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C O L E T Â N E A / F I C Ç Ã O 15 CONTOS+ Volume II - 1a. Edição Helena Frenzel Ed.

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C O L E T Â N E A / F I C Ç Ã O

15 CONTOS+

Volume II - 1a. EdiçãoHelena Frenzel Ed.

CRÉDITOS

Série 15 Contos+, Coletânea, Ficção, Volume II, 1a. Edição, Helena Frenzel (Ed.)

TEXTOS DE: Ailton Augusto*, Aleki Zalex, Ana Bailune, Antonio C. Almeida, Antonio Fernando Sodré Júnior*, Antonio Maria Santiago Cabral, Beatriz Mecking, Celêdian Assis de Souza, Daniel Rocha*, Heitor Herculano Dias*, Josadarck, José Neres*, Marilise Batista, Maurem Kayna*, Michele Calliari Marchese*, Raphael Reis*, Rodrigo Arcadia*, Samara Bassi*, Victor Eustáquio*. (* textos inéditos).

APRESENTAÇÃO: Sergio Carmach.

Edição e imagem: Helena Frenzel.

A editora manteve as opções de grafia adotadas em cada original, limitando-se a efetuar, em poucos casos e quando muito necessário, leves reparos gramaticais. Os textos desta coletânea tratam de histórias e personagens existentes apenas no universo da ficção; nos casos em que se assemelham à realidade, não se referem a pessoas ou fatos concretos nem emitem sobre eles juízo ou opinião.

Copyright © 2013 Todos os direitos sobre esta edição digital estão reservados à editora: Helena Frenzel, St. Ingbert, Alemanha ([email protected]).

Todos os textos aqui usados com a permissão dos respectivos autores. Esta edição pode ser livremente distribuída sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso não comercial - Vedada a criação de obras derivadas 2.5 Brasil, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para qualquer outra forma ou propósito de uso do conteúdo aqui publicado, favor contatar a editora ou os respectivos autores originais.

Obra disponível para baixar em: quintextos.blogspot.com

i

SOBRE

Série

15 Contos+

Coletânea, Ficção

Volume II, 1a Edição

TEXTOS DE: Ailton Augusto*, Aleki Zalex, Ana Bailune, Antonio C. Almeida, Antonio Fernando Sodré Júnior*, Antonio Maria Santiago Cabral, Beatriz Mecking, Celêdian Assis de Sousa, Daniel Rocha*, Heitor Herculano Dias*, Josadarck, José

Neres*, Marilise Batista, Maurem Kayna*, Michele Calliari Marchese*, Raphael Reis*, Rodrigo Arcadia*, Samara Bassi*, Victor Eustáquio*. (* textos inéditos).

APRESENTAÇÃO: Sergio Carmach.

EDIÇÃO: Helena Frenzel.

Agosto de 2013

Esta publicação é parte do site Quintextos

(quintextos.blogspot.com)

Venda proibida

ii

Aos que ainda buscam a própria voz na arte de contar.

iii

NOTA DA EDITORA

Sem contrariar a filosofia do projeto, o segundo volume do 15 Contos + vem com uns ‘contos’ a mais, a saber: q u a t r o.

Desta vez decidi-me por uma chamada, por ser uma forma mais democrática e ampla de participação, já que o primeiro volume nasceu de convites individuais, sem os quais eu não poderia ter dado vida ao projeto.

Em primeiro lugar, minha gratidão a todos os inscritos. O sucesso deste projeto depende muito mais das participações do que do meu desejo de fazê-lo sempre melhor. Os resultados quantitativos e qualitativos da chamada foram motivadores: dos 24 contos recebidos, 11 inéditos, ou seja: houve incentivo à produção literária do gênero, um dos objetivos principais.

Findo o primeiro prazo para envio de textos, 30 de abril de 2013, eu havia recebido pouquíssimas inscrições, mesmo assim decidi prorrogar; para alegria de muitos, pois a maioria dos participantes enviou textos no finalzinho do prazo da prorrogação, 15 de maio de 2013, embora a chamada tenha sido posta no ar ainda em fevereiro.

Foi bem difícil a escolha dos textos para este volume e agradeço imensamente aos leitores-beta que muito contribuíram para a composição da lista final. Como podem ver na imagem da capa, não foi possível ter mais participações, de modo que cedi, de bom grado, minha vaga desta vez. Para quem ainda não sabe, o design da capa não pode mudar pois mantém estreita relação com a filosofia do projeto: quinze ‘contos’ em círculo, reforçando a idéia de igualdade no tratamento dos textos e apresentação.

iv

Quinze Contos Mais não é concurso e muito menos eu, no papel de editora, pretendo atuar como crítica. Apresento textos a cada volume e a qualidade dos mesmos quem deverá julgar é o leitor, por si.

O volume vem prefaciado pelo escritor Sergio Carmach, autor de Para Sempre Ana (Editora Caravansarai, 2011), livro indicado para concorrer na categoria “melhor romance” do Prêmio Literário Codex de Ouro 2013.

Sergio, muitíssimo obrigada por tão gentilmente ter aceito o meu convite e ter-se disponibilizado a doar um pouco do seu precioso tempo para o Volume II deste projeto, um presente meu a todos aqueles que amam contos e a arte de contar em língua portuguesa.

E a você que nesta nota até aqui me acompanhou, só posso recomendar que siga lendo, pois neste volume, muito provavelmente, consegui reunir dezenove contos com muito boas chances de capturar sua atenção.

Atenciosamente,

Helena Frenzel, St. Ingbert, Alemanha, 04 de julho de 2013.

v

SOBRE A AUTORA

HELENA FRENZEL é maranhense, vive na Alemanha. Tem formação nas áreas de Ciência da Computação e Romanística. É autora e editora de vários EBooks gratuitos independentes, entre eles, as coletâneas «Poemas Para Acordar (2010)» ,«Trinta Contos de Euros e Três de Natal (2010)», «Outros Quinze Contos (2011)» e «Lá Vem o Sol! (2012)». Mantém o site Bluemaedel onde concentra suas letripulias*, o blog Sem Vergonha de Contar, voltado para contos e causos, uma escrivaninha no Recanto das Letras bem como o projeto Quinze Contos Mais e o site Quintextos.

* Letripulias: estripulias com Letras; com letras, estripulias. E com artes, em geral. Letripulista é quem letripulias faz.

PREFÁCIO

Ao enveredar pelas linhas a seguir, alguns leitores, tomando ciência de quem as escreve, talvez se vejam envolvidos por brumas de incredulidade e hesitem prosseguir: afinal, por que um romancista estaria introduzindo uma coletânea dedicada a contos? De fato, não é pequena a parcela do público que enxerga a literatura através de um postigo exíguo e mesquinho, segregando contos de romances, e nutre um preconceito que por vezes beira a superstição.

Confesso: durante muito tempo, enclausurado na masmorra dos romancistas radicais, integrei essa estirpe de espíritos débeis e viciosos, que viam contos com olhos glaciais. Mas a boa ventura entrelaçou meu destino aos de exímios contistas de uma incipiente safra nacional, e percebi extasiado: toda forma de literatura resplandece sob o mesmo sol. Mais que isso. Entendi que o contista é um ser notável, pois, na ação de suas histórias, ele está adstrito a universos reduzidos — já que a narrativa nesse estilo literário costuma ater-se a um único fragmento existencial dos personagens, a um único drama em especial, a um único momento definido no tempo — limitação só vencida por uma pena criativa, capaz de conferir um lirismo (igualmente único) às palavras, de elevar a simplicidade a dimensões inimagináveis, de conceder auras oníricas a situações cotidianas e de fazer do clímax dramático um instante intenso e mágico, tudo com o objetivo de arrebatar o leitor de maneira singular, o que remete à célebre e arguta frase do contista argentino Julio Cortázar: “No combate entre um texto e seu leitor, o romance sempre vence por pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute.”

vi

A despeito de todas as qualidades inerentes aos contos e dos prazeres proporcionados por esse estilo narrativo, promovê-los em um projeto demanda coragem e abnegação. O fomentador precisa superar a barreira do gosto popular por histórias longas e apresentar um produto atraente ao público — como dito acima, que o nocauteie. Entre esses heróis criativos, temos uma maranhense dada a “letripulias” — como ela própria define sua postura literária — que, apesar de formada nas áreas de Ciência da Computação e Romanística, é autora e editora de EBooks gratuitos e independentes, blogueira voltada às Letras e mentora do projeto 15 Contos +, cujo segundo volume estou tendo a felicidade de introduzir.

Tal qual um gemólogo encantado ao se deparar com o potencial de diamantes inlapidados, li, feliz, os textos auspiciosos deste volume em seu estado original, sem revisões ou alterações. Assim como uma pedra precisa ser bela, rara e durável para ser considerada uma gema, um texto, além de possuir certos atributos para ser qualificado como conto, também necessita de certas qualidades para ser precioso. E elas estão presentes nas linhas criadas pelos autores desta coletânea, pois Helena selecionou escritos promissores — poéticos, criativos e repletos de imagens vívidas — para integrá-la. O leitor que se aventurar neste volume certamente se deparará com diversos estilos de contar um conto, mas jamais deixará de se deleitar.

As palavras na história de um contista exímio são cheias de significados especiais, cujo enunciado nem sempre se extrai em um primeiro momento (coisa da verdadeira arte), e demandam leitores sensíveis, que queiram e saibam degustá-las na essência. Espero que você, que acompanhou até o final esta introdução, seja um desses seres abençoados.

Sergio Carmach, 29 de julho de 2013.

vii

SOBRE O AUTOR

SERGIO CARMACH é escritor — autor do livro Para Sempre Ana (Editora Caravansarai, 2011), indicado para concorrer na categoria “melhor romance” do Prêmio Literário Codex de Ouro 2013 — videomaker e advogado (sergiocarmach.blogspot.com).

SUMÁRIO

CRÉDITOS (i)

SOBRE (ii)

DEDICATÓRIA (iii)

NOTA DA EDITORA (iv)

PREFÁCIO (vi)

DOIS PARES DE OLHOS, Ailton Augusto (10)

ATÉ AS GALINHAS SABIAM..., Aleki Zalex (14)

A MÃE, Ana Bailune (17)

0800 SUICÍDIO, Antonio C. Almeida (21)

DESENCONTRO, Antonio Fernando Sodré Júnior (26)

O ANJO QUE PEDIA ESMOLAS, Antonio Maria Santiago Cabral (29)

INSIGHT, Beatriz Mecking (33)

PÁGINA DO DESTINO, Celêdian Assis de Sousa (35)

CORAÇÃOZINHO, Daniel Rocha (39)

TRÊS AMIGOS, Heitor Herculano Dias (41)

A ROSA DOURADA, Josadarck (48)

DEVASTAÇÃO, José Neres (53)

O LUTHIER, Marilise Batista (55)

CAMILA, Maurem Kayna (59)

EM NOITES FRIAS, Michele Calliari Marchese (63)

SER HUMANO, Raphael Reis (66)

viii

DESCRER SEM VER, Samara Bassi (68)

O CHÁ, Rodrigo Arcadia (70)

SE CALHAR O MAL ESTÁ NA CABEÇA, Victor Eustáquio (74)

ix

DOIS PARES DE OLHOS

! I. A contrariada

Olhou pela janela: a lua nascia de um amarelo forte, que contrastava com o tom avermelhado do vinho na taça. Aliás, vinho já quente, pois a escolha de um vestido para a festa estava tomando mais tempo do que gostaria. Mais que isso: ela tinha uma excessiva dificuldade, devida em boa parte ao fato de que ir àquela festa com seu namorado era uma obrigação.

Tratava-se da festa de aniversário de uma criança, filha de um colega de trabalho dele. E ela sabia como se sentiria ao ter de sentar na mesa com gente desconhecida e obrigar-se a conversar sobre amenidades, comendo mais do que gostaria para manter a boca ocupada com algo mais que palavras vãs, trocadas para ocupar o tempo.

A noite, já entrada, se anunciava fria e ela optou por um vestido preto de corte simples, o qual seria encimado por uma echarpe igualmente preta. O tipo de evento talvez exigisse dela uma roupa mais alegre, de cores festivas. Contudo, ela optou pelo extremo oposto: iria de luto por sua noite perdida. Teria sido tão mais fácil inventar uma desculpa para não ir...

II. O inapto

Ele estava no ponto de ônibus quando recebeu a ligação convidando para a festa. Demorou um pouco para entender o convite, pois não se via tão íntimo do pai da

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Por Ailton Augusto

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criança, com quem havia estudado dez ou doze anos antes. Acrescente-se, a título de informação, que o rapaz em questão era totalmente inapto para o jogo de cena social e, em sua visão restrita, nenhuma afinidade justificava sua estadia naquele evento.

Apesar disso, decidiu ir. Reconhecia que a festa tinha, em si, muito poucos atrativos — apenas a possibilidade de rever duas ou três pessoas conhecidas com quem ele se encontrara de modo casual nos últimos anos, após a formatura de todos eles... Com um pouco de sorte, ele poderia aproveitar a ocasião para se reaproximar das pessoas, principalmente o anfitrião e, assim, voltar a desfrutar da sensação de ter um amigo. Ele, inapto e solitário.

Poder-se-ia dizer mais coisas a seu respeito, inclusive as inúmeras dificuldades que teve para escolher um presente para a criança pequena, as quais resolveu com a indelicadeza de colocar uma quantia de dinheiro em um envelope que seria entregue, com muitos rodeios, no dia da festa.

III. Dois pares de olhos

Antes que o leitor pergunte, o inapto e a contrariada não eram namorados. Eles sequer se conheciam. Na festa, por um acaso, terminaram sentando na mesma mesa.

Explica-se o acaso: como a casa de eventos era acanhada, optou-se por reduzir a quantidade de mesas para poder deixar mais espaço livre para a pista de dança. Com isso, o rapaz inapto, tímido como ele só, teve de pedir licença e sentar-se entre desconhecidos. Ele sentia-se um homem de sorte por não ter sido rejeitado naquela mesa onde (como veio a saber depois) havia médicos, advogados e outros “doutores”.

A conversa, como todos de algum modo esperavam, versou sobre amenidades. Contaram-se muitas histórias velhas envolvendo o dono da festa. Contadas a título de anedota, elas tinham também o objetivo de justificar, por parte de quem detinha a palavra, a presença naquela festa, junto dos demais convivas.

Em algum momento da noite deixaram as tábuas de frios e coisas afins em uma mesa na outra ponta do salão. Entretanto, ninguém se animava a ser o primeiro a

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buscar tais alimentos com medo de parecer esganado ou morto de fome. A moça contrariada, que, como se nota pela alcunha, não via razão de ser da sua presença na festa decidiu puxar a fila. Foi até a mesa e montou um pratinho.

Voltando à mesa, ela decidiu oferecer àquele rapaz encolhido parte da comida que tinha em seu prato. Com um sorriso ele aceitou e, como retribuição, ele roubou um doce da mesa do bolo e trouxe para ela, cujo nome ele nem se lembrava mais, apesar das apresentações do início da noite.

Os lábios dela, até então uma inexpressiva linha reta, fizeram leve curva ascendente no esboço de um sorriso de gratidão e, pareceu a ele, identificação. Identificação?... Os dois pares de olhos, o dela e o dele, originam olhares que se cruzaram durante a noite num diálogo mudo, mas sem segundas intenções. Cabe dizer ainda que, da parte do rapaz, que era um pouco mais novo que ela, qualquer relação seria complicada diante do fato de ele estar frente a uma jovem senhora já comprometida, muito ensimesmada e bastante indiferente a julgar pela contenção de seus gestos e palavras.

Eles apenas se entendiam no seu deslocamento, tão grande que nem sequer conseguiam largar a conversa amena com os outros para dedicarem-se a um diálogo que se fizesse paralelo e mais interessante para eles. Nesses dois pares de olhos dançava a mesma pergunta: que estamos fazendo aqui?

IV. Comentários de fim de noite

A moça saiu antes do fim da festa, arrastando seu namorado com tato suficiente para não soar grosseira a sua retirada quase à francesa. Desacompanhado por natureza e abandonado pela sua companheira de infortúnio descoberta ao acaso, o rapaz inapto só permaneceu até o fim da festa porque um antigo colega de estudos, que havia chegado atrasado e estava em outra mesa, ofereceu-lhe carona.

No trajeto de volta, ele e seu colega dedicaram-se aos comentários habituais sobre festas dessa natureza, além de tecerem algumas considerações a respeito deste ou daquele convidado. Dois pares de olhos se cruzam e o motorista pergunta: mas como

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você se virou naquela mesa? A moça do vestido preto, pelo que vi de longe, pareceu tão antipática e esquisita...

O inapto fazia tanta justiça ao apodo que terminou concordando com quem lhe dava carona. Criticou a moça com cujo deslocamento se irmanou. E o fez em busca de que tipo de apoio ou afirmação?

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SOBRE O AUTOR

AILTON AUGUSTO é natural de Juiz de Fora/MG. Graduou-se em Letras pela UFJF, onde estudou com mais afinco as literaturas de língua portuguesa e língua espanhola. É escritor amador, com textos dispersos entre os blogs umeternobrainstorm.blogspot.com e verdadesprovisorias-jf.blogspot.com. Junto com outros dois amigos, atua como editor da Revista Encontro Literário (ISSN 2237-9401, revistaencontroliterario.blogspot.com).

ATÉ AS GALINHAS SABIAM...

! Sô Joaquim Ambrósio nasceu, cresceu, casou, teve filhos, netos, e nunca transpôs os limites da pequena Vila das Quaresmeiras; passou toda sua benfazeja vida em seu torrão natal, cultivando simpatia e cativando amigos.

Levantava bem cedo e atrelava o balaio ao burrico General, amigo fiel, transportador oficial de sua preciosa mercadoria, constituída toda ela de algodão doce, cocada, pé-de-moleque e bala de bico. Saía com o sol, fazendo soar sua esganiçada buzina por quanta sorte de vielas possuía o povoado, do qual já conhecia cada um dos paralelepípedos tortuosamente assentados pela benemérita administração municipal, cuja benemerência, a bem da verdade, a grande maioria dos moradores botavam em questão, nas acaloradas conversas nos botecos ou em furtivos sussurros pelos becos convergentes. Politicagens à parte, Sô Joaquim Ambrósio não falava mal do prefeito nem das suas polêmicas obras públicas, que afinal de contas, dizia, ele mesmo ajudara a sentar o homem na cadeira da prefeitura. Margeava essas sortes de assuntos, mantendo-se impassível aos fuxicos e futricas do povo, preocupando-se antes em anunciar, algumas vezes em cantoria arrastada, outras aos berros, suas doces preciosidades:

— ’Aúúú argudão doci! Baianinha brancaaaaaaa! Baianinha morenaaaaa! Péééééé di mulequi docinhuuuuu! Bala di biiiiiiiicu, gostosa i vremeinha!’

A meninada acorria em grita cheia e farta balbúrdia ao toque de sua buzina, com tão incontida ansiedade, que os irmãos Griim chegavam a remexer os ossos nas tumbas, ardendo de despeito ao saberem a flauta mágica do famigerado Flautista de Hamelim,

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Por Aleki Zalex

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relegada ao segundo patamar do pódio na apuradíssima predileção auditiva da petizada.

O dinheiro que auferia com a venda das guloseimas era mais que suficiente para complementar o sustento da família (a esposa e cinco netinhos que criava, enquanto os filhos tentavam a vida na capital), pois o grosso dos gastos saía de sua aposentadoria como lavrador, profissão que exerceu por trinta e oito anos consecutivos, com infalível frequência diária. Só continuava a trabalhar com a venda dos doces, porque, como ele próprio ventilava, não sem certo tantinho de desprezo na voz, ‘num era homi dadu a passá u dia di pijama i chinela, estorvanu a lida da patroa i si atrupelanu cus mininu i cus cachorru pela casa, i muintu menu ainda, apriciava di ficá joganu dama cuá cacaria disocupada na pracinha da igreja’.

Enfim, Sô Joaquim Ambrósio era um homem bonachão, simpático, e o retrato genuíno de um caipira feliz e realizado em seus parcos anseios. Sua alegria nata lhe agraciara com a felicidade de contar com a estima de todo o povoado. Não obstante, viviam debochando, pelas costas, é claro, de seu eterno espírito nômade. Longe de seus olhos (e ouvidos), citavam-no como Sô Joaquim Cigano, alcunha que, muito embora não conhecesse e jamais granjeara, adquirira sem o saber, por ter o hábito, jamais esclarecido se por necessidade ou mera mania, de mudar-se frequentemente de morada.

Dona Candoca, assim que entrava numa nova moradia, sabia de antemão que não conseguiria colocar todos os apetrechos em ordem antes que o marido chegasse num belo e ensolarado dia, sempre pelo terreiro da cozinha, arrastando as botinas no seu passo de catitu fora da manada, interrompendo o sagrado ciscar das galinhas que cacarejavam esbaforidas, e anunciasse solenemente a já velha e conhecida boa nova:

— ‘Candoca, meu ôro, avia di ajuntá as trôxa nu perpassu da semana qui nóis muda nu dumingu’.

Dona Candoca suspirava, conformada. E dá-lhe uma semana inteira ajuntando tralhas daqui e badulaques dali, e amarrando trouxas de cá, e buscando lata de flor dacolá, entre o preparo do almoço pela manhã, o despacho dos meninos para a escola ao meio do dia, e a lida no tanque à tarde. Nessas ocasiões de mudança, Sô Joaquim

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Ambrósio voltava da praça e entregava à esposa a féria toda do dia, que ela guardava no bule de louça da cristaleira. Esse dinheiro serviria para o custeio do também habitual almoço de comemoração da ‘casa nova’, que, invariavelmente, era um casarão antigo e caindo aos pedaços.

E assim vivia feliz e alheio ao girar do orbe, o pacato Sô Joaquim Ambrósio, casado com Dona Cândida Silveira Ambrósio, pai de quatro filhos e avô de cinco netos, aposentado, lavrador de profissão, e vendedor de gostosuras por ofício.

Se os mexericos do povo a respeito de sua alma nômade eram exagerados, não se sabe ao certo, porém, fato é que Sô Joaquim Ambrósio, que não dava lá muita bola às artimanhas do inexplicável, jamais contou a alguém que a cada domingo que sucedia a anunciada mudança, quando pulava da cama e rumava para a bica na finalidade de lavar o rosto, topava as galinhas no terreiro, já todas apeadas do poleiro, deitadas com as costas no chão, e com os pezinhos juntinhos e voltados para cima...

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SOBRE O AUTOR

ALEKI ZALEX nasceu em 1961 no Rio de Janeiro, RJ, mora atualmente em Manhuaçu, MG. Estudou na Fundação Universidade Mineira de Artes (FUMA), cursando Comunicação Visual, e na Escola Guignard/UEMG, onde cursou Artes Plásticas. É escritor amador, e suas incursões no mundo das Letras tendem mais para a poesia, tendo porém escrito alguns contos e crônicas, alguns destes publicados em revistas locais.

A MÃE

Os dedos finos da chuva tamborilavam no parapeito da janela, dizendo: “Lembre! Lembre!” Ela olhava para fora, e já não sabia se enxergava a chuva no vidro, ou se eram suas próprias lágrimas. Aconchegou-se ao cachecol. Fungou.

Mais um dia.

Suspiro.

Ainda de camisola, foi lá para fora, para a vida, fazer aquilo que todos esperavam dela: viver. Ou algo assim. Preparou o café em transe, despediu-se do filho, que saiu para a faculdade, beijou o marido sem nem sequer vê-lo direito. Ele dissera algo; o que, meu Deus? Não importava. Aprendera a olhar as pessoas, ver seus lábios se mexendo, sorrir levemente e acenar com a cabeça. Mas o que eles diziam? Não tinha a menor importância. Sabia que, quando alguém afagava seu ombro — o que doía —, tinha que dizer “Obrigada.”

Às vezes, quando estava um pouco mais alerta, escutava-os dizendo: “Já fazem dois anos...” mas por que o tempo só não passava para ela?

Achava cruel, a maneira como as pessoas se aproximavam sorrindo, perguntando (quase afirmando) se estava tudo bem, e antes que ela respondesse, iam passando, pois na verdade, não estavam interessados na resposta; ninguém queria ouvir a ladainha de uma pessoa enlutada. Queriam — exigiam — que ela estivesse bem.

Lavou as xícaras, secou-as e guardou-as no armário. Também desfez a mesa do café — sem ter comido quase nada; apenas brincava com os alimentos, enfiando alguma coisa na boca, para que não fosse obrigada a ouvir as mesmas ladainhas: “Você precisa comer, você precisa reagir, você precisa sair mais...”

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Por Ana Bailune

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Você precisa.

Pegou a caixa com as fotografias, como sempre fazia, e sentou-se na cama, espalhando-as sobre a colcha gasta. Lá estava ela, sorrindo, entre as amigas; e a primeira comunhão. O aniversário de nove anos, o de doze, o de vinte. A foto de formatura. Os sorrisos congelados para sempre, a imagem de uma menina feliz e morta.

Morta.

A realidade doía.

Guardou as fotos e foi às compras no supermercado.

A manhã estava morna e cinzenta. Parecia que nunca mais ninguém veria o céu azul, ou que ele fosse apenas uma lenda. A chuva havia passado, mas no chão, poças de água de todos os tamanhos. Encontrou um vizinho, que acenou para ela alegremente, e ela automaticamente, acenou de volta. Passou, seguiu.

Chegou em casa com as compras e começou a preparar o almoço. A irmã ficara de passar para almoçar com ela. Pôs a carne no forno, começou a picar os legumes. De repente, entrou em um transe. O tiquetaque do relógio na parede acima da pia parecia ter o poder de hipnotizá-la, levando-a de volta ao passado, quando a menina vivia. E escutava os ecos de seus risos pela casa, a voz dela pedindo: “Mãe, passa a minha blusa azul?” E lembrou-se de quando ralhava com ela, por deixar tudo para a última hora: “Por que não pediu ontem, filha?”

E agora, voltando aos legumes picados — após um pequeno talho no dedo, que foi lavar sob a torneira da pia — ela só pensava que gostaria de ficar o resto da vida passando todas aquelas blusas azuis, verdes, amarelas, brancas... se isso fosse trazê-la de volta por apenas um ou dois minutos que fossem!

Jogou os legumes na caçarola, pôs o sal, refogou, jogou água. Olhou a carne no forno. Olhou o arroz, enxugou as mãos no avental. Recostou-se contra a pia, olhou a cozinha embaçada pelo vapor das panelas. Abriu a porta, mas a luz que vinha lá de fora, apesar do tempo cinzento, e os gritos das crianças brincando, era vida demais para ela. Fechou a porta.

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Olhou para o corredor. Escuro. Vazio. Nunca mais ela passaria por ele apressada, para dar-lhe um beijo antes de ir. Nunca mais. Esta era a sua frase, a frase que representava todas as expectativas que pudesse ter sobre a vida: “Nunca Mais.”

A distância que se fizera entre ela e o marido estava cada vez mais se esticando, e ela sabia que a hora em que aquele elástico absurdamente longo se partiria, estava chegando. Ele iria embora. Aliás, já tinha ido; só o corpo dele estava por ali, vagando. Às vezes pensava o que sentiria se ele morresse. Choraria? Será que acordaria? Sentiria falta dele? Não sabia que ele pensava exatamente a mesma coisa, e se fazia as mesmas perguntas. E depois que ele fosse embora, e o filho finalmente se mudasse — estava procurando apartamento — o que ela faria?

Já passava dos quarenta. Estava fora do mercado de trabalho há muito tempo. Passara a juventude cuidando dos filhos, da casa, do marido. Nunca fizera mal a ninguém na vida! Nunca, nem uma vez, desejara mal a qualquer criatura viva, e sempre que podia, recolhia animais abandonados na rua e ajudava-os a encontrar um dono. Diziam que ela era boa.

Então, por que?!

Lembrou-se do dia do velório, quando uma senhora que nem sequer conhecia, aproximou-se dela e disse: “Deus quis assim!” A partir daquele momento, ela passou a odiar Deus. Até mesmo sua querida santinha, a quem tinha sido sempre tão devota, passou a ser encarada como uma inimiga. Só não jogara a imagem fora porque tinha sido presente de sua mãe, que trouxera para ela de uma viagem que tinha feito a Fátima.

E todos diziam que ela tinha que se apegar a alguma coisa; precisava ter fé! Ora, fé ela tivera, durante todo o período da doença da filha! Tinha feito promessas e mais promessas, rezado missas, feito novenas. Nunca tinha sido tão carola, a fé brotando por entre seus dedos, despejando-se dos seus olhos, saindo-lhe pelos poros enquanto afagava a cabeça da filha no leito de hospital, dizendo a ela que iria ficar boa, que iria curar-se. E ela realmente acreditou na cura! Mas sua santinha havia praticado a maior das traições: levou sua menina! Levou sua menina, por pura inveja, porque seu Filho

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também tinha sido levado! E por causa disso, ela agora odiava todas as mães, e levava-lhes os filhos! Era como uma cínica serial killer de véu branco.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo toque da campainha. Abriu a porta para a irmã, que a abraçou, trazendo a vida lá de fora. Cheirava à chuva fresca e fumaça dos carros. Era vida demais, e ela encolheu-se dentro dos braços da irmã, para tentar evitar ao máximo o toque daquele corpo. A irmã, ao olhá-la novamente, comentou:

— Que tempo! Já começou a chover de novo!

Ela pegou a bolsa da irmã, pendurando-a no cabide do corredor. Sorriu, seu sorriso leve e casual. A irmã sentou-se à mesa da cozinha, dizendo:

— Você está bem melhor hoje, querida. Parece bem melhor!

Ela sorriu novamente, concordando com a cabeça. Era isso que esperavam dela.

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SOBRE A AUTORA

ANA BAILUNE é petropolitana e publica seus contos, crônicas, poemas, resenhas e artigos em seus sites e blogs na internet. É assinante do site Recanto das Letras. Tem um livro de poemas publicado — «Vai Ficar Tudo Bem (2012, Pimenta Malagueta)» —, participou como autora convidada no primeiro volume da Série «15 Poemas+, (quintextos.blogspot.com)» e tem participações em várias antologias, como «Gandavos» I e II (gandavos.blogspot.com), «15 Contos+ Volume I» (quinzecontosmais.blogspot.com) e «Traços e Compassos (2013, Pimenta Malagueta)». Atualmente, prepara um livro de contos.

0800 SUICÍDIO

— Cale a boca!

— Quem é você para me mandar calar a boca?

Neste momento, Rogério esbofeteia Raquel, que tropeça e bate com a cabeça na parede, desfalecendo.

Batem à porta da casa de Rogério, anunciando ser a polícia. Rogério recua ao mesmo tempo em que grita: — Ninguém chamou a polícia! Os policiais arrombam a porta, entram gritando: — os vizinhos chamaram. Dois policiais invadem a casa. Como Rogério exibia resistência, os policiais o espancam e algemam. Uma policial feminina corre para cuidar de Raquel.

Dois anos se passaram e Rogério agora se encontrava em um bar, sentava ali todos os dias após o seu expediente de trabalho. Falava da vida com alguns conhecidos. Acreditava ser vítima de sua própria arrogância, ganância e estupidez. Uma vida repleta de uma falsa segurança.

Atentamente, Marcio, amigo que Rogério encontrava nesse estabelecimento sempre naquele horário, escutava e balançava a cabeça, por vezes segurava o ombro do amigo e o aconselhava. Vida de erros e desleixos. Desleixo como no trabalho, que após tantas faltas perdera. Engenheiro civil, trabalhava em construções e era muito requisitado. Agora se virava com alguns bicos em pequenas construções, sem a alta remuneração e a consideração de seus chefes. Vagava pelas ruas da cidade odiando a felicidade alheia e se refugiava em uma pequena quitinete. Seu espaço: uma cama, uma mesa e um bar.

Em um dia como qualquer outro, Rogério para no seu ponto, senta e pede uma bebida de fim de expediente. Marcio não se encontrava, um homem desconhecido se

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Por Antonio C. Almeida

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aproxima de Rogério e joga um cartão à sua mesa, se achega e fala: Este número é a sua solução. Rogério fica intrigado, observa o homem que se afasta, tenta dizer-lhe algo mas não é correspondido, então levanta e vai para casa. Chegando lá, senta em sua cama, pega o telefone e disca o número, 0800..., alguém responde: — 0800 suicídio. Rogério joga o telefone na cama, se afasta trêmulo. Convencido de que não escutara bem a telefonista, disca novamente e escuta: — 0800 suicídio. Pois não, senhor Rogério? Ele joga novamente o telefone na cama, pega uma bebida que tinha em casa, termina com a garrafa e adormece.

Rogério acorda atordoado, um pouco pela ressaca decorrente da bebida na noite anterior e o restante pela ligação que lhe pareceu um pesadelo. Sai para a rua, caminha lentamente para o ponto de ônibus, chega próximo a um posto de gasolina e desce. Cumprimenta algumas pessoas que lá trabalhavam, se aproxima do proprietário.

— Bom dia, sou Rogério. — Rogério lhe estende a mão, ele buscava ali participar de uma grande obra, há muito programada.

— Bom dia, desculpe perguntar, mas o senhor bebe? Não pude deixar de sentir o cheiro. — Rogério abre um sorriso sem graça e logo após alguns minutos o proprietário lhe avisa que caso necessitasse de seus serviços, ligaria.

Rogério caminha até o bar que freqüentava e lá encontra seu amigo Marcio. Conta sobre seu dia e do acontecimento intrigante da noite anterior. Marcio fala que para ele não era novidade e que até conhecia pessoas que tinham escolhido aquele caminho. Rogério ficou mais perturbado ainda. Marcio lhe diz que agendara com aquela empresa, ao qual classificou como excelente, um serviço parecido, estendeu um copo cheio de conhaque para Rogério, que ficou atordoado e saiu do bar em direção à sua casa.

Rogério, sentado à cama, observava o telefone. Após alguns minutos pegou o aparelho e discou o número, uma voz respondeu:

— 0800 suicídio. Pois não, senhor Rogério?

— Eu só quero algumas informações.

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—Claro, senhor, mas para isso necessitamos de sua assinatura em um contrato de associado, mandaremos um mensageiro.

— Você não entendeu. — Antes que Rogério terminasse de falar alguém bate à porta.

Rogério levanta para atender:

— Sim?

— Eu sou o mensageiro. — E o jovem rapaz estendeu-lhe um contrato.

— Como? Eu ainda estou ao telefone, falando com a telefonista!

— É só o senhor assinar que todas as perguntas serão respondidas. — Então Rogério assinou o contrato, observou o jovem rapaz caminhando pelo corredor e voltou para terminar ao telefone.

— O que está acontecendo?

— Não se preocupe, receberá após alguns dias todas as informações.

A telefonista desligou, Rogério ficou perturbado, pois não lera o que acabara de assinar, toca o seu aparelho:

— Rogério, aqui é o Marcio, tenho belas novidades para você, encontre-me amanhã no nosso local de encontros, pela manhã. — Rogério fica curioso, porém cansado, deita-se e dorme.

Ao acordar, se arruma rapidamente e corre para o encontro com Marcio, que o informa de uma construção que se iniciara próximo à sua casa e da necessidade desta que, aparentemente, correspondia aos conhecimentos de Rogério. Marcio leva o amigo até uma loja de roupas, providencia um traje, esporte fino. Diz-lhe que não se preocupe, pois com o seu primeiro pagamento poderá quitar aquela dívida, ambos caminham para o imóvel em construção. Chegando próximo ao imóvel, Marcio se despede de Rogério e o orienta quanto ao local da entrevista.

Rogério, bem alinhado, caminha até a construção, entra em uma sala bem arrumada e é recebido pelo proprietário. Uma bela mulher, aparentando seus 36 anos, o recebe. Informa das necessidades de sua empresa, estende a mão para ele e lhe informa que estava contratado, mas não antes de preencher alguns documentos. Helena, a

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proprietária, convida Rogério para um jantar a fim de acertar os detalhes finais da contratação.

Rogério, vestido com sua melhor roupa, chega ao restaurante e observa, ao entrar, Helena, bela e radiante, sentada com uma saia que além de acentuar-lhe as curvas, deixava grande parte de suas belas pernas aparecerem, fazendo com que todos à sua volta procurassem encontrar aquela brecha que ela engenhosamente cobria a fim de manter sua dignidade.

Rogério se aproximou, segurou a mão dela e conduziu-a até uma mesa. Ambos aproveitaram a noite para se conhecerem melhor, Helena levou-o até sua casa.

Amanheceu e Rogério percebeu-a ao seu lado. Ela levantou e o serviu de um belo café. Aproveitou para informá-lo de quando começaria no serviço. Rogério comunicou-lhe a necessidade de passar em casa para melhor organizar seu dia, Helena adiantou a metade do pagamento e emprestou-lhe um carro para maior conforto.

Rodava pela cidade extremamente feliz, recapitulava o seu dia, a bela conquista, o emprego. Olhava para o belo carro que a chefe lhe emprestara. Passou a quarta marcha e experimentou a potência do veículo, ao passar a quinta marcha uma corrente elétrica partiu do câmbio tomando seu corpo e causando-lhe um ataque cardíaco, o carro capotou e parou ao bater em um poste.

Segundos se passaram e ele despertou, estava em meio à lataria do carro, um bombeiro falava-lhe ao ouvido, Rogério o reconheceu, era Marcio. — Calma Rogério, já está acabando, todas as despesas serão pagas através da apólice de seguro que você assinou, sei que teve uma boa vida. Rogério arregalou os olhos enquanto Marcio tapava-lhe as narinas e a boca.

“Rogério morto, não me deixou nada, quanta tristeza trago nesta vida! A casa que ele deixou, agora está sendo disputada por outra mulher, que lhe acusa de estupro e roubo de carro”. Pensava Raquel enquanto chorava, as lágrimas desciam pelo seu rosto, viajavam pelo ar e caiam sobre o chão. Raquel pega o telefone e um cartão que se encontrava em uma mesa à sua frente e disca um número, escuta uma atendente: — 0800 suicídio. Pois não, senhorita Raquel?...

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SOBRE O AUTOR

ANTONIO C. ALMEIDA é natural do Rio de Janeiro. Aos dezesseis anos participou de seu primeiro concurso literário e obteve o primeiro lugar com a poesia «De Olhar Para o Céu». Escreve desde os treze anos de idade e mantém um acervo de mais de dois mil escritos. Estudou Matemática na UERJ. No ano de 2011 lançou seu primeiro livro: «Caminhos do Destino» e em 2013 o segundo: «Alma Assassina». Atualmente prepara seu terceiro livro: «Vida em Suspense».

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DESENCONTRO

Ele estava lá, com flores nas mãos. Sempre as flores... Elas prendem a atenção para a docilidade do gesto; miúdas as pétalas, engrandecem o momento; matéria dessas de encanto, que a natureza só em seus mistérios cria. Mas uma flor retardará a dor? Uma flor com seu perfume a deixará mais leve? Criará raízes no seio formoso dela e será eterna na lembrança? As flores, às vezes, também falham em sua missão. Pisadas, botões esfacelados, criam nódoa no asfalto e se vão como qualquer coisa que tenha carbono, das mais simples e miseráveis, longe da aura, forma de flor que tiveram um dia. Mas ele tinha a certeza do perdão, ou pelo menos, a expectativa era muito grande. Não disfarçava aquela ansiedade de quem deseja a tudo, o seu fim rápido. Ele, homem que guardava e zelava por um destino que era só seu. Muitas vezes, o seu caminho foi cruzado ao de outros, mas nesse laço, ele sempre desatava os nós da lealdade. Era, sobretudo, fiel a si mesmo, à sua vontade. Aguardava a mulher que demorava a chegar. Sempre a demora... Seriam aquelas horas perdidas, hesitação, momento de mágoa que a prendia à dúvida do derradeiro encontro?

Enfim, ela surgiu. Ele abriu um longo sorriso. Ela apenas disfarçou um riso de desdém no canto da boca, com o olhar petrificado. Ele então entregou as flores; ela apenas as sentiu entre as mãos, deixou-as de lado sobre a mesa. Ele esmoreceu. Ela retirou da pequena bolsa, uma aliança, daquelas que mulheres sonham um dia — símbolo do pacto do eterno — e lhe entregou. Ele titubeou um pouco, mas pediu perdão, fez daquelas cenas de desespero, mas um desespero contido: ajoelhou-se em uma só perna, e antes que ele tentasse beijar a mão que tantas vezes afagou, ela deu meia volta impassível. A ele, só restou gritar por seu nome, mas ela foi embora inatingível, as lágrimas correndo livres, sem olhar para trás. A dignidade era maior

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Por Antonio Fernando Sodré Júnior

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que todo o amor vivido e aquela paixão ainda sentida. Ele também chorou; uma lágrima pingada que escorreu lentamente, mas envergonhou-se; foi criado em rígida conduta e tinha na mente ainda pudores mesquinhos e vergonha daquilo que contraria a virilidade masculina, o simbolismo das coisas que são e nada mais, todas passíveis de questionamento, mas tidas como únicas verdades. Levantou-se, buscou no chão alguma migalha de orgulho, mas encontrou apenas o constrangimento. Olhava os outros homens do bar com ar de quem apunhalaria alguma pilhéria. Deu notas ao garçom para pagar o café e retirou-se.

Não houve entre os homens, e mesmo os que passavam, ar de reprovação. Todos nutriam meio indiferentes, silêncio, espanto e estranhamento. Houve apenas o ruído do rádio do balconista, que tentava sincronizar alguma estação, que por fim, melodiou versos de Buarque, em Desencontro:

“Sobrou desse nosso desencontro

Um conto de amor

Sem ponto final

Retrato sem cor

Jogado aos meus pés

E saudades fúteis

Saudades frágeis

Meros papéis”

Era o tom da despedida. E sobre a mesa, as flores rescendiam; quando uma mão as colheu singelamente. Daria a elas um destino mais feliz que o dos tristes amantes. Eles, que a fibra da paixão arrebentou-se no peito, em mais um desses desencontros arranjados e previsíveis da vida. Mas que sempre produzem esse efeito de crash em nossas retinas curiosas.

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SOBRE O AUTOR

ANTONIO FERNANDO SODRÉ JÚNIOR nasceu e vive em São Luís do Maranhão. Escreve para fluir o tempo e as ideias ininterruptas da consciência. Tem textos publicados em coletâneas e antologias.

O ANJO QUE PEDIA ESMOLAS

Jocivaldo, o marido, tolo, mas próspero capiau nordestino, costumava passar longas temporadas fora de casa, tratando de assuntos de compra e venda de gado. Sebastiana, a mulher, morena trigueira, cabocla interiorana taluda e dona de um verdadeiro furor uterino, aproveitava sempre as viagens do marido para lhe enfeitar a testa com belos e memoráveis chifres.

Tudo ia bem, até que, em certa ocasião, depois de dois dias de viagem, o cavalo de Jocivaldo assustou-se com uma cobra no caminho, derrubou o caboclo e desembestou pelo mato. Não o encontrando, após várias horas de procura, Jocivaldo retornou para casa. Depois de quatro dias de uma longa caminhada a pé, chegou a casa já noite alta:

— Sebastiana! Sou eu, abre!

Problema... Sebastiana estava empernada com Soró, um caboclinho alourado e franzino, metido a gaiato, que chegara ao povoado após a partida de Jocivaldo e que logo botara os olhos gulosos em cima de Sebastiana. A cabocla safada, assim que olhara para Soró sentira-se dominada pela luxúria de conhecer “carne nova”. Então, Soró viera e agora estava ali, enrolado na mesma cama com a cabocla chifreira. Sebastiana assustou-se:

— Meu Deus, o meu marido, ele vai nos matar! Foge, foge!

— Para onde?

— Corre bem rapidinho para o fundo do quintal, procura o galinheiro e fica trepado lá, caladinho!

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Por Antonio Maria Santiago Cabral

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E Soró assim fez. Pegou um saco onde guardava as suas poucas roupas e se escafedeu para o quintal. As galinhas ficaram um pouquinho alarmadas com a presença daquele estranho, mas se aquietaram quando Soró empoleirou-se em dois grossos troncos, a dois metros do chão. Sebastiana, já recomposta, abriu a porta para Jocivaldo, que entrou, tirou o gibão, colocou a espingarda no chão e esparramou-se na cadeira:

— Ah, mulher, até que enfim! Meu cavalo, assustado por uma cobra, desembestou pelo mato e não consegui mais achá-lo. Voltei do meio do caminho a pé! Estou...

Não terminou a frase porque, nesse momento, veio lá do quintal um barulho horrível de paus e palhas quebradas, e um infernal cacarejo de galinhas. Jocivaldo pegou a espingarda e correu para o quintal, gritando:

— É ladrão! É ladrão!

Era noite de lua cheia e o quintal estava sob uma difusa claridade, de modo que Jocivaldo deu de cara com o caboclinho Soró, estatelado no chão. Apontou e engatilhou a espingarda, gritando:

— Vou te matar, cabra safado, ladrão da peste!

Soró, caboclo astucioso, cheio de artimanhas, pensou rápido (e tinha que pensar!...) e gritou:

— Espere! Não atire! Não é nada disso que você está pensando!

— E o que é, cabra safado? Fala!

— Sou um anjo! Sou um anjo!

— Um anjo?!

— Sim, meu irmão, sou um anjo enviado por Nosso Senhor Jesus Cristo! Mas calculei mal o meu pouso e desci em cima do galinheiro!

Jocivaldo vacilou e Soró tomou coragem, levantando-se e sacudindo do corpo a poeira e restos de palhas. Na claridade, Jocivaldo observou que o sujeito tinha os cabelos alourados, o porte esguio e a fala mansa. Parecia um anjo mesmo, pensou. Retorquiu, já mais calmo:

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— E o que um anjo veio fazer aqui no meu quintal?

— Está havendo uma crise danada lá no Céu! Está faltando alimentos e a maioria dos anjinhos está passando fome, uma tristeza! Nosso Senhor Jesus Cristo me enviou ao mundo para pedir aos homens de posses e de bom coração — assim como você — uma ajuda.

— Que tipo de ajuda?

— Comida para os anjinhos que estão passando fome. Eu já trouxe um saco, olhe!

Jocivaldo olhou para o saco na mão de Soró e se convenceu. Chamou por Sebastiana:

— Ô mulher, vem aqui!

Sebastiana, toda se tremendo de medo, acercou-se.

— Esse moço aqui é um anjo, enviado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Veio ao mundo para conseguir comida para os anjinhos que estão passando fome lá no Céu. Pega esse saco aí e enche com farinha d’água e carne de sol. Coloca também uns pedaços de rapadura e um pouco de doce de goiaba.

Soró, o caboclinho safado, conteve-se a custo para não rir. Pensou, divertido: “Que idiota! Comi a mulher dele e ainda levo a comida da despensa. Vou me dar bem duas vezes!”

Enquanto Sebastiana foi providenciar os mantimentos, Jocivaldo ficou conversando com o falso anjo sobre as novidades do Céu. A essa altura, já tinham providenciado uma bela cadeira de balanço e um refresco de maracujá para Soró, tendo em vista que a viagem do Céu para a Terra fora muito cansativa e ele precisava refazer as energias, porque até os anjos cansam...

Dez minutos depois, Sebastiana voltou com o saco cheio de comida e o entregou a Jocivaldo, que falou de modo comovido para o anjo:

— Tome, meu irmão, leve essa comida para os anjinhos. E que o Nosso Senhor me abençoe e me reserve um bom lugar ao seu lado no Céu!

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— Sim, meu irmão, o Nosso Senhor saberá reconhecer a sua caridade. Os seus pecados serão todos perdoados.

— Amém, meu anjo, amém!

Soró, o falso anjo, colocou o saco nas costas e se dirigiu para a porteira de saída do rancho. Quando já estava bem próximo, Jocivaldo gritou:

— Ô seu anjo, peraí!

Soró parou, voltou-se e falou mansamente:

— Sim, meu irmão?

— O senhor não voa?

— Sim, claro!

— E o senhor não veio lá de cima, do Céu?

— Sim, claro!

— Pois trate de voltar voando, ora! — apontou e engatilhou a espingarda para o horrorizado Soró.

Não me contaram o resto da história...

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SOBRE O AUTOR

ANTONIO MARIA SANTIAGO CABRAL, 69 anos, é professor e bancário aposentado, residente em São Luís do Maranhão. Poeta e escritor semiprofissional, também exerce atividades de produtor de textos. Já publicou 8 livros impressos e tem mais de 1.500 textos postados nos mais diversos sites da Internet.

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INSIGHT

Depois de uma noite em que pouco dormiu, resolveu subir. Pela primeira vez, o fato de ter perdido o sono não a tinha irritado: abriu muito grandes os olhos, virando-os para dentro. Naquela madrugada, tomou a iniciativa. Quando chegou em cima, começou a tatear. Surpresa: o telhado não era de vidro, como pensava. Uma luz no horizonte permitiu-lhe ver: o seu era semelhante aos demais telhados dos arredores. Sorriu. Seu sorriso foi-se abrindo em riso franco. E, lá onde estava, suspensa, teve vontade de gargalhar.

Há quanto tempo se tinha deixado convencer? E tinha tomado as devidas precauções? Fazia tanto tempo que aquela idéia devia confundir-se com seu próprio início como pessoa. Quando era pequena, recolhia-se para escapar das brincadeiras — às vezes não muito delicadas — dos irmãos maiores. Ouriçava-se num canto, até que as coisas acalmassem. E seus pais eram severos, ah, eram. Agia o melhor que podia para não lhes chamar a atenção. Até que encontrou um companheiro para trocar apoios. Era algo muito incipiente, uns olhares que se espichavam à mesa de um bar, palavras ricas em dubiedade, pouco mais. Um dia, a mão do rapaz escorregou por sua face, foi explorando-a devagarinho, tocando cada milímetro. Sentia seu rosto pegar fogo; tinha vontade de escapar àquele assédio, mas, ao mesmo tempo, não tinha. E fez-se eterno aquele primeiro afago do qual saiu como se houvesse sido batizada. Dias depois, seu amigo faltou a um encontro. Foram-se sucedendo as faltas, sem que compreendesse bem por quê. Ao ser questionado, ele respondeu que estava por formar-se, iria embora, era melhor não aprofundar... Queria guardar uma imagem inteira de um relacionamento tão bonito. Com raiva, acusou-o de falso, de medroso, do que lhe veio à mente. Ao que ele falou: melhor calar, quando se tem telhado de vidro.

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Por Beatriz Mecking

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Fez uma pirueta lá em cima, estava aliviada por ter conseguido. O sol surgindo em cada nicho, banho de luz. Ela diante de si mesma, descobrindo aquela realidade que sempre lhe fora pesada. Telhado de vidro, por quê? Aquela idéia a levara a ser bastante dura. Quem iria protegê-la, a não ser ela própria? Lá embaixo, passavam as pessoas. Não a viam, passavam apressadas. Cada vez mais ocupadas...

Mauro também era ocupado. Podia dizer que tinham vivido “cada um na sua.” Não reagiu quando manifestou que iria embora. Afinal, era como se fosse algo já previsto. Foi abrir-lhe os fechos e cadeados da porta da rua. Que se fosse, depois de anos de um relacionamento íntimo que não fora tão íntimo assim. Olhou a filha que dormia no sofá, enrolada em um cobertor. Teria de ser pai e mãe. Compôs o rosto, compenetrou-se. E foi levando como podia, pois Laura era uma companhia adorável.

Abriu os braços, recebendo a luz. Cerimônia em que voltava a defrontar-se consigo mesma, aceitando-se. Suavizar o contorno dos olhos, afrouxar os lábios... Podia, de certa maneira, sentir Deus. Ou percebê-lo dentro de si. Lentamente, foi virando-se. Focou o pátio, atrás da casa. Viu Laura, o peito confrangeu-se. “Mãe, preciso ir.” Pedido pungente, balançando no ar. “Mãe, eu volto.”

Oscilou lá em cima, a perigo. Conseguiu equilibrar-se. Começou a descer devagarinho, apoiando-se nas próprias mãos. Um novo batismo acontecera.

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SOBRE A AUTORA

BEATRIZ MECKING nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul. Professora de Francês e Literatura, aposentou-se pela Universidade Federal de Pelotas. Tem publicados os livros de contos «Tempo de Renascer (1997, Livraria Café, Pelotas)» e «Histórias do Cotidiano (2001, Livraria Café/ Mundial, Pelotas)», também a novela «Os Passos de Júlia (2008, Ed. Alternativa, Porto Alegre)». Tem participações na coletânea em EBook «15 Contos+ Volume I (2012)» e no blog «Sem Vergonha de Contar». Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.

PÁGINA DO DESTINO

Rubi era o pseudônimo de Deiviny Cristine, quando ela pela primeira vez entrou em uma sala de bate papo, em um destes sites de relacionamentos. Não era assim como hoje, tudo às claras, em que se expunham fotos, ou que as pessoas se apresentavam frente a uma câmera de computador. Aquilo parecia-lhe mágico, já que imaginar como seria Topázio, pseudônimo de Kelvin, sua primeira paixão, era um exercício fascinante, excitante e ela podia criar em sua mente o protótipo de um príncipe encantado.

Kelvin, homem elegante, alto, cabelos e olhos castanhos, trinta e oito anos, bem sucedido nos negócios, era a sua apresentação. Ele tinha certeza que ganhara logo a simpatia de Deiviny, pois mostrava-se com um perfil adorável, de homem inteligente, sensível, bem informado, carinhoso, cheio de amor para dar e também muito carente (acreditava que esta era uma boa estratégia), afinal, como ele contara, havia se separado da esposa fazia dois anos e se sentia muito só. Tinha uma filha de seis anos para criar, já que a esposa fugira com o dançarino da boate, onde Kelvin um dia, fazia mais de dez anos, a conhecera também como dançarina, se apaixonaram e acabaram se casando. Ele dizia para Rubi que a esposa dele parecia regenerada de sua vida de aventuras loucas e que durante os oito anos de casamento ela se comportara muito bem. Ele viajava muito a trabalho e ficava vários dias fora de casa, até que numa volta inesperada de uma dessas viagens, constatou que a esposa continuava frequentando a mesma boate, embora não se apresentasse mais como dançarina. Desiludiu-se e jurou nunca mais confiar em uma mulher. Entretanto, a solidão foi pesando e então surgiu Rubi, uma mulher madura, apesar de ser mais nova que ele, amável, doce, carinhosa, de uma simplicidade encantadora, mas que sabia o que queria e ele então passou a

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Por Celêdian Assis de Sousa

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confiar e acreditar que poderia ser feliz novamente. Além disso, tinha certeza que ela seria uma excelente mãe para a filha dele, o que ele supunha, deixava Rubi muito envaidecida.

Rubi acreditava em coisas do destino e conhecer logo Topázio não poderia ser mera coincidência, eles eram duas pedras preciosas prontas para se tornarem uma jóia única. Ele se mostrava humilde e dizia que enfim encontrara o seu verdadeiro tesouro e que talvez nem a merecesse. Passavam horas teclando no computador e a cada dia se diziam mais apaixonados. Não foi difícil convencê-la de que muito em breve ele iria conhecê-la pessoalmente. Para ele não seria nenhum empecilho que ela morasse em outro estado, pois estava pronto até para mudar-se para perto de Rubi, se ela assim desejasse. Ela por sua vez, o fazia acreditar que Kelvin era o homem perfeito e sonhava com esse encontro. Gostava de fantasiar, de desenhar o retrato desse homem em sua mente como o tipo perfeito, contudo, ela dizia-lhe que algo a intrigava muito. Topázio se recusava a enviar-lhe uma foto por e-mail, dizia que não tinha fotos arquivadas em seu computador e que não sabia como fazer isso, mas prometia em cada despedida que no dia seguinte pediria a alguém para ajudá-lo a providenciar uma foto, para então enviá-la. Ele também insistia muito para que ela lhe enviasse uma foto, mas Rubi usava do argumento que só enviaria quando recebesse uma dele.

Passaram-se alguns meses e ele não fazia a menor ideia de qual seria a imagem verdadeira daquela adorável moça. O namoro virtual ficava a cada dia mais ardente e já parecia impossível que não vivessem mais um sem o outro. Topázio marcou então o primeiro encontro, seria naquela próxima semana. Ele viajaria para a cidade de Rubi e passaria pelo menos uns três dias com ela. Era grande a expectativa, a ansiedade e a vontade dela de ver o “seu príncipe”. Naquela semana foram muitos os preparativos, roupas e sapatos novos, cabeleireiro, manicure... Precisava estar mais bela do que nunca.

Na última vez que teclaram, dia que antecedia a viagem de Topázio, trataram dos detalhes finais como, local onde ele se hospedaria, horário que ela o encontraria e o mais importante, como se reconheceriam, já que nunca haviam visto sequer uma foto um do outro. Combinaram então que Rubi procurasse por ele no restaurante do hotel

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no qual fizera sua reserva. Ele já havia se informado por telefone sobre a posição de certa mesa no restaurante, a única que ficava atrás de uma pilastra, a qual tinha pendurado um quadro com a pintura da vista noturna da cidade dela. Assim ficou fácil, não haveria chance de erro de não reconhecê-lo.

Era uma sexta feira e Deiviny aprontou-se toda, foi ao encontro de seu “destino”. Entreolharam-se. Ela sorria. Ele estupefato, não podia crer no que via. Kelvin não poderia jamais supor que a sua Rubi era a sua ex-esposa, quem de propósito seguiu-lhe os passos nos sites de relacionamentos, durante quase um ano. Quando ainda eram recém casados, casamento que durou apenas uns meses, um dia acidentalmente e por grande descuido, ele deixou minimizada uma página na qual ele contava a mesma história de uma suposta ex-esposa e ex-dançarina de boate, para uma moça de pseudônimo “Flor de Maracujá”. Deiviny não suportou, separou-se do marido e voltou para a casa dos pais no Sul do país.

Deiviny era um falso nome e Rubi era um dos vários pseudônimos que Margareth usava para aproximar-se de seu ex-marido Kelvin nas salas de bate papo, ele que nunca atinou em variar o seu pseudônimo, Topázio.

Não se ouviu nenhuma voz naquela mesa do restaurante, exceto a do garçon, que se aproximou e perguntou: Senhor, precisa de ajuda? O senhor está passando mal e tenho a impressão que teve um breve desmaio. Enquanto isto, Margareth já na calçada, gargalhava alto e alguém que passava por ela resmungava: parece louca!

NOTA DA AUTORA:

Página do destino foi premiado em segundo lugar no Concurso Internacional «Cuarto concurso edición cuento de poetastrabajando.com — Proyecto escarlata Diciembre 2012», editado em Português e Espanhol.

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SOBRE A AUTORA

CELÊDIAN ASSIS DE SOUSA é mineira, nutricionista e tem formação incompleta em Letras. O gosto pela literatura surgiu na infância, mas só em 2009 começou a registrar e publicar seus escritos na web. Participação em dois livros, coletâneas («Gandavos» I e II, em breve o III) como escritora, colaboradora literária, revisora de textos de alguns dos autores, apresentação das obras do autor Carlos Lopes — «A Saga de um Pedro» e «Dedos de Prosa». Publicações em revistas online: «Revista LetrA-Z» de poetastrabajando em Português/Espanhol; «MalambaDoce/Recanto das Letras»; conto premiado em concurso internacional; participação em antologia de poesias (livro físico) a ser lançado em breve no Canadá. Em fase de revisão e edição do livro autoral de poesias — «Entre voos e pousos nas asas da poesia». Apresentação e prefácios das obras: «Ardentia», Claudio Poeta; «Variações assimétricas dos pensamentos», João V. Velloso; depoimento em obra de J.Estanislau, além de revisões de várias obras pela editora mineira Interface Olympus.

CORAÇÃOZINHO

Quando ela atravessou a rua, nem lembro a troco de quê, eu atravessei atrás e disse que ela não fazia coraçãozinho pra mim. Ela disse, vou fazer coraçãozinho pra ti, mas tua esposa não pode estar presente. Eu disse, garota esperta.

No Mundo Paralelo, eu poderia dizer, se eu não fosse um cara sério, que eu sou, mas se eu não fosse, eu diria que a gente podia combinar alguma coisa longe dali, e ela poderia me fazer todos os coraçõezinhos que quisesse. E ela diria que se eu não fosse um cara sério, e eu tivesse realmente dito aquilo, ela diria que sim, vamos combinar. E eu diria, bem, já que você vai me mostrar o coraçãozinho, eu também vou querer ver o resto. Quer dizer, só se eu não fosse um cara sério, eu diria isso. E ela diria, então talvez eu dissesse, bem talvez eu te mostrasse. O coraçãozinho? Quem sabe até mais. Já estou imaginando. E vai ficar só na imaginação? Depende de você. Bem, como não podemos viver em uma ilusão, é melhor a gente falar realmente à sério agora. Está falando sério? Talvez esteja, depende de você. Então vamos conversar sobre isso em outro lugar, tenho que trabalhar agora. Outro lugar pode não dar espaço. Mas eu tenho que trabalhar agora. Largue o serviço. E se eu largar, você vai me assumir? Por que a gente não pensa nisso depois? Depois pode não dar tempo. Depois de agora pode ser nunca. E se eu me apaixonar? Então a gente resolve isso depois do serviço.

Coraçãozinho, podia até ser um miniconto.

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Por Daniel Rocha

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SOBRE O AUTOR

DANIEL ROCHA nasceu em Porto Alegre, onde mora. É formado em Publicidade e Propaganda pela PUCRS. Fez a Oficina de Criação Literária de Luis Antonio de Assis Brasil, ao fim da qual publicou «Contos de Oficina 25 (2000, WS)», com outros contistas. Seguiram-se a antologia de contos eróticos «Porto Alegre: curvas e prazeres (2002, WS)», a coletânea de minicontos «Contos de Bolso (2005, Casa Verde)», «Sex’n’Bossa (2005, publicada na Itália, tradução e curadoria de Patrizia di Malta, Mondadori)», «Contos de Bolsa (2006, Casa Verde)» e «Contos de Algibeira (2007, Casa Verde)». É autor do livro de contos «Distantes Trovões» e do romance «Um Pouco Eterno», ainda inéditos.

TRÊS AMIGOS

Em memória do Índio Galdino.

O emblema do clube Vasco da Gama, belo trabalho feito em latão, sempre atraiu a atenção de quem se dignava olhar ao menos por uns poucos segundos para o tosco carrinho de madeira, construído com tábuas arrebanhadas por ele aqui e ali, sob o qual prendera as quatro rodinhas de rolimã. Em uma das extremidades daquele caixão móvel ficavam as duas travas que suportavam um pedaço de cabo de vassoura, onde as mãos do negro Joaquim se apoiavam para dirigir seu veículo de carga. Entulhando-o de pedaços de papelão amarrados por sebosas fitas plásticas, ele fazia invariavelmente o mesmo percurso através das ruas do velho centro da cidade, Mem de Sá, Gomes Freire, Lavradio, até recolher-se, tarde da noite, debaixo de qualquer marquise, para suas poucas horas de sono. Seus dois amigos, Manoel e Antonio, bem mais novos do que ele, faziam o que podiam para velar por seu sono, uma dormida com poucos sonhos e muitos sobressaltos, pois que os trocados adquiridos com a venda do papelão tinham que ser vigiados atentamente, sob pena de o café com pão seco do dia seguinte permanecer unicamente em seu famélico desejo. Há anos que os três companheiros andavam juntos, inseparáveis, todos conhecidos pelos frequentadores dos botequins da região unicamente por seus apelidos, muito embora de lusitanos nada possuíssem, a começar por Joaquim, crioulo retinto que nem sequer origem de português ultramarino possuía para justificá-lo. Às vezes se esquecia de que por Claudionor lhe tratavam em seus dias de mocidade, mas se instado a mostrar algum papel onde estivesse testificado seu verdadeiro nome de nascença, nada poderia oferecer como

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Por Heitor Herculano Dias

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comprovação de seu verdadeiro nome de batismo, considerando-se não mais que um eufemismo esse termo, privilégio dos felizes cristãos que tiveram salpicada sua testinha com água da sacra pia católica.

Durante suas inúmeras noitadas de recolhimento forçado em delegacias policiais, graças a alguns copos de cachaça além da conta, que culminavam por entreveros contra os co-participantes dos abrigos sob as incontáveis marquises da cidade, declarara sempre aos impacientes plantonistas da lei se chamar Claudionor. De quê, não lhe perguntassem porque ele nada poderia esclarecer. O emblema vascaíno, achado em um terreno baldio transformado em estacionamento clandestino, vez por outra nas avançadas horas da madrugada em hotel de alta rotatividade para os carecedores de economias, foi por ele pregado cuidadosamente na frente do seu transportador de papelão, e não demorou muito para lhe granjear o epíteto de Vascaíno, logo substituído por Joaquim, para muitos um sinônimo. Destino ingrato, o dos três inseparáveis amigos, condenados a viver pelas tristes, escuras e escarradas vielas, que de dia ainda continham sinais para lhes alegrar, qual uma ou outra saudação, uma brincadeira qualquer concernente ao grande emblema vascaíno, e na melhor das hipóteses alguns centavos a mais no quilo do papelão vendido. Quando a noite descia com suas luzes coloridas dos pequenos hotéis, o vai-e-vem dos perambulantes solitários à espreita pelos cantos, e os perfis ondulantes das bundas e seios nos tristes portais, a única preocupação de Joaquim e seus companheiros era escolher o ponto mais estratégico para mais uma noite ao relento, de preferência diante da porta de um banco. Nada de se acostarem perto de restaurantes, nem de bares, muito menos perto daqueles velhos sobrados de hospedagem, convite a uma expulsão ao raiar do dia, certamente sonorizada a palavrões e temperada a jatos de água fria.

Joaquim andava preocupado com a saúde de Antonio, que já não era tão lépido e fagueiro desde a tarde em que tentou atravessar atrás dele a Lavradio, descurando da atenção necessária ao ponto de a roda de um caminhão esmagar-lhe um dos pés, acontecimento que encheu profundamente de mágoa e piedade pelo fiel amigo o bom Vascaíno, fato que tampouco passou desinteressado diante o solidário Manoel. O acontecido não privou Antonio de caminhar, mas os deslocamentos do trio pelas ruas

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já não podiam ser feitos como antes, visto que os passos de Antonio careciam de alguma ligeireza. Em seus olhos Joaquim podia divisar sofrimento e dor, olhos de um amarelo-cinza que emitiam o brilho completo da incompreensão diante os violentos e inesperados acontecimentos que a vida lhes reservara. Em algumas ocasiões de festa, traduzível tal termo por imprevistos encontros de sólidos restos de refeições nas lixeiras, não sendo difícil entre esses encontros a descoberta de uma costeleta de porco onde seu feliz consumidor havia esquecido alguns vestígios de aproveitável carne, o pobre e manco Antonio esquecia as doloridas lembranças daquele pesado pneu.

Manoel, dos três o mais valente, possuía bem pulsante o desprezo e o medo que os seres privados de teto, nas grandes cidades, têm pelos homens fardados, e não podia deixar de expressar a seu modo o desagrado que lhe causava a aproximação de um policial, característica essa que a Joaquim requeria contornar diplomaticamente com um “Olá, chefe” ao dividirem a calçada com algum dos objetos da antipatia do amigo. As asquerosas botinas faziam ressoar na cabeça de Manoel passados pontapés em portas frágeis, que se rompiam sem muito esforço para seus executores e liberavam gritos histéricos de mulheres e crianças não-cidadãs da república infernizada, ocasiões em que sem dúvida alguma o mais aconselhável, para seres desprovidos de resistência física proporcional aos mastodontes fardados, melhor conselho não havia senão o de correr. O perfil encurvado daquele que agora se aproximava dos três amigos, entretanto, não terminava em uma botina, mas certamente nuns grosseiros pés imundos, cheios de crostas negras onde à primeira vista seria difícil discernir entre os efeitos da falta de água e a acomodação de cascas de recém cicatrizadas feridas; e a voz enrolada por álcool e catarro se dirigiu a Joaquim dentro do fechado dialeto dos deserdados. A conversa que se estabeleceu entre os dois foi apreciada com curiosidade por Antonio e Manoel, não lhes escapando o nervosismo que o suor do interlocutor do amigo Vascaíno fazia transparecer, estado de espírito que se concretizou na frase de despedida do imundo visitante: “Eles estão pensando que sou algum otário. Acertei um com uma garrafa no quengo! Baguncei mesmo, e corri!”. Ficaram os três a apreciar a figura maltrapilha, suja e malcheirosa que se afastava a passos incertos, largando um lastro de álcool e tragédia humana.

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— Ele vacilou, vacilou mesmo, meus amigos —, foi o comentário único que Joaquim se importou em fazer para Manoel e Antonio, que, emudecidos, fixaram nele seus olhares de apoio e compreensão. O recente desabafo que os três ouviram do desconhecido, agora sumido na escuridão, não lhes roubou a preocupação pela escolha de um ponto para o pernoite, posto que era mais que chegada a hora de descansar das longas caminhadas à cata de papelão e jornal. Era a hora para o merecido descanso, do qual evidentemente estavam dispensadas as faiscantes mas não tristes meninas encostadas nos portais mal iluminados, vivamente interessadas em catar também seus próprios papéis e papelões nos manjados hotéis hispânicos com seus letreiros azuis e vermelhos. O iodo ardia na cabeça do homem, mas o que mais o incomodava era aquele triste curativo sobre a testa, que o impedia de enxergar com facilidade. Saiu do pronto socorro da Praça da República tateando os bolsos, mal ouvindo as recomendações da enfermeira quanto a evitar beber pelo menos por vinte e quatro horas, a fim de não complicar o efeito do soro antitetânico. Ele sempre soubera que esse tal de soro as pessoas tomam quando se espetam com pregos enferrujados, mas não se lembrava de ter se ferido com nenhum prego. Em todo caso, esses doutores sabiam mais, e o que importava era terem estancado a sangueira da cabeça, mas tinha outra coisa agora a lhe causar preocupações, e daí seu reflexo em levar as mãos aos bolsos da calça na procura ávida. Mas lá estavam eles, intocados. No pronto socorro tem sempre um tira de plantão, e quem sabe alguém podia ter revistado suas roupas na hora dos curativos? Mas não, mesmo porque ele não precisou tirar a roupa, aliás, só a camisa, que era sangue puro. Quando voltasse para casa, a porca da Juçara naturalmente iria fazer aquele auê — “O que foi isso? Foi assaltado? Ai, meu Deus!”. — Assaltado coisa nenhuma, vai dormir antes que eu é que te assalte com um par de cadeiradas nas fuças! Deixa pra lá, e meu dinheiro? Garfaram minha grana no hospital? Não, não, está aqui, ainda bem. Preciso agora é de um canto tranquilo para uma cheirada no capricho, claro.

Aqui nestas bandas da cidade não tem erro. Não se pode é vacilar, pois vira e mexe passam os homens como não querendo nada, suas caretas de otário olhando todo mundo de dentro do camburão. Uns veados, isso sim. Ele precisava era achar uma farmácia aberta, tem que ter alguma de plantão por aí, não é possível. É melhor tratar

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disso primeiro, depois me entoco num cantão qualquer e cheiro uma no capricho, mas antes de tudo a farmácia, porque senão o diabo foge. O que é que está olhando, o que foi, nunca viu ninguém assim não, e coisa e tal, e ele foi aos tropeços pelas calçadas, a camisa de azul quase nada, mas de vermelho-sangue quase tudo, e por pouco não dá de cara com um poste na rua mal iluminada, e aparece-lhe de repente a mulher de calça branca, colante, peitos quase se derramando blusa estampada abaixo, e vamos lá amorzinho, vem cá, vem, gostoso, e vai catar outro, vagabunda, que não tou a fim, e saia do meu caminho, e afinal uma farmácia aberta. Só um cliente, logo pediu e pagou, os caras e a moça do caixa espantados e comentando as manchas da camisa. Saiu rápido que nem precisava embrulhar, se demorassem mais era capaz de quebrar todos eles, cambada de palhaços, me dá logo essa porcaria desse vidro, quanto é, toma lá. Antonio foi o primeiro a pegar no sono. Diante da marquise havia uma árvore que escurecia aquele cantinho para a soneca. Manoel ainda demorou um pouco, desconfiado, olhando o movimento dos automóveis, que àquela hora era quase nenhum ali na Mem de Sá. Passou um gato malhado, e ele, só de brincadeira, deu-lhe uma corrida, mas foi chamado de volta por Joaquim. Não era hora disso, o melhor era mesmo se acomodarem no largo papelão, junto ao portal da agência bancária, que amanhã seria outro dia, e nada como um descanso merecido, embora a sensação de um buraco na barriga incomodasse. Mas fome é assim mesmo, não ia passar mais ninguém por ali para o risco de pedir um trocado para o pão. Cachaça não havia, que problema, meu Deus! As criancinhas corriam de um lado para o outro, todas elas vestidas de branco. Todas não, havia uma menininha escura, com os cabelos amarrados em duas pequenas trancinhas coladas ao coro cabeludo, e ela olhava sorridente para Joaquim, perguntava-lhe alguma coisa que ele não entendia. Por mais que insistisse, a menina não se fazia entender, e aí então ele notou que a crioulinha era a cara da Isabel. Coitadinha da Isabel, onde andou esse tempo todo que nunca mais procurou seu pai? Mas também pudera, um pai mendigo e cachaceiro, nenhuma filha quer saber. E aí as outras garotinhas foram se chegando para perto de Isabel, mas nenhuma delas sorria. Só Isabel mostrava para ele seus pequeninos dentes de seus cinco aninhos. Seriam cinco mesmo? Não se lembrava mais.

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Não compreendeu as outras meninas, de repente, a puxarem Isabel pelos braços, gesticulando. Umas puxavam, outras faziam gestos para ele freneticamente, nervosas, com medo. Queriam levar Isabel dali, mas ela lutava para se libertar dos braços da turminha.

Ele não compreendia nada, e estranhou quando delas vieram umas gotas frias, bastante esquisitas, direto na cabeça dele. Diabo, por que Isabel e suas colegas estão a me molhar? Chegou a armar um baita sorriso, menina inteligente do pai, sabe que o velho aqui adora uma pinga e está é me molhando com uma caninha da boa, ah, é isso! Saiu daquele sonho bom no meio de um forte cheiro que era só parecido com cachaça, mas que de cachaça só se fosse parati do demo, porque logo as labaredas azuis e amarelas lhe cercaram o corpo, e as dores inclementes e dançantes subiram de seus pés descalços para a barriga, a cabeça.

Tentou afastar as quentes línguas esvoaçantes, sem sucesso. Sua garganta se fechou, seus olhos logo se derreteram, e o último aspecto da vida penetrou por seus ouvidos na forma dos latidos assustados e chorosos de Antonio e Manoel, prudentemente afastados daquela inesperada e quentíssima roupa que envolvia o corpo em convulsão do bom e paciente amigo Joaquim. Ganidos de incompreensão para com o mundo dos homens ecoaram por um bom tempo, depois somente o ruído dos passos apressados de alguém que voltaria orgulhoso para casa. Afinal, nenhum vagabundo poderia agredi-lo sem um merecido castigo.

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SOBRE O AUTOR

HEITOR HERCULANO DIAS é natural da cidade do Rio de Janeiro. Diplomado em Direito pela antiga Faculdade de Direito do Estado da Guanabara, exerceu a advocacia por mais de três décadas após saltitar algum tempo por entre funções burocráticas diversas e o Desenho — técnico e artístico — este último chegando a iludi-lo algum tempo como sendo sua natural vocação. Aposentado, mergulhou fundo na Literatura, inicialmente tentando o garimpo poético, do qual logo se afastou para se dedicar essencialmente a crônicas, contos e romances. Considera a produção literária seu melhor remédio para uma longevidade saudável; e ama a vida tal como ela é, reconhecendo a todas as pessoas o direito divino ao livre arbítrio e sem radicalismos de quaisquer espécies. Tem em seus filhos e sua neta Lara Estrela o coroamento de seu feliz estado de espírito. Publicou os romances «AlphaZma» e «Os Paulistas», «Contos Suburbanos» e um pequeno livro de viagens: «O Jeito Australiano de Ser». Recentemente concluiu seu terceiro romance, intitulado «Os Apóstolos Desventurados».

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A ROSA DOURADA

“Esta história é verídica, mas nada indica que realmente tenha acontecido. A despeito do paradoxo, a história assim se inicia:

* * *

Seus pequenos olhos corriam sem compromisso à procura de novidades. Tarefa nada difícil. Cores, formas, sons, sabores, sensações. Em cada tentativa uma nova descoberta. O mundo não se limitava apenas a seus contornos lógicos e leis ilógicas, mas expandia-se sem controle em todas as direções. Não em busca de respostas, mas de perguntas. Tão melhores as questões quanto mais irreais. Nem mesmo os sonhos possuíam patente mais alta no mundo da fantasia do que a sua própria realidade. Pelo contrário, se abraçavam e se confundiam, dando mais graça e menos razão para um mundo que já não tinha classificação. Acordar e dormir não eram transições, mas apenas ações casuais como quaisquer outras, como sentir a água descendo pela garganta seca. Não existia, de fato, uma realidade. Não para alguém que jamais tivesse sido reprimido pela forte censura do medo. Não para alguém que jamais tivesse tido um pesadelo. Não para ele.

A temperatura do sol que aquecia suas costas nuas acentuou-se discretamente, e isso já foi uma sensação completamente nova. Se em sua modesta gama de aprendizado constasse o contrato corporal de reconhecimento, se levantaria para bater palmas ao astro-rei pela incrível atuação. Olhou para aquela bela e inseparável mulher sentada perto de si e ficou confuso. Ela não mudara sequer de expressão, e parecia não

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Por Josadarck

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notar o belo espetáculo que acabava de acontecer. E a estranheza que isso lhe causava gerou outra inédita sensação. E tudo continuava provocando-o. A brisa mudando de vigor e direção, a grama coçando-lhe as coxas, a formiga escalando seu braço miúdo. Não negava nem ignorava nada disso. Aceitava cada pequeno acontecimento.

Recuperou a atenção que o sol lhe roubara e virou-se. Seus dedos ainda se encontravam mergulhados entre algumas folhas baixas. Acariciava cada uma e permitia que lhe lambessem a mão em forma de agradecimento. Olhava tudo com atenção, e tentava entender as semelhanças e diferenças de textura e matizes. Gostava muito do que estava ao seu alcance, mas o que mais lhe causava furor eram as rosas, que não estavam. Apesar de já ter ido incontáveis vezes ao quintal, jamais as tinha visto tão de perto. Eram magníficas. Dançavam no ritmo do vento e pareciam esforçar-se para lhe impressionar mais, quanto maior seu deslumbre.

Todas se pintavam de vermelho, mas possuíam diferentes tons. E em cada tom, um despropósito diferente. Seu cheiro invadia-lhe as narinas, sem permitir que nenhum outro odor se acomodasse entre o sentido impuro e o prazer pudico. Seu olhar curioso parecia ter se transformado em uma admiração profunda. Uma distância maior do que a de seus braços os separava. Desejava-as e não podia mais ficar apenas contemplando-as. Precisava tocá-las.

Estava sentado, da mesma maneira que tinha sido deixado ali, e dessa forma não seria capaz de alcançá-las. Começou a se mexer sem coordenação, tentando descobrir quais seriam o movimento e o impulso certos a tomar para aproximar-se da razão de seu deslumbre. Seu sentido de urgência e sua animação precipitada fizeram-no cair de costas na grama. Prostrou-se novamente sentado, ajeitou-se e decidiu persistir em seu intento.

Ajeitando os joelhos, apoiou com firmeza as mãos na grama, formando uma base firme. Não sabia se era exatamente assim que deveria fazer, mas já se encontrava mais próximo das rosas agora, porém não tinha mais as mãos para chegar a elas. Ainda com as mãos no chão, começou a buscar o apoio das solas de seus pés. Primeiro o pé direito, depois o esquerdo. Fazia um esforço jamais experimentado antes. Um

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sacrifício honroso pela razão nobre de reparar a distância de um amor ainda não vivido.

Primeiro tirou a mão direita do chão, quase caindo para o mesmo lado. Assustou-se e colocou a mão de volta. Tentou novamente, dessa vez fazendo um peso para o lado contrário, e logo já tinha tirado a mão do chão. Quantas sensações! A força invisível que o empurrava, a força que ele mesmo tinha de fazer para manter-se equilibrado, a ânsia temerária do desejo não saciado. Enquanto continuava sua busca, sorria sobre todas essas outras descobertas.

Tirou a mão esquerda. Resolveu ter mais cautela, prevenido pelos riscos da aventura que havia enfrentado com a outra mão. Tão logo começou a tirá-la do chão, sentiu que a força o empurrava, dessa vez, para frente. Foi se equilibrando vagarosamente, na mesma velocidade em que tirava a mão do chão. Quando deu por si, encontrava-se de pé.

Mantinha-se ali, afastado da grama, apenas com a força das próprias pernas, experimentando uma enganosa sensação de poder e independência. Sentia-se tão dono de si que, por um momento, esqueceu-se de seu verdadeiro propósito. Assim que lhe ocorreu o verdadeiro motivo de sua nova conquista, sentiu-se enganado pelo próprio egoísmo.

Voltou-se para as rosas e espantou-se. Mal podia acreditar o quão próximas estavam. Tudo se tornara mais nítido agora. Cores, cheiros e formas. Seu coração batia mais rápido, e seus olhos mal piscavam. Esticou o braço em busca do paraíso tangível, e tocou-as. Um formigamento percorreu seu braço, costas, pernas e nuca. Sentia pela primeira vez um calafrio. Entendeu que nesse instante singular uniam-se sensações e pensamentos. As rosas continuavam a dançar entre seus dedos, seus perfumes a reinventar seu olfato e suas cores a confundir-lhe as ideias. E então compreendeu que as amava.

A mulher, que até então se encontrava irredutível em sua cadeira de balanço, levantou-se em um impulso. Contente pela cena que presenciava começou a gritar:

— Venham aqui fora, venham ver! Ele ficou de pé! Conseguiu ficar de pé sozinho! Venham correndo ver!

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O menino, que não se distraiu de sua recompensa nem mesmo com os gritos entusiasmados, notou então um brilho intenso. Esticou seus pés para tentar enxergar a fonte da refulgência, quase caindo para trás.

O que via ia muito além de tudo o que já tinha visto até então. Completamente atônito, deixou-se dominar pela esplêndida visão. Uma rosa dourada. Prostrava-se, acima das outras, exibida, extravagante e soberana. Ganhava mais e mais corpo, quanto mais era apreciada. Seu poder era inebriante, pois ela ardia como o sol. Esqueceu-se das rosas vermelhas, como se nunca antes as tivesse visto, pois elas não importavam mais. A rosa dourada era inigualável. Era a única realidade, e tudo à sua volta era ilusão, inclusive a existência daquele, por ela maravilhado. Percebeu que acabara de encontrar a mais linda de todas as rosas.

Virou-se para aquela mulher que há pouco festejava como efeito de comparação, pois era a única a quem ainda amava acima da rosa, e surpreendeu-se. Ela também olhava para a flor. Porém, seu rosto era de pavor, de completo assombro. Um terror devastador invadiu seu corpo, e o calafrio que sentiu desta vez não foi agradável como o anterior. Perdeu a força nas pernas, quase caindo. Sentiu, pela primeira vez, o medo.

Voltou-se para a flor novamente. Aquela rosa, que antes ostentava um belo vestido dourado cintilante, agora ia se tornando marrom, imunda e opaca. Roubava todo o brilho e alegria à sua volta, como alimento para seu crescimento desgovernado. Sentiu-se confuso. Não entendia por que lhe fora negado o direito de apreciar mais e para sempre a beleza daquilo que amara. Seu medo crescia mais do que a própria rosa.

Tentou, então, utilizar seu único instrumento de entendimento para encontrar alguma razão para aquilo que não tinha explicação e esticou a mão em sua direção. Seus dedos, buscando o toque esclarecedor, cobriam parte da rosa de sua vista, pois se entrepunham entre seus olhos e a imagem da flor. O momento do contato, para ele, parecia impossível, e de fato o era. Sua singela noção de profundidade não lhe permitia notar que a flor não estava a centímetros, mas a dezenas de quilômetros do instante do toque. Ele não a alcançaria, mas ela veio em sua direção.

Seus dedos começaram a desaparecer no ar bem frente a seus olhos, a poucos palmos de seu nariz, como se nunca antes tivessem existido. Depois dos dedos, a mão.

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O braço e todo o resto de seu corpo foram consumidos pela luz mortal. A mulher também desapareceu em pleno ar, assim como a casa e tudo o que havia atrás dela. Nada disso ele pode notar, pois a velocidade da devastação impiedosa foi extremamente menor do que o tempo necessário para que o cérebro percebesse a dor. A fantasia acabara. Só havia a realidade.

Não chegou a entender que aquela flor letal não distinguia-se de suas primas apenas pela cor, e que essa era a menor das diferenças, pois ela não fora gerada pela sabedoria imensurável da natureza, mas pela estupidez mórbida dos homens.

A arma de destruição em massa, que converteu carne em pó, havia condenado até mesmo aquele que não sabia o que é ser inocente.

E o menino, que outrora as amou cegamente, morreu odiando as rosas.”

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SOBRE O AUTOR

JOSADARCK é engenheiro por formação, músico por admiração e escritor por aspiração. Publica suas frases, poesias e contos através do site Recanto das Letras e mídia social. Pretende transformar através das palavras, palavras que são transformadas através de ações.

DEVASTAÇÃO

Impossível esquecer a primeira vez que vi Flora. Ela estava à beira do rio. Solitária. Vestida com muitos grilos e raríssimas borboletas. Sobre seu sexo, repousava um buquê de espinhadas e secas rosas, ladeadas por ramos de sensitivas e camomila. Silenciosa, ela mastigava mecanicamente um restinho de sonho. Suas mãos eram galhos ressequidos, mas suas unhas tinham ainda a maciez de perfumadas pétalas. Os grilos cobriam seu corpo. Deixavam pouco espaço para as multicoloridas borboletas.

Aproximei-me devagar. Com olhar experiente, vi que aquele terreno ainda era fértil. Ela murchava a cada tentativa de toque. Pacientemente, espantei um a um os grilos. As borboletas encontraram o caminho de volta, cobrindo o corpo de cores e alegrias. Cautelosamente, afastei os ramos de sensitivas e os de camomila. Livrei-a das ressequidas rosas e vi que um jardim se escondia por trás dos espinhos. Um jardim. Uma fonte de néctar com aroma de jasmim, sândalo e alecrim ao mesmo tempo. Provei o mel que emanava daquela fonte. As mãos ganharam viço de verdejantes folhas e as unhas atingiram consistência suficiente para arranhar minhas costas enquanto eu depositava nela a semente guardada para aquele momento.

A cada encontro, Flora se renovava, alimentava-se de sonhos novos e o sorriso voltava a sua face. As borboletas esvoaçam pelo seu corpo, deixando entrever, em breves relances, suas perfeitas formas. O vento levava seu perfume para toda a região.

Saciado, depois de tanto me afogar na seiva que ela abundantemente me oferecia, fiz o que sempre fora meu costume: procurei outros campos.

Quem chegou depois de mim jura que ali nunca houve flores, nunca houve perfume, que ela jamais sorriu e que jamais uma borboleta pousou sobre aquele ressequido

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Por José Neres

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corpo. Pois os que tentaram espantar os grilos que a cobriam só encontraram um tronco coberto de percevejos e, cobrindo o ventre, sedosas folhas de urtiga.

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SOBRE O AUTOR

JOSÉ NERES é professor, tradutor e escritor. É graduado em Letras (UFMA), especialista em Literatura Brasileira (PUC-MG) e mestre em Educação (UCB). Autor de diversos livros, entre eles, «Negra Rosa & Outros Poemas», «50 Pequenas Traições», «Restos de Vidas Perdidas» e «Estratégias para Matar um Leitor em Formação». Atualmente é professor da Faculdade Atenas Maranhense (FAMA) e da Faculdade Pitágoras. Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.

O LUTHIER

Naquela fria noite de Madrid, o senhor Juan Carlos era o único corpo caminhando pelo escuro e estreito beco de paralelepípedos. Sendo muito tarde, ainda assim lhe parecia imprescindível voltar a seu atelier para revisar aquela encomenda tão especial antes do amanhecer.

Apesar da nostalgia do Mar Mediterrâneo, a saudade do sabor indescritível do grão-de-bico cozido ao estilo de Andaluzia e de alguns latejantes calos em ambas as mãos, ele tinha se instalado naquela cidade das oportunidades porque todos os meses uma miserável aposentadoria se apoiava em suas costas e juntos se alimentavam de um prato de lentilhas.

Dizia-se que Juan Carlos havia sido parido pelas mãos da bisavó entremeio de violões. Sua intimidade com a madeira e o aguçado ouvido para os instrumentos musicais foram transpassados naturalmente pelo bisavô paterno.

Em todos os cantos das províncias de Andaluzia todos comentavam que os homens da família Castillo fertilizavam os futuros luthiers da Espanha. Por causa dessa fama, sempre havia um cochicho na hora da missa onde se comentava que as esposas dos Castillos pediam bendições ao padre para que Deus lhes mandasse fortes filhos varões. Elas desejavam ser reverenciadas pelos maridos pela boa procriação e perpetuação do sangue dos excelsos artesãos.

O senhor Juan Carlos entrou no atelier, acendeu as luzes e caminhou em direção à mesa principal. Naquele lugar as prateleiras estavam repletas de ferramentas, máquinas, esqueletos de violões e um sugestivo olor a pó de serragem.

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Por Marilise Batista

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Depois de quarenta anos dedicando-se ao mesmo ofício, ele se reconhecia como um artesão experimentado na arte da lutheria, mas pela primeira vez sentia uma leve dor no estômago.

Fazia um mês que havia recebido um pedido para a elaboração de um violão que estaria destinado a um famoso violinista flamenco. Sua intuição lhe advertia que aquele músico não somente se preocuparia da qualidade dos cedros, abetos ou ciprestes selecionados como matéria prima, mas que a ele lhe importaria comprovar se seria cumprido o desafio de transformar paus de madeira maciça em sensações e emoções da alma cigana.

Depois de uma extensa revisão do apreciado violão lhe pareceu que tudo estava em perfeitas condições. Mas a ultima palavra seria a opinião de seu refinado e exigente cliente.

Cansado e padecendo de dor nas costas sentou-se numa cadeira para descansar os ossos. De súbito deu um salto assustando-se com três fortes batidas na porta do atelier. Sem se mover viu como a porta rangia abrindo-se bem devagar. Com passos seguros, firmes e precisos entrou o mesmíssimo violinista de flamenco, o senhor Miguel Ramirez.

Miguel Ramirez, camisa de seda branca, era um desses homenzarrões que caminham pela vida sussurrando um espanhol cigano ao ouvido de mulheres de camas alheias. Com seus negros cabelos longos era um tipo agradável à vista, e até seus rivais do mesmo gênero encontravam-no desgraçadamente um imbatível sedutor.

Fixamente sem pestanejar, Miguel Ramirez encarou profundamente os olhos do artesão. Sequer o cumprimentou, pois homens como ele somente ocupavam a boca para os murmúrios da língua romanês e seus ouvidos para o lamento de um violão cigano.

Ramirez não entrou caminhando, mas sim deslizando pelo atelier e arrastando com seus sapatos de tacos o pó de serragem das árduas semanas de trabalho. O senhor Juan Carlos tampouco quis lhe dizer nada e, com um tímido gesto com o dedo indicador, lhe apontou seu violão para que ele pudesse verificar a qualidade do trabalho executado.

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Fechando os olhos o violinista abraçou delicadamente o instrumento constituindo-se num casamento monogâmico. Com as pontas dos dedos o acariciava como se fosse o corpo de uma bela donzela perfumada de tulipas. Aquele olor da madeira o levou ao mais puro estado de êxtase e inspiração musical. Imediatamente Ramirez começou com um rasqueado flamenco.

Juan Carlos, sentado e emudecido, desfrutava daquele momento constatando que a matéria orgânica finalmente alcançava sua plenitude artística nos dedos daquele grande músico.

De repente as luzes se apagaram, o atelier se escureceu e apenas a lâmpada que estava no teto em cima do guitarrista continuou iluminando a sala. E em lapsos de segundos tudo se transformou num palco de algum pequeno teatro de Madrid.

Frente aos olhos do artesão, que escutava a paixão e a intensidade da música cigana, apareceu uma bailarina de olhar esquivo, castanholas nas mãos, vestido vermelho e flores nos cabelos. Ao outro lado do tablado se ouvia o canto nostálgico e o toque de dedos e palmas no compasso de três tempos realizado pelos músicos que sempre eram seus acompanhantes nas apresentações. O sapateado flamenco, ah!, como não tê-lo ali mesmo se o chão do atelier era feito da mais pura madeira européia.

Música! Canto! Dança! Palmas! Sapateado! Castanholas... OLÉ!!!

Quando Miguel Ramirez deixou de tocar o violão, Juan Carlos presenciou como misteriosamente todas as luzes do atelier voltaram a acender. O artesão olhou para os lados e teve que se convencer de que naquele lugar não havia mais ninguém além do músico e sua própria existência.

Miguel Ramirez lhe sorriu. Era um sinal claro de que o instrumento estava esplendido, inigualável, magnífico e sublime.

— Quanto lhe devo?

— Nada, senhor Ramirez, nada. Leve-o, por favor.

Ramirez guardou a relíquia no case e saiu pela porta sem se despedir.

A luz do sol que entrava pela janela acordou Juan Carlos. Tanto tinha sido o cansaço e o sono que o pobre artesão não se deu conta de que tinha passado a noite sentado na

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cadeira. Levantou-se e olhando-se no pequeno espelho pendurado na parede esfregou os olhos com as mãos. Estava sedento por uma xícara de café com leite.

Continuava cansado e padecendo de dor nas costas. Voltou a sentar-se na cadeira para descansar os ossos. De súbito deu um salto assustando-se com três fortes batidas na porta do atelier.

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SOBRE A AUTORA

MARILISE BATISTA é paulista, pedagoga pela PUC-SP, radicada no Chile. A autora assume que seus textos são impregnados de um dramatismo e uma linguagem mais familiares à cultura hispânica. Por se sentir cômoda dentro desse estilo na composição de seus contos, sendo brasileira, surpreendeu uma banca examinadora e ganhou um prêmio num concurso literário no Chile com o Conto «Bendiciones de Julia». Reconhece que sua vertente na língua portuguesa se reflete melhor na literatura infantil. Na elaboração dos contos infantis constrói personagens minuciosamente estudados dentro de aspectos psicológicos bem delineados, cuja moral ou a mensagem implícita não se esgota no final do texto. Seu conto infantil «O Grande Talento de Lázaro» foi publicado na Revista Viverde, «João Rabugento, o Ladrão de Pipas» faz parte do projeto Formadores do Saber pela Fundação Santo André, e «Os Pezinhos de Sofia» está na Antologia Infantil Historias Para Você Dormir 2, pela editora Valladares.

CAMILA

Quando começaram a namorar, ela se sentia envaidecida com o olhar atento de Humberto. Gabava-se com as amigas, e algumas chegavam a invejar a paixão do rapaz. Afinal, ela nem era assim tão bonita para inspirar tamanho cuidado. O interesse dele não diminuiu com o tempo, ao contrário, Humberto tornava-se a cada dia mais aplicado, acompanhando-a em todos os programas, apresentara-se à família dela e conquistara a simpatia dos pais com seu comportamento um pouco à moda antiga. Esforçava-se para levar a namorada à faculdade, mesmo que isso significasse algum atraso para o trabalho — contava a seu favor ter o pai como empregador. Agora, o olhar e a presença constante de Humberto alimentam mais desconforto que vaidade, mas ela não divide isso nem com a amiga mais chegada.

Hoje, vendo que já não havia sinais do hematoma no braço e sabendo que ele não poderia levá-la, porque era o dia da semana com maior movimento na oficina, ela foi à aula com uma blusa mais leve, nada muito ousado, mas Humberto a esperava na saída e mal ela entrou no carro veio a inquisição, com voz mansa: porque estava usando aquela roupa tão provocativa justo no dia em que ele não poderia protegê-la? Tentando não gaguejar nem demonstrar fraqueza, fez ares de impaciência e defendeu a inocência das vestes, mas mal sumiu o som da fala sob o barulho do rádio ela sentiu o estômago contraído e as palmas das mãos umedecendo. Falando baixo, em tom carinhoso, Humberto lhe pediu que ligasse para casa, avisando que almoçariam juntos e que, em seguida, ela faria um trabalho da faculdade na casa de uma amiga, mas que chegaria em casa antes das oito. Ela resistiu, pois já tinha prometido à mãe almoçar em casa para agradar a avó que estava passando uns dias com a família. Então

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Por Maurem Kayna

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almoçarei lá, determinou, e depois lhe darei carona até a casa da sua colega para vocês fazerem o tal trabalho da faculdade, concluiu sem dar margem à discussão.

Vendo-se sem alternativas, ela ligou para a mãe, que prontamente colocou um lugar extra na mesa. Humberto era sempre bem-vindo por conta do sorriso contagiante e da gentileza com todos da casa. Procurou agradar também à avó e até se distraiu um pouco enquanto conversava com a anciã — o suficiente para que a namorada pudesse ir ao banheiro com o celular no bolso.

Sua amiga mais próxima sentia-se atraída por Humberto. No começo, ficara magoada, mas há algum tempo começara a ver nesse interesse uma chance. Já havia feito sugestões pouco explícitas para que se aproximasse de Humberto e até insinuara disposição para uma aventura erótica, onde haveria espaço para ela. Não tinha um plano claro, mas esperava que Humberto correspondesse às investidas da outra e a deixasse de lado. No banheiro, aproveitou a curta interrupção da vigilância e enviou uma mensagem categórica para a amiga, confirmando o endereço do namorado e dizendo o horário e a roupa que deveria usar.

Serviram a sobremesa assim que ela voltou à mesa, e Humberto atravessou-a com olhar desconfiado. Ela gelou, mas já aprendera a se dominar. Enquanto todos comiam pudim de leite, ele aproveitou a animação à mesa para recolher o telefone do bolso dela, mas não encontrou qualquer vestígio que gerasse desconfianças, pois ela se tornara meticulosa. Ainda cismado, mas sem levantar suspeitas, ele perguntou se ela não estava atrasada para o trabalho na casa da colega.

Não trocaram uma palavra sequer no percurso até o apartamento dele. No elevador, já visivelmente irritado, ele se aproximou e, segurando com força desnecessária seus cabelos, cochichou a sentença: por que você me provocou assim hoje, docinho?

A porta se abriu no quinto andar. Uma moradora desculpou-se, achando que interrompia preliminares de uma tarde quente. Ele sorriu ruborizado, como um rapaz bem-educado pego em uma travessura, e abraçou a namorada. Ela esboçou um quase sorriso de criança obediente.

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Ao entrarem no apartamento, ela tentou abrir as cortinas da sala, mas Humberto a interrompeu com mãos firmes. Imobilizada e apreensiva, ela desabou. Não quero que você chore, foi a única coisa que disse enquanto a arrastava para o quarto.

Trancada no cômodo com vista para o paredão do prédio vizinho, sem saber quanto tempo ele levaria para voltar ou quais eram as suas intenções, teve medo que sua aposta falhasse. Mas só podia esperar e ficar atenta aos ruídos na cozinha, sem saber se Humberto apenas jogava com seu medo ou se algo inédito viria. Tinha vontade de desabafar e pedir auxílio à família, mas ele havia tomado seu telefone antes de chaveá-la na alcova escura.

A fechadura emitiu um som. Teria valido o risco fazer uma cópia da chave sem que ele percebesse e entregá-la à amiga? Torcia para que ela estivesse vestida para impressionar, que ele se deixasse seduzir, que ninguém se machucasse e que ela pudesse voltar a se mover sem sentir-se observada o tempo todo. Sentou-se na cama, alerta, ensaiando uma coragem inexistente.

A porta se abriu num rompante e Camila mantinha-se muda porque a mão de Humberto fechava sua boca e nariz. Os olhos arregalados procuravam uma explicação no rosto assustado da amiga. Ele, com voz baixa, exigia uma explicação e, diante da gagueira da namorada, voltou os olhos insanos para a outra moça, que tremia sob sua força. Determinou que não gritassem ou se arrependeriam e arremessou Camila sobre a cama. Abraçaram-se as duas, mas apenas uma chorava; a outra, acostumada aos sustos, estava seca.

Humberto segurava uma faca. Não desejo usá-la, disse, mas uma delas sabia o que vinha depois de uma voz chorosa, mesmo ele dizendo não querer fazer algo ruim. O pavor repetido se fazia raiva e cálculo. Apostando que a surpresa impedira ambos de chavear a porta, ela jogou Camila sobre Humberto e correu com todo o medo acumulado nos últimos meses. Desceu a escadaria e ficou aliviada ao não ver o porteiro em seu posto.

Em casa, disse que o trabalho tinha sido concluído antes do previsto e foi passar o resto da tarde com a avó. Falaram de infância e de receitas antigas. Sobre o namorado ela não quis conversar, retrucando não terem nada mais sério quando a avó quis saber

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sobre a origem daquele moço tão esforçado em ser simpático. A visita da avó a livrou do medo noturno, conversaram até tarde da noite, encurtando o desconforto da insônia.

No café da manhã do dia seguinte, ela foi sacudida pelo assombro do pai ao ler o jornal em voz alta para toda a família, alternando o olhar entre a manchete e o semblante da filha. O pânico da menina passou por surpresa, afinal, como ela poderia imaginar que Camila tinha algum envolvimento com Humberto? Perguntou ao pai, com os olhos lotados de choro, se ele estava preso. A resposta intensificou as lágrimas e fez reviver seus temores. O abraço do pai tentava consolá-la, mas o sossego estaria distante daquela casa enquanto Humberto não fosse capturado.

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SOBRE A AUTORA

MAUREM KAYNA é engenheira e escritora (talvez um dia a ordem se altere), baila flamenco e possui textos publicados em coletâneas, revistas e portais de literatura na web. A primeira publicação “solo” em EBook foi em 2010, com a seleção de contos finalista do Prêmio SESC de Literatura 2009 — «Pedaços de Possibilidade», pela Simplíssimo. Recentemente lançou dois novos volumes de contos em EBook que podem ser conferidos no site: www.mauremkayna.com.

EM NOITES FRIAS

Mesmo no verão as noites estavam frias e causavam certo desconforto no pescoço da Otilia. Mas afinal, se perguntava: o que estava fazendo sozinha no meio da estrada e com um filho pequeno enrolado em cueiros num sono que dava gosto; olhando em frente, para o breu, sem nenhuma luz a iluminar o caminho que dava acesso à estrada geral para Cruzeiro do Sul?

Ia ou ficava? Tinha um longo caminho pela frente, mas tinha também outro tão longo caminho de regresso.

Pensou no pequeno quando saiu de casa e foi sem direção apenas para desanuviar a mente um tanto conturbada com os acontecimentos que vinham se desenrolando desde sempre e desde então vivia num fio que a segurava em casa. Um fio tênue que se desmancharia tão logo seguisse em frente, sem ninguém saber, sem desculpar-se com ninguém, sem ficar dando explicações para o inexplicável.

O regresso se mostrou quente quando viu o filho enrolado na friagem da noite, mas a ida só com a roupa do corpo para lugar nenhum a deixou pesarosa e com frio. Iria? Seria um recomeçar de tudo e isso lhe dava a ânsia de seguir adiante e caminhar sem parar e o pequeno soluçou um instante fazendo com que Otilia voltasse o pensamento para a empreitada dura que talvez o bebê não suportasse, tampouco ela.

Olhou para trás enquanto dava o peito de mamar e viu pequenas luzes ao longe num convidativo voltar. Tudo era conhecido e mais fácil de viver ali naquela cidade em que vivia, voltou as costas para a estrada geral e o frio tornou-se insuportável e igual ao que sentiu em toda a sua vida, um frio de amargura que ia em seu íntimo e que não saía de seu peito nem quando o neném mamava com fome.

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Por Michele Calliari Marchese

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Finalmente pensou em si. A sua carne precisava de liberdade, de planos e objetivos que a fizessem perder o ardume de sua alma, precisava alcançar o amor próprio para seguir adiante, mas um medo podava-lhe o movimento das pernas. A cabeça ia, mas as pernas não obedeciam e o pequeno dormiu pendurado no peito.

Virou-se para a estrada geral e pensou que estava com fome e onde estava com a cabeça ao sair de casa sem um pedaço de pão. Olhou para os pés do pequeno para certificar-se que estavam bem cobertos e arrumou o cueiro em sua cabeça para que a friagem não pegasse na moleira. Olhou para si e estava um trapo, como sempre esteve durante a vida inteira e sabia que podia modificar-se se quisesse, mas conseguiria?

Conseguiu dar um passo e parou, olhou para trás e sentiu novamente aquele inverno relutante e as luzes a piscarem nas casas, algumas chaminés com fumaça e um cheiro de comida avançou-lhe nariz adentro, fazendo com que fechasse os olhos um instante para descobrir o que estava assando lá longe distante de tudo, mas ao mesmo tempo dentro de seu coração.

Enrolou o filho mais um pouco com medo que o gelo que sentia em seu corpo passasse para ele e então se voltou para a cidade e começou a chorar.

Chorou com os soluços sofridos e com a verdade que sentia dentro de si, um renovar de vida, de sentido, de luta íntima e cuidou para que as lágrimas não caíssem no rostinho do pequeno que já estava colado ao seu. Sentiu o calor do nariz dele e foi isso o que lhe deu forças para se decidir, porque mesmo no verão as noites eram frias e aquele desconforto em sua nuca a fez decidir-se pelo que era melhor para a sua vida e para a vida do filho tão pequeno, tão dependente que ressonava em seu colo alheio às suas decisões.

Bastava-lhe o amor.

E era só.

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SOBRE A AUTORA

MICHELE CALLIARI MARCHESE é catarinense de Xanxerê e contista. Participou em coletâneas publicadas pela editora Literata de São Paulo nos Livros «UFO-Contos não Identificados (2009)», «Espectra (2010)» e no «Livro dos Prazeres» publicado pelo SESC de Santa Catarina em 2008. Um de seus contos está na coletânea em EBook «15 Contos+ Volume I” (2012)» e tem 24 de seus causos no primeiro volume de «Causos da Campina (2013)», EBook a ser lançado pelo projeto «Quintextos». Publica regularmente nos sites «Sem Vergonha de Contar» e Recanto das Letras.

SER HUMANO

A imagem era a de um caos naqueles metros quadrados: lixo esparramado por todo lado, bichos asquerosos e odor fétido. À noite tudo isso parecia ainda mais aterrorizante, mais intenso.

Percebi uma barata, cascuda, ziguezagueando à procura de migalhas e insetos mortos. Logo, teve que fugir de uma perseguição de insistentes pisadas. Tonta, conseguiu se esconder atrás de umas sacolas cheias de material orgânico. Para minha imensa surpresa ou loucura, presenciei uma metamorfose: a barata se transformara em uma imensa e repugnante ratazana.

Como ratazana, passou a devorar com voracidade todo aquele lixo, e havendo tentativa de alguém acuá-la, respondia ferozmente com seus dentes amarelados em posição de ataque.

Um grupo de garotos que passava por aquele viaduto reparou na ratazana e começaram a correr atrás dela, dando-lhe pedradas, ora acertando em sua cabeça, ora acertando em suas patas. Já cansada de correr, machucada em todo o corpo, caiu ofegante. O golpe fatal foi uma bastonada de ferro na cabeça – o sangue correu pela calçada.

Foi aí que percebi que estava sem meus óculos. Os procurei desesperadamente em meu paletó, colocando-os de imediato.

Meu Deus! Não era barata nem ratazana; era um homem! Horror! Horror!

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Por Raphael Reis

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SOBRE O AUTOR

RAPHAEL REIS é mestrando em Educação (UFJF), especialista em Políticas Públicas (UFJF) e graduado em História (UFJF). É autor do livro «Contos que Machado de Assis e Jorge Luis Borges Elogiaram» e editor da Revista Encontro Literário (ISSN 2237-9401, revistaencontroliterario.blogspot.com).

DESCRER SEM VER

Já era inverno naquele vilarejo onde o vento arejava as saias tagarelas das donzelas e o céu, vestido de açúcar caramelizado, escorria frente aos olhares do seu povo.

Por certo que não existia tempo nem temporal mais festivo quando era a vez das nuvens da respeitada dona Maria Mole trovejarem o seu doce em paladares de saliva açucarada. Isso quando a neve não era mousse escorrendo montanhas perfumadas, perfumando os caminhos quase sem querer.

Todo fim de tarde era assim e Amóra, que já ia se assanhando no compasso pra fazer bagunça com retalhos, deslizava as tranças do seu cabelo cor de milho como quem tece brincadeiras inventadas pra ter desculpas de verdade no sorriso que nunca quis partir.

Escorregou a ladeira na sua bala de goma cor de beijo, cantando e contando histórias que sempre ouvia por aí.

— Ainda bem que aqui a invenção é história de verdade. Pois mentira, amiguinho, é realidade inventada pro faz de conta valer à pena, de verdade!

Já escurecia e as estrelas eram vagalumes que de dia, vagavam entre os campos e de noite, pirilampos grampeados, pendurados num trapézio.

Sentou-se então junto às joaninhas sabor de framboesa e foi lá que se (des)encantavam com histórias de quadrinhos de um mundo à fantasia, onde o céu era azul(ejado) pelas janelas dos grandes prédios com nuvens de fumaça, pessoas eram robôs e chuva era água de choro que a terra vertia por não poder florir em paz.

[passarinho era ladrão (?) já que vivia engaiolado mas, se gaiola não é vitrola (?) ... ]

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Por Samara Bassi

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— Confuso esse mundo que inventaram pra gente acreditar em (des)conto de (almo)fadas, onde de pouco em pouco se vive pela metade.

Resmungou.

E saiu, acompanhada por grilos falantes com quem conversava enquanto as cigarras tocavam suas violas, chegando sempre à mesma (e falsa, mas real) conclusão de que mundo perfeito é só aquele em que a gente vive. E nossa verdade é sempre absoluta, estando acima sempre de qualquer outra “mentira” que pro outro, será sempre a sua única e incontestável verdade, também.

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SOBRE A AUTORA

SAMARA BASSI é paulista apaixonada pela cultura e pela arte em todas as suas formas de acontecer, pelas suas nuances de ser e de estar no mundo. Sinestésica por natureza, teima em atravessar janelas do olhar alheio para degustar o sabor das íris e tatear sentidos, na busca do mínimo entendimento do mundo e daquele tão interno quanto surpreendente, universo de cada um. Escreve para clarear suas verdades, num encher-se, transbordar e esvaziar constante. Embrulha uns versos numa mão e na outra, versos alheios, porque o particular se compõe desse enlaçar diverso e surpreendente do ao redor. Se pinta de poesia e nos lábios, leva alguns poemas para não “viver de poucas alegrias”.

O CHÁ

Ele volta da cozinha trazendo a xícara. A fumaça sai, está quente.

Como é bonito Ricardo... Mais jovem do que eu. Joga bem tênis. Não tenho forças para correr atrás da bolinha. Inválida.

— Não diga uma coisa dessas, amor! — Ele disse uma vez.

Meu Ricardo... Vejo bondade, um anjo que entrou na minha vida. Conheci numa festa.

— Lembra de como nos conhecemos?

— Não é hora para isso. Pegue a xícara, beba o chá.

— Está quente, fervendo.

— Sopre. Beba devagar.

Foi no aniversario de uma amiga. Clotilde.

Aproximou-se, como quem não queria nada, falou alguma coisa, não entendi. Repetiu. Prestei atenção nos olhos, amo olhos, sempre amei olhos e os dele eram especiais.

— Meu nome é Ricardo. — Mostrou o sorriso, apareceram os grandes dentes brancos.

Ah... Amoleci, virei gelatina.

Jovem. Sem problema. Meus relacionamentos sempre foram com homens mais novos; o último, três anos de diferença. A voz era nuvem suave e amorosa. Ai, que gostoso!

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Por Rodrigo Arcadia

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— Dançar?

— Sim, dançar. Dançar colado, música lenta. Sentir o corpo.

— Adorei. — Confessou.

Queria vê-lo de novo. Também queria. Depois daí começamos tudo.

Sou mulher de muitas posses. Quatro lojas ali, duas fazendas, casas de alugueis, uma no litoral. Tenho boa renda que me sustenta.

— É dona do mundo. E minha dona.

Dona do seu coração...

Muitos não aceitavam. Clotilde era um deles.

— Ele é misterioso.

— Com inveja, querida?

— Imagina! É minha opinião.

Ele me ama.

— Ricardo, você me ama?

— Que bobagem, claro que amo.

É verdade, me ama.

— Beba o chá.

— Enjoada.

— Você não está bem. Beba.

Bebo.

Vai ligar o som.

— Colocarei Chopin. — Avisa.

Sabe que aprecio Chopin. Queria tocar piano. Aprendi as primeiras notas, nunca tive paciência. Clotilde toca, tem dedos leves, morria de inveja mas adorava ouvi-la tocar.

—Toque aquela, querida.

— A Polonesa?

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— Esta.

Fechava os olhos, deixando a música fluir na mente.

— Coloque a Polonesa, Ricardo.

Volta. Vê a xícara.

— Ainda não bebeu?

— Não sinto nada, não quero chá na minha frente.

— Precisa, está doente.

— Indisposta, nada de mais.

— Na tua idade uma doença à toa torna-se grave.

— Ah... Preocupado com essa velha?

— Não fale assim, fico triste.

— Desculpa.

Beija na boca. O mesmo beijo de antes, o gosto da primeira vez.

Na varanda, casa de Clotilde, no aniversario. Encostou, os braços na cintura, moveu a cabeça na direção do lábio.

— Pare!

Virei o rosto.

— Nem nos conhecemos profundamente.

— É desnecessário.

Beijo forçado. Tentei combater. Afrouxei. Terminado, encontrei-me voando.

— Toma, amor.

— Enjoada, Ricardo.

— Toma, será o último.

Ando molenga, fraca, com tonturas, não estou normal, as imagens embaçadas. Falo lentamente, recordo do passado, não estou bem.

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O enxergo como imagem fora de foco. Abro e fecho os olhos, vulto movendo, falha o raciocínio.

Vulto, algo se movendo, cabeça girando...

Perdida. A música recomeça, não é Chopin. Frank Sinatra.

Aproxima. Vulto. Tenho medo.

— Ricardo, é você?

— Sim, amor. Bebeu o chá?

Pega a xícara. É ele mesmo?

— Está aí, Ricardo?

Sem resposta.

Tonta. Sem raciocínio. Enxergo nada. Fraca, molenga e cansada.

— Ricardo, cadê você?

Cabeça pesada, vista pesada.

— Aqui, do teu lado.

— Ricardo!

— Calma. Por que o desespero? Feche os olhos e tudo ficará bem.

— Fique perto de mim, não saia, me proteja, não vá embora. Jura que ficará perto de mim, jura?

— Pronto. Feche os olhos e tudo estará perfeito. Tudo estará perfeito...

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SOBRE O AUTOR

RODRIGO ARCADIA é natural de São Jose dos Campos, SP. “Fazedor de contos, causos e poesias”, participará de uma antologia de contos fantásticos, ainda em produção. Publica regularmente no site Recanto das Letras.

SE CALHAR O MAL ESTÁ NA CABEÇA

Havia uma espécie de neblina. Ou talvez névoa. Na verdade, qualquer coisa onírica a obscurecer-lhe a capacidade de olhar, e de ver, e de perceber o tino dos seus passos à medida que se dirigia para o púlpito, enorme, bem mais alto do que ele, lá ao fundo, no final do tapete vermelho que cobria aquela clareira aberta no meio da multidão, dividindo-a simetricamente, de um lado e do outro, gente sentada num sem-número de cadeiras enfileiradas na horizontal, que o seu caminho fazia-se na vertical, a direito, sempre em frente, em busca do lugar sagrado no qual estava prestes a discursar em público pela primeira vez na vida.

Sentia os braços retesados, tensos, demasiado vergados à rigidez ditada pelo peso de algo que afinal não podia ser assim tão pesado. Mas que doía. O fardo de uma responsabilidade imposta precocemente; a de comunicar e de saber comunicar perante tantas pessoas, com apenas seis anos de idade, o que havia rabiscado em duas folhas de papel que levava dobradas na mão esquerda, enquanto apertava com a direita uma bolsa preta de fecho, acolchoada, com um pequeno livro enfiado lá dentro. A Bíblia, os textos sagrados remetidos para uma vulgar cópia impressa em edição de bolso, ostensivamente protegida por aquele saquinho de pele.

Miguel gostava de imaginar que o seu livro era feito de folhas de palmeira cozidas em leite, escritas com instrumentos pontiagudos, como ainda hoje fazem no Nepal e no Tibete, tão povoado que estava o seu imaginário dessas errâncias remotas de que versavam as escrituras. Ou de madeira encerada, com as páginas costuradas, como faziam os Romanos, ainda antes dos rolos de papiro dos egípcios. Ou de páginas feitas com pele de carneiro, cabra ou ovelha, os célebres pergaminhos da antiga Grécia. Mas

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Por Victor Eustáquio

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os escribas e copistas há muito que haviam desaparecido, não obstante aquele maço de folhas encadernadas, impressas em série, nos dias modernos, continuar a evocar o Apocalipse e os tempos do fim ou o fim dos tempos, que nisso não eram muito claros, os textos sagrados, bem entendido, pelo menos para ele, criança de fato e gravata feitos à medida, à falta de medidas para tão pouca carne, em altura e em largura, embora os pecados não se dessem por vencidos e tanto eram aplicáveis aos seis como aos sessenta, e a todas e quaisquer outras idades, desde que a fé fosse uma obrigação. Em consciência, aceite porque assim devia ser, ou à letra, quer dizer, obrigada.

E, contudo, era disso que Miguel ia falar. De outras eras, dos dias envelhecidos pelas pelejas da antiguidade, das vozes escolhidas para interpretar deixas celestiais, em época de escribas e copistas, entre hebreus e árabes, entre os semitas e os outros, persas e fenícios, até que as tribos se cristianizaram e o mundo se dividiu. Para localizar a união de poucos e a desunião de muitos.

Foi necessário baixar o microfone até ao limite do tripé metálico para que o rapaz lá chegasse, para se fazer ouvir e convencer-se de que podia fingir ser já um homem. Assim lho tinham feito crer em nome de Deus, que aos seis anos o privilégio era só para alguns, orar para uma congregação inteira com os olhos postos nele, que alegria e orgulho, de pequenino se torce o pepino, o futuro, esse, evidentemente que seria grandioso, mesmo terreno, até que o fim chegasse sob a forma de uma destruição maciça, qual dilúvio qual quê, bem pior do que Sodoma e Gomorra, e a todos levasse para o paraíso.

Quando ficou tudo a jeito e lhe deram sinais nesse sentido, a criança abriu o livro protegido pela pequena bolsa de pele que apertava com a mão direita e depositou-o em cima do tampo de acrílico do púlpito com as páginas abertas, separadas por uma fita vermelha. De seguida, desdobrou as folhas de papel que conheceram um destino idêntico, com as mãos a tremer, e olhou para a plateia de fiéis. Um quadro embaciado, distante de Miguel, porque continuava a haver aquela espécie de neblina que lhe turvava a vista. Tentou começar a ler, mas a voz não saiu. Ouvia-se apenas o som amplificado de uma respiração apressada, ainda que não muito audível na justa proporção da tão diminuta caixa torácica escondida pelo fato e a gravata. O rapaz

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tinha o cabelo curto, penteado severamente com a risca ao lado, e uma borbulha cheia de pus e encarniçada encostada à narina direita.

— A Terra não será destruída nem por fogo nem por qualquer outro meio — acabou Miguel por conseguir verbalizar, lentamente, com a voz insegura e quase imperceptível, a arrastar as palavras com um timbre fino, próprio da idade. — A Bíblia ensina que a Terra é o lar eterno da Humanidade.

A tribuna de madeira e o microfone, mesmo rebaixado até ao limite, tapavam o rapaz quase por completo, o que, em boa verdade, até lhe dava uma certa sensação de conforto no meio daquele reboliço de ansiedade e outras aflições de espírito.

— Depois de criar nosso planeta, Deus disse que ele era muito bom — prosseguiu Miguel, tão titubeante quanto monocórdico. — E Deus ainda pensa assim. Ele não vai destruir a Terra, mas promete que vai arr… arruna… arruinar os que a arru… arrrunaram e progê….protegê-la contra danos permanentes — acrescentou, a tropeçar nalgumas palavras.

A sala mantinha-se em silêncio, expectante, com alguns espectadores a dar sinais de aprovação através de um sorriso suave e cúmplice desenhado nos seus rostos.

Miguel agarrou na Bíblia e preparou-se para continuar a ler.

— João 2:17 — indicou, levando a que todos o seguissem com as suas respectivas cópias impressas em série, folhas de papel compostas por elementos fibrosos de origem vegetal, na prática celulose, sem quaisquer vestígios de pele de carneiro, cabra ou ovelha. — O Mundo está passando, e assim também o seu desejo, mas aquele que faz a vontade de Deus perna… nece para sempre — citou, concluindo a intervenção, a que se seguiu uma salva de palmas.

Uma ovação entusiástica feita de pé perante o regozijo do rapaz, também ele agora com um sorriso estampado na cara. Miguel arrumou as suas coisas e abandonou a tribuna, fazendo o mesmo caminho inversamente, com o pequeno livro acolchoado na mão direita e as folhas de papel na esquerda, a mão com que o Diabo come, mão impura e amaldiçoada, sendo o demo canhoto e um arauto obstinado dos rituais esquerdinos.

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Foi com a mesma mão, a esquerda, claro está, que dois anos depois, Miguel, o arcanjo Miguel, escavou um pequeno buraco na terra, no lamaçal de um parque de diversões, com os joelhos no chão, debruçado sobre uma poça de água que reflectia os néones multicolores dos carrosséis. Tinha os dedos encardidos e os cabelos molhados. Os olhos castanhos brilhavam-lhe de excitação, à medida que da boca saía uma canção de embalar, cantada toscamente e fora de tom. Quando sentiu que estava tudo pronto, tirou um pequeno frasco de vidro do bolso do impermeável azul-escuro, que lhe aconchegava o peito, abriu a tampa e agarrou numa mosca. Com cuidado, para não lhe esmagar o corpo. O insecto não se mexia e se alguém pudesse vê-lo mais de perto repararia estupefacto que estava desasado. A criança depositou-o no buraco e ficou a observá-lo por momentos, inerte, naquela cova úmida e enlameada. De seguida, Miguel começou a empurrar o montículo de terra para o buraco, para cima da mosca, tapando-a, soterrando-a. No fim, tentou alisar com a mão direita, a pura, a que conservava ainda imaculada, até descobrir mais tarde a tormenta dos prazeres solitários, aquela superfície revolvida, primeiro com um movimento horizontal, depois com um vertical, como se fosse um sinal da cruz imaginário. Por fim, agarrou em dois fósforos, cruzou-os e atou-os com um bocado de cordel que tinha no bolso das calças. Quando terminou a tarefa, enterrou a pequena cruz na terra, mesmo por cima do sítio onde havia sepultado a mosca. E sorriu. Com os joelhos afundados no lodaçal e a cabeça à chuva. Um sorriso enigmático no qual se adivinhava tanto inocência como deslumbramento e malícia. À volta dele, brilhavam as luzes dos carrosséis e soavam e os gritos inebriados das crianças, com as suas mentes inquietas enlevadas por aquela festa estridente ao ritmo de uma cacofonia musical vinda dos quatro cantos do parque, o que não era rigorosamente verdade pois a Terra não se apresenta na forma quadrilátera nem é plana ou chata, venham lá as desavenças gravitacionais e as cisões eclesiásticas, que o adultério aristotélico e a abolição geocêntrica já não faziam parte daquele tempo.

Foi uma das últimas recordações que levara da cidade, quer dizer, da periferia da cidade e do bairro de lata em que havia vivido para aquele lugarejo perdido a norte da capital, onde Miguel prosseguiu os estudos pela televisão, em tempos de telescola, sob a condução de um padre, coisa estranha para os pais, que eram de outros credos.

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Quando decidiu abandonar a fé, quer dizer, fazer tudo para ser expulso, o ancião dissera-lhe que assim não podia ser ou parava de se masturbar ou não entrava no reino dos céus e já agora no que pensas quando o fazes, como assim irmão, com quem imaginas estar, ah isso é mais complicado irmão, mas de Deus nada deves esconder, está bem, então quem é, a sua filha, porra a minha filha, sim, de treze anos, qual é o problema tenho quinze seria pior se imaginasse estar com uma mulher mais velha a sua mulher por exemplo irmão, cala-te seu pecador pareces um fornicador endiabrado já fornicaste, fornicar não mas até gostava e com a sua filha, e tu a dares-lhe com ela, se calhar o irmão preferia que fosse a sua mulher pelo menos não penso em homens, cala-te lá nem homens nem a minha mulher nem a minha filha que a rapariga é de bons costumes e tu jamais lhe porás as mãos ou qualquer outra coisa que daqui terás de sair banido para sempre pois arrependimento não parece ser dádiva tua pelo que não há perdão nem emenda.

E não houve.

Mas a mãe tentou suicidar-se. Naquele lugarejo perdido a trocar as coordenadas do epicentro da existência. Que vergonha e aflição, o único filho condenado para a eternidade, mais valia morrer, mesmo correndo o risco de não chegar a ver o fim do mundo, e lá foi parar ao hospital para uma lavagem ao estômago, encardido de químicos, a segunda tentativa ainda tardaria algum tempo, mas dessa vez não havia sido bem por querer, acontecera-lhe andar com o colesterol fora da linha, e perdeu os sentidos, ao abrir a porta de casa ao filho e cair-lhe nos braços, já ele pensava em ataque cardíaco, ou em qualquer outra patologia, se calhar o mal estava na cabeça.

E estava mesmo.

À terceira, a mãe morreu. Até porque é a conta que Deus fez. Não por suicídio, mas por doença. Um acidente cerebral fulminante. Afinal, a Bíblia estava enganada, como percebeu Miguel nove anos depois de fingir que já era homem ao subir pela primeira vez àquela tribuna para falar de outras eras; definitivamente a Terra não é o lar eterno da Humanidade. Mas numa coisa os textos sagrados tinham razão, embora não estivesse explícito naquele livro protegido pela pequena bolsa de pele: Deus não vai destruir a Terra; apenas destrói todos os que criou à sua imagem.

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SOBRE O AUTOR

VICTOR EUSTÁQUIO é docente do ensino superior nas áreas da Ciência Política e Relações Internacionais e investigador em sede de programa de doutoramento em Estudos Africanos, em Lisboa. É autor dos romances «O Carrossel de Lúcifer» (2008), publicado em Portugal pela Bertrand Editora, e «A Cidade dos Sete Mares» (2013), que permanece inédito. Está representado na antologia de contos «Catarse», com o texto «O Veneno de Sócrates», a publicar este ano no Brasil pela editora Deuses.