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CABELO, CANDOMBLÉ E RESISTÊNCIA: PRECEITO RELIGIOSO NO
COTIDIANO ESCOLAR
Renato Alves de Carvalho Junior
UERJ/PROPED – [email protected]
Resumo
Essa pesquisa de mestrado ainda em curso, partindo das premissas dos estudos nos/dos/com os
cotidianos, redes educativas e processos culturais, tem o objetivo de observar um grupo de crianças
iniciadas no candomblé a partir de suas vivências na Escola Municipal Renato Leite, localizada na
Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. A partir de suas experiências o presente trabalho pretende
compreender, especialmente, as dificuldades e desafios de cumprimento dos preceitos religiosos em
consonância com as atividades escolares. Considerando o racismo religioso presente nesses
ambientes, como retornar à escola com a cabeça raspada após a iniciação? Quais os efeitos, sociais
e litúrgicos, provocados pela queda e posterior crescimento dos cabelos no contexto do rito
iniciático? Como a escola se relaciona com as crianças de candomblé?
Palavras-chave: Candomblé, Racismo, Cabelo, Crianças de Terreiro.
“Na Nigéria, vejo muitas meninas na escola serem extremamente humilhadas por
não estarem com o cabelo ‘bem ajeitado’, só porque um pouco do cabelo que Deus
lhes deu fica enrolado em lindos cachinhos crespos nas laterais da cabeça. Deixe o
cabelo de Chizalum solto – em grandes tranças, embutidas ou não, e não use pentes
finos que não foram feitos pensando em cabelos como os nossos”
Chimamanda Ngozi Adichie
Introdução
A realidade apontada pela autora na epígrafe não é exclusividade das escolas nigerianas. No
Brasil de hoje a manutenção do racismo, sobretudo no ambiente escolar, ocorre principalmente a
partir da afirmação de estereótipos pejorativos relacionados à negritude. Ao escrever acerca da
identidade negra a partir do cabelo crespo, Nilma Lino Gomes1 enfatiza que a escola é o primeiro
local de rejeição ao corpo negro. Rejeição essa, que por sua vez, está intimamente relacionada ao
1 “Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, disponível em http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-
content/uploads/2012/10/Corpo-e-cabelo-como-s%C3%ADmbolos-da-identidade-negra.pdf
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cabelo e suas associações com a sujeira, o desleixo e a má aparência. O aspecto mais evidente da
negritude é o cabelo e acaba funcionando com um termômetro social em relação ao racismo.
Palavras como “ruim”, “bombril” e “pixaim” são constantemente associadas ao cabelo crespo,
estereotipando-o.
Contudo, é importante ressaltar que desde o contexto da diáspora africana o corpo negro se
torna elemento central para o processo de resistência ao cativeiro. Como nos mostra Márcio de
Jagun sobre o orixá Èsù2:
“Bara – s. designação do Òrìsà Èsù que todo ser humano possui. É o Èsù
que habita em nós. Possivelmente o nome decorre da fusão dos vocábulos
ba (v. esconder) + ara (s. corpo); ou ba (prep. com, em companhia de) +
ara (s. corpo). Bara é a energia inata, a própria essência dos Seres
Humanos.” (Jagun, 2017)3
O fragmento acima revela-nos um pouco da concepção de mundo de muitos dos nossos
ancestrais africanos. Toda a violência da captura, as incertezas da travessia à bordo dos tumbeiros e
as atrocidades do cativeiro foram superadas a partir da crença de que suas divindades, literalmente,
habitavam seus corpos.
Essa mesma matéria humana violada pela fome, pelo estupro e pela chibata era a mesma que
se reerguia e se curava através dos banhos de ervas, dos rituais de fechamento do corpo e dos
processos de iniciação de que a transformavam em altar vivo dos deuses. Cuidar do corpo, portanto,
era resistência e existência, era cuidar das próprias divindades. Tal conjuntura foi imprescindível
para a formação do candomblé como uma religião brasileira de matriz africana.
Encrespando com o preconceito e trançando a resistência a partir da fé.
2Divindade do panteão afro-brasileiro regente dos mercados, relacionada a comunicação e sexualidade. Erroneamente
associado ao Diabo cristão.
3 JAGUN, Márcio de. Yorubá: vocabulário temático do candomblé/pp. 595; 1 ed. – Rio de Janeiro : Litteris, 2017.
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1 – Ìbà o o o ò ò ò
2 – Mo júbá okó dorí kodò ti ò ro
3 – Mo júbá ẹ̀lẹ̀ to dorí kodò ti ò sàn
4 – Mo júbá pẹlẹbẹ ọwọ́
5 – Mo júbá pẹlẹbẹ ẹsẹ̀
6 – Mo júbá àtélesè ti ò burun to fi dé jogbolo itan
1 – Saudações!
2 – Eu saúdo o pênis que pende para baixo sem pingar
3 – Eu saúdo a vagina que se abre para baixo sem fluir
4 – Eu saúdo a palma das mãos
5 – Eu saúdo a sola dos pés
6 – Eu saúdo a perna lisa desde a sola do pé até a
grossura da coxa
Nos versos acima percebemos a importância de cada parte corpo para o funcionamento
harmonioso da matéria humana no seu sentido mais amplo. Desde os pés e as pernas que permitem
pisarmos no mesmo solo antes pisado pelos ancestrais e garantem a caminhada pela vida, passando
pelo pênis e a vagina que, quando encaixados, permitem o prazer e a concepção, imprescindíveis à
manutenção da existência, e pelos braços e mãos garantidores da força e responsáveis pela
construção, manipulação dos objetos e manuseio da vida, até chegar a cabeça.
Orí, cabeça em ioruba, é a parte mais importante do corpo e por esta razão possui um culto
específico sendo vista também como uma divindade. Por ser, geralmente, a primeira parte que vem
ao mundo no ato do nascimento é considerada como “mais velha” em relação ao restante do corpo.
A cabeça, além de receptáculo das oferendas (cabeça física - Orí Òde)4, é detentora de toda a
memória ancestral (Ìpòrí5 registrada na cabeça espiritual – Orí Inú6) e por isso deve ser cuidada e
protegida.
Por estas razões, a cabeça precisa ser raspada cuidadosamente para que receba as oferendas
e possibilite a conexão com a ancestralidade. Nesse contexto, nos momentos posteriores a iniciação
podemos observar o crescimento do cabelo do iniciado na mesma medida em que vai recobrando
suas atividades cotidianas, como, no caso de nossas crianças, retornar à escola. A partir desse
retorno ao ambiente escolar é que a pesquisa pretende se desenvolver e avançar no que diz respeito
ao cotidiano das crianças de terreiro observadas nesse campo.
4 JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. Pp.37/pp. 41 – 1 ed. – Rio de Janeiro : Litteris, 2015
5 JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. Pp.37/pp. 41 – 1 ed. – Rio de Janeiro : Litteris, 2015
6 JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. Pp.37/pp. 41 – 1 ed. – Rio de Janeiro : Litteris, 2015
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O aluno L, por exemplo, no ano de sua iniciação parou de frequentar o colégio. Até o
momento da escrita desse texto trabalhamos com a hipótese de que essa decisão foi motivada pelo
rígido preceito típico desse momento da vida religiosa e a dificuldade de cumpri-lo em consonância
com as regras estabelecidas pela escola. Sobre os interditos do período posterior ao recolhimento e
sobre a raspagem nosso informante suscita outra questão a partir de sua fala: “Para mim foi normal.
Eu sou homem e sempre corto o cabelo”. A fala de L dialoga intensamente com a epígrafe e
possibilita outras reflexões: Será que para a aluna S, iniciada há poucos meses e que retornou para a
escola ainda com os cabelos bastante curtos, esse também é um ponto pacífico? De que maneira a
aluna S se relaciona com colegas e professores estando careca e de preceito?
Alguns pensamentos à guisa do aprofundamento da pesquisa
A escola pública é um ambiente extremamente hostil para as crianças e jovens de terreiro,
como já vem sendo denunciado pela pesquisadora Stela Caputo há mais de 20 anos7. A situação se
torna ainda mais grave a partir do modelo de Ensino Religioso Confessional que impera no Rio de
Janeiro. As inúmeras crianças que fizeram parte da pesquisa percebiam desde cedo que eram
discriminadas por serem negras e do candomblé. Até mesmo as crianças não negras sofriam
discriminação por serem de uma religião que é estigmatizada como “de negro”, de forma
depreciativa.
Dessa maneira, a pretensão da pesquisa é aprofundar as questões e reflexões supracitadas
através da observação dos cotidianos das crianças por meio de entrevistas, postagens em redes
sociais e fotografias. O aluno L e a aluna S são as principais fontes investigadas e, no caso desta, o
fato de estar cumprindo o preceito enquanto estuda enriquece ainda mais o campo.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. – 1 ed. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
BENISTE, José. Dicionário Yorubá Português. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. –
1 ed. – Rio de Janeiro: Pallas, 2012
7CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. – 1 ed. – Rio
de Janeiro : Pallas, 2012.
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JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. 1 ed. – Rio de Janeiro: Litteris, 2015
________________ Yorùbá: Vocabulário temático do candomblé. – 1 ed. – Rio de Janeiro: Litteris, 2017.