontada pela autora na epígrafe não é exclusividade das escolas nigerianas. No

Brasil de hoje a manutenção do racismo, sobretudo no ambiente escolar, ocorre principalmente a

partir da afirmação de estereótipos pejorativos relacionados à negritude. Ao escrever acerca da

identidade negra a partir do cabelo crespo, Nilma Lino Gomes1 enfatiza que a escola é o primeiro

local de rejeição ao corpo negro. Rejeição essa, que por sua vez, está intimamente relacionada ao

1 “Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, disponível em http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-

content/uploads/2012/10/Corpo-e-cabelo-como-s%C3%ADmbolos-da-identidade-negra.pdf

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cabelo e suas associações com a sujeira, o desleixo e a má aparência. O aspecto mais evidente da

negritude é o cabelo e acaba funcionando com um termômetro social em relação ao racismo.

Palavras como “ruim”, “bombril” e “pixaim” são constantemente associadas ao cabelo crespo,

estereotipando-o.

Contudo, é importante ressaltar que desde o contexto da diáspora africana o corpo negro se

torna elemento central para o processo de resistência ao cativeiro. Como nos mostra Márcio de

Jagun sobre o orixá Èsù2:

“Bara – s. designação do Òrìsà Èsù que todo ser humano possui. É o Èsù

que habita em nós. Possivelmente o nome decorre da fusão dos vocábulos

ba (v. esconder) + ara (s. corpo); ou ba (prep. com, em companhia de) +

ara (s. corpo). Bara é a energia inata, a própria essência dos Seres

Humanos.” (Jagun, 2017)3

O fragmento acima revela-nos um pouco da concepção de mundo de muitos dos nossos

ancestrais africanos. Toda a violência da captura, as incertezas da travessia à bordo dos tumbeiros e

as atrocidades do cativeiro foram superadas a partir da crença de que suas divindades, literalmente,

habitavam seus corpos.

Essa mesma matéria humana violada pela fome, pelo estupro e pela chibata era a mesma que

se reerguia e se curava através dos banhos de ervas, dos rituais de fechamento do corpo e dos

processos de iniciação de que a transformavam em altar vivo dos deuses. Cuidar do corpo, portanto,

era resistência e existência, era cuidar das próprias divindades. Tal conjuntura foi imprescindível

para a formação do candomblé como uma religião brasileira de matriz africana.

Encrespando com o preconceito e trançando a resistência a partir da fé.

2Divindade do panteão afro-brasileiro regente dos mercados, relacionada a comunicação e sexualidade. Erroneamente

associado ao Diabo cristão.

3 JAGUN, Márcio de. Yorubá: vocabulário temático do candomblé/pp. 595; 1 ed. – Rio de Janeiro : Litteris, 2017.

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1 – Ìbà o o o ò ò ò

2 – Mo júbá okó dorí kodò ti ò ro

3 – Mo júbá ẹ̀lẹ̀ to dorí kodò ti ò sàn

4 – Mo júbá pẹlẹbẹ ọwọ́

5 – Mo júbá pẹlẹbẹ ẹsẹ̀

6 – Mo júbá àtélesè ti ò burun to fi dé jogbolo itan

1 – Saudações!

2 – Eu saúdo o pênis que pende para baixo sem pingar

3 – Eu saúdo a vagina que se abre para baixo sem fluir

4 – Eu saúdo a palma das mãos

5 – Eu saúdo a sola dos pés

6 – Eu saúdo a perna lisa desde a sola do pé até a

grossura da coxa

Nos versos acima percebemos a importância de cada parte corpo para o funcionamento

harmonioso da matéria humana no seu sentido mais amplo. Desde os pés e as pernas que permitem

pisarmos no mesmo solo antes pisado pelos ancestrais e garantem a caminhada pela vida, passando

pelo pênis e a vagina que, quando encaixados, permitem o prazer e a concepção, imprescindíveis à

manutenção da existência, e pelos braços e mãos garantidores da força e responsáveis pela

construção, manipulação dos objetos e manuseio da vida, até chegar a cabeça.

Orí, cabeça em ioruba, é a parte mais importante do corpo e por esta razão possui um culto

específico sendo vista também como uma divindade. Por ser, geralmente, a primeira parte que vem

ao mundo no ato do nascimento é considerada como “mais velha” em relação ao restante do corpo.

A cabeça, além de receptáculo das oferendas (cabeça física - Orí Òde)4, é detentora de toda a

memória ancestral (Ìpòrí5 registrada na cabeça espiritual – Orí Inú6) e por isso deve ser cuidada e

protegida.

Por estas razões, a cabeça precisa ser raspada cuidadosamente para que receba as oferendas

e possibilite a conexão com a ancestralidade. Nesse contexto, nos momentos posteriores a iniciação

podemos observar o crescimento do cabelo do iniciado na mesma medida em que vai recobrando

suas atividades cotidianas, como, no caso de nossas crianças, retornar à escola. A partir desse

retorno ao ambiente escolar é que a pesquisa pretende se desenvolver e avançar no que diz respeito

ao cotidiano das crianças de terreiro observadas nesse campo.

4 JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. Pp.37/pp. 41 – 1 ed. – Rio de Janeiro : Litteris, 2015

5 JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. Pp.37/pp. 41 – 1 ed. – Rio de Janeiro : Litteris, 2015

6 JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. Pp.37/pp. 41 – 1 ed. – Rio de Janeiro : Litteris, 2015

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O aluno L, por exemplo, no ano de sua iniciação parou de frequentar o colégio. Até o

momento da escrita desse texto trabalhamos com a hipótese de que essa decisão foi motivada pelo

rígido preceito típico desse momento da vida religiosa e a dificuldade de cumpri-lo em consonância

com as regras estabelecidas pela escola. Sobre os interditos do período posterior ao recolhimento e

sobre a raspagem nosso informante suscita outra questão a partir de sua fala: “Para mim foi normal.

Eu sou homem e sempre corto o cabelo”. A fala de L dialoga intensamente com a epígrafe e

possibilita outras reflexões: Será que para a aluna S, iniciada há poucos meses e que retornou para a

escola ainda com os cabelos bastante curtos, esse também é um ponto pacífico? De que maneira a

aluna S se relaciona com colegas e professores estando careca e de preceito?

Alguns pensamentos à guisa do aprofundamento da pesquisa

A escola pública é um ambiente extremamente hostil para as crianças e jovens de terreiro,

como já vem sendo denunciado pela pesquisadora Stela Caputo há mais de 20 anos7. A situação se

torna ainda mais grave a partir do modelo de Ensino Religioso Confessional que impera no Rio de

Janeiro. As inúmeras crianças que fizeram parte da pesquisa percebiam desde cedo que eram

discriminadas por serem negras e do candomblé. Até mesmo as crianças não negras sofriam

discriminação por serem de uma religião que é estigmatizada como “de negro”, de forma

depreciativa.

Dessa maneira, a pretensão da pesquisa é aprofundar as questões e reflexões supracitadas

através da observação dos cotidianos das crianças por meio de entrevistas, postagens em redes

sociais e fotografias. O aluno L e a aluna S são as principais fontes investigadas e, no caso desta, o

fato de estar cumprindo o preceito enquanto estuda enriquece ainda mais o campo.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. – 1 ed. – São Paulo:

Companhia das Letras, 2017.

BENISTE, José. Dicionário Yorubá Português. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. –

1 ed. – Rio de Janeiro: Pallas, 2012

7CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. – 1 ed. – Rio

de Janeiro : Pallas, 2012.

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JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. 1 ed. – Rio de Janeiro: Litteris, 2015

________________ Yorùbá: Vocabulário temático do candomblé. – 1 ed. – Rio de Janeiro: Litteris, 2017.