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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO CURSO DE PEDAGOGIA Maria Ornélia Valeze Trovo “CINDERELA E AS MENINAS”: AS CONTRIBUIÇÕES DOS FILMES DE ANIMAÇÃO NA FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO Maringá 2010

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO CURSO DE PEDAGOGIA

Maria Ornélia Valeze Trovo

“CINDERELA E AS MENINAS”: AS CONTRIBUIÇÕES DOS FILMES DE ANIMAÇÃO NA FORMAÇÃO DAS

IDENTIDADES DE GÊNERO

Maringá 2010

2

Maria Ornélia Valeze Trovo

“CINDERELA E AS MENINAS”: AS CONTRIBUIÇÕES DOS FILMES DE ANIMAÇÃO NA FORMAÇÃO DAS

IDENTIDADES DE GÊNERO Trabalho apresentado como requisito parcial para conclusão do Curso de Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá Orientadora: Profª. Drª. Ivana Guilherme Simili

Maringá 2010

3

FOLHA DE APROVAÇÃO

Maria Ornélia Valeze Trovo

CINDERELA E AS MENINAS”: AS CONTRIBUIÇÕES DOS FILMES DE ANIMAÇÃO NA FORMAÇÃO DAS

IDENTIDADES DE GÊNERO

Aprovado em:

Trabalho apresentado como requisito parcial para conclusão do Curso de Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá

Banca examinadora

Profª Drª Ivana Guilherme Simili

Instituição:Universidade Estadual de Maringá

Assinatura:_________________________

Profª

Instituição:Universidade Estadual de Maringá

Assinatura:_________________________

Profª ª

Instituição: Universidade Estadual de Maringá

Assinatura:_________________________

4

DEDICO ESTE TRABALHO...

A minha família, que possibilitaram que

minhas lágrimas se transformassem nos

degraus que me trouxeram até aqui.

5

AGRADECIMENTOS

A Deus, minha fortaleza...

A minha mãe (In Memorian), ANALFABETA, mas, lembro do seu orgulho ao

anunciar que tinha uma filha professora, e nesse momento, gostaria que ela pudesse estar aqui

para ver a concretização de seu sonho.

Ao meu amado esposo, companheiro e incentivador que em todos os momentos da

árdua luta desses quatro anos, fez dos meus sonhos, seus objetivos maiores.

Aos meus amados filhos Marcelo, Ricardo e Kamila, pelo orgulho que me deram

de sermos, os quatro, estudantes de 3º grau, (juntos).

A minha nora Elisangela, pelo apoio aos meus estudos e por ter dado minhas netas,

DUDA e CAROL, anjos colocados em minha vida para que eu reaprendesse a viver

intensamente a vida, sem medo do amanhã.

A minha orientadora Ivana G. Simili, pela arte de orientar e compreender as minhas

limitações dando-me apoio, dedicação e autonomia nos momentos difíceis desta caminhada.

6

Ah...

Se o mundo inteiro me pudesse ouvir

Tenho muito pra contar

Dizer que aprendi.

(Azul da cor do Mar - Tim Maia)

7

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11

CAPÍTULO 1: CINDERELA: DO LIVRO DE PERRAULT PARA AS TELAS DE

CINEMA .................................................................................................................................. 13

1.1: O CRIADOR E SUAS CRIATURAS .......................................................................... 13

1.2: “CINDERELA”: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA DOS FILMES ...................... 19

1.3: “CINDERELA EM 1950”: UMA PERSONAGEM EM CARNE E OSSO ............. 222

1.4: “CINDERELA II”: OS SONHOS SE REALIZAM ...................................................... 23

1.5: “CINDERELA III” : UMA VOLTA NO TEMPO...................................................... 25

CAPÍTULO 2: AMOR, FELICIDADE E CASAMENTO PARA MENINAS: UMA

ANÁLISE DE GÊNERO ......................................................................................................... 28

2.1: GÊNERO PARA COMPREENDER OS FEMININOS E AS FEMINILIDADES DA

CINDERELA........................................................................................................................ 29

CAPÍTULO 3 : VISÕES DE FEMININO E DE FEMINILIDADE E O “COMPLEXO DE

CINDERELA” .......................................................................................................................... 35

3.1: COMPLEXO DE CINDERELA: UMA MANEIRA CRÍTICA DE OLHAR PARA OS

FILMES ................................................................................................................................ 42

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 45

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 48

8

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Charles Perrault (1628-1703) ................................................................................. 13

Figura 2 - “O gato de Botas” .................................................................................................... 15

Figura 3- Ilustração de Gustave Doré (1832-1886) Conto de Fadas “O Gato de Botas” ......... 16

Figura 4: Mamãe Gansa ............................................................................................................ 17

Figura 5 - Cinderela .................................................................................................................. 20

Figura 6 – Atelier do filme ....................................................................................................... 20

Figura 8 - Cinderela e sua fada Madrinha ................................................................................ 21

Figura 7 - Helene Stanley ........................................................................................................ 21

Figura 9 – Cinderela 2002 ........................................................................................................ 23

Figura 10 – Cinderela e o Príncipe ........................................................................................... 23

Figura 11 Capa DVD – Cinderela II ........................................................................................ 23

Figura 12 – Cinderela na Fonte ................................................................................................ 24

Figura 13 - Capa do lançamento do DVD de Cinderela III ...................................................... 25

Figura 14 – Imagens do filme – capa DVD .............................................................................. 25

Figura 15- comemoração de um ano de casamento .................................................................. 26

Figura 16 - imagens do III filme na capa do DVD ................................................................... 26

Figura 17 - Cinderela e o Príncipe após o casamento .............................................................. 26

9

RESUMO

Ao observar a ludicidade e as belas imagens que acompanham os filmes de animação infantil,

fica evidente que os mesmos são produtores e veiculadores de representações que “sugerem”

e até “ditam” normas, comportamentos, atitudes e identidades sociais as quais acabam por

regular nossas vidas. Esta pesquisa teve por objetivo analisar o filme Cinderela para verificar

como se dá a construção de identidade de gênero feminino na personagem. Na análise

reiteramos as interpretações realizadas e que mostram que o “ideal” de mulher perfeita é

ditado, regido e regulado pelo mundo masculino, não só nos filmes, mas também, nas artes

em geral que estejam relacionadas a imagem do gênero feminino. O estudo deste artefato

cultural que é o filme de animação infantil, mostrou-nos que os papéis sociais são abstrações

construídas nas relações sociais e concretizadas em personagens (nós) e que assim

aprendemos a ser sujeitos generificados sob a ótica masculina.

Palavras – chave: filme infantil, identidade de gênero, feminilidade.

10

ABSTRACT

Observing the enterteinment and the beautiful images that appear in cartoon films, we can

verify that these are the pruductors and transmitter of representations, and we can also assert

that they order some rules of behaviour, attitude and social identities, as a result it can control

our lives. Verifying how the identity construction of the feminine gender in Cinderela

character. I could verify some analysis that had abready been done showing that the ideal of

the perfect woman is said and ordered by the masculine world, not only in movies but also in

any kind of art that is related to feminine gender image. These cultural studies showed is that

the social role are built abstractions in social relations and realized in character (us) in this

way we learn to be gender persony by the masculine view.

Key words: cartoon film, gender identily, femininite.

11

INTRODUÇÃO

Galvão e Diaz (1999) relatam que gênero é a principal diferença por ser a primeira a

ser experimentada pelo sujeito. A constatação inicial de identidade que se faz, no momento do

nascimento, é ser criança e, menino ou menina e, conforme for, o recém-nascido passará a

receber um tratamento específico de mulher ou de homem.

Quanto a questão de gênero, alguns autores relatam a dificuldade para se aceitar a

ideia de que a dificuldade entre homens e mulheres não é o estado essencial inscrito na

biologia e sim uma realidade bio-sociológica que surge das práticas cotidianas, dos costumes,

das leis, das religiões, das ciências. (GRUBITS; DARRAULT – HARRIS; PEDROSO, 2005).

Assim, nas reflexões dos autores destacados, embora a escola continue sendo a

principal forma pela qual as crianças captam, absorvem os comportamentos sócio-

comportamentais, os quais constituirão suas identidades, como meninos e meninas, alguns

artefatos culturais, como os filmes de animação infantil, possuem papel de destaque nesta

tarefa de educar, de ensinar as crianças modos de ser, de pensar, de agir, de comportar-se, de

consumir (RAEL, 2003).

Na visão de Henri Giroux (1995), um exame da cultura infantil vem mostrar que as

identidades individuais e coletivas das crianças e dos jovens são amplamente moldadas na

cultura visual dos videogames, televisão, cinema, shopping entre outros.

Os autores escrevem que no plano social, os valores culturais se firmam através de

normas, hábitos, leis, preconceitos e são fatores determinantes na construção de identidade,

ficando claro na observação dos autores que este mundo vislumbrado pelos produtores de

filmes infantis, é fruto da própria sociedade e acaba por tornar-se ferramenta de perpetuação

de uma sociedade preconceituosa. A construção de identidade de gênero se faz socialmente,

assim, as normas e ideologias do que é ser menino e menina, homem e mulher, são

desenvolvidas a partir de experiências de uns e outros, as quais são produtoras e legitimadoras

das concepções hegemônicas presentes na sociedade.

Assim, este trabalho teve por objetivo analisar um destes artefatos culturais e

educativos – os filmes da Cinderela – em três produções: a primeira de 1950 (século XX) e as

duas versões posteriores, produzidos no início do século XXI, (2002 e 2007),

respectivamente. Nessa análise, procuramos observar e analisar como o ideal de feminilidade

é construído para a personagem “Cinderela” e quais os mecanismos usados nas narrativas e

12

nas imagens para mostrar os comportamentos, os hábitos e as atitudes da “mulher ideal”.

Desse modo, identificamos a contribuição do filme na construção de identidade de gênero das

meninas, isso porque nas mensagens fílmicas podemos captar as noções de amor, casamento e

felicidade conjugal transmitidas aos segmentos femininos, de modo que acalentem sonhos de

um príncipe encantado e um final feliz nas relações amorosas, entenda-se por isso: um

casamento até que a morte separe o par.

Ao selecionarmos as três produções fílmicas dos Estúdios Disney – de 1950, 2002 e

2007-, como fontes e objetos de estudo, entendemos que, por seus intermédios será possível

uma aproximação com as permanências nos ideais de feminilidade durante o século XX. Ao

mostrarmos que os filmes ensinam nas entrelinhas os comportamentos, as atitudes e os

valores que devem orientar as práticas e representações de nossas crianças e adolescentes,

moldando-as política e pedagogicamente, estaremos, portanto, revelando os sentidos

adquiridos pelas permanências em torno de temas sobre o amor, casamento e família, os quais

se fazem presentes em nossa sociedade e cultura, bem como se constituem em eixos dos

estudos de gênero.

Para expor nossa análise e argumentos, este trabalho foi estruturado em três capítulos.

No capítulo 1, abordamos a trajetória de Perrault e a cinematografia da Disney para

compreender as transformações da obra literária e fílmica da Cinderela. No capítulo 2,

partimos para a apresentação dos instrumentos teórico-metodológicos envolvidos na análise.

Focalizamos o conceito de gênero e alguns de seus desdobramentos, particularmente, na

relação entre os artefatos pedagógicos-culturais, tais como os filmes, na construção de

identidade de gênero e na veiculação de imagens e representações sobre e para o feminino e

as feminilidades em suas articulações com os ideais de mulher, casamento e felicidade.

Finalmente, o terceiro capítulo retoma alguns dos tópicos tratados no capítulo anterior

para destacar e analisar como o feminino é colocado nas artes em geral, como objeto de

contemplação para o masculino e propomos uma análise crítica acerca do filme Cinderela,

apoiando nossos argumentos no tema “Complexo de Cinderela” alicerçado no livro de

Colette Dowling.

13

CAPÍTULO 1: CINDERELA: DO LIVRO DE PERRAULT PARA AS TELAS DE

CINEMA

No capítulo abordaremos a trajetória do escritor Perrault, criador da Cinderela, para

apresentar o percurso literário da Cinderela e sua transformação em filme de animação

infantil. O intuito, num primeiro momento, foi o de compor um panorama histórico do

percurso do autor e a incorporação da personagem pela Disney.

1.1: O CRIADOR E SUAS CRIATURAS...

Figura 1 - Charles Perrault (1628-1703)

Muitas são as descrições para a trajetória pessoal e literária de Charles Perrault. Uma

delas, menciona que ele foi contemporâneo do fabulista gaulês La Fontaine, Charles Perrault

(1628-1703), morreu ao 75 anos e sempre viveu em Paris. O poeta da Academia Francesa não

atuou exclusivamente no mundo das letras. Além de trabalhar como advogado, tornou-se

14

superintendente de construções do Rei Sol Luís XIV, posição política em que se destacou ao

lado do ministro Colbert1.

Membro da alta burguesia, Perrault foi imortalizado por criar uma literatura de cunho

popular que caiu no gosto infantil e contou também com a aprovação dos adultos. Com pouco

mais de 50 anos, trocou o serviço ativo pela educação dos filhos. Movido por esse desejo,

começou a registrar as histórias da tradição oral contadas, principalmente, pela mãe ao pé da

lareira.

Com quase 70 anos, publicou um livro de contos conhecido, na época, como "contos

de velha", "contos da cegonha" ou "contos da mamãe gansa", sendo o último título pelo qual

ficou conhecida a sua obra em todo o mundo. A primeira edição, data de onze de janeiro de

1697, e recebeu o nome de "Histórias ou contos do tempo passado com moralidades", que

remete à famosa moral da história presente ao final de cada texto.

Com redação simples e fluente, as histórias eram adaptações literárias que traziam ao

final, os conceitos morais presentes na sociedade e cultura da época - séc. XVII -, em forma

de versos. Essa maneira de criar as obras promoveu na chamada literatura infantil a existência

de um teor pedagógico associado ao lúdico. Os "Contos da mamãe gansa" se constituem de

uma coletânea de oito histórias, posteriormente acrescidas de mais três títulos, ainda que num

manuscrito de 1695 e só encontrado em 1953, constassem apenas cinco textos. Os contos que

falam de princesas, bruxas e fadas trazem histórias que habitam até hoje o imaginário infantil

como "A Bela Adormecida", "Chapeuzinho Vermelho", "Cinderela", dentre outros2.

A coletânea é composta de oito contos iniciais, posteriormente, mais três são

incorporados. A figura da Mãe Gansa já demonstrava a aproximação de Perrault com as

narrativas populares. Os três contos incluídos posteriormente na coletânea são: A Pele de

Asno - (1696); Os Desejos Ridículos - (1694) ; Grisélidis - (1691).

1 Essas informações foram obtidas no site:CRISTIANE MADANÊLO DE OLIVEIRA. "CHARLES PERRAULT(1628-1703). Disponível em:< http://www.graudez.com.br/litinf/autores/perrault/perrault.htm>. Acesso em 21 jun.2010. 2 Outros contos famosos do autor publicados em 1697 (11 de janeiro de 1697) foram: Le Petit Chaperon Rouge – Chapeuzinho Vermelho; La Barbe Blue – O Barba Azul; Le Maítre Chat ou Le Chat Botté – O Gato de Botas; Les Fées – As Fadas; Cendrillon ou La Petit Pantoufle de Verre – A Gara Borralheira; Riquet à La Houppe – Henrique o Topetudo; Le Petit Poucet – O Pequeno Polegar; La Belle au Bois Dormant – A Bela Adormecida no Bosque.

15

Figura 2 - “O gato de Botas” 3–

3 Capa do livro – Uma das primeiras edições- feita a mão Disponível em: < http://wapedia.mobi/pt/O_Gato_de_Botas >. Acesso em: 15 mar. 2010.

16

Figura 3- Ilustração de Gustave Doré (1832-1886) Conto de Fadas “O Gato de Botas”4

4 Disponível em: < http://wapedia.mobi/pt/O_Gato_de_Botas > Acesso em: 15 mar. 2010.

17

Figura 4: Mamãe Gansa5

“Mamãe Gansa" é o nome que foi dado a uma arquetípica mulher do campo, a qual

teria sido a origem das histórias e cantigas atribuídas à personagem. Embora nenhum(a)

escritor(a) jamais tenha sido identificado(a) sob tal nome, a primeira menção conhecida a ela

aparece numa crônica semanal em versos, La Muse Historique (1660?) de Jean Loret,

publicada regularmente durante muitos anos. Seu comentário, ...comme un conte de la Mere

Oye ("...como uma história da Mamãe Gansa") demonstra que a expressão já era familiar.

5 Numa ilustração da edição original, assemelha-se a uma velha fiandeira que conta histórias. Imortaliza-se, assim, este símbolo no mundo literário. Charles Perrault - Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Perrault" ....> Acesso em: 15 mar. 2010.

18

O iniciador do gênero literário dos contos de fadas, Charles Perrault, publicou em

1697 sob o nome do próprio filho, Histoires ou contes du temps passés, avec des moralités,

tornou-se mais bem conhecida por seu subtítulo: Contes de ma mère l'Oye ou "Contos da Mãe

Gansa". A publicação de Perrault marca o verdadeiro início da história da personagem. A

primeira aparição pública das histórias da Mãe Gansa no Novo Mundo ocorreu em Worcester

(Inglaterra), onde o impressor Isaiah Thomas reimprimiu o livro sob o mesmo título, em

1786.

Perrault (1697) não criou as narrativas de seus contos, mas as editou para que estas se

adequassem à audiência da corte do rei Luís XIV (1638-1715). Estas eram narrativas

folclóricas contadas pelos camponeses, governantas e serventes que forneceram a matéria-

prima para estes contos.

Apesar do distanciamento da camada popular e do desprezo pela sua cultura, a classe

nobre conhecia tais narrativas através do inevitável contato por meio do comércio ou pela

presença das governantas e outros serviçais em suas residências. Após coletar tais narrativas,

Perrault eliminou o quanto pôde as passagens obscenas ou repugnantes que continham

incesto, sexo grupal e canibalismo, para manter o seu apelo literário junto aos salões letrados

parisienses.

Assim, veio a público as "Histórias ou contos do tempo passado, com suas

moralidades: Contos da Mãe Gansa"(1697), dando forma editorial para as histórias. Portanto,

antes de ter sido voltado para as crianças, o conto de fada foi originalmente criado tendo-se

em mente os leitores adultos.

Segundo pesquisadoras na área de Educação, um dos fatores principais apontados para

ajudar a esclarecer a transferência dos contos de fadas do universo adulto para o infantil, é

que, até o século XVII, a criança não era percebida como um ser socialmente distinto do

adulto. Ela compartilhava com os adultos o mesmo tipo de roupa, os cômodos, o trabalho e

também os ambientes sociais. Assim, circulando entre adultos, as crianças entravam em

contato com os contos de fadas e invariavelmente se sentiam atraídas para o seu universo

imaginativo. Cabe destacar também o papel-chave que as governantas, vindas da camada

popular, desempenharam nesse processo ao contarem as narrativas folclóricas para os filhos

dos nobres que ficavam aos seus cuidados. O exemplo desta importância está na capa da

primeira edição de "Contos da Mãe Gansa", em que Perrault mostra uma senhora idosa

contando estórias para crianças ao pé da lareira.

19

1.2: “CINDERELA”: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA DOS FILMES

A primeira versão do conto “Cinderella”, conhecida mundialmente, é do francês

Charles Perrault, “Sapatinho de Cristal” publicada na obra “Contos de Mamãe Gansa”, de

1697.

Na história original, o sapatinho de vidro estava cheio de sangue dos dedos e joanetes

decepados das irmãs malvadas, e o rei eventualmente sentenciou a madrasta e suas filhas a

dançarem até a morte, usando botas de ferro ferventes (uma forma de tortura popular na Idade

Média – séc. V / séc. XV).

Existem cerca de 3000 versões do mito de Cinderela. Quase toda cultura ao redor do

mundo tem uma: ela é conhecida como “Ye Shen” na China, “Tattercoats” na Inglaterra,

“Mareouckla” para os eslavos e “Gata Borralheira” no Brasil.

Segundo historiadorers e pesquisadores da área educacional, Charles Perrault

imprimiu em sua obra, características nacionalistas6, já que o período histórico – século XVII

– apropriava-se dos contos populares para civilizar e doutrinar as crianças e adultos, conforme

os padrões e valores desejados pela corte de Luís XIV.

Os papéis desempenhados por homens e mulheres, no filme infantil, são claramente

determinados. Analisando o tempo, em que se passa a história, observamos que a sociedade e

cultura do período medieval (A Idade Média é limitada entre o ano de 476 d.C. até 1453 d.C.)

encontram-se retratados nas imagens: os castelos e suas arquiteturas majestosas, pequenas

vilas, reis, rainhas, príncipe, princesas, vassalos, duques, etc. juntamente com o meio de

transporte usado entre os séculos do período medieval, que eram os cavalos e as carruagens.

No aspecto educacional, sabemos que a educação das mulheres no século XVII,

quando Perrault reproduz sua personagem, (1697 ou século XVII), se restringiam às aulas de

arte, de costura, de canto, visando transformar as meninas em boas esposas e mães de família.

Para as meninas dos segmentos mais abastados ( da elite), os ensinamentos dos cuidados da

casa e dos filhos tinham o objetivo de transformá-las em mulheres que usassem os

6 O nacionalismo é uma tese, seria um sentimento de valorização marcado pela aproximação e identificação com uma nação, com seu ponto de vista ideológico. Segundo Ernst Gellner (1983), o nacionalismo é a ideologia fundamental da terceira fase da historia da humanidade, a fase industrial, quando os estados nação substituem o império. O nacionalismo apresenta uma definição política abrangente, por exemplo, defesa dos interesses da nação antes de quaisquer outros e sobretudo da sua preservação enquanto entidade, nos campos lingüístico, cultural, etc., contra processos de destruição identitária ou transformação.

20

conhecimentos provenientes das artes, tais como, tocar piano, para agradar e agradecer a

seus esposos.

A versão mais popular do conto, foi o filme/desenho “Cinderella” lançado nos

cinemas dos E.U.A. em 15 de fevereiro de 1950, foi a 12ª obra-prima animada dos Estúdios

Disney.

Os Estúdios Disney - The Walt Disney Company, também conhecida simplesmente

como Disney, considerado o maior conglomerado de mídia e entretenimento do planeta.

Fundada em 16 de outubro de 1923, pelos irmãos Walt Disney e Roy Disney, como um

estúdio de animação, tornou-se um dos maiores estúdios de Hollywood, o qual é proprietário

e licenciante de onze parques temáticos e várias redes de televisão, como a ABC e a ESPN,

além de recentemente ter adquirido a Marvel Entertainment. A sede corporativa da Disney e

suas instalações de produção primária estão localizadas no The Walt Disney Studios em

Burbank, Califórnia. A empresa é parte do Dow Jones Industrial Average desde 6 de maio de

1991.

Figura 5 - Cinderela Figura 6 – Atelier do filme

21

Figura 8 - Cinderela e sua fada Madrinha Figura 7 - Helene Stanley (ser-

viu de modelo –visual- para a

personagem do filme)7.

O filme Cinderella (1950), teve Helene Stanley (como modelo – visual ) para a

personagem e a voz da atriz Ilene Woods, as duas serviram de modelos para personificar o

texto e a imagem visual de Cinderela, personificações que perduram até hoje (mais de 60 anos

de sua criação por Walt Disney). A história é uma combinação de romance musical e fantasia

baseada na versão de Charles Perrault (1697)8.

7 Informações obtidas pelo site: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Cinderela> Acesso em: 16 mai. 2010. 8 O filme dirigido por Clyde tinha no elenco os atores: Helene Stanley - como Cinderella (Imagem visual- ou seja, usaram o seu biótipo para criar o de Cinderella; Ilene Woods – fez a voz de Cinderella; Eleanor Audley – Lady Tremaine; Luis Van Rooten – Grão Duque e Rei; Jimmy Mac Donald – Jaque/Gus/e Bruno; Betty Lou Gerson – narradora; Mike Douglas e William Phipps – príncipe cantando e falando, respectivamente; Lucille Bliss – Anastásia; Rhoda Williams – Drizella; Verna Felton – fada Madrinha; Larry Grey – Lacaio; June Foray – Lúcifer; Créditos: Animadores: Hal Ambro – Marc Davis – Philip Duncan – Hal King – Don Lusk – Fred Moore – Cliff Nordberg – Ken O’Brien – Harvey Toombs – Juiz Whitaker – Marvin Woodward – Nicholas George – Ollie Johnston – Frank Thomas – Hugh Fraser; Diretores: Clyde Geronimi – Wilfred Jackson – Hamilton Luske; Editor: Donald Halliday – David Make; Compositores: Al Hoffman – Jerry Livingston – Paul J. Smith; Trilha sonora: Oliver Wallace; Supervisão: Walt Disney; Produtor: Ken Anderson; Roteiristas: Homer Brightman – Winston Hibler – Erdman Penner – Harry Reeves – Joe Rinaldo – Ted Sears; Título Original: Cinderella; Duração: l hora e l4 minutos; Gênero: animação; ano de produção 1950. Disponível em: < http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-BR&langpair=en%7Cpt&u=http://www.answers.com/topic/cinderella-1950-film >. Tradutor: < http://www.answers.com/topic/cinderella-1950-film >. Acesso em:08 ago. 2009

22

1.3: “CINDERELA EM 1950”: UMA PERSONAGEM EM CARNE E OSSO

Inspirado na versão de Charles Perraut, o filme dos estúdios Disney conta a história da

menina que fica sobre os cuidados de sua cruel madrasta Lady Tremaine e de suas irmãs de

criação Drizella e Anastácia, que a fazem de criada da casa após a morte de seu pai.

Atormentada por suas feias e invejosas meias-irmãs, Cinderela é obrigada a trabalhar como

criada em sua própria casa, assim é chamada por elas de Cinderella (cinder- cinzas ou seja,

aquela que dorme na cinza. Em português Cinderella quer dizer Borralheira). Ainda assim, a

garota cresce cada vez mais bonita e nunca perde a esperança de que um dia as coisas possam

melhorar, que ela encontrará um amor de contos de fada e que este a tirará daquele sofrimento

imposto por sua madrasta e suas irmãs.

Esse dia chega quando o Rei convoca todas as jovens solteiras do reino para um baile

em homenagem ao Príncipe e onde ele escolherá sua noiva. Mas, sua madrasta proibe

Cinderela de ir e rasgam-lhe o vestido que seus amigos (camundongos Jaque, Gus , Bruno e

os pássaros) haviam refeito com o vestido da mãe de Cinderela que ela havia guardado de

recordação.

Então, sua fada Madrinha aparece e lhe concede a chance de ir ao baile, mas, ela só

poderá ficar até a meia-noite, quando então, o encanto se desfará e a carruagem voltará a ser

uma abóbora. Assim, como o cocheiro, seu lindo vestido, tudo voltará a ser o que era, o único

objeto que não retorna ao seu estado inicial é o seu sapato, dando-nos a certeza de que ele será

o instrumento que possibilitará que Cinderela tenha seus sonhos realizados.

Cinderela vai ao baile real, onde ela e o príncipe se apaixonam. Cinderela sai sem

dizer seu nome, deixando apenas um sapatinho de cristal na escadaria: O Rei decide que todas

as jovens do reino deveriam experimentá-lo, e aquela em que o sapatinho servisse, se casaria

com o príncipe. Mesmo sendo trancada pela sua madrasta, Cinderela consegue, com ajuda de

seus amigos, calçar o sapatinho e viver feliz para sempre.

23

1.4: “CINDERELA II”: OS SONHOS SE REALIZAM

Figura 9 – Cinderela 20029 Figura 10 – Cinderela e o Príncipe

Figura 11 Capa DVD – Cinderela II10

9 Figuras 9, 10, 11 e 12. Fonte: disponível em < http://www.disney.com.br/DVD/cinderela3/ >. Acesso em 20 de maio 2010. 10 Disponível em: <http://www.disney.com.br/DVD/cinderela3/> <http://www.adorocinema.com/filmes/cinderela-3> Acesso em 20 de mai./2010.

24

Figura 12 – Cinderela na Fonte

No segundo filme dos Estúdios Disney: “Os sonhos se realizam”, a equipe procurou

respeitar a história clássica, assumiu compromisso e fidelidade à integridade do original, os

cineastas decidiram que dariam continuidade à história, a partir do retorno do jovem casal de

sua lua-de-mel11.

11 No início dessa aventura os ratinhos contam as inúmeras tentativas de Cinderela para se adequar a rotina do Palácio. Logo que voltam da lua-de-mel, o Príncipe saiu em viagem com seu pai o Rei e Cinderela se vê aos cuidados de Prudence, (conselheira particular) que tem a missão de transformar Cinderela em uma Princesa de fato. - Ficha técnica: Título Original: Cinderella 2 Special Edition - Dreams Come True; Título em Português: Cinderela 2; Edição Especial- Os sonhos se realizam; Lançamento - ST: Fevereiro de 2006; País de Origem: E.U.A; Ano de Produção: 2002 Estúdio: Walt Disney Pictures; Tempo de Duração: 73 min. aprox.; Gênero: Animado; Direção: John Kafka; Roteiristas: Jill E. Blotevogel – Tom Rogers – Jule Selbo; DUBLADORES: Cinderella – Jenifer Hale; Jaq/ Jaque/ Padeiro / Sir Hugh: Rob Paulsen vive os três personagens: Jaque, o ratinho amigo de Cinderela; o padeiro por quem Anastásia se apaixona; e Sir Hugh, a encarnação humana de Jaque; Gus /Tatá – Corey Burton dá vida a Gus/Tatá, o ratinho gorducho que é o companheiro e melhor amigo de Jaque; Russy Taylor é uma das integrantes mais ocupadas do elenco de CINDERELA II - dublando cinco personagens: a bondosa Fada Madrinha e a adorada amiga de Jaque - a ratinha Mary Mouse, e também Beatrice, Daphne e Drizela; Anastásia – Tress MacNeille; Prudence – Holland Taylor: A pomposa perita do cerimonial palaciano, Prudence, ganha vida na voz doce, com leves toques de arrogância, da atriz ; Madrasta – Susanne Blakeslee; Pompom e Lúcifer – Frank Welker interpreta Pompom, a mimada gatinha real, bem como o lascivo gato do palácio, Lúcifer, cujo passatempo favorito é atormentar os ratinhos amigos de Cinderela; Príncipe – Christopher Daniel Barnes dá vida ao belo e garboso Príncipe Encantado; Rei - André Stojka. Disponível em: < http://www.disney.com.br/DVD/cinderela3/ >. < http://www.adorocinema.com/filmes/cinderela-3 >. Acesso em: 20 mai./2010.

25

1.5: “CINDERELA III” : UMA VOLTA NO TEMPO

Figura 13 - Capa do lançamento do DVD de Cinderela III

Figura 14 – Imagens do filme – capa DVD12

12 Figuras l3 e l4 Disponível em: <http://www.disney.com.br/DVD/cinderela3/> Acesso em: 18 jun. 2010.

26

Figura 15- comemoração de um ano de casamento

Figura 16 - imagens do III filme na capa do DVD

Figura 17 - Cinderela e o Príncipe após o casamento13

13 Figuras 15, 16 e 17. Disponível em: <http://www.disney.com.br/DVD/cinderela3/> Acesso em: 18 jun. 2010.

27

No terceiro filme dos Estúdios Disney :”A twist in time” ou “Uma Volta no Tempo14”,

tudo se passa na data em que o casal está completando um ano de casamento. Cinderela

novamente se vê nas garras de sua malvada madrasta e tem que vencê-la para que o amor que

o príncipe sente por ela não seja destruído pelas maldades de Lady Tremaine.

Neste capítulo, procuramos abordar a trajetória literária de Perrault de modo a mostrar

que sua produção, particularmente, a Cinderela, surgiu entre outras personagens femininas

criadas pelo autor. A incorporação da personagem pela cinematografia da Disney possibilitou

a comunicação dela com as meninas, ou seja, ao sair dos livros para as telas de cinema, a

relação das meninas com a Cinderela ganhou vigor. Desse momento em diante, nos livros e

nas telas do cinema e dos vídeos nas escolas e nos lares, Cinderela aproxima-se das meninas e

com elas se comunica, incutindo os sonhos de príncipe, amor e felicidade conjugal,

produzindo e reproduzindo um tipo de “cultura da feminilidade”, sobre aqueles pilares.

14 A fada Madrinha decidiu lhes dar uma pequena festa, mas ela quer fazê-lo discretamente, então ela vai até uma pequena parte do bosque e, usando a sua varinha mágica, cria uma bela festa. Mas, sem seu conhecimento, uma das meias-irmãs está passeando pela floresta e escuta a Fada Madrinha, Cinderela e o Príncipe falando sobre a noite do baile e como tudo foi resolvido com mágica e o sapatinho de cristal. Ela conta a sua mãe e a malvada madrasta arruma um jeito de pegar a varinha que a usa para voltar o tempo e fazer com que o sapatinho de cristal sirva na sua filha Anastácia e não em Cinderela. Assim, Cinderela tem que apressar-se para quebrar o encanto antes que seja tarde demais. Título original: Cinderella III: A Twist in Time; lançamento: EUA-2007; direção: Frank Nissen; duração: 70 minutos; gênero:animação; estúdios: Disney Toon Studios; distribuidora: Buena Vista Pictures; Roteiristas: Margaret Heidenry, Daniel Berendsen, Eddie Guzelian, Robert Reece, Colleen Millea Ventimiglia; produção: Margot Pipkin; música: Joel McNeely; edição: Lisa Lender e Russell Eaton. Elenco de dubladores: Cinderella – Jenifer Hale e Lola Sanchez; Príncipe encantado – Christopher Daniel Barnes; Drizella e Fada Madrinha – Russy Taylor; Madrasta – Susan Blakeslee; Anastásia – Tress MacNeille; Lúcifer – Frank Welker; Narradora – Tara Platt; Tami Tappan Damiano e Lesli Margherita. Disponível em: <http://www.disney.com.br/DVD/cinderela3/> http://www.adorocinema.com/filmes/cinderela-3/> Acesso em: 25 jun. 2010.

28

CAPÍTULO 2: AMOR, FELICIDADE E CASAMENTO PARA ME NINAS: UMA

ANÁLISE DE GÊNERO

Feitas as apresentações dos filmes, objetos de nosso estudo, inclusive no aspecto das

visualidades, perguntamos: quais os padrões vigentes de beleza, amor, casamento e felicidade

presentes nas narrativas? Quais diferenças podem ser identificadas nos filmes, considerando-

se que se passaram mais de 60 anos da produção do primeiro filme de Cinderela (1950)? De

que modo os estereótipos da submissão e da dependência da mulher em relação ao homem

aparecem retratadas nas imagens e nos textos?

É importante destacar que temos na personagem do filme produzido em 1950, um

estereótipo feminino de mulher trabalhadora, doce, recatada, muito bela e acima de tudo

passiva, conforme palavras do próprio Perrault, (1697):”... sofria com paciência e não se

atrevia a queixar-se ao pai, que lhe teria ralhado, pois a mulher governava-o inteiramente”.

Considerando que duas outras versões foram produzidas depois da primeira, em 1950,

respectivamente em 2002 e 2007, considerando que os gêneros são construídos histórica e

culturalmente, portanto, é de supor que muitas mudanças se processaram nos

comportamentos, nos valores detidos pelos segmentos femininos e que assistir aos filmes da

Cinderela significa reconhecer as diferenças instaladas no tempo, nas concepções de amor,

família e casamento detidas pelas meninas e mulheres.

Embora muitas mudanças tenham ocorrido, os filmes da Cinderela continuam a

veicular noções sobre amor e família os quais são compartilhados sociamente, como conceitos

que definem o feminino e a feminilidade. Encontrar um príncipe ( um marido), constituir uma

família “feliz”ainda são valores sociais e culturais compartilhados pelas meninas e em suas

construções os filmes infantis dão suas contribuições.

Nesse sentido que se torna importante estarmos atentos às formas através das quais as

representações de gênero e como os papéis sociais atribuídos ao feminino aparecem nestes

filmes. Para tanto, faz-se necessário abordar o percurso do conceito de gênero na história e na

historiografia das mulheres e nos estudos feitos com base em suas formulações teóricas e

metodológicas.

29

2.1: GÊNERO PARA COMPREENDER OS FEMININOS E AS FEMINILIDADES DA

CINDERELA

Para um melhor entendimento da proposta de análise para os filmes de “Cinderela”,

que foi a verificação de como se dá, nas belas imagens, a construção de representação para o

feminino e as feminilidades pelos produtores dos Estúdios da Disney, faz se necessário

definirmos alguns conceitos que são chaves para a abordagem proposta.

Buscamos nos autores consultados, Judith Butler (1999), Strey (1998), Joan Scott

(1995), Dagmar Meyer (1998), entre outros, o conceito de gênero e alguns de seus

desdobramentos para pensar o feminino e as feminilidades.

Judith Butler (1999), propõe considerar o gênero como performativo, pelo fato de ele

não ser uma afirmação ou uma negação, mas sim uma construção que se dá através da

repetição de atos que tenham alguma correspondência com as normas sociais e culturais.

O gênero é um modo de referir-se à organização social das relações entre os sexos,

explica a autora. Numa rejeição ou determinismo biológico que busca as explicações para a

sujeição da mulher em sua capacidade procriativa ou na força física masculina, o gênero

enfatiza as qualidades sociais das distinções baseadas no sexo. O gênero seria uma categoria

relacional que define homens e mulheres, uns em relação aos outros.

De acordo com Scott (1996), a palavra gênero é utilizada para designar as relações

sociais entre os sexos, rejeitando explicações biológicas que procuram justificar diversas

formas de subordinação das mulheres. Segundo a autora, o gênero torna-se uma maneira de

indicar a criação social de idéias sobre os papéis adequados entre os homens e as mulheres.

Strey (1998), afirma que devemos referir-nos a gênero quando falamos de aspectos

sociais, psicológicos e culturais da feminilidade e masculinidade, e não os componentes

biológicos anatômicos e o ato sexual que caracteriza o sexo. Assim, a estrutura social vai

prescrever uma série de funções para o homem e para a mulher, como próprios ou naturais de

seus respectivos gêneros.

Meyer ( 2003), formula quatro definições para gênero:

• Gênero aponta para a noção de que, ao longo da vida, através das mais diversas

instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres, num

30

processo que não é linear, progressivo ou harmônico e que nunca está finalizado ou

completo;

• O conceito também acentua que, como nascemos e vivemos em tempos, lugares e

circunstâncias específicos, existem muitas e conflitantes formas de definir e viver a

feminilidade e a masculinidade;

• Gênero introduziu mais uma mudança que continua sendo, ainda hoje, alvo de

polêmicas importantes no campo feminista. Trata-se do fato de que o conceito sinaliza

não apenas para as mulheres e nem mesmo toma exclusivamente suas condições de

vida como objeto de análise. Em vez disso, ele implícita a idéia de que as análises e as

intervenções empreendidas devem considerar, ou tomar como referência, as relações

de poder – entre mulheres e homens e as muitas formas sociais e culturais que os

constituem como “sujeitos de gênero”;

• Por último, o conceito de gênero propõe, um afastamento de análises que repousam

sobre papéis/funções de mulher e de homem, para aproximar-nos de uma abordagem

mais ampla que considera que as instituições sociais, os símbolos, as doutrinas e as

políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas por representações e

pressupostos de feminino e de masculino ao mesmo tempo em que estão centralmente

implicadas com sua produção, manutenção ou ressignificação.

O ponto chave, destacado pelos autores, principalmente por Meyer é que a construção

de gênero ocorre socialmente. Assim, faz-se necessário compreender a participação dos filmes

de animação infantil na construção da identidade dos meninos e meninas, particularmente,

das últimas, visto que se trata de filme tido como apropriado para os segmentos femininos e

infantis.

Vale lembrar que, com base nessas definições, a identidade não é algo fixo e linear

mas se constrói ao longo da vida dos sujeitos.

As definições sociais não se transformam a cada geração, isso comprova o seu efeito

de preservar, aumentar e legitimar as vantagens acumuladas pelos homens e podemos

constatar essa afirmação ao vermos os discursos e as imagens que continuam, após décadas,

dando definições sociais à mulher (nos três filmes produzidos pelos estúdios Disney),

segundo o discurso e os ideais masculinos.

31

As formulações de Foucault (1978), são importantes para entendermos as relações

possíveis entre poder e artes visuais. Para ele, o poder não está presente em um único ponto,

uma unidade, a origem de toda dominação como o estado, por exemplo. O poder está em toda

parte, provêem de todos os lugares. O poder para ele está se produzindo nessas imagens que

quase sempre são vistas de forma inocente. E nossa tarefa é entender como esse poder opera,

como ele se dissemina.

Alguns discursos tais como que a mulher deve se casar, achar um homem e constituir

família, que o modelo e o ideal de feminilidade pressupõem o casamento, a geração de filhos

nos termos dos padrões heterossexuais são tão perpetuados pela sociedade que, mesmo hoje,

em pleno século XXI, encontramos adolescentes que sonham em encontrar um príncipe

(obrigatoriamente rico) que lhes dará uma vida de “Princesa Cinderela”, achando que como

na tela, serão “felizes para sempre”.

Rael (2003), ao abordar a construção de gênero em três desenhos da Disney, são estes:

“A bela e a Fera”, “A Pequena Sereia” e Mulan”. Rael afirma que: [...] um desenho animado

pode, ser vistos como produtores e veiculadores de representações que sugerem determinados

comportamentos e identidades sociais, e que, de algum modo, acabam por regular nossas

vidas (RAEL, 2003, ).

Em suas análises, ela destaca que os produtores, nos três filmes, situam os gêneros, ou

seja, denotam a forma como a mulher deve agir para que seja aceita pelos homens, afirma o

local de atuação da mulher e qual é a sua relação com o homem, sendo a mulher colocada

como submissa, recatada, calada e sempre pronta a servir ao homem.

Segundo os filmes infantis, no nosso caso Cinderela, os produtores colocam como

lugar da mulher o ambiente doméstico e que as que não conseguem dominar este ambiente,

são descartadas pelos melhores partidos para o casamento (suas irmãs de criação são

descartadas, também, por não dominarem este ambiente). Ao contrário, a figura do homem é

sempre colocada como um indivíduo viril, corajoso, bruto e sem modos, como no filme “A

Bela e a Fera”, sendo que a Fera é dono de mundo, mas incapaz de gerir o ambiente

doméstico, Rael diz que, de certa forma, a mulher é posta como a mantenedora, a salvadora

do homem, inclusive a sua inspiração para voltarem de uma guerra, como acontece no filme

“Mulan”.

Os filmes infantis excluem de um todas as características do outro, demonstrando o

fundo sócio-político carregado de conceitos patriarcais (explicados abaixo) da sociedade

contemporânea, herdado de nosso passado, onde cabe ao homem as decisões e todo o mundo

32

a explorar e a mulher, sempre obediente e comportada, caberá o ambiente doméstico. No

filme, é o príncipe que escolhe, que vai atrás da mulher desejada.

Meyer e Soares (2004), nos dizem que os filmes infantis estão ensinando nossas

crianças a serem meninos e meninas. Segundo elas o consumo dos filmes infantis aumentou

consideravelmente devido a autonomia das crianças ocasionadas pelos DVDs sem depender

dos adultos, para ligarem ou desligarem, afinal, o controle remoto faz tudo que é preciso para

que os pequenos se “divirtam”.

Os personagens da Disney são conhecidos mundialmente e também a grande

quantidade de produtos comercializados. Ocorre que, além do consumo material (produtos

adquiridos pelos pais), existe o consumo dos valores que são reproduzidos nas fitas e

assimilados pelas nossas crianças, em especial as meninas. Estas histórias ensinam, nas

entrelinhas, como as crianças devem ser e como é a sociedade em que vivem. Sonhar com o

casamento, com um amor que acabe em “the end” e com a promessa de felicidade conjugal

são representações que circulam pela sociedade e cultura do século XXI.

As autoras atentam para o fato de que os filmes infantis, entre eles Cinderela,

possuem, entre si, rupturas e semelhanças. Em todos é visível a ausência da mãe. O pai é

apresentado quase sempre com uma figura forte e autoritária, já entre as mulheres, algumas

são representadas como diferentes, corajosas, belas, mas, há sempre a reafirmação do lugar

feminino do silêncio (como virtude), rebeldes, (em raros casos) e apresentam a masculinidade

como algo primitivo como no filme “A Bela e a Fera”, aqui há o deslocamento da beleza

exterior para qualidades internas do homem, - se não é belo por fora, o homem o será por

dentro -, já a mulher deverá ser bela por dentro e por fora.

Nesses filmes, outro detalhe importante, é que eles apresentam e representam a

sexualidade dentro dos contornos da “normalidade, a relação heterossexual é colocada como

única possibilidade de uma união amorosa. Meyer coloca que: [...] as identidades sexuais e de

gênero dos sujeitos estão inevitavelmente relacionadas: as identidades sexuais dos sujeitos

que os constituem de acordo com o modo como vivem sua sexualidade, [...]. (MEYER, 2004).

A forma de pensar de Meyer é a mesma de Louro, (1997) a qual menciona que ao

mesmo tempo, os sujeitos constroem suas identidades de gênero à medida que são

identificados social e historicamente como masculinos ou femininos.

Ao analisar os filmes da Cinderela, Rael (2003), destaca ainda que o elemento gráfico

criado para o feminino é carregado de preconceitos quanto ao gênero e à sexualidade, pois

foram elaborados por homens, com suporte no modelo feminino por eles idealizado. Nessas

representações, a personagem é sempre uma figura vistosa, bonita, jovial, com características

33

da adolescência, mas, ao retratar a vilã feminina, estes a apresentam com a imagem de uma

mulher no ápice da sexualidade, e ainda bela, como em “Branca de Neve” e em “A pequena

Sereia” e em um papel mais secundário, apresentam a mulher na idade pós-menopausa como,

por exemplo, as fadas, as mães, as serviçais, as avós, as madrinhas, como em Cinderela e

estas geralmente, são as mais gordinhas.

Percebe-se nitidamente nas representações elaboradas para Cinderela, como os

atributos da feminilidade (beleza, graciosidade, juventude) são elementos presentes nas

relações amorosas e conjugais entre os homens e as mulheres. Nessas representações, esses

atributos são moedas correntes para o encontro de um marido pela mulher, para a procriação,

para o estabelecimento de uma.relação de poder e dominação entre o casal.

Para Claudia Rael (2003), a forma pela qual os desenhos apresentam a dualidade de

gênero, que exclui de um, completamente, todas as características do outro, e até mais,

apontando essas necessidades como necessariamente antagônicas, demonstra uma mensagem

de fundo sócio-político muito carregado dos conceitos patriarcais15 da sociedade

contemporânea, herdada desde tempos imemoráveis, cabendo ao homem as decisões e todo o

mundo a explorar e no viés a mulher, sempre obediente e comportada. Ser obediente e ser

comportada são noções que formatam um tipo e estilo feminino apreciado pelos homens, de

modo a não colocar em xeque o poder e a dominação masculina.

A autora Rael (2003) vê que, ao tentar reproduzir detalhes inerentes à realidade em

seus desenhos, a Disney, bem como as demais indústrias cinematográficas que trabalham com

produtos voltados para o público infantil, têm fundamental importância na formação de

nossos cidadãos, uma vez que passam, nas entrelinhas a estes, um retrato da sociedade e

15 Patriarcado é uma palavra derivada do grego pater, e se refere a um território ou jurisdição governado por um patriarca. O uso do termo no sentido de orientação masculina da organização social aparece pela primeira vez entre os hebreus no século IV para qualificar o líder de uma sociedade judaica; o termo seria originário do grego helenístico para denominar um líder de comunidade.No sentido original, este é uma autoridade masculina religiosa que tem poder sobre todos que lhe estão subordinados. O termo também pode ser estendido para os homens adultos que têm poder sobre os familiares e empregados, concedido tanto por autoridades religiosas que compactuam dessa dominação, quanto por autoridades políticas que estimulam esse sistema de organização social.Trata-se, portanto, de uma ideologia na qual o homem é a maior autoridade, devendo as pessoas que não se identificam fisicamente com ele (isto é, não sejam também adultos do sexo masculino) serem subordinadas, prestando-lhe obediência.Isso faz com que as relações entre as pessoas (seja em uma família ou uma comunidade) sejam desiguais e hierarquizadas. Sendo o patriarca quem decide e estimula essas desigualdades, de forma a manter o poder, ele se torna a mais alta autoridade do lugar, a pessoa mais importante, impondo suas concepções que justificam a manutenção tanto de seu status superior quanto do status inferior de seus subordinados. Em algumas épocas e locais onde havia escravidão, o patriarca era dono dos escravos. Essa relação de posse também ocorria com mulheres e crianças. Ao patriarca cabia ordenar a vida de seus subordinados, e em muitos casos tinha o poder de matar quem lhe desobedecesse ou tentasse escapar de sua propriedade. Disponível em :<http://www.Wikipédia-enciclopédia virtual >. Acesso em : 25 jul. 2010.

34

fazendo com que baseados nisso, estes pequenos espectadores formem os seus valores e com

estes desenvolvam as suas comparações.

Mas, sabemos que todo este mundo de fantasia criado pela Disney, é fruto de nossa

própria sociedade, e acabam sendo ferramenta utilizada para perpetuar esta mesma sociedade,

pois as crianças no período em que estão moldando a sua personalidade, formando uma visão

da sociedade, de mundo, se vêem rodeadas por estes discursos (filmes) e acabam apreendendo

para si apenas a continuidade dos conceitos e preceitos vigentes.

35

CAPÍTULO 3 : VISÕES DE FEMININO E DE FEMINILIDADE E O “COMPLEXO

DE CINDERELA”

Giroux (1995), analisou a Disneylândia através de seus parques e de seus filmes e

afirmou que a Disney é um poderoso império econômico e político, arrecadando milhões com

seus filmes, personagens e com seus parques de diversão. Ainda de acordo com o autor, a

Disney é mais que um gigante capitalista, é uma instituição cultural que luta ferozmente para

proteger seu status mítico como provedora de inocência e virtude moral americana.

A manipulação do público, segundo Giroux, perseguida por essas indústrias, passa

para o meio televisivo, mediante efeitos que se põem em prática nos níveis latentes das

mensagens. Através do material que observa, no caso de filmes, o observador é (no caso

específico – crianças e adolescentes) continuamente colocado, sem o saber, na situação de

absorver ordens, indicações, proibições.

Assim, cada vez mais, a máquina da Indústria Cultural, determina o consumo de seus

produtos e exclui tudo o que é novo, tudo o que ela considera como risco. A força do domínio

exercido por essas indústrias sobre os indivíduos, aquilo que ela oferece continuamente como

novo não é mais do que representação, sob formas diferentes, de algo que é sempre igual.

Com seus produtos, eles praticam o reforço de normas sociais ditadas por eles (produtores de

filmes infantis), repetidas até a exaustão e aceitas sem nenhuma contestação.

Frequentemente, os filmes infantis produzidos constroem as diferenças de gênero e

diferenças sexuais de forma “convencional”, determinando a construção hierárquica do

feminino e do masculino como definitivas e imutáveis.

A força desses filmes vem da maneira singular como os vemos, como se tudo fosse

normal, o certo, o correto, mas também é assegurado pela mídia. Tudo vem apresentado com

tecnologia, magníficos efeitos de som e imagens, e, assim, as suas simpáticas e amáveis

estórias são apresentadas em lindas e atraentes embalagens que tanto atraem nossos pequenos

e por que não dizer, até os adultos, com a diferença de que já temos, ou deveríamos, ter a

nossa identidade de gênero formada isenta de pré-conceitos.

A cultura também é produzida pela visão, a imagem e tudo o mais relacionada a visão,

constitui, segundo Ruth Ramos Sabat (2003), também o texto escrito sobre o social, sobre

sujeitos históricos.

36

SABAT(2003) nos diz que:

É preciso dizer que a relação texto imagem está longe de ser algo tranquilo de ambos os lados; assim como o texto não consegue decodificar plenamente a imagem, também esta reclama mais instrumentos para traduzir o texto escrito. Acredito que esse aspecto da relação texto/imagem poderá ser melhor compreendido se pensarmos em termos de tradução de um idioma para o outro, esta não será completa e perfeita. Poderemos, então, pensar texto e imagem como idiomas diferentes.

Sabat (2003), diz que isso não significa de modo algum, assumir a centralidade da

visão, mas sim problematizá-la considerando sua relação com outros sentidos e com outras

formas de representação. As imagens são mais estratégias ou recursos para enriquecer o texto

escrito. Aqui temos depoimentos de diretores da filmagem de Cinderela II que confirmam esta

afirmação: os mesmos dizem que procuraram ficar o mais “fiel possível as imagens e cores da

1ª versão”, pois as imagens “falavam” dos sentimentos dos personagens, mas, o que é

esperado, principalmente da mulher, não mudou quase nada. Podemos perceber que

continuam ditando as regras e os comportamentos seculares de uma maneira tão sutil que

quase não percebemos.

Mirzoeff (1999) afirma que o discurso visual oferece uma proximidade dos sentidos

que não pode ser rivalizada pela mídia impressa: ele é o próprio elemento que torna a

visualidade de todos os tipos diferentes dos textos.

Essa sensação imediata que irrompe no momento em que observamos um evento

suscita sentimentos como a raiva, admiração, prazer, horror, ou seja, podemos identificar o

cinema como um dos mecanismos mais importantes na produção de uma cultura visual que

funciona, basicamente, por meio de um processo de interação com o público espectador,

suscitando os mais diferentes tipos de reação.

Como vimos anteriormente, aqui comprovamos a força do discurso sutil que reside no

filme “Cinderela” e na naturalidade com que são reiteradas as normas e atitudes através das

imagens e das narrativas.

Cinderela é mostrada, nos filmes, como uma jovem que só tem qualidades, pouca

coisa acontece com ela, mas, tudo acontece ao redor dela.

Charles Perrault, (Enciclopédia Virtual Wikipédia) na versão original, imprimiu na sua

literatura, características nacionalistas, pois, apropriava-se dos contos populares para civilizar

e doutrinar as crianças e adultos conforme os padrões/valores desejados pela corte de Luis

37

XV. Pode-se ver claramente determinados, no conto, os papéis desempenhados por homens e

mulheres: a visão que se tem do homem, no conto, é que são racionais, inteligentes e ativos;

das mulheres tem se a visão de emotivas, passivas, que deveriam ser belas, dóceis, polidas,

trabalhadoras e saber controlar os seus instintos sexuais, tudo isso em 1697.

Na obra adaptada pela Disney em 1950, podemos perceber, já que o filme foi dirigido

por homens e suas visões de mulher ideal, que após 60 anos da filmagem de Cinderella I, a

visão quanto ao papel que deve ter uma mulher na sociedade continua sendo a mesma, pouca

coisa mudou neste âmbito da visão masculina.

Cinderela é mostrada no filme como uma jovem que só tem qualidades, ela é jovem,

bela, doce, meiga, educada, não se exalta nas situações mais humilhantes, demonstrando

claramente que a personagem feminina foi construída de acordo com papéis e gêneros

definidos e subordinados ao masculino. É como se o masculino estivesse nos dizendo em cada

cena, como devemos ser e nos comportar. Isso é confirmado logo nas primeiras cenas,

quando ela acorda e começa a cantar uma canção que diz para deixar o coração voar, só assim

o seu sonho de felicidade haveria de se realizar:

“O Sonho É Um Desejo D'alma" “O sonho é um desejo d'alma N'alma adormecer Em sonhos a vida é calma É só desejar para ter Tem fé no teu sonho e um dia Teu lindo dia há de chegar Que importa o mal que te atormenta Se o sonho que te contenta Pode se realizar”.....

Existe aí a conexão entre o feminino e afetividade. Quando algo mais terrível ainda

acontece, Cinderela canta num verso: “Que importa o mal que te atormenta, se o sonho que te

contenta pode se realizar”, isso nos dá a idéia de conformismo que é esperado do feminino, ou

seja, que a mulher deve se conformar com o mal que lhe atormenta e sonhar, quem sabe

assim, sua passividade poderá levá-la a realizar seus sonhos, a revolta apenas a deixará

continuar no mal.

O estereótipo feminino de mulher idealizado pelo mundo masculino, se faz presente na

cena em que o serviçal leva o sapato para experimentar em todas as moças, em nenhum cabe,

quando chega em sua casa e prova em suas irmãs, os pés das mesmas são enormes, quando

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prova no seu, o sapatinho serve, podemos claramente fazer uma relação de proporção nº 39

para nº 35. Pobre Gisele Bündchem com seu pé tamanho 39, 40 ?, não seria nada, até mesmo

nós, onde estaríamos com nossos pés tamanho 38.

Podemos deduzir do parágrafo anterior que suas duas meia-irmãs não são descritas

como mulheres ideais, belas, etc..,na visão masculina as mesmas são possuidoras de pouca

beleza, (inclusive nos pés grandes que as mesmas possuem), sabemos que a maioria dos

homens tem fetiche com pés delicados e pequenos. Acreditamos que foi quase que proposital

mostrar o belo como “bom” e o feio, fora dos padrões por eles estabelecido, como os

“vilões”, mas sabemos que nem sempre o que é “bom” é belo e vice-versa.

Outro ponto que reafirma nossos questionamentos, relaciona-se com a figura materna

e paterna, no filme apenas é citada a mãe de Cinderela como uma mulher bela e não se fala

mais nela, assim como nos outros clássicos da Disney, nunca se tem a figura materna, nem se

fala, com exceção de A Bela Adormecida: aqui Aurora tem o convívio com o pai e a mãe. No

filme Cinderela, seu pai falece no início e só após é que sua madrasta a escraviza, talvez a

morte do pai de Cinderela seja com a intenção de não gerar dúvidas sobre o papel do homem

no contexto social. Afinal, caso contrário, como o deixariam vivo e aceitar as atrocidades com

sua filha. Assim, para não abalar a visão do masculino, foi melhor que o mesmo morresse.

Pode-se observar também, durante todo o filme a diferenciação das cores. Rael nos diz

que: As cores claras são usadas para representar os “bons” e as escuras para representar os

“vilões”. O espaço por onde transitam estes personagens também é representado e

diferenciado pelas cores. (RAEL, 2003), cores escuras para o “mal” aqui representado pela

madrasta e cores claras para o “bem”, representado por Cinderela.

A casa onde convive com a madrasta e as meia-irmãs, tem cores escuras e sombrias, é

como se fosse a prisão dela, só aparece cores mais claras, quando ela está com seus

amiguinhos: os bichos, e quando está no Castelo, mesmo sendo noite, este é claro e brilhante.

Nas roupas se observa o mesmo diferencial, sua madrasta está sempre de roupas escuras, tons

como: roxo, preto, cinza e os ambientes onde ela se encontra, sempre estão sombrios, escuros.

O Castelo do príncipe é mostrado sempre com cores claras e iluminado.

Temos na análise também a relação Fada Madrinha e sonhos realizados, o filme

mostra claramente que se você for tudo aquilo que o mundo masculino aprova, você terá seus

sonhos realizado, se casará e será feliz para sempre. Ao estarmos assistindo (em uma das

vezes) o filme, tivemos a companhia de uma neta de 5 anos, a mesma adora os filmes em

questão, e comentamos sobre a relação bondade e realização dos sonhos e ela prontamente

nos disse que ela sempre foi boazinha e que estava esperando a Fada Madrinha vir e ela então

39

pediria que a Fada a fizesse ficar magrinha (ela é fofinha) pra poder casar também com um

príncipe. Fiquei chocada com a colocação dela, mas tivemos a confirmação.

Outra cena marcante para este estudo, e é certamente a que mais reitera a visão

masculina do mundo feminino, é a que ocorre na noite do baile Real, quando as moças são

apresentadas ao Príncipe (onde o príncipe conhece Cinderela), e o rei espera que seu filho

encontre uma noiva, um detalhe aqui é de que o príncipe também não possui mãe e não há

qualquer tipo de citação ou quadros da rainha.

A cena em que o Rei assiste a apresentação de todas, ao notar que o Príncipe não se

interessou por nenhuma das moças, ele diz ao seu Ministro que não era possível aquilo, dentre

todas aquelas moças deveria haver uma que seria boa mãe, depois corrige dizendo:” deveria

haver uma que seria boa esposa”.

No parágrafo anterior é visível o instinto masculino de procriação/continuísmo da

espécie, o Rei estava querendo se perpetuar através dos netos.

No filme Cinderela II produzido em 2002, “Os sonhos se realizam”, até que tentaram

dar umas inovações na personagem, mas é a visão masculina que continua afirmando o lugar

da mulher, pois, Cinderela vive as voltas em preparar jantares onde serão tratados, pelo

Príncipe, negócios sobre seu reino. Novamente o lugar da mulher são as tarefas domésticas,

percebe-se claramente na citação de Rael (2003), que as tarefas domésticas, o ser boa mãe,

boa esposa ainda constroem o universo feminino juntamente com todos os outros atributos

esperado da mulher ideal.

Na segunda versão de Cinderela: Os sonhos se Realizam, a equipe de produção diz

que procuraram respeitar a história deste clássico Disney, os produtores dizem que o primeiro

filme foi feito numa época completamente diferente dos tempos atuais, então decidiram

atualizar algumas características de Cinderela, dizendo estarem aproximando-a um pouco

mais do público atual.

Cinderela passou por mudanças sutis em sua atitude e até seu linguajar foi

modernizado e incorporado algumas expressões atuais.

Mas, continua sendo ditado e regido pelo mundo masculino o “ser” feminina nos

padrões estabelecidos por eles.

O mesmo acontece com a terceira filmagem, a mulher continua com atributos e

comportamentos ditados pelo masculino, deve ser perfeita para que mereça o coração de um

príncipe.

40

Nos desenhos animados são apresentadas determinadas formas de feminino e são esses

comportamentos, gestos e atitudes que nossas crianças e adolescentes, especialmente as

meninas, incorporam no seu modo de viver o gênero, ou seja, de ser menino ou menina.

Essa instância cultural é uma das mais efetivas na produção de identidade de gênero e

que acabam nos ditando o jeito de ser mulher, de ser homem, como nos diz Rael (2003): Os

saberes transmitidos por diversas instâncias culturais têm uma função produtiva na formação

da identidade das crianças. “Assistimos aos desenhos sem perceber que eles estão

constituindo e ensinando o que é ser mulher, ser homem, ser criança, ser branco ou negro”.

(RAEL, 2003).

Mais adiante Rael diz

[...]. Ligando o feminino aos atributos mencionados, as representações dos desenhos procuram mostrar que o ideal de feminilidade está estreitamente vinculados ao coração. Justifica-se, assim, o discurso que procura enfatizar que as mulheres são dóceis, mais emotivas, mais fracas e dependentes, devido as características físicas que apresentam. (RAEL, 2003).

Em todos os filmes observam-se alguns conceitos recorrentes: os conceitos de beleza,

sensibilidade, docilidade, paciência e ternura são atribuídos à Cinderela e compõem para ela,

a imagem de uma “mulher ideal”. Assim, os filmes mostram que o ideal de feminilidade está

vinculado ao coração da mulher, enquanto que o príncipe é mostrado como o desejado, por

todas as moças do reino, o poderoso e que só com as qualidades possuídas por Cinderela, será

possível conquistar seu coração.

Deste modo, mostramos a contribuição dos filmes infantis na produção das identidades

de gênero, isto porque, por meio da personagem Cinderela, as crianças – meninas e meninos -

assimilam os modos de ser mulher e de ser homem. Em relação as meninas , elas são

capturadas por lindos discursos que determinam seu jeito de ser mulher, de ser feminina

seguindo padrões masculino que são a docilidade e a passividade, sendo seu ambiente, o lar.

Deste modo, feminino e masculino estão ligados num processo social distinto, pois,

ideologias diferentes separam ambos. O que se espera de uma mulher, socialmente falando,

não é o mesmo que se espera de um homem, estes, segundo a visão masculina, devem ser

rudes, ter o poder em suas mãos e o mundo a conquistar.

Luciana Gruppell Laponte (2002), baseada nas teorizações de Michel Foucault sobre o

poder e discurso, analisa como a sexualidade feminina é colocada em discurso através das

imagens a partir de um olhar masculino, especialmente às representações fixas como: pintura,

escultura, gravura, etc. (como pedagogias culturais, tal como o cinema).

41

Laponte (2002) nos diz que, nas obras, o corpo feminino é colocado como objeto de

contemplação e que essas imagens são pedagógicas e marcadas pelo gênero. Aprendemos

sobre gênero e sexualidade através das imagens de arte (práticas discursivas que envolvem

relações de poder-saber) e dos discursos que se reproduzem em torno delas. A autora ainda

comenta que estudiosas feministas dizem que é a sexualidade da mulher que está sempre em

constituição, ela é a categoria vazia. Apenas a mulher parece ter “gênero”, uma categoria

definida à partir de uma diferenciação sexual cuja norma sempre tem sido masculina.

A história sempre se preocupou em estabelecer regras de comportamento humano por

meio da ideologia dominante. Portanto as regras ditadas ao comportamento feminino fazem

parte dessa premissa e os filmes infantis servem como instrumento para essa ideologia

patriarcal. (Conforme essa ideologia o homem é a maior autoridade, devendo as pessoas que

não se identificam fisicamente com ele - adultos do sexo masculino - serem subordinadas,

prestando-lhes obediência).

A docilidade, a passividade e a obediência são mostrados como pilares da condição

feminina e de outro lado, a agressividade e a rebeldia como condição masculina de ser, assim,

a estrutura social vai prescrever uma série de funções para o homem e para a mulher,

(instituídas desde bebês) como próprias ou naturais de seus gênero..

Para Felipe (1998), o novo complexo cultural representado pela combinação entre a

cultura popular (no sentido dos chamados meios de comunicação que atinge massas como os

filmes de animação infantil) e as novas tecnologias de comunicação, está produzindo uma

transformação radical nos processos de produção de subjetividade e das identidades sociais.

Essas transformações exigem novas interpretações e novos olhares por parte de pais e

educadores.

Steinberg (1997), aponta para a necessidade de que pais, mães, professores e demais

profissionais voltados para a formação de crianças, tenham uma visão de infância que possa

dar conta dos efeitos dessa cultura e de suas visões de mundo.

Steinberg (1997) ainda nos diz que, examinar estes artefatos culturais é fundamental

para perceber de que forma eles trazem concepções de gênero, sexualidade, raça, etnia entre

outros, pois, ao contrário da realidade sem graça e na maioria das vezes dura, os filmes

infantis, na sua maioria, fornecem um espaço visual onde a aventura e o prazer se encontram,

num mundo fantasioso de possibilidades, onde os personagens tornam-se um veículo para

estimular a crença de que a felicidade é sinônimo de viver num bairro rico com uma família

de classe média branca e intacta, ou ser feliz e sem problemas casando-se com um príncipe,

como é o caso de Cinderela.

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Dessa forma, pretendo com este trabalho, como uma educadora em formação

universitária, chamar a atenção de pais e educadores para que façam uma leitura crítica da

representação e construção de identidade de gênero feminino contida na obra analisada. Para

que possam compreender as obras fílmicas, isto é, ser lido e interpretado de forma correta, ou

seja, dentro e fora dos códigos dominantes em que este filme de animação infantil se baseia.

3.1: COMPLEXO DE CINDERELA: UMA MANEIRA CRÍTICA DE OLHAR PARA OS

FILMES

Muitas mulheres já sonharam ou sonham em ser uma princesa como Cinderela. Isso é

tão comum que existe até um complexo que recebe o nome: “Complexo de Cinderela”, por

mulheres que fantasiam um Príncipe Encantado (o homem perfeito). Isso chega a ser tão

grave, que muitas mulheres não conseguem relacionar-se com homem algum por medo de que

este homem, perfeito que buscam, possam não conseguir sustentá-las e protegê-las, material e

emocionalmente.

A autora Dowling em seu livro: Complexo de Cinderela nos diz que:

[...]. De modo igualmente sistemático, as mulheres são ensinadas a crer que, algum dia, de algum modo, serão salvas. Esse é o conto de fadas, a mensagem de vida que ingerimos juntamente com o leite materno. Podemos aventurar-nos a viver por nossa conta por algum tempo. Podemos sair de casa, trabalhar, viajar; podemos até ganhar muito dinheiro. Subjacente a isso tudo, porém, está o conto de fadas dizendo:”aguente firme”, e um dia alguém virá salvá-la da ansiedade causada pela vida. (o único salvador de que os meninos ouvem falar é eles próprio). (DOWLING, 1987, p.13).

Em seu livro, a autora nos diz que o fenômeno “Complexo de Cinderela” é um sistema

de desejos reprimidos, memórias e atitudes distorcidas que se iniciam na infância, na crença

da menina de que sempre haverá outra pessoa mais forte a sustentá-la e protegê-la. Esta

crença é sempre alimentada e com o tempo ela se solidifica, seguindo a mulher em sua vida

adulta, o que as torna alimentadoras desses ideais quando desejam que suas filhas encontrem

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o “homem ideal”. Isso tudo resulta em todas as espécies de medos interiores e

descontentamentos e esta crença também mantêm na mulher um sentimento de inferioridade.

Acreditamos que as reflexões da autora podem ajudar a realizar uma leitura crítica dos

filmes da Cinderela, como por exemplo, entender o desejo inconsciente que as mulheres têm

de que sejam cuidadas por outro, esse desejo é denominado pela autora de “Complexo de

Cinderela” que ela explica como: “Complexo de Cinderela” é para a autora: “uma rede de

atitudes e temores profundamente reprimidos que retém as mulheres numa espécie de

penumbra e impede-as de utilizarem plenamente seus intelectos e criatividade. Como

Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha transformar suas

vidas”. (DOWLING, 1987).

A autora diz que, antigamente, este complexo, atacava apenas meninas de dezesseis ou

dezessete nos, impedindo-as muitas vezes de cursarem uma Faculdade e empurrando-as para

o casamento. Agora ele tende a atacar as mulheres já com curso superior, após terem

experimentado o gosto do mundo. Quando as primeiras sensações inebriantes de liberdade se

dissolvem e a ansiedade toma o lugar, as mulheres começam a ser incomodadas pelo velho

anseio de segurança: talvez, imaginando que assim estarão salvas.

Este ponto da discussão é muito sério, vivenciamos uma aula de Filosofia em que o

professor é contra os avanços, na sociedade, adquiridos pelas mulheres, e a surpresa foi que,

mais de 80% da turma concordou com o professor dizendo que o que elas mais queriam não

era ir a “luta por igualdades de direitos”, trabalhar o dia todo e ganhar bem, mas sim, casar,

ter quem cuidasse delas. Vi ali, o ideal de “mulher perfeita” segundo a visão de gênero

masculino através do personagem: professor, e as meninas submissas a tais ideais de

feminilidade. Suas idades? 19 anos a 23 anos e duas já de casamentos desfeitos.

A autora nos diz ainda que:

[...] estão sempre prontas a renunciarem a suas realizações sem se sentirem lesadas por isso, e rejubilam frente às realizações de seus companheiros [...]. Elas têm uma extraordinária necessidade de apoio quando engajadas em qualquer atividade dirigida para fora do lar. ( ).

No fundo, o que essas mulheres realmente querem e procuram é não ter que cuidar de

si mesma, querem que uma outra pessoa o faça e muitas vezes caem em casamentos

desastrosos.

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Há uma nova crise na feminilidade: o conflito sobre o que é e o que não é feminino,

impedindo muitas mulheres de funcionarem de maneira bem integrada e feliz. Há anos,

feminilidade vem sendo identificada com dependência. Acabando ao que a autora chama de

pânico do gênero feminino, assim as mulheres temem que um comportamento independente

seja não-feminino.

A autora diz que as mulheres de hoje se acham no fogo cruzado de velhas ideias do

desejo de salvação e das novas ideias sociais, a verdade, porém, é que não podemos nos

refugiar nos antigos papéis. Ele não é mais funcional na nossa sociedade, nem mesmo uma

opção verdadeira, podemos até querer que seja ou desejar, mas não é. “O Príncipe encantado

desapareceu, o homem da realidade não é mais forte, mais inteligente ou mais corajoso do que

nós mulheres, eles também têm seus medos e defeitos” (DOWLING, 1987).

Giroux (1995), oferece algumas sugestões sobre como todos os envolvidos na

formação cultural da criança (pais - educadores) podem discutir a influência dos filmes

infantis – aqui a Disney – na formação do ambiente simbólico no qual nossos filhos nascem e

todos nós vivemos.

• Os textos que dominam a cultura infantil, incluindo os filmes de animação

infantil da Disney, devem ser incorporados às escolas como objeto de

conhecimento social e de análise crítica, fornecendo um novo registro para

discutir como a mídia popular dirigida à formação da cultura infantil está

implicada num conjunto de relações poder/saber.

• Os educadores precisam discutir seriamente a tentativa da Disney de moldar a

memória coletiva, particularmente quando essas tentativas são

desavergonhosamente definidas pelos imaginadores da Disney, onde

cuidadosamente programam para deixar de fora todos os elementos negativos e

indesejados e ao mesmo tempo, incluir os elementos positivos.

Dentro desta perspectiva é que realizamos este trabalho sobre os filmes de animação

infantil e a construção de identidade de gênero feminino no filme “CINDERELA”. (sem

condená-los). Antes, procuramos entendê-los e analisá-los como uma expressão cultural que

influencia nossas vidas e que, portanto, devem receber uma nova leitura.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo caracterizou-se por uma investigação de caráter teórico – descritivos

– analíticos, desenvolvido através da pesquisa literária específica sobre o tema e análise

fílmica.

Nossa atenção concentrou-se nos filmes “Cinderela” em três versões - de 1950, 2002 e

2007. Procuramos examiná-los na perspectiva de construção de gênero feminino na

personagem Cinderela, em como se dá a construção de um ideal de feminilidade , como é

apresentada e como é construída nessa personagem e quais são os mecanismos usados nas

narrativas e nas imagens que de uma forma sutil, ditam normas/atitudes ao feminino,

particularmente, com relação ao encontro de um amor, um casamento e a constituição de uma

família, conforme os ditames da heterossexualidade, procriação e felicidade conjugal.

Como pudemos verificar ao longo deste estudo, realizar esta pesquisa não foi tarefa

fácil, isto porque consistiu em enfrentar os valores, os conceitos, as idéias e, acima de tudo,

atitudes que estavam enraizadas dentro de nós, particularmente, dentro de mim desde a

infância. Quando pensei neste trabalho, era-me confuso o tema, achei impróprio achar que os

filmes tão inocentes para crianças e adolescentes, poderiam estar carregados de tantos

preconceitos e que ditassem dessa maneira nossas vidas.

Também foi grande a dificuldade encontrada para ter acesso a livros relacionados ao

tema específico, os livros falam de construção de identidade no geral (abrangendo todas as

identidades), mas a nossa proposta era como ocorria a construção de identidade de gênero nos

filmes infantis. Não foi possível encontrar livro específico na biblioteca Central da UEM,

procurei, então, nos periódicos, sites, artigos e livros em que pudesse relacionar ao tema e

utilizar na pesquisa.

O grande desafio consistia, então, em aproveitar o máximo possível o material que

estavam em nossas mãos e a partir daí, procurar confirmar a existência dos pré-conceitos que

cerca o mundo feminino.

Analisar o filme “Cinderela” nos levou a afastarmos de abordagens que tendem a

focalizar apenas papéis e funções de mulheres e homens para aproximarmos de abordagens

mais amplas que levam a considerar que as normas, condutas, atitudes, conhecimentos, leis e

políticas de uma sociedade são constituídas por representações e pressupostos de feminino e

de masculino, produzindo e dando significado a essas representações.

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Como foi debatido no decorrer deste trabalho, a construção de identidade de gênero é

um processo social, são utilizados diversos mecanismos para levar as crianças ao perfil

desejado para a sua cultura, seu grupo, seu sexo. Este processo é reiterado ao longo da vida

dos sujeitos. As normas de gênero reproduzem-se através de vários artefatos culturais tais

como: a família, a igreja, a escola, entre estes artefatos culturais temos os filmes de animação

infantil.

Esses filmes, no caso, da Cinderela, produzem uma visão estreita dos valores,

atribuindo papéis rígidos as mulheres e restritas ao ambiente doméstico. O que eles ensinam

para as meninas é que as mulheres só podem ser felizes com o encontro de seu par, de um

homem com o qual possam se casar, constituir uma família e gerar filhos. Essas

representações vêm se constituindo em padrões para pensar a sexualidade, o amor, a

afetividade e os laços entre os sujeitos homens e mulheres, ditando normas e comportamentos

geradores de preconceitos para com aquelas e aqueles que fogem às regras sociais e culturais

acerca das masculinidades e das feminilidades.

Embora estejamos no século XXI e muitas mudanças tenham sido realizadas nas

relações de gênero, o modelo hegemônico da masculinidade e da feminilidade continua sendo

a heterossexualidade, a conjugalidade, a procriação, a família, a monogamia. As crianças,

meninos e meninas ainda continuam sendo educados segundo esses ditames. Desde a mais

tenra infância, diversos artefatos pedagógicos e culturais e diferentes esferas sociais se

incumbem de dizer e mostrar o que é ser menino e menina e a traçar o “destino” que devem

ter. A família, a escola, a Igreja entre outras esferas sociais e culturais, os artefatos

pedagógicos de comunicação e cultura, continuam a dizer que os meninos e meninas

crescerão, encontrarão um par, se casarão e serão felizes para sempre. O lar, a família, o sexo

no casamento, a geração de filhos e os cuidados que correspondem à tarefa de educar será o

destino de uns e outros, dos homens e das mulheres. Desse modo, as identidades e as

representações de gênero são produzidas e reproduzidas socialmente, culturalmente e

pedagogicamente.

Somente com base em nossas contradições, nas lutas travadas no dia-a-dia pelas

mulheres de nossa época que lutam pela igualdade de gêneros, será possível construir a

pluralidade de leitura dos filmes enquanto artefatos culturais que fazem parte do cotidiano de

nossas crianças.

Espero que este trabalho possibilite a pais e educadores, que venham a conhecê-lo, a

perspectiva de uma nova leitura acerca dos filmes infantis e que lhes permita observar o

47

alcance e a influência que estes “inocentes” artefatos culturais exercem sobre a cultura

infantil.

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