bucci, eugênio (org). a tv aos 50

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esther hamburger - eugênio bucci (org.)fábio konder comparato — gabriel priolliinimá simões — laurindo lalo leal filho

maria aparecida baccega - maria rita kehlroberto moreira — vera de oliveira nusdeo lopes

a tv aos 50criticando a televisão brasileira no seu

cinqüentenário1ª edição: novembro de 2000

editora fundaÇÃo perseu abramotodos os direitos reservados à editora fundação perseu abramo

rua francisco cruz, 234 - 04417-091 - são paulo - sp - fone: (11) 5571-4299 fax: (11) 5573-3338

correio eletrônico: [email protected] internet: http://www.fpabramo.org.br

fundação perseu abramoinstituída pelo diretório nacional do partido dos trabalhadores em maio de 1996diretoria: luiz dulci (presidente) zilah abramo (vice-presidente) hamilton pereira

(diretor) ricardo de azevedo (diretor)

editora fundação perseu abramocoordenação editorial flamarion mauésrevisão: candice quinelato baptista maurício balthazar leal márcio guimarães de

araújocapa e projeto gráfico eliana kestenbaumfoto de capa image bank editoração eletrônica augusto gomes

tv aos 50: criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário foi impresso na cidade de são paulo em novembro de 2000 pela cromosete gráfica para a editora fundação perseu abramo. a tiragem foi de 2.500 exemplares. o texto foi composto em garamond no corpo 12/16. os fotolitos da capa foram executados pela graphbox e os laserfilms fornecidos pela editora. a capa foi impressa em papel cartão supremo 250g e o miolo foi impresso em polén soft 80g.

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das abas do livro:

onipresença. esta é a sensação que a tv nos passa hoje. em 40 milhões de residências e também em bares, padarias, restaurantes, creches, escolas, asilos, casas noturnas, em todos os tipos de lugares, bregas ou chiques, ricos ou pobres, está lá a televisão brilhando, nos encarando, mostrando imagens e sons que nos envolvem, nos incluem, mesmo contra nossa vontade. se a tv mostrou, existe. se não mostrou, é coisa que ainda carece de comprovação. a imagem acaba por ser, muitas vezes, mais forte que o real - ou se transforma no real. há 50 anos iniciaram-se entre nós as transmissões de tv. no começo, mera reprodução com imagens dos programas de rádio, nossa tv evoluiu até se tornar uma das mais qualificadas produtoras de programação do mundo, e uma das mais influentes sobre o seu público.

a tv brasileira, talvez mais do que as de outros países,forma opinião, transforma costumes, impõe gostos e vende tudo o que nela for anunciado de forma competente. a tv aos 50 - criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário reúne alguns dos mais importantes estudiosos deste meio de comunicação em nosso país para analisar o seu papel, a sua influência e as suas possibilidades. organizado pelo jornalista eugênio bucci, este livro condensa uma sólida produção intelectual sobre o tema, até há pouco desprezado ou ignorado pela universidade brasileira - aliás, como o futebol, outra paixão nacional para a qual os acadêmicos também torciam o nariz. questões como a história da tv brasileira, sua convivência com o poder e com os poderosos, seu papel na formação cultural e psicossocial de milhões de pessoas, sua utilização como 1 instrumento para a construção do espaço público no brasil e as deficiências em relação à sua regulamentação legal são aqui vistas a partir de um olhar crítico, que não pretende demonizar nem endeusar o veículo e seus "proprietários" mas destrinchar e expor, para que sejam conhecidos e debatidos, os seus métodos, interesses e objetivos. pois hoje, como lembra bucci, "criticar a televisão é um exercício de utilidade pública, um exercício urgente e inadiável"

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sumáriointrodução .............................................................................................. 5eugênio bucci

antenas da brasilidade............................................................................ 9gabriel priolli

política e novela..................................................................................... 18esther hamburger

vendo a televisão a partir do cinema.................. ...................................35roberto moreira

nunca fui santa (episódios de censura e autocensura)........................... 46inimá simões

comunicação/educação: aproximações ................................................ 68maria aparecida baccega

antropofagia patriarcal.......................................................................... 79eugênio bucci

televisão e violência do imaginário...................................................... 94maria rita kehl

a tv pública........................................................................................ 108laurindo lalo leal filho

a lei da selva........................................................................................ 117vera de oliveira nusdeo lopes

a democratização dos meios de comunicação de massa..................... 129fábio konder comparato

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introdução:por que criticar a tv?este livro vem a público para ser uma anticomemoração. uma

antiefeméride. enquanto outros buscam motivos para festejar os êxitos, os sucessos, os astros da televisão brasileira — uma das maiores do mundo —, os artigos aqui reunidos pensam problemas. a propósito, não será exatamente esta a função da crítica, enxergar problemas onde aparentemente se apresentam soluções? não é o intelectual, por definição, aquele que atrapalha as ações unificadas, que desestabiliza as unanimidades, que faz as perguntas incômodas no meio das acomodações? assim, então, este livro se define: como um esforço de contracorrente. não é uma minienciclopédia, não tem dados estatísticos nem biografias de atrizes, e dificilmente servirá de obra de referência aos que buscam informações objetivas sobre a tv, a cinqüentona mais adorada do ano 2000 neste país de 500 anos. não nos faltam novelas, atrações de auditório, telejornais integrando platéias de todas as regiões brasileiras. não nos faltam estrelas e símbolos sexuais. a utilidade dos artigos aqui reunidos é a reflexão que eles propõem — e é isso o que mais nos falta.

no correr do ano 2000, praças de várias cidades brasileiras serviram de base para que imensos relógios da rede globo fossem ali instalados. encarnavam o repertório televisivo desaguado sobre o mundo físico em que circulam os cidadãos de carne e osso: eram o virtual adquirindo materialidade no cotidiano urbano. as fronteiras entre a dimensão etérea das imagens eletrônicas e a dureza corpórea das vias de asfalto e das torres de concreto se dissolvem na construção de um imaginário integrado. antes, entre os anos 60 e 70, tratava-se de um imaginário nacional - e nacionalista -, que descia dos projetos culturais gerados no interior do estado, sob a inspiração da doutrina de segurança nacional, para dentro dos lares da nação. hoje vivemos num imaginário globalizante e globalizado. o telespectador que se formou como um brasileiro hipnotizado pelas imagens do projeto nacional — essas imagens o constituíram brasileiro — flana hoje como um consumidor da cultura mundial. a face brasileira é uma face televisiva, por certo. mas a face televisiva, agora, não é mais apenas brasileira. ultrapassou a lógica do estado nacional e tornou-se um reflexo — ao mesmo tempo que um agente — de uma cultura industrializada em escala planetária. e aí, sobretudo, o limite entre o imaterial e o concreto se dissolvem. a realidade é o que as imagens dizem que ela é. as imagens revestem o mundo, com sua

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nova linguagem global.pode-se pensar o brasil a partir da televisão? sim, sem dúvida. e talvez

não haja mais a possibilidade de pensar o brasil sem pensar a tv. gabriel priolli enfrenta esse desafio ao se indagar sobre a identidade nacional nos novos tempos em seu artigo "antenas da brasilidade", propondo caminhos ainda não explorados e arrojadamente originais. nesse mesmo registro, mas sem a preocupação com a identidade, escreve esther hamburger. em seu artigo, a indistinção entre imagem e matéria se desdobra na indistinção entre o mundo ficcional das telenovelas e a vida política brasileira, demonstrando as infinitas interpenetrações que os dois campos promovem entre si.

dois artigos trazem ao leitor revelações históricas. roberto moreira apresenta algumas descobertas de uma série de entrevistas que realizou sobre a grande epopéia que foi a construção da tv no brasil e propõe campos de estudo para que essa história não se perca de uma vez por todas - risco nada desprezível num país em que a universidade despreza a televisão como objeto. inimá simões descortina facetas ao mesmo tempo folclóricas e trágicas da cultura brasileira. numa retrospectiva que ilumina a promiscuidade ainda não revelada entre o autoritarismo de estado e os programas de televisão, isto é, entre o furor censório dos governos militares e a docilidade dos dirigentes das emissoras brasileiras, mostra como o que o público viu na tv foi resultado da criatividade de artistas renomados em parceria com censores quase anônimos e tresloucados.

mas olhar a tv é olhar o brasil e algo muito maior que o brasil. É olhar, por exemplo, o modo como o indivíduo se torna sujeito no mundo, para usar aqui uma terminologia cara a maria aparecida baccega. ela comparece a este livro para sintetizar sua proposta de constituição de um campo comum entre a comunicação e a educação como caminho para formar cidadãos críticos. num país como o brasil, em que a tv redefiniu o espaço público e reconfigurou a própria face da nacionalidade, a presença dos meios de comunicação é um fator incontornável para os educadores. em números aproximados, há cerca de 40 milhões de lares com televisão no brasil, o que corresponde a quase 90% do total. isso, para uma população que lê pouco, dá à tv uma condição de monopólio da informação, ou seja, a tv monologa sem que outros meios lhe façam contraponto. publicam-se, por ano, no brasil, menos de três exemplares de revistas por habitante (na frança, só para comparar, esse número é da ordem de 40, segundo as estatísticas da federacion internacional de la press périodique). todos os jornais diários somados, que cresceram em circulação na última década, tiveram uma vendagem em 1999, de acordo com a associação nacional de jornais, de 7,2 milhões de exemplares por dia (somadas aí bancas e assinaturas). o que é

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pouco quando se leva em conta o tamanho da população, que supera os 160 milhões de habitantes. de acordo com grupo de mídia de são paulo, com base em pesquisa do instituto marplan brasil, 98% da população entre 10 e 65 anos vêem tv pelo menos uma vez por semana e, sozinha, a tv atrai duas vezes mais público do que todos os meios impressos, aí computados também os livros, além de jornais e revistas. a importância da tv no brasil é desproporcional em relação aos outros meios — e dá às comunicações no brasil um perfil bastante desequilibrado em relação a outras democracias. numa sociedade com esses números, em que milhões de crianças passam mais horas diante da tv do que dentro da sala de aula, é possível imaginar um processo educacional sem que os meios de comunicação sejam levados em conta? pois a essa questão maria aparecida baccega se dedica para propor novos desafios aos educadores.

mais ainda, olhando para a televisão, olha-se para processos estéticos de fabricação de um imaginário — nacional ou nem tanto — que podem representar emancipação ou opressão. depende do ponto de vista de quem olha. alguns enxergam no papel contemporâneo da tv brasileira um procedimento salutar, que faria lembrar as teses modernistas de oswald de andrade. ao devorar influências estrangeiras e reciclá-las numa perspectiva nacional, a tv reconstruiria o brasil e, mais ainda, faria aflorar nossas identidades reprimidas. no meu artigo, "antropofagia patriarcal", procuro explorar essa possibilidade, terminando por negá-la. a aparente antropofagia televisiva nada mais é que a lógica do capital: não liberta, mas reprime. o sujeito constitui-se como prisioneiro do imaginário que a tv põe em circulação. a propósito, a constituição do sujeito-telespectador, que se verifica em qualquer sociedade mediada pela tv, encontra no brasil um laboratório privilegiado. o artigo de maria rita kehl, "televisão e violência do imaginário", pode ser lido como um aprofundamento do mesmo tema. com base na teoria psicanalítica, a autora desvenda os mecanismos da fabricação do imaginário e, dedicando-se especialmente à questão da violência, desafia o senso comum: propõe que as relações entre a criminalidade da vida real e as cenas truculentas dos programas televisivos não são lineares como se acredita. não haveria, aí, relações diretas de causalidade. maria rita investiga o modo como a televisão suprime o pensamento em favor de uma identificação imaginária que precipita a fantasia em ato. ou seja, mesmo sem apresentar tiroteios e sopapos na programação, a tv, ao fomentar o consumo e o prazer a qualquer preço, convida ao gesto violento.

por fim, três artigos tematizam o papel da tv e dos meios de comunicação na esfera pública. laurindo lalo leal filho ressalta a falta que nos faz a tv pública. somos um país em que a tv comercial — cuja única

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finalidade é vender e cujo único indicador de qualidade é seu sucesso em fomentar o consumo — prepondera sem o mínimo limite. vera maria de oliveira nusdeo lopes, em "a lei da selva", disseca, com dados inéditos nos debates contemporâneos, a legislação omissa que vige no brasil e mostra, com argumentos irrefutáveis, o atraso dessa legislação diante do que existe nos países mais democráticos. fábio konder comparato fecha o volume com um artigo sobre o papel dos meios de comunicação para viabilizar a democracia — ou para obstruí-la, como acontece no brasil. seu alerta não pode ser ignorado por aqueles que desejam uma ordem verdadeiramente democrática para o nosso país.

por tudo isso, criticar a televisão tem sido fundamental, um exercício de utilidade pública. um exercício urgente e inadiável. não se trata de fechar os olhos para os avanços estéticos e tecnológicos alcançados pela televisão no brasil, nem de pretender descartar o seu êxito em lograr a integração da nacionalidade, mas se trata, isto sim, de se relacionar criticamente com a história da presença desse veículo entre nós, que agora chega ao seu cinqüentenário. o pensamento crítico não deveria ser rechaçado como é, como se fosse uma argumentação inimiga e de má vontade. ele é, ao contrário, parte indispensável de qualquer projeto cultural e democrático. e para isso este livro foi organizado.

eugênio bucci

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antenas da brasilidadegabriel priolli

a cena foi vista no mundo todo, em imagens distribuídas pela televisão. durante as celebrações dos 500 anos do brasil em porto seguro (ba), que acabaram transformadas em confronto de policiais militares com manifestantes antigovernistas, o índio gildo terena ajoelha-se diante da tropa e ergue os braços, suplicando que ela não ataque. tenta parar sozinho o poder armado, como fez o anônimo chinês com a coluna de tanques na praça da paz celestial, em pequim, 1989. quando os soldados avançam, indiferentes, ele se deita no chão e os coturnos passam por cima de seu corpo franzino, em direção a outros peles-vermelhas — e negras, brancas, mestiças - que serão vergastados por cassetetes, balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. um certo brasil, o oficial, esmaga um outro brasil, o real, no que seria a festa de congraçamento da unidade nacional.

a imagem de gildo terena impotente diante das armas é emblemática não apenas do enorme fiasco em que se converteu a festa dos 500 anos. e um símbolo, antes de tudo, da fragilidade do conceito de "identidade nacional", essa suposta entidade sociológica, lingüística e histórica que teria sido forjada em boa liga ao longo dos séculos e produzido um amálgama feliz de tolerância racial, distensão social e perpétua alegria de viver, entre outros atributos sempre pacíficos e positivos associados aos brasileiros. definitivamente, a identidade de uns é diferente da de outros, a cordialidade e a bonomia só se encontram no carnaval (e nem sempre), e o povo convive antes na diversidade e no conflito de culturas, visões de mundo e expectativas que na placidez da homogeneidade. assim sendo, a festa da elite branca dominante no sul da bahia nada disse a milhões de gildos, que ainda esperam que o seu brasil seja descoberto — pelos próprios brasileiros. e, não por acaso, a tensão entre esses mundos explodiu bem diante das câmeras de televisão.

se não há uma identidade nacional, e sim um conjunto de identidades, parte das quais ainda luta para se expressar, por vezes enfrentando a resistência do poder armado, pode-se falar de uma "televisão brasileira"? em que medida a televisão exprime o brasil existente, as suas múltiplas faces, as suas inúmeras contradições? de que forma a televisão contribui para a construção de uma certa idéia de nação? que país é este, enfim, que o tubo da tv projeta diuturnamente para tantos quantos queiram mirá-lo? são questões que cumpre levantar, como um convite à reflexão, nesta maiúscula e dupla

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efeméride, dos 500 anos da integração do brasil ao mundo conhecido e dos 50 anos de atividades da televisão no país, na construção de um imaginário comum, pela integração dos brasileiros.

brancos. sudestinos. exocêntricos. indiferentes

se são muitas as identidades nacionais, nem todas passam na tv - é preciso afirmar de saída. os diversos atores sociais nem sempre surgem como protagonistas, vivendo as suas próprias histórias e proclamando os seus próprios valores culturais. a televisão brasileira, assim como o próprio país, é controlada por uma elite majoritariamente branca, radicada na região sudeste mas exógena, voltada para a europa e os estados unidos, de onde acredita provirem todo o progresso e a civilização que a espécie humana pode almejar. essa elite, que vive de costas para o restante do brasil, cria a sua peculiar imagem do país, quase sempre folclorizando e discriminando índios, negros e asiáticos, pelo ângulo racial; mulheres e homossexuais, pelo ângulo do gênero; e nordestinos e nortistas, pelo ângulo geográfico. a sua televisão cria e impõe uma determinada noção de identidade nacional, enquanto impede o livre acesso à tela, para a afirmação de outras identidades, contrastantes, divergentes.

bem ou mal, entretanto, esse povo heterogêneo e multiforme que habita o brasil vive unido há cinco séculos e nada indica que queira viver de outra forma. forjou-se, queira-se ou não, um forte sentimento nacional, quer pela miscigenação, quer pela transumância, quer pelas trocas econômicas e simbólicas da história em comum. esse sentimento nacional é comungado pela quase totalidade dos brasileiros, que se sentem parte de um todo, mas enxergam-no por óticas regionais, de características próprias, derivadas do condicionamento geográfico e da experiência cultural. Índios terenas acreditam-se tão brasileiros quanto os negros dos morros cariocas ou os descendentes de brancos poloneses do planalto paranaense. a cimentar essa unidade há um território contínuo e uma única língua, certamente uma singularidade entre os países de dimensões continentais, o que contribui para a inexistência de demandas sérias por autonomia e separatismo, que tanto conflagram outras regiões do globo.

a televisão tem sido um poderoso instrumento de difusão desse sentimento nacional, que articula incluídos e excluídos em torno de uma certa idéia básica de brasil, e existe ao mesmo tempo como unidade e diversidade. cumpre esse papel, com mais clareza, desde o início dos anos 70, quando a tecnologia permitiu a implantação de uma rede de

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telecomunicações em todo o território e as imagens puderam trafegar a longas distâncias. centrada no rio de janeiro e em são paulo, os dois maiores mercados de produção e consumo do país, a indústria televisiva expandiu-se para todos os outros estados e vem produzindo um determinado imaginário — por meio, sobretudo, das telenovelas e dos noticiários —, que se pretende nacional e que acaba sendo assim apreendido, com conseqüências profundas na política, na economia e nas relações sociais. É o sudeste branco falando para o brasil, em nome do brasil, como se fosse todo o brasil, e com a anuência pacífica da maioria dos brasileiros.

redes nacionais. emissoras regionais. desequilíbrio

evidentemente, a situação provoca um desequilíbrio no sistema audiovisual do país. as redes nacionais são muito mais poderosas e influentes do que as emissoras regionais. com maior capacidade de produção, melhor artesanato e mais capital, realizam uma programação de melhor qualidade e interesse do que aquela que a penúria das estações locais pode lograr. voluntariamente, portanto, e em busca do melhor, os telespectadores de todos os rincões voltam os olhos para meca e medina — o rio e são paulo —, antes de olharem em torno de si, para imagens mais próximas, geradas por antenas fincadas em seu próprio solo. e, no entanto, nem sempre foi assim. ao contrário, a televisão nasceu local, assim viveu a sua infância e só ganhou dimensão nacional quando atingiu a maioridade. antes de enxergar o brasil, ou um certo brasil — o das redes —, o público viu na telinha a sua própria face, a sua terra, a sua região.

de setembro de 1950, quando se inaugurou a tv tupi de são paulo -primeira emissora do país e do hemisfério sul do planeta -, até abril de 1960, quando foi introduzida aqui a tecnologia do videoteipe, a televisão só existiu onde estavam erguidas as antenas de transmissão. os telespectadores podiam captá-la num raio máximo de 100 quilômetros em torno do transmissor que gerava as imagens. e, posto que não havia fitas de vídeo para copiar os programas e transportá-los entre as regiões, cada estação de tv tinha que prover a sua própria programação. parte, é claro, era constituída de filmes, em geral norte-americanos. mas a maioria dos programas — musicais, teleteatros, telenovelas, humorísticos, jogos, noticiários, infantis — era produzida na própria emissora. a televisão brasileira, portanto, nasceu local e assim permaneceu por uma década, antes que a evolução técnica a

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projetasse além das fronteiras municipais.na sua primeira década, a tv teve uma configuração claramente insular.

surgiu em são paulo e expandiu-se, já em 1951, para o rio de janeiro. em 1955, atingiu belo horizonte e, nos anos seguintes, chegou a porto alegre, curitiba, salvador, recife, campina grande, fortaleza, são luís, belém e goiânia. em cada uma dessas cidades, entretanto, era transmitida uma programação diferente, ainda que a maioria das estações fosse de propriedade de uma mesma empresa, as emissoras associadas, de assis chateaubriand. havia, no máximo, um intercâmbio de scripts de programas, ou uma ponte-aérea de artistas entre as diversas praças, onde faziam o mesmo programa mais de uma vez (situação comum entre rio, são paulo e belo horizonte). mas, salvo no caso de filmes, cujas cópias eram distribuídas para vários locais, não havia como distribuir nacionalmente a mesma programação. presos pelo cordão umbilical da transmissão ao vivo e da impossibilidade de registro das imagens, os artistas, técnicos e jornalistas permaneciam fixados em suas próprias regiões, onde faziam televisão para os seus conterrâneos.

isso mudou completamente com o videoteipe. o equipamento, que resolveu o problema do registro das imagens de tv, fora lançado em 1956, nos estados unidos. caríssimo, chegou ao brasil apenas no início de 1960, por força de uma necessidade incontornável: cobrir as festas de inauguração da nova capital, brasília, que ficava muito longe do eixo rio-são paulo e não permitia um televisionamento direto. gravar as imagens, enviá-las por avião e transmiti-las posteriormente era a única forma viável de fazer com que os brasileiros das duas principais cidades participassem das cerimônias históricas. para isso foi usado o vt, no primeiro momento e também nos primeiros anos: registrar programas e duplicá-los. ainda não havia a edição eletrônica de imagens ou a possibilidade de utilizar a tecnologia do videoteipe como recurso expressivo, de linguagem (o que só acontecerá em 1962, no chico anysio show). a máquina servia, tão-somente, para reproduzir indefinidamente os programas que, até então, tinham apenas uma única emissão, a original, ao vivo.

videoteipe. cópias. comércio. redes

a possibilidade de duplicação e, por extensão, de comércio dos programas de televisão levou à formação das primeiras redes nacionais de tv, ainda nas suas formas rudimentares. programas de sucesso eram copiados e

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vendidos a outras emissoras, que gastavam com eles bem menos do que investiam em produção própria. como são paulo e rio concentravam o melhor do talento artístico e técnico disponível na tv brasileira da época, evidentemente qualificaram-se melhor para a conquista desse novo mercado. e, desde então, há um declínio da produção regional, uma forte concentração da indústria televisiva no sudeste e o que se pode considerar uma programação "nacional", no sentido de possibilitar a todo o país a fruição dos mesmos produtos culturais. acaba, portanto, o modelo insular da televisão brasileira. as "ilhas" regionais vão construindo "pontes" para são paulo e rio, rompendo com o "isolamento" e, ao mesmo tempo, anulando-se como centros produtores de tv.

esse processo ganhou enorme impulso a partir de 1969, quando o governo militar, por meio do ministério das comunicações e da embratel, criados pouco antes, concluiu uma parte de seu projeto político de "integração nacional" e inaugurou a rede básica de microondas, interligando as diversas regiões do país por sistemas confiáveis de telefonia e transmissão de tv, rádio e dados. as microondas permitiam a transmissão de programas ao vivo, em tempo real, para muitas cidades, tornando desnecessário o envio das fitas por avião ou outros meios. da mesma forma, os satélites brasilsat vieram complementar e ampliar a rede de microondas, de 1985 em diante, cobrindo efetivamente todos os quadrantes do território brasileiro. graças a esses novos sistemas de envio de programas, as relações de troca existentes até então entre as emissoras, que não implicavam fídelização dos compradores aos vendedores ou exclusividade de fornecimento, convergiram para o esquema muito mais rígido das redes centralizadas de tv. para "afiliar-se" a uma rede, as estações regionais firmaram o compromisso de só exibir programas adquiridos da geradora da programação, a chamada "cabeça de rede". e isso reduziu o número de provedores de programas a pouquíssimas empresas: tupi, globo, bandeirantes, record.

o significado desse movimento, no plano cultural, é que todo o país passou a compartilhar, via tv, uma determinada imagem do brasil, e de suas características, inteiramente construída no sudeste, e por um número bastante reduzido de pessoas, os roteiristas, redatores e artistas de meia dúzia de emissoras, no máximo. muito se criticou, por exemplo, a "ipanemização" da linguagem, com a difusão das expressões, gírias e inflexões típicas do falar carioca para outras regiões. o sotaque e a mentalidade paulistas também tiveram intensa penetração no país, alterando costumes havia muito arraigados. a "identidade nacional", portanto, ou a visão que os brasileiros têm de si mesmos e do país, passou a ser mediada fortemente pelo ponto de vista das duas maiores metrópoles. consolidou-se a idéia de um centro

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dinâmico, avançado e cosmopolita — o eixo rio—são paulo - em contraste com uma periferia atrasada, conservadora e provinciana. culturas regionais fortes, como a nordestina ou a gaúcha, perderam qualquer chance de uma difusão nacional autônoma, a salvo da interpretação, em geral redutora e folclorizante, que lhes dão as emissoras paulistas e cariocas.

autonomia. independência. videocassete. mercado

vê-se, pelo exposto até aqui, que foi o próprio desenvolvimento técnico-industrial da televisão — do transmissor para o videoteipe, e deste para a rede de microondas e o satélite - o principal fator condicionante da centralização da produção no sudeste e, conseqüentemente, de sua hegemonia cultural sobre o país. em outras palavras, foi a lógica do modelo econômico implantado na tv, de gestão comercial privada, sempre regulado pela necessidade de reduzir custos e ampliar lucros, que reduziu as estações regionais a meras repetidoras da programação "nacional" vinda do rio e de são paulo. mas pode-se especular por que a televisão não conseguiu vicejar também de forma autônoma, independente, não-comercial, chegando às mãos dos mais diversos grupos sociais, étnicos e culturais, nas mais variadas latitudes, e produzindo outras imagens, outras palavras, outras visões, capazes de rivalizar com a grande fábrica de imaginário montada por paulistas e cariocas. por que não surgiu uma "tv livre", em contraposição à "tv de mercado"?

simplesmente porque o desenvolvimento técnico da televisão se dá no contexto de sua expansão econômica, e não há pesquisa tecnológica senão aquela capaz de servir aos interesses do capital. ou, para ser mais claro: porque não existiam câmeras, videoteipes e transmissores de baixo custo, de operação fácil, ao alcance de cidadãos desprovidos de recursos. até o final dos anos 70, por exemplo, não havia sistemas portáteis de gravação de vídeo, apenas os enormes, pesados - e caros - equipamentos de estúdio, levados eventualmente à rua por "caminhões de externas". o videocassete profissional só foi introduzido no brasil entre 1979 e 1980, e o videocassete de uso doméstico, com suas pequenas câmeras e gravadores-reprodutores, chegou ainda mais tarde: 1982. assim sendo, mesmo que desejasse, um eventual núcleo de produção independente de tv, disposto a veicular informações culturais discrepantes daquelas difundidas pelas redes comerciais, simplesmente não teria os meios técnicos necessários para fazê-lo.

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o emergente mercado de vídeo doméstico, entretanto, produz essa "abertura democrática". com câmeras vhs em mãos, os mais heterogêneos grupos sociais - de deficientes mentais a índios aldeados, de moradores das periferias urbanas a militantes camponeses - passam a produzir um novo imaginário, que contesta o monolitismo da cultura televisiva comercial. É uma nova forma de guerrilha cultural, a microtelevisão corroendo o mainstream da reprodução de ideologia. esse "florescimento de mil telas" não chega a revolucionar o sistema audiovisual, que segue ancorado nas grandes redes de tv, mas põe seguramente em crise a sua legitimidade como fonte emissora da "identidade nacional". deixa claro que há, agora, inúmeras "identidades" buscando afirmar-se. não por acaso, é com o incremento da produção independente e do "vídeo alternativo" que surgem as demandas pela ampliação das concessões de tv, as emissoras "piratas", as pressões por regionalização da programação - o movimento pela democratização da mídia eletrônica, em suma.

curiosamente, é a própria tecnologia que vai responder, em parte, a esse movimento. nos anos 90, no bojo do processo de globalização das economias, é introduzida no brasil a tv por assinatura, amparada em sistemas de transmissão por cabo ou difusão direta de satélite, que oferecem dezenas de canais e, mais do que permitir, precisam de novas fontes de suprimento de programação. É dessa convergência de interesses, entre uma produção de vídeo que carece de canais de tv para chegar aos telespectadores e uma indústria de tv paga que anseia por novos fornecedores, que surgem as condições políticas para a criação dos chamados "canais de acesso público": comunitários, legislativos, universitários, educativo-culturais. hoje assegurados apenas na tv a cabo, pela lei federal 8.977, de 6 de janeiro de 1995, eles vêm permitindo que os mais variados grupos façam televisão e, por meio dela, afirmem outras identidades na composição da nacionalidade.

televisão regional. incentivo. redes nacionais. defesa

muito há ainda a fazer, contudo, no rumo da democratização da televisão brasileira e do alargamento do que ela faz passar por "identidade nacional". um projeto de reforma deve corrigir, por um lado, o grande desequilíbrio hoje existente entre redes de cobertura nacional muito fortes e estações ou redes de alcance regional muito fracas. para tanto, não será possível o laissez-faire, deixar que o mercado se ordene sozinho, visto que ele tem sido

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incapaz de resolver o problema. são necessários mecanismos legais de regulação, impondo às emissoras percentuais obrigatórios de produção local e regional, e também de aquisição de programação independente, como foi obedecido nos estados unidos, por exemplo, por mais de 40 anos. mas, para que tenham efeito essas exigências, sob um modelo de televisão que é privado e comercial, cabem também políticas fiscais e creditícias, de forma a estimular as empresas regionais e viabilizar a transição de sua dependência total da programação das redes para um formato de relacionamento em que ambas produzam.

por outro lado, há que se compreender a renovação do papel das redes nacionais de televisão nesta época de mundialização da economia — e também das trocas simbólicas. não se trata mais de fortalecer a televisão local e regional, em eventual detrimento do poder das redes. trata-se, isto sim, de fazê-lo preservando e mesmo incrementando as redes. se é preciso evitar que a perspectiva de rio e são paulo siga determinando a construção do imaginário nacional, é preciso também evitar a desnacionalização desse imaginário, controlando o crescente fluxo de produtos audiovisuais estrangeiros. esse fluxo terá certamente enorme aumento, com o fim das restrições legais à presença de capital externo na mídia, ora em debate no congresso nacional. poderá derivar, inclusive, para programas de tv em português, voltados ao público brasileiro, gerados de país estrangeiro, sob seu controle editorial. não parece que profissionais de tv norte-americanos tenham propriamente a ver com a identidade nacional brasileira. mas poderão ter e isso será bem mais grave do que as novelas da tv globo fazerem nordestinos falar como cariocas ou mato-grossenses vestir-se como paulistas.

preservar as redes, portanto, é questão do mais agudo interesse nacional. mas é dever de inteligência e de convivência civilizada fazê-lo sem exageros, sem xenofobia. a identidade nacional, qualquer que seja ela, ou ainda que composta de múltiplas identidades, só se define no confronto com as identidades externas, de outros povos, outras nações. não se trata, pois, de "fechar os portos" abertos desde 1808, mas de estabelecer "controles alfandegários", que harmonizem a convivência de todos os influxos culturais, internos e externos. e isso que permitirá ao brasil um sistema audiovisual equilibrado e uma inserção altiva no mercado globalizado da televisão.

globalização. bigplayer. influência. identidade

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finalmente, se esta é a era de uma única terra, um planeta unido pelos mesmos laços econômicos, compartilhando o mesmo patrimônio material e simbólico, então é a oportunidade para que a televisão brasileira deixe de vez os limites das nossas fronteiras e dispute outros mercados. mesmo com a barreira da língua, que é mãe na defesa de nossa cultura, mas madrasta na sua difusão a outros povos, a tv do brasil reúne todas as condições de competitividade internacional. já está presente em mais de uma centena de países, embora ainda de forma limitada, muito atrás da televisão inglesa, francesa, italiana, japonesa ou espanhola, para não falar da norte-americana. falta-lhe o aporte de capitais, que a associação com grupos estrangeiros deverá prover. ou, antes, falta-lhe a ousadia de querer ser bigplayer no mundo globalizado.

tem o mais fino artesanato do planeta em telenovela, o melodrama popular ao qual adicionou elementos de política e vida cotidiana. obteve fórmula inédita, hoje universalmente copiada. tem um telejornalismo de alto nível técnico e editorial, cabendo-lhe apenas ajustes nos padrões éticos. tem uma imensa variedade regional, uma ampla gama de culturas, locações de grande beleza à disposição de seu documentarismo. tem o controle do futebol mais talentoso que se conhece e oferta abundante de excelência em outros esportes para produzir eventos e competições de interesse mundial. tem ao alcance uma articulação poderosa com o cinema, se os dois segmentos finalmente entenderem que é imperativo cooperar.

fazer chegar esse patrimônio cultural a outros povos, fazê-los conhecer uma televisão feita pela mente e pela alma de brasileiros, vai nos mostrar o alcance e a qualidade de nossa influência. deve ajudar a conhecer melhor quem somos. a identidade que temos como nação.

gabriel priolli - paulista, 47 anos, é jornalista, diretor e crítico de televisão. dirige a tv puc, da pontifícia universidade católica de são paulo. É também vice-presidente do canal universitário de são paulo e presidente da associação brasileira de televisão universitária. desenvolve projetos especiais na tv cultura de são paulo. exerceu funções variadas em telejornalismo e produção de tv nas emissoras globo, bandeirantes, record, gazeta e cultura. recebeu o prêmio esso de informação cultural em 1998.

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política e novela1

esther hamburger

1. este trabalho é baseado no último capítulo de minha tese de doutorado politics and intimacy in brazilian telenovelas, defendida no departamento de antropologia da universidade de chicago em 1999, a ser publicada pela editora da universidade federal do rio de janeiro. a pesquisa para esse capítulo foi feita no interior do projeto "the social impact of television in brazil", conduzido por um consórcio composto por várias instituições: centro brasileiro de análise e planejamento (cebrap), núcleo de estudos populacionais da universidade estadual de campinas (nepo, unicamp), centro de desenvolvimento e planejamento regional da universidade federal de minas gerais (cedeplar, ufmg), population research center e department of radio, television and film da universidade do texas, austin. o projeto foi financiado pelas fundações macarthur, rockfeller e hewlett. heloísa buarque de almeida, fátima guedes e ronaldo de almeida participaram do levantamento de dados. o capítulo da tese foi escrito durante minha estada como pesquisadora visitante no population research center com bolsa da mellon foundation. este artigo é baseado no texto "politics and intimacy: the agrarian reform in a brazilian telenovela", publicado em television and new media, vol. 1, n 2, publicado em português em novos estudos cebrap, são paulo, cebrap, n 57, julho de 2000.

telenovelas são quase tão antigas quanto a televisão no brasil. nos últimos 50 anos, o gênero vem acompanhando as transformações tecnológicas, políticas, sociais e culturais que marcaram a história do país. em 1963, com a introdução do videoteipe, as novelas passaram a ser diárias. em 1970, na então recém-criada rede globo de televisão, as novelas começaram a ocupar de maneira consistente a posição de programa mais assistido, de acordo com os índices do ibope (instituto brasileiro de opinião pública e estatística), posição que, 30 anos depois, o gênero ainda mantém.

as especificidades das novelas brasileiras lhes valeram destaque na bibliografia especializada no brasil e no exterior. autores debatem os paradoxos de um fenômeno de mídia capaz de mobilizar audiências nacionais, compostas pelos mais diversos segmentos demográficos, incluindo classes sociais, gerações, sexo e região geográfica, em torno de "folhetins eletrônicos", programas que misturam convenções do melodrama e da notícia, do entretenimento e do jornal, em formato dos mais lucrativos da televisão brasileira, o que explica em grande parte o interesse sempre renovado das emissoras pelo gênero.

inúmeros trabalhos acadêmicos se dedicaram a debater o conteúdo ideológico das novelas. alguns deles lêem as novelas da perspectiva de profissionais engajados e salientam sua capacidade de gerar ideologia política crítica a partir do interior da indústria cultural2. outros enfatizam o caráter industrial e comercial do produto para demonstrar que a intenção

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crítica de profissionais engajados não tem condições concretas de se realizar. esses autores destacam o papel dos seriados televisivos na reprodução de ideologias dominantes e na disseminação do consumismo3. trabalhos recentes especulam sobre a influência das novelas em comportamentos políticos imediatos, como, por exemplo, o resultado de eleições4.

2. mattelart, armand e mattelart, michelle. o carnaval das imagens. são paulo, brasiliense, 1990. ROWE, william e SCHELLING, vivian. memory and modernity - popular culture in latin america. london, verso, 1991.

3. ortiz, renato. a moderna tradição brasileira. são paulo, brasiliense, 1987. kehl, maria rita. eu vi um brasil na tv. in: kehl, maria rita, costa, alcir h. da e simÕes, inimá f. (eds.) um país no ar: história da tv brasileira em três canais. são paulo, brasiliense/funarte, 1986.

4. lima, venício de. brazilian television in the 1989 presidential campaign: constructing a president. in: skidmore, thomas (ed). television, politics and the transition to democracy in latin america. washington d.c, woodrow wilson international center for scholars, 1993.

desprezadas por políticos e intelectuais, consideradas gênero menor, limitado ao entretenimento melodramático e à venda de produtos, as novelas adquiriram legitimidade ao longo do tempo. como se sabe, ainda na década de 1970, profissionais de teatro passaram a trabalhar em novela, justificando sua opção como capaz de levar à realização dos almejados ideais nacionais e populares que o teatro experimental não havia sido capaz de alcançar5. durante a década de 1980, acompanhando o processo de democratização, as novelas privilegiaram temas e imagens nacionais, tratando dilemas políticos centrais. na década de 1990, as representações nacionais consolidadas anteriormente se transformam e a novela chega a intervir diretamente na conjuntura política e social. o folhetim eletrônico capta e expressa os paradoxos de uma sociedade em que o desgaste crescente da política institucional leva à busca de mecanismos informativos e formadores de opinião alternativos.

5. sobre as experiências teatrais, ver george, david s. the modem brazilian stage. austin, the university of texas press, 1992.

nessa trajetória, as novelas foram diluindo as barreiras formais que as separam de outros gêneros televisivos como o telejornal, o documentário e o reality show. a intervenção política e social da novela gera paradoxos, demonstra a polissemia do texto e a dificuldade de sintetizar o significado de programas específicos a partir de supostos conteúdos ideológicos.

uma novela em particular, o rei do gado, produzida e exibida pela rede globo de televisão em 1996, constitui o exemplo mais recente e, em certo sentido, talvez o mais radical de uma novela que interveio na conjuntura política brasileira. em vez de mobilizar símbolos, cores ou canções nacionais, repertório presente em novelas anteriores, como fizeram roque

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santeiro, vale tudo, o salvador da pátria, deus nos acuda, entre outras, essa novela incorporou a luta contemporânea pela reforma agrária. ao fazê-lo, o rei do gado ganhou não só a primeira página dos principais jornais diários — feito que novelas anteriores já haviam conquistado -, mas também espaço em suas páginas políticas e editoriais.

personagens e situações de o rei do gado geraram interlocução de políticos e ativistas. a repercussão dessa novela constitui um caso privilegiado para a discussão da diversidade de interpretações possíveis para um mesmo texto. a discussão aqui proposta pretende especular sobre questões como: em que medida os telespectadores reconheceram essa novela como um programa político? como os telespectadores viram as relações entre política e novela? como os telespectadores relacionam política e novela?6

a repercussão pública de o rei do gado nos fóruns de decisão política e na mídia contrasta com sua repercussão em espaços domésticos da vida cotidiana dos telespectadores. a primeira parte deste artigo discute a repercussão da novela em fóruns da política institucional. a segunda parte aborda a repercussão da novela em contextos da vida doméstica, em que os telespectadores revelam maior sensibilidade a temas como adultério feminino e violência contra a mulher, que compunham o drama central de o rei do gado. o contraste entre essas repercussões sugere que os telespectadores se apropriam da novela na medida em que ela oferece parâmetros de conduta que lhes permitem posicionar seus dramas pessoais cotidianos em termos que fazem sentido coletivamente.

6. adoto uma definição ampla de telespectadores. nessa categoria estão incluídas pessoas que se manifestam pela mídia, assim como telespectadores com quem interagi pessoalmente durante pesquisa de campo em uma favela e um bairro de classe média na cidade de são paulo. refiro-me a telespectadores cuja profissão implica exposição pública, como profissionais da mídia e políticos com quem interagi por meio dos veículos de comunicação. incluo nessa categoria também telespectadores que participam como amadores em programas de rádio e televisão especializados em notícia e comentário sobre o universo da televisão.

o rei do gado no universo da política institucional

o senador darcy ribeiro dedicou duas de suas colunas semanais na página 2 da folha de s. paulo ao senador roberto caxias7, um político honesto, personagem dos mais populares na novela, amigo íntimo do protagonista bruno berdinazzi mezenga, o "rei do gado". homem de classe média, caxias não se deixa seduzir pelo jogo do poder. como o nome mesmo sugere, é fiel a seus ideais. o senador é um incansável humanista defensor de soluções

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pacíficas e negociadas para os graves problemas sociais do país. o senador honesto se dedica especialmente à causa da reforma agrária, vista não como instrumento de realização de algum princípio ideológico, mas como uma questão moral. "todos têm o direito a um pedaço de chão" — uma máxima que alhures não faria sentido — representaria a premissa básica do senador. É esse ideal humanitário que leva o personagem a se colocar como mediador no conflito entre os proprietários rurais e o movimento dos trabalhadores rurais sem terra (mst). independente de partidos ou grupos políticos, caxias é contra a violência de ambos os lados. no plano pessoal, o senador mantém a mesma integridade, sugerida pela simplicidade de seu cotidiano e pela fidelidade à esposa, apesar da tentação representada pela empregada e mesmo que a mulher encarne a esposa frustrada, agressiva, desagradável, que só lhe cobra mais dinheiro, indiferente a suas maiores qualidades, o idealismo e a honestidade. o posicionamento de roberto caxias gerou interlocuções diversas entre políticos. suas posições são sempre polêmicas, não coincidindo com as de nenhum de seus interlocutores, sejam eles aliados ou não.

7. "viva o senador caxias", folha de s.paulo, 25 de novembro de 1996; "senador caxias", folha de s.paulo, 20 de janeiro de 1997.

o primeiro dos artigos do senador darcy ribeiro - como caxias, político de princípios e honestidade inquestionáveis - tem o título de "viva o senador caxias". no artigo, darcy ribeiro saúda uma medida provisória recente que o presidente fernando henrique cardoso submetera ao congresso nacional, estabelecendo impostos progressivos aos proprietários de terras improdutivas, o itr (imposto territorial rural). o mesmo ato determinou que o valor de venda da terra a ser desapropriada pelo estado para fins de reforma agrária deveria coincidir com o valor declarado pelos proprietários em seus impostos de renda.

darcy ribeiro considerou a medida um marco na história do problema agrário. para citar suas próprias palavras:

"essas duas medidas [impostos altos para terras improdutivas e valor de desapropriação igual a valor declarado no imposto de renda] abrem as cancelas da história brasileira, permitindo que o povo se assente nas terras incultas em milhões de pequenas propriedades familiares".

como parlamentar eleito pelo partido democrático trabalhista (pdt), de oposição ao governo, darcy chamou a atenção do presidente fernando henrique cardoso para os grupos poderosos que tentariam barrar a aprovação da medida provisória no congresso nacional e no poder judiciário, segundo ele, "servido por alguns homens bons, mas também por uma caterva de

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homens reacionários capazes de fazer o impossível para manter o brasil tal qual é".

darcy ribeiro saudou a medida presidencial, que para líderes do mst e parlamentares do partido dos trabalhadores (pt) não era assim tão relevante, apesar de sua condição de oposicionista. mas o senador atribuiu o ato presidencial à campanha do senador da novela, incansável defensor de uma solução justa e pacífica para o problema agrário brasileiro. "viva o senador caxias, que pôs a boca no mundo, dando voz veemente a esses reclamos. e viva fhc, que o ouviu, afinal."

o senador caxias retribuiu os cumprimentos do senador ribeiro no capítulo de o rei do gado que foi ao ar em ia de janeiro de 1997. em uma seqüência longa, discursando, como de costume, diante de um plenário vazio, o senador da novela homenageou darcy ribeiro, educador experiente e inovador, ministro da educação no governo joão goulart, criador da universidade de brasília, dos cieps (centros de integração educacional popular), e autor de uma vasta obra literária e antropológica. o senador de ficção salientou a força e a perseverança do senador darcy ribeiro, que, apesar de seus recorrentes problemas de saúde, não abria mão de seus esforços para construir uma sociedade democrática, educada e mais igualitária, tendo se envolvido, como parlamentar, com o problema da reforma agrária.

na segunda-feira, 20 de janeiro, darcy ribeiro escreveu outra coluna sobre o senador caxias, dessa vez para velar o personagem morto no episódio que fora ao ar na sexta-feira anterior. caxias morreu em campo, em meio a uma missão pacificadora no interior do brasil. missionário da paz, foi alvo da violência inconseqüente dos capatazes de um fazendeiro qualquer. caxias foi alvejado enquanto andava sozinho em um descampado infinito, arriscando a vida na tentativa de evitar o confronto armado entre seus amigos sem-terra, acampados nas redondezas, e os homens do fazendeiro ameaçado. seu corpo foi recolhido e chorado pelos liderados de regino, personagem reconhecido na imprensa como inspirado em josé rainha, líder do mst - como regino, casado também com uma militante do movimento. envolto na bandeira nacional, o corpo foi transportado para brasília, onde seria velado no congresso.

a interação entre personagens de novela, atores e ativistas políticos não se limitou à interlocução virtual entre um senador real e um de ficção por intermédio da televisão e do jornal. outros senadores e ativistas políticos tomaram parte do "pluriálogo" gerado pela novela. das muitas interações entre a novela e os políticos, a performance dos senadores benedita da silva (rj) e eduardo suplicy (sp), do partido dos trabalhadores, anunciada na

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imprensa com antecedência, se destaca.a arquitetura futurista da capital da república, especialmente a do edifício

do congresso nacional, serviu de cenário para a seqüência que representou o velório do senador caxias. a viúva do senador velava o corpo do marido quando os senadores eduardo suplicy e benedita da silva entram no recinto. fotógrafos portando câmeras de televisão e repórteres segurando microfones cercam os dois políticos. a cobertura, tal como o discurso dos senadores, é real e de ficção, sugerindo as maneiras pelas quais o folhetim eletrônico captura a notícia. o senador suplicy discursa denunciando a situação dos trabalhadores sem-terra e a favor de uma reforma agrária imediata. a senadora benedita da silva pronuncia palavras semelhantes e pede paz. os dois políticos fazem seus discursos, como de costume nos telejornais, olhando para a câmera. ao fazê-lo, eles rompem o espaço diegético da narrativa ficcional.

além de sua fala inicial, a senadora benedita da silva interage com o elenco. anda em direção ao caixão. posiciona-se ao lado dele, estende as mãos por cima do corpo, segura as mãos da viúva e diz: "força, muita força".

o ato solene do apertar de mãos negras e brancas mereceu um destaque em plano fechado. o toque corpóreo entre um personagem de ficção e a senadora de verdade produziu um ruído, como que uma sobreposição de texturas, que não abalou a credibilidade da seqüência. bruno mezenga, também presente ao funeral, declarou que, embora convidado, o presidente da república infelizmente não pôde comparecer.

em uma entrevista após o fim da novela, benedito ruy barbosa, o autor, declarou que outros senadores, como josé sarney, então presidente do senado, cancelaram sua participação nas gravações. a versão de benedito ruy barbosa pode ser confirmada pela notícia do jornal zero hora, do rio grande do sul, que sob uma foto do ex-presidente cumprimentando "a personagem rosa" de pé contra um fundo escuro afirma: "ficção e realidade se encontraram em brasília nas gravações do velório do senador caxias [...] numa das cenas, o líder do senado, josé sarney, interpretando a si mesmo, cumprimenta a personagem rosa, viúva do senador morto [.. .]"8.

8. informe especial. zero hora, porto alegre, 11 de janeiro de 1997.

alguns dias mais tarde o senador suplicy, que como o senador darcy ribeiro e o senador caxias é conhecido como político sério, honesto e comprometido com a reforma agrária, apareceu na imprensa de pijama durante pernoite em acampamento de sem-terra. a visita do senador do pt foi interpretada na imprensa como inspirada pela ação do senador caxias.

em fevereiro de 1997, poucas semanas após a morte do senador da

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novela, seu funeral foi lembrado na imprensa por ocasião do funeral de darcy ribeiro, morto de câncer. em artigo intitulado "adeus a senador emociona políticos", publicado na seção de política, o jornal diário comércio e indústria9 afirmou que a associação entre os velórios de darcy ribeiro e roberto caxias era inevitável.

mas nem todos os parlamentares apoiaram a novela. a diferença dos senadores darcy ribeiro, eduardo suplicy e benedita da silva, que se solidarizaram com roberto caxias, alguns de seus colegas tornaram pública sua discordância da representação do congresso nacional emitida pela novela, vindo a público tanto na imprensa como na tribuna do congresso para protestar contra o que eles consideraram uma difamação da instituição. o deputado federal ayres da cunha (pfl - partido da frente liberal/sp) criticou o rei do gado por distorcer a imagem do parlamento e transmitir uma imagem negativa dos políticos, representados como preguiçosos, corruptos e inescrupulosos10.

9. adeus a senador emociona políticos. diário comércio e indústria, são paulo, dci, 19 fevereiro de 1997.

10. o dia, 30 de outubro de 1996.

uma ênfase similar na natureza ficcional do personagem ocorreu em uma matéria publicada por o estado de s. paulo intitulada "parlamentares se sentem irritados com o senador de vereza"11. o artigo relata o protesto do senador ney suassuna (pmdb - partido do movimento democrático brasileiro/pe) contra a seqüência na qual o senador caxias faz um discurso sobre a reforma agrária para um auditório composto por apenas três senadores, todos desatentos: um cochilava, um falava ao telefone celular e o terceiro lia um jornal. diante da celeuma causada pela seqüência no congresso, benedito ruy barbosa argumentou que o senador caxias havia escolhido um dia ruim para proferir o seu discurso. o personagem teria se manifestado na tribuna em uma sexta-feira à tarde, dia da semana em que a maior parte dos parlamentares está em seus estados de origem. o autor também declarou que, ao criar um senador trabalhador e honesto, sua intenção havia sido a de prestigiar o congresso, e não a de difamá-lo. como evidência de suas boas intenções, o autor afirmou que o personagem já havia declarado que entre seus colegas havia muitos políticos honestos. embora o ator carlos vereza não seja mencionado no texto do artigo, o título deixa claro que caxias é uma criação. a reportagem sobre o debate gerado por o rei do gado no interior do congresso trouxe a política institucional para o caderno dominical de televisão de o estado de s. paulo¹².

11. o estado de s. paulo, são paulo, 4 de agosto de 1996.12. o estado de s. paulo, 8 de agosto de 1996. telejornal, p. t-7.

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a inserção do movimento social na novela mereceu a atenção da revista teoria e debate, do partido dos trabalhadores, que debateu a abordagem do movimento dos sem-terra e dos parlamentares veiculada pela novela. em seu artigo na revista, o senador eduardo suplicy defende a novela das acusações de seus colegas parlamentares. ressalvando suas críticas à defesa que o senador caxias fez do itr, o senador do pt afirma que, em termos gerais, avaliou que o personagem tinha "dignificado o seu mandato"13.

13. suplicy, li. m. a luta do senador caxias e a vida real. teoria e debate, são paulo, dr/pt/ sp, mar/abr/mai 1997, p. 35.

assim como telespectadores em contextos domésticos de recepção a serem abordados a seguir, políticos telespectadores que criticaram 0 rei do gado em fóruns públicos também enfatizaram o caráter ficcional do senador caxias, como se essa condição tivesse que ser reafirmada. líderes de fazendeiros se sentiram identificados com os fazendeiros da novela, mas discordaram da maneira como sua imagem foi construída no folhetim eletrônico. líderes do movimento dos trabalhadores rurais sem terra saudaram e apoiaram a novela, mas sempre resguardando sua autonomia mediante uma formulação que enfatiza o caráter ficcional e artístico do programa, diferente da realidade. para eles, trabalhos artísticos inspirados na realidade — como o rei do gado — podem contribuir para a construção de uma sociedade melhor, mas não esgotam a realidade nem constroem representações definitivas dela.

a polêmica gerada pela novela reverberou em uma edição do programa roda viva, da tv cultura, que foi ao ar após o fim da novela, em fevereiro de 1997, com o veterano autor de novelas benedito ruy barbosa. para reforçar meu ponto sobre a expansão do domínio da novela, cabe notar que entre os entrevistadores estavam um professor de economia da unicamp e o presidente de uma associação de proprietários de terra. ambos questionaram a representação do conflito agrário que a novela apresentou. benedito ruy barbosa, por sua vez, defendeu seu direito de intervir no debate sobre a questão agrária de acordo com sua visão pessoal do problema.

líderes da união democrática ruralista (udr) se manifestaram contra a novela. estas manifestações sugerem que, tal como os senadores antes mencionados, os proprietários de terra sentiram sua imagem afetada por ela. o presidente da udr, roosevelt roque dos santos, declarou à imprensa que iria pedir judicialmente que a tv globo entregasse à entidade a fita com a seqüência do assassinato do senador. se ficasse comprovada a insinuação de que fazendeiros haviam sido culpados pelo ato de violência, a udr

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processaria a emissora para obter o "direito de resposta"14.o "direito de resposta" é uma figura jurídica contemplada na lei de

imprensa e que visa proteger cidadãos contra difamação15. que fazendeiros se sintam lesados por uma história de novela e cheguem a cogitar apelar para o direito de resposta atesta o status de realidade de que gozam as novelas.

14. jornal da tarde, 22 de janeiro de 1977, p. 8 a.15. lei 5.250, de 8 de fevereiro de 1967, artigo 12.

o debate em torno da seqüência que representa a morte do senador caxias ilustra também o caráter essencialmente polêmico da representação televisiva. em entrevista à revista teoria e debate, joão pedro stedile, membro da direção do mst, e o jornalista eugênio bucci citam vários exemplos de seqüências da novela que descontentaram militantes do movimento dos trabalhadores rurais sem terra e/ou do partido dos trabalhadores, como aquela do assassinato de regino, que não deixa claro que os mandantes do crime foram os fazendeiros.

embora benedito ruy barbosa não tenha confirmado, regino e jacira, o casal que lidera os sem-terra na novela, foram reconhecidos como sendo inspirados em um casal que lidera os sem-terra na realidade, josé rainha e diolinda alves de souza. graças a o rei do gado, rainha, que usualmente aparece nas seções políticas dos jornais, teve lugar também na seção de televisão. um artigo sobre o líder do mst na folha de s. paulo apresentou sua interpretação da novela. rainha legitima a representação do movimento e dos acampamentos apresentada pela trama. embora o líder, em termos gerais, demonstre apoiar a novela, ele não deixou de criticar elementos que, a seu ver, faziam com que ela perdesse verossimilhança. a escolha do verde, simbolizando esperança, em vez do vermelho, opção do movimento real, gerou polêmica.

joão pedro stedile publicou um artigo assinado na página de opinião de o estado de s. paulo intitulado "os sem-terra e o rei do gado". nessa manifestação pública, o líder do movimento, que ao longo do período de duração da novela concedeu várias entrevistas sobre o assunto, elogia a história de benedito ruy barbosa. em vez de criticar a novela por misturar fato e ficção, ou por distorcer a imagem dos sem-terra, stedile afirmou que "a transformação de 'marginais' em personagens de novela [...] é uma contribuição importante da arte para a construção de uma realidade com mais justiça social". como outros que sentiram que poderiam perder o controle sobre sua representação pública, stedile procurou reter a sua independência e a do movimento tratando a novela como um trabalho de arte.

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embora não houvesse conexões orgânicas entre o mst e o rei do gado, a novela conferiu visibilidade inédita para o movimento. questões sobre a verossimilhança e/ou a plausibilidade das representações veiculadas na novela foram, em si mesmas, fonte de debate e publicidade para a história da televisão. a narrativa mimetizou estratégias do movimento e fez referências à violência que tem marcado as relações entre proprietários de terra e trabalhadores rurais, como também à fama inoperante do congresso nacional. a manifestação espetacular no último capítulo da novela antecipou e, de certa maneira, preparou o caminho para a chegada dos trabalhadores sem-terra que caminharam em direção a brasília, vindos das mais diversas partes do país, e que terminou cerca de dois meses após o final da trama, com uma manifestação no dia 21 de abril, dia de tiradentes.

o rei do gado rompeu barreiras editoriais que separam política e entretenimento. penetrou também as seções de economia e negócios dos jornais. apareceu como produto comercial, por exemplo, na seção de negócios agrários da gaveta mercantil, no título de uma matéria que discutia o perfil de um fazendeiro apelidado pelo jornal de "rei do gado". o mesmo jornal noticiou o acordo comercial entre a rede globo de televisão, emissora produtora da novela, e a indústria de chapéus e calçados que usou a marca na novela. segundo a notícia, a fábrica pagava uma porcentagem das vendas para a emissora. o jornal também noticiou a compra da licença para o uso da marca por uma indústria de chapéus16.

o rei do gado gerou debate entre políticos e ativistas políticos; intensificou a presença da política institucional em seções de televisão e de jornais diários. trouxe assuntos políticos até mesmo para uma revista feminina para adolescentes como capricho. a novela foi o "gancho" para que a revista pautasse uma reportagem sobre meninas filhas de sem-terra. o título, "irmãs coragem", remetia a um outro folhetim eletrônico, no caso conferindo um tom heróico, talvez até glamouroso, à vida dos que são excluídos do estilo de vida consumista ostensivo que domina o universo das novelas e da própria revista17. ao intervir em um conflito social contemporâneo, o rei do gado trouxe um gênero muitas vezes considerado "menor" para seções políticas, editoriais e econômicas dos jornais diários.

16. "roque quagliato, o rei do gado", gaveta mercantil, são paulo, 22 de julho 1996, p. b-22 e "francal tem edição encolhida", gaveta mercantil, são paulo, 30 de julho de 1996, p. c-3.

17. capricho, são paulo, ed. abril, 24 de novembro de 1996.

a abordagem do problema da reforma agrária no programa de maior audiência da televisão brasileira provocou uma repercussão que expressa o peso que possui na política contemporânea a disputa pelo controle do conteúdo das representações. no início de o rei do gado o tema da reforma

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agrária era secundário, mas foi ganhando importância no decorrer da narrativa. embora não integrasse o centro dramático da história, a representação do conflito agrário foi responsável pela repercussão inédita da novela em fóruns centrais da política institucional. o rei do gado mobilizou políticos, articulistas e lideranças populares, em geral homens, que se envolveram publicamente no debate sobre a novela, revelando sua condição de membros do seu público. ao propiciar publicidade inédita ao mst, a novela atuou sobre a agenda política do momento a partir de um ponto de vista que não coincide com o de nenhum dos agentes sociais e políticos envolvidos.

provendo parâmetros públicos para situar dramas privados e apropriando referências públicas em termos privados

pesquisa de campo com telespectadores em seu contexto doméstico de recepção sugere que os telespectadores reconhecem o adultério feminino e a violência contra a mulher, dois temas que constituem a trama central da novela o rei do gado, como os principais tópicos tratados pela história. telespectadores também reconhecem a reforma agrária como assunto crucial na novela. mas os personagens mais controversos, aqueles que geram as reações mais fortes e são percebidos como motores da trama, são aqueles conectados com conflitos domésticos18.

18. para achados semelhantes, ver almeida, heloísa buarque de. ethnography in montes claros: gender constructions in relation with tv contem, 2000 e lapastina, antônio. decoding strategies and gender roles in reading a telenovela: an ethonographic case from a semi urban town in northeastern brazil. são francisco, internacional communication association, 1999.mimeogr.

léa e ralf são personagens da novela que formam um casal violento que captou a imaginação dos telespectadores, atraiu a atenção dos programas de rádio que comentam programas de televisão e virou pauta de jornais e revistas especializados. léa começa a história como esposa do "rei do gado", mãe de dois filhos crescidos, mulher rica, fútil e desocupada. esquecida pelo marido - que passa a vida no trabalho, a cuidar do gado -, solitária, a ricaça se ocupa no cassino, onde se apaixona por um gigolô que, além de traí-la com outras, a espanca durante crises apaixonadas de ciúmes. ralf é baixinho e pobre, mas exibe seu corpo musculoso com freqüência e faz muito sucesso entre as mulheres do público e da novela. além de léa, com quem se casa,

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ralf mantém um caso com a esposa de um homem impotente e continua a se encontrar com uma antiga namorada.

a maior parte dos telespectadores que participou de pesquisas promovidas por programas especializados declarou detestar léa, a mulher que trai um marido bom, e ralf, um gigolô violento e sem escrúpulos. a condenação do adultério feminino e do envolvimento romântico violento foi hegemônica. mas, de outro lado, telespectadores que divergiram desse julgamento "correto" expressam relações reveladoras com as novelas.

as diferentes formas pelas quais telespectadores se identificaram com léa, seu amante e seu marido traído e protagonista da história ilustram as maneiras pelas quais o rei do gado interveio na problematização social cotidiana das concepções convencionais de feminilidade, masculinidade e casamento. instabilidade conjugai, lealdade e traição, tal como representadas na novela, estão sintonizadas com os dramas pessoais privados do cotidiano dos telespectadores. mais ainda, falaram diretamente às redefinições contemporâneas das relações de gênero e estrutura familiar. para além das particularidades envolvidas em diferentes interpretações, a novela funciona como um idioma, um repertório por meio do qual telespectadores aludem a suas relações pessoais.

telespectadores que defenderam a esposa controversa e desleal na novela o fizeram em consonância com sua conduta pessoal destoante.

por exemplo, um casal de desempregados morador de uma favela, que mantinha um relacionamento conjugai conflituoso, defendeu o que considerava uma relação "violenta mas apaixonada". um homossexual também favelado ressalvou que léa deveria ter informado o marido de sua paixão extraconjugal desde o início, mas apoiou a busca da realização amorosa que leva a personagem a se divorciar de um marido bom provedor para se casar com um gigolô que a maltrata. uma mulher separada, de classe média e meia-idade, apóia a conduta de léa por entender que a personagem estava abandonada pelo marido, que só pensava no trabalho e não lhe dava atenção. ao apoiar a busca da realização amorosa da personagem, essa mulher justifica também a situação fragmentada de sua vida pessoal de mulher separada, com um filho morando com ela e outro com o pai.

ao tomar padrões de conduta que movem a trama romântica da novela como referência para situar seus próprios dramas em termos sabidamente compreensíveis aos mais diversos interlocutores — a antropóloga fazendo trabalho de campo, o vizinho, o patrão, colegas de trabalho -, os telespectadores mobilizam uma experiência de pertencimento a um certo coletivo imaginário, um coletivo situado no espaço geográfico.

o rei do gado não trazia as cores nacionais na vinheta, como outras

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novelas citadas anteriormente, mas as referências ao conflito agrário confirmam o brasil como território onde se passa a história. nesse sentido, as referências à luta pela reforma agrária sinalizam os contornos espaciais de um coletivo imaginário que não se define pelo conteúdo de uma representação nacional dominante. esse coletivo nacional imaginário debate assuntos que as novelas trazem à tona. ao tomar os personagens e tramas das novelas como referências sabidamente compartilhadas com outros, os telespectadores se apropriam das novelas como repertórios que exibem padrões diferentes de comportamento que eles não necessariamente aprovam ou imitam, mas em relação aos quais se posicionam.

ao longo da história da televisão, novelas como o rei do gado têm captado e expressado assuntos polêmicos, legitimando o tratamento público de questões anteriormente confinadas às alcovas. ao focalizar a infidelidade feminina e a violência contra a mulher, o rei do gado falou diretamente à instabilidade da vida familiar. telespectadores, homens e mulheres com que interagi durante o trabalho de campo em são paulo, passavam das histórias da novela a suas histórias pessoais. É como se a novela realizasse uma mediação entre dramas de conhecimento geral e dramas privados. ao percorrer esse trajeto, os telespectadores revelam suas representações sobre papéis de gênero e estrutura familiar.

ao tematizar assuntos como violência contra a mulher e infidelidade feminina, como o rei do gado, homossexualismo (vale tudo, a próxima vítima, entre outras), discriminação racial (pátria minha, a próxima vítima, entre outras), inseminação artificial (barriga de aluguel) ou transplante de coração (de corpo e alma), os telespectadores demonstram que estão conectados ao mundo exterior. mais do que simplesmente afirmar posições sobre assuntos polêmicos, as novelas provêem um repertório por meio do qual telespectadores mobilizam seus repertórios pessoais em termos que são reconhecíveis publicamente. e se inteiram e posicionam em relação ao que se configura como agenda do momento.

um tipo diferente de envolvimento ocorreu em relação a personagens que fazem parte do núcleo político da trama da novela. telespectadores quase unanimemente saúdam o discurso e a prática do senador roberto caxias, referendando o posicionamento de darcy ribeiro, eduardo suplicy e benedita da silva.

a opinião dominante entre os telespectadores era que o senador caxias defendia a idéia de que "toda pessoa tem o direito a possuir um pedaço de terra". o tom moral no qual o personagem insere o problema da reforma agrária fez com que o tema se tornasse palatável à maioria dos telespectadores, mesmo aos que não acreditavam que a reforma agrária fosse

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a melhor solução para o problema da terra e não concordavam com o espaço que a novela dava ao mst. É relevante para o argumento aqui desenvolvido que a maior parte dos telespectadores que participaram da pesquisa de campo saudaram o senador caxias, mas também expressaram a sensação de que esse tipo de político honesto e trabalhador não existe na "vida real". É intrigante que um dos personagens que mais atraiu a atenção de políticos e que recebeu atenção em seções políticas dos jornais diários seja um personagem identificado não com a realidade, mas com a ficção. a relação dos telespectadores com o personagem do senador foi mais "fria" do que com os personagens descritos anteriormente. o senador caxias foi quase consensual. como muitos personagens "bonzinhos" de novela, caxias não gerou grandes emoções ou controvérsias.

telespectadores que se manifestaram apaixonadamente sobre a representação da reforma agrária na novela expressaram seu envolvimento ideológico com a questão política. esses telespectadores se opuseram não ao senador, mas ao que eles perceberam como uma figuração idealizada -não suficientemente "real" e dura — do trabalho no campo. alguns observaram a ausência de trabalho duro na rotina das fazendas representadas na novela. outros reclamaram da maneira como a maioria dos fazendeiros que apareceram na novela foram representados como parasitas. outros ainda denunciaram a falta de autenticidade do mst, que achavam que estava sendo promovido pela novela. telespectadores situados no outro extremo do espectro ideológico reclamaram sobre a representação inverossímil do fazendeiro protagonista, um homem bom, honesto e trabalhador, que além de tudo ajudava os pobres. eles também reclamaram da opção do movimento dos sem-terra da novela pela troca da cor vermelha de suas bandeiras (como as do movimento "real") pela cor verde, identificando aí uma crítica direta da novela ao movimento. em muitas ocasiões, esses telespectadores também questionaram decisões táticas dos líderes dos sem-terra da novela.

política e novela

como o rei do gado, novelas anteriores produzidas pela rede globo intervieram diretamente em assuntos correntes. explode coração, por exemplo, lidou com o tema de crianças desaparecidas. de autoria de glória peres, essa novela, que foi ao ar em 1995, representou mães em busca de seus filhos desaparecidos. a novela mostrava mães que perderam os filhos segurando cartazes com fotos das crianças sumidas diante da igreja da

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candelária, no centro do rio de janeiro. a representação de mães de crianças desaparecidas criada pela novela alude à chacina de meninos de rua por policiais militares ocorrida em frente àquela mesma igreja. a imagem de mães em busca de seus filhos desaparecidos em praça pública também remete às mães da praça de maio, na argentina dos anos de violência militar. mas, para além dessas referências políticas, a exibição de imagens de crianças desaparecidas visava — e de fato promoveu — a reunião de famílias fragmentadas. explode coração continha cenas de merchandising social, ou seja, propaganda de organizações não-governamentais (ongs), como a viva cazuza, dedicada a cuidar de crianças portadoras do vírus da aids.

o rei do gado representa a primeira incursão direta das novelas no reino da política institucional. essa referência explícita rendeu uma repercussão ampla e inédita na mídia, como descrito acima; no entanto, em seus contextos domésticos de recepção, os telespectadores não se mostraram tão envolvidos quanto telespectadores que se reconheceram nos personagens da novela e reagiram publicamente, manifestando suas opiniões sobre a legitimidade e a verossimilhança dessas representações.

muitos telespectadores ficaram indiferentes à presença dos senadores eduardo suplicy e benedita da silva na seqüência da novela descrita anteriormente. outros entenderam que a performance dos políticos era oportunista ou, ainda, que, se uns desfrutaram da oportunidade de aparecer na novela, outros deveriam gozar da mesma chance. aqui, a noção de senso comum, amplamente compartilhada na sociedade e que identifica a política e os políticos, independentemente de suas opções ideológicas, com corrupção, defesa de interesses particulares e má conduta dos negócios públicos, se aplica até mesmo a dois dos poucos parlamentares conhecidos como ativistas honestos, trabalhadores e de esquerda, talvez porque eles apareçam fora de contexto.

a reforma agrária é considerada tema legítimo para o espaço de uma novela enquanto for tratada como uma questão moral ou social, esvaziada de seu conteúdo político-ideológico. a presença de parlamentares de fato no interior da narrativa viola a isenção partidária que legitima a novela como veículo "independente", ou seja, como veículo que não serve à política, entendida aqui em sua acepção estreita, como se referindo à política institucional, ao governo, aos partidos políticos ou aos parlamentares. a intervenção explícita de o rei do gado no terreno da política institucional gerou repercussões expressivas entre políticos, articulistas e jornalistas. nesse sentido, a novela foi um sucesso comercial. sua audiência na grande são paulo entre as classes a e b chegou a subir ligeiramente no final da

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novela, quando o tema da reforma agrária ocupava posição de destaque19. mas essa incursão política foi também criticada por outros políticos, tratada com ironia pela imprensa e não despertou reações viscerais entre telespectadores em suas casas. temas controversos relativos a conflitos domésticos típicos da intimidade se mostraram mais apelativos. a maior parte dos telespectadores só expressou sua opinião sobre o problema agrário quando questionado, e alguns nem mesmo notaram a presença dos políticos em cena.

19. a fonte dos dados é o ibope (instituto brasileiro de pesquisa e opinião pública).

o rei do gado constituiu assunto de conversa diária. telespectadores se referem ao movimento dos personagens e seguem seu movimento de acordo com a mesma estrutura com a qual seguem o romance de uma vizinha, um amigo ou um parente. quando telespectadores se envolvem no debate sobre um assunto - seja no âmbito público, no privado ou em ambos os contextos -, eles mobilizam sua condição de membros de um grupo, definido não pelo conteúdo ideológico dominante de uma "mensagem", mas pela definição de pautas. ao definir cenários, pautas e enquadramentos, novelas como o rei do gado tomam parte na definição de coletivos imaginários e expandem os limites do que é e do que não é considerado assunto legítimo para discussão pública. elas expressam as peculiaridades de um espaço político saturado de intimidades e registros morais que escapa das teorias e práticas que procuram dar conta dos universos contemporâneos nos marcos de disciplinas e domínios estreitos20. a trajetória das novelas brasileiras constitui um fenômeno midiático sugestivo para se pensar em conceitos que dêem conta dos mistérios da sociabilidade contemporânea. produzidas para o público feminino de classe média, em um certo sentido, as novelas encarnam o que de mais desprezível a indústria cultural pode produzir. são seriados — formato considerado menor por sua suscetibilidade à lógica do capital — que fogem ao controle do autor na medida em que são prolongados ou encurtados de acordo com a audiência e os anúncios comerciais conquistados. novelas aliam o formato do seriado ao gênero melodramático, terreno privilegiado para as oposições binárias entre valores morais pressupostos. as novelas encarnam os atributos que huyssen21 associa à cultura de massa.

20. a literatura sobre as implicações de meios de comunicação de massa para a redefinição das noções de espaços públicos e privados é vasta e diversificada. ver, por exemplo, huyssen, andreas. after the great divider: modernism, mass culture, post-modermsm 1986; meyrowitz, joshua. no sense of place. oxford, oxford university press, 1984; babel & babylon: spectatorship in american silent film. cambridge, harvard university press, 1990 e "unstable mixtures, dilated spheres: negt and kluge's the public sphere and experience, twenty years later". public culture, n.º 5,179-212,1993.

21. huyssen, op. cit.

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no entanto, a descrição das articulações e interações em torno da novela 0 rei do gado sugere que o fenômeno não se esgota nas definições de conteúdo ideológico. em torno da novela se realiza uma interação desigual e distorcida: o gênero é entendido como feminino, mas é também assistido pelo público masculino; a novela é um gênero a um só tempo afeto à vida doméstica e privada, mas também à política e à vida pública.

esther hamburger — mestre em sociologia pela universidade de são paulo e phd em antropologia pela universidade de chicago. foi bolsista de pós-doutoramento da mellon foundation na universidade do texas, austin. É pesquisadora do cebrap (centro brasileiro de análise e planejamento) e colaboradora de folha de s. paulo. É autora do livro política e intimidade nas novelas brasileiras (editora da universidade federal do rio de janeiro).

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vendo a televisão a partir do cinemaroberto moreira

durante dois anos estive envolvido em um projeto audiovisual sobre a história da televisão brasileira. foram entrevistadas diversas personalidades, como josé bonifácio sobrinho, daniel filho, regina duarte, hebe camargo, gugu liberato, gilberto braga e lima duarte, entre outras 15 pessoas. todo o material de arquivo existente sobre a tv dos anos 50 e 60 foi repertoriado. cronologias sobre a história da programação, o desenvolvimento tecnológico e o impacto social da tv foram produzidas por gabriel priolli. também foram entrevistados 45 espectadores das mais diferentes idades e classes sobre suas experiências ao ver televisão. reunir todo este material levantou diversas questões sobre a tv, sua história e sua inserção na nossa sociedade. estas notas indicam alguns desses problemas. são impressões, palpites e dúvidas sem nenhum caráter sistemático. mais do que formular teorias, trata-se de levantar problemas.

o primeiro passo de qualquer pesquisa é levantar uma bibliografia, geralmente encabeçada por uma obra de referência. quando comecei a redigir o projeto, fui à escola de comunicações e artes da universidade de são paulo em busca de uma história da televisão brasileira. surpresa: tal livro não existe. os livros sobre a história da tv brasileira cabem em uma prateleira. alguns têm caráter memorialista ou são perfis de personalidades, outros possuem ensaios sobre aspectos desta história ou então são levantamentos como o de ismael fernandes1 sobre a telenovela. mas uma obra compreensiva, com dados confiáveis... simplesmente não existe! que contraste com a história do cinema brasileiro. ao lado da prateleira dedicada à tv temos duas estantes sobre nosso cinema. o primeiro livro de história do cinema foi publicado em 1959 por alex viany2, seguido por uma avalanche de estudos produzidos sob a égide de paulo emilio salles gomes. por que uma diferença tão grande? afinal, é inquestionável a profunda inserção social da tv brasileira. vários milhões de espectadores passaram e continuam a passar horas e horas em frente à televisão. boa parte da história recente do país aconteceu nesse meio de comunicação. já o cinema sempre teve uma existência problemática, pouco significativa como fenômeno social.

1. FERNANDES, ismael. memória da telenovela brasileira. são paulo, brasiliense, 1997.2. VIANY, alex. introdução ao cinema brasileiro. rio de janeiro, instituto nacional do livro, 1959.

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não se trata de questionar os méritos artísticos do cinema brasileiro e a importância das pesquisas realizadas, mas sim de perguntar-se por que não foram dedicados à tv os mesmos esforços e recursos. responder a esta pergunta implica reconhecer que a televisão, para o intelectual, é um meio de massas, pouco nobre, ignorante, bastardo e a serviço do poder. o prestígio da tv é muito menor que o do cinema. enquanto este é feito para a elite e pela elite, a tv é o pão e o circo dos 90% da população sem acesso à cultura. esta cisão entre o espaço social ocupado pelo intelectual e aquele ocupado pela tv é determinante na produção teórica, na historiografia e na formulação de políticas para o setor. na verdade, este é o maior desafio que a tv nos coloca e, confesso, foi difícil reconhecer este embate. o fosso da segregação social é tão generalizado e "natural" no brasil que se reproduz à nossa volta sem que sejamos capazes de percebê-lo.

a tv brasileira não existe como objeto de pesquisa. por exemplo, como podemos analisar um personagem como o apresentador ratinho sem um levantamento histórico do grotesco na tv? ou, ainda, como podemos discutir a influência da tv na vida cotidiana sem entender a história da audiência? enquanto não cercarmos este eletrodoméstico de todas as suas determinações históricas e sociais, ele continuará a ser apenas o receptáculo de nossas fantasias, projeções e frustrações. a tv é um fetiche mesmo para os intelectuais e é preciso despojá-la de tantos investimentos simbólicos.

quais seriam as etapas necessárias para um levantamento sistemático sobre a tv brasileira? vamos arriscar uma agenda:

1a— o mais elementar levantamento de fatos. quem fez o quê, quando, como e por quê. os documentos atuais são muitas vezes baseados em depoimentos falhos3.

3. um dos únicos livros em que cada informação foi colhida em fontes primárias acaba de ser publicado. segue a referência e o agradecimento a rixa, pois os dados deste artigo foram quase todos tirados de seu livro. RIXA. almanaque da tv. rio de janeiro, objetiva, 2000.

2a — o que foi exibido a cada ano na televisão? seria necessário recuperar e tabular a programação destes 50 anos de tv. pode parecer um grande trabalho, mas os dados estão facilmente a disposição e não somam mais de 18 mil dias.

3a - qual foi a resposta do público à programação? trata-se de digitar as folhas de aferição da audiência depositadas pelo ibope (instituto brasileiro de opinião pública e estatística) na unicamp, procurando definir um perfil das transformações do gosto.

4a — É urgente levantar a história das telecomunicações brasileiras, tanto do ponto de vista político como tecnológico. a relevância deste setor na

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economia contemporânea é inversamente proporcional ao debate e ao conhecimento sobre o processo de implantação da estrutura de telecomunicações.

5a — É preciso repertoriar e recuperar os programas que não foram apagados. a situação é de calamidade. o suporte magnético é extremamente perecível e a cada dia a qualidade fica mais comprometida. de beto rockfeller (tv tupi,1968-69), marco da telenovela brasileira, sobrou o último capítulo, em via de se desfazer. as empresas hoje apagam seus registros de modo um pouco menos selvagem, mas inexiste uma política de preservação.

6a — os programas precisam ser analisados com minúcia, buscando suas articulações internas, suas estratégias de significação. só assim o objeto vai surgir em sua complexidade. em seguida, é preciso inseri-los em uma tradição, estudar suas filiações. por exemplo, o humorismo televisivo é herdeiro direto da chanchada. como podemos caracterizar este humor? quais os recursos que utiliza? como ele se diferencia de outros tipos de humor? também é necessário escrever uma história dos diversos gêneros televisivos. no meio desta onda de sitcoms seria muito útil lembrar que alô, doçura (tv tupi, 1955), família trapo (tv record, 1967), a grande família (rede globo, 1972) e mesmo armação ilimitada (rede globo, 1985) têm muito em comum com as sitcoms americanas. no que estes programas são diferentes de friends (nbc, 1994-) ou semfield (nbc, 1990-98)? qual é o aporte brasileiro ao gênero?

esta agenda pode parecer extensa, mas é exatamente o que se fez com o cinema brasileiro nos últimos 30 anos. ainda assim, esta história é incompleta. falta justamente uma pesquisa de suas relações com a televisão. certamente o cinema não ficou indiferente ao sucesso da tv. a partir dos anos 70 muitos filmes foram contaminados por estratégias vindas do meio eletrônico. urge construir uma história do entretenimento e do espetáculo no brasil capaz de escapar das fronteiras artificiais do suporte, reconhecendo um continuum que também inclui o rádio, o teatro e, futuramente, a internet.

tentar consolidar uma história da tv é uma empreitada paradoxal. uma das características do meio televisivo é justamente sua efemeridade. nada é feito para durar. os produtores, diretores e roteiristas não estão fazendo uma obra e pouco se preocupam com a posteridade. talvez a grande realização do meio não esteja materializada nas imagens e nos sons que veiculou, mas sim na relação que o público estabeleceu com a tv. apreender este movimento fantástico de retroalimentação entre o real, sua representação eletrônica e os desejos do espectador é entender a lógica do meio. mais do que o objeto

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realizado, passa a ser importante o efeito provocado. assim, os grandes autores da televisão são aqueles capazes de explorar este mecanismo de modo inédito e original.

a imagem pública de cassiano gabus mendes (1929-93) não corresponde de modo algum à sua importância na história da tv brasileira. da tupi dos anos 50 restou pouca coisa. vinte e sete minutos de um tv de vanguarda (tv tupi, 1952-67) e outros cinco de um alô, doçura. mas estes restos testemunham uma ousadia impressionante para a época. em tv de vanguarda a câmera está sempre em movimento, os cenários sucedem-se com naturalidade, inclusive com externas! o casting e o figurino são variados e a trilha sonora é bem explorada. não é exagero dizer que nesses 27 minutos há mais risco e experimentação que em muitos filmes da vera cruz4, pelo menos no que diz respeito ao movimento de câmera. durante as décadas de 1950 e 1960, cassiano exercerá enorme influência sobre toda uma geração de artistas. o ápice de seu trabalho é beto rockfeller, no qual inaugura um estilo naturalista que viria a ser hegemônico na tv globo e mesmo no cinema brasileiro. É genial a descrição que cassiano faz desta novela como sendo a história de um personagem paulistano que nasceu na rua teodoro sampaio, quer ir viver na rua augusta, mas descobre ao longo dos capítulos da novela como é difícil atravessar estes cinco quarteirões. o tema é local, para não dizer bairrista, e foi capaz de mobilizar todo o país. estava decretada a morte do melodrama latino-americano. assim, cassiano não apenas fez a história dos 20 primeiros anos da televisão como também apontou para seus desdobramentos futuros. ele é o grande pioneiro. numa comparação com o cinema norte-americano, diríamos que desempenhou o papel de um d. w. griffith (1875-1948), inventor da forma clássica do longa-metragem de ficção, pois cassiano criou a forma da telenovela brasileira. no entanto, nenhum dos dois foi capaz de criar um processo que garantisse a continuidade com sucesso do formato por eles criado.

continuando o paralelo com o cinema americano, thomas schatz escreveu um livro excepcional sobre o modo de produção dos estúdios; seu título, o gênio do sistema5, retoma uma citação de andré bazin no artigo "de la politique des auteurs":

4. empresa criada em são paulo, foi atuante de 1949 a 1954, com o projeto de inaugurar no brasil um cinema industrial de qualidade.

5. schatz., thomaz. the genius of the system. londres, faber & faber, 1998. quem primeiro me indicou este livro foi carlos augusto calil e o conteúdo desta seção responde a várias de nossas discussões.

"o cinema norte-americano é uma arte clássica, então, por que não admirar nele aquilo que é mais admirável, ou seja, não o talento deste ou daquele cineasta, mas o gênio do sistema, a riqueza de uma tradição sempre

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viva e sua fecundidade ao contato de novos aportes.. ."6

6. BAZIN, andré. de ia politique des auteurs. cahiers du cinema 70, paris, editions de l'etoile, n.º 11,abr. 1957.

vale a pena lembrar o contexto desta indagação de bazin. o objetivo de seu texto era definir sua posição na polêmica travada pelos jeunes turcs (truffaut, godard, rivette e rohmer) na defesa do cinema norte-americano contra o cinema literário europeu de qualidade. bazin responde à sobrevalorização do diretor exigindo a atenção à obra. o "sistema" de bazin são as convenções estéticas do cinema norte-americano. schatz, ao retomar a citação, faz um deslizamento de sentido ao identificar "o sistema" com o modo de produção dos estúdios norte-americanos e sua capacidade de gerar produtos com apelo de público, qualidade artística e potencial comercial. essas virtudes, essa genialidade do sistema, teriam garantido o sucesso dos estúdios. gostaria de explorar uma outra ambigüidade do título de schatz. seu livro é uma história dos estúdios, mas, subterraneamente, também é uma história dos produtores, em especial de irvin thalberg e david selznick. o que vale destacar é que cada um criou um sistema próprio, com regras que emanavam de sua personalidade. os estúdios norte-americanos não eram apenas geridos segundo uma lógica estritamente financeira, nem sua hierarquia de poder e seus processos de produção eram estritamente racionais. existia, sim, um gênio do sistema: o produtor.

ora, quem é o "gênio do sistema" na tv brasileira? a resposta vem rápido e sem hesitações: josé bonifácio sobrinho, o boni. a ele coube inaugurar um sistema de produção industrial na tv. o famoso "padrão globo de qualidade" é obra sua.

no depoimento de boni que colhi, fica evidente o caráter personalista, para não dizer patriarcal, da gestão nas empresas de televisão, com os proprietários interferindo continuamente na programação. quando não era o proprietário, era a agência de publicidade. durante anos boni e walter clark procuraram condições empresariais para desenvolver seu trabalho. na tv globo, roberto marinho assegurou autonomia aos dois "profissionais", fazendo questão apenas de manter o controle da linha editorial ao jornal nacional. quais foram as conquistas que construíram a hegemonia da tv globo?

a) autonomia em relação às agências publicitárias: antes as agências compravam o horário de programação e produziam elas mesmas os programas, como por exemplo a gincana kibon ou as sabatinas maizena. a globo passou a controlar a programação vendendo o espaço publicitário nos intervalos comerciais. em contrapartida, a emissora respondeu a todas as

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demandas do mercado publicitário na sua busca por um veículo mais confiável e adequado às novas estratégias de pesquisa e marketing. como diz boni, a globo foi uma emissora criada pelos publicitários paulistas. este modelo de gestão foi implantado definitivamente com a saída da emissora, no ano de 1969, de glória magadan, ex-funcionária da kolynos que ainda mantinha controle total sobre as telenovelas.

b) neste esforço de racionalização, foi a primeira a usar as pesquisas junto ao público para direcionar de modo "científico" a programação. walter clark e boni tinham o controle dos conteúdos e da grade de programação, podendo adequar sua produção às demandas detectadas nas pesquisas. por exemplo, boni percebeu a necessidade de atrair o público masculino para as telenovelas, por isso daniel filho surgiu com a idéia de uma novela faroeste como irmãos coragem (rede globo, 1970-71).

c) não se especializou em um gênero de programa. a excelsior, por exemplo, fazia telenovelas, a tv rio conseguiu êxito graças ao humor de chico anísio e à revista de variedades, a record se impunha pela programação musical etc. o resultado era uma fragilidade na gestão muito grande. se um dos carros-chefe ia mal a emissora afundava junto. a globo atuou como um rolo compressor em todos os horários da grade. ela tinha como objetivo a hegemonia em todos os gêneros.

mais do que um fato (a enchente no rio de janeiro em 1966), um achado (diz-se que a grade estruturada com novela às sete, jornal, novela das oito e programa semanal é invenção da globo; na verdade foi a excelsior que inaugurou este perfil em meados dos anos 60); ou um programa que estourou a audiência (jornal nacional ou irmãos coragem), ao que parece foi mesmo a profissionalização da gestão que construiu o domínio da rede globo. É claro que contaram com apoio governamental, mas só isto não basta para explicar um sucesso tão arrasador.

no "sistema" global, walter clark desempenhou papel semelhante aos escritórios de nova york no regime dos estúdios: os aspectos comerciais e políticos da administração estavam em suas mãos. já boni supervisionava o dia-a-dia da emissora, respondendo inteiramente pela programação. em seu depoimento, destaca como a originalidade da globo estava em inaugurar um processo de produção. seu mérito foi desenhar esta cadeia de produção em que custos, qualidade artística e expectativas do público eram mutuamente determinantes. a hegemonia da emissora durante tantos anos é o melhor testemunho da genialidade de seu sistema.

mais um item de homenagem, desta vez a daniel filho.tenho a impressão de que ele inventou um estilo naturalista de direção

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que marcou definitivamente o audiovisual brasileiro. beto rockfeller com certeza foi muito inovador. mas, afora luís gustavo e plínio marcos, os outros atores se mantêm na atitude empostada que era regra então no cinema e na televisão. a direção de lima duarte era eficiente, mas também se mantinha nos marcos definidos por cassiano ainda no tv de vanguarda. isto fica evidente no uso da movimentação de câmera. já em pecado capital (rede globo, 1975-76), temos uma mise-en-scène mais próxima do neo-realismo e mesmo do cinema novo com sua câmera na mão. também a opção por gravar em locações e a interpretação despojada e debochada dos atores contribuem para esse tom realista. a novela é mais suja, mais improvisada, e por isso mesmo adere melhor ao presente. esta síntese entre as convenções dramatúrgicas da telenovela, ambientação brasileira e uma direção que indica maior espontaneidade vai marcar todo o desenvolvimento futuro do audiovisual. na entrevista que fiz com daniel filho, fica claro como ele conseguiu amalgamar diversas experiências para alcançar este resultado. por exemplo, para explicar a gênese de irmãos coragem, faz referências a dostoievski (os irmãos karamazov), brecht (mãe coragem), steinbeck e ao faroeste spaghetti.

seria o caso de examinar com minúcia a impressionante produção ficcional da globo do período, estabelecendo cronologias e filiações. mas sem dúvida daniel filho surge com destaque, encabeçando sucessos como irmãos coragem, pecado capital, malu mulher (rede globo, 1979) e dancin days (rede globo, 1978-79).

seguindo com as homenagens, gostaria de destacar o valor real e simbólico da contribuição de dias gomes (1923-99) e walter george durst (1922-97). real porque escreveram diversas telenovelas de importância histórica. simbólica porque estes dois dramaturgos tiveram assumida filiação com o partido comunista. seria interessante levantar as relações dos quadros da emissora com este partido; tenho certeza que são muito profundas. na falta de uma pesquisa histórica, podemos intuir uma convergência entre o nacionalismo do regime militar e o projeto de uma arte nacional-popular. delinear estas relações foge completamente ao âmbito deste artigo, mas gostaria de deixar indicado como a tv globo parece ter sido, na época, o instrumento pelo qual estes intelectuais e artistas tentaram manter um diálogo com as massas. todos compartilhavam o projeto de inventar o folhetim eletrônico brasileiro. tratava-se, para comunistas e militares, de criar uma imagem do brasil com a qual o público pudesse se identificar. não à toa gabriela (rede globo, 1975), adaptada da obra do comunista jorge amado, foi a primeira novela que teve seus capítulos integralmente preservados. era um óbvio motivo de orgulho para a emissora. um feito.

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estes intelectuais enfrentaram a difícil tarefa de criar um diálogo entre sua "alta" cultura e o "baixo" gosto popular.

por exemplo, a profusão de novelas experimentais, como o bofe (rede globo, 1972-73), o casarão (rede globo, 1976), saramandaia (rede globo, 1976) ou espelho mágico (rede globo, 1977), é reveladora de uma atitude que problematizava a comunicação, que buscava caminhos. não era nem a postura de uma vera cruz, imbuída do projeto de um cinema de qualidade e paternalista em relação ao seu público, nem a postura revolucionária de vanguarda do cinema novo durante os anos 60. de um modo ou de outro, com erros e acertos, se procurava um diálogo de classes.

hoje é melancólico constatar que, novamente, o fosso se abriu.em várias entrevistas que realizei com espectadores da periferia de são

paulo, surgia espontaneamente a questão de como eles podiam se identificar com a imagem do brasil construída pela globo. entre a disputa de poder pelo controle de uma empresa e o dia-a-dia de uma favela, o descompasso era grande demais. uma visita à central globo de produções propõe a mesma questão: que país é esse das novelas das seis? a cidade cenográfica sugere que seja a suíça, com alguns toques de roça caipira. a excessiva preocupação com aquilo que os norte-americanos chamam production values (shopping explodindo, navio afundando etc.) satisfaz os técnicos e parte da classe média ascendente, mas distancia uma grande parcela do público. É natural que eles prefiram o ratinho. ali emerge o mundo deles na paisagem televisiva. É um mundo deformado e grotesco? sim, mas mantém algum contato com a experiência cotidiana do público.

o investimento no aparato visual denota uma incapacidade de criar histórias e personagens significativos. a globo insiste em ignorar nossos conflitos cotidianos. a imagem que constrói é a de um país institucional, oficial e desinteressante. por exemplo, em um dos capítulos do seriado mulher, uma jovem grávida faz um aborto, ato corriqueiro em todas as classes sociais, mas, na ficção, diante da força da igreja católica, a personagem acaba culpabilizada e castigada. ora, com quem deve ser o compromisso da emissora? com um grupo de pressão ou com seu público? enquanto a globo não perder seu tom oficial e chapa-branca, sua audiência vai continuar a se erodir, simplesmente porque não existe narrativa — seja jornalística, seja de ficção - sem conflito.

mas esta preocupação com o visual também pode indicar um viés maneirista da produção recente, inaugurado ainda nos anos 80 com a auto-referencialidade de marcelo tas ou guel arraes.

É tentador fazer uma periodização da tv brasileira utilizando categorias da história da arte. assim, os anos 50 seriam ainda primitivos, resultado da

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ação intuitiva e arriscada de alguns pioneiros. a fase clássica começa com beto rockfeller, sendo os anos 70 e parte dos 80 seu apogeu: momento em que os meios tecnológicos, o público e os artistas conseguem criar uma comunicação transparente e eficiente. mas, logo em seguida, começam as citações e a metalinguagem e mergulhamos no maneirismo.

este esquema pode nos desviar da compreensão efetiva das obras e do momento histórico singular em que se inserem. mas que é tentador, é.

em todo caso, a digitalização dos suportes, meios de distribuição e processos de produção está reconfigurando de modo vertiginoso a comunicação audiovisual e, neste aniversário de 50 anos da tv, também comemoramos o fim da televisão como a conhecemos até agora.

o modelo em que algumas poucas emissoras distribuem centralizadamente o conteúdo vai terminar. a ascensão da tv a cabo é o primeiro sinal desta transformação, mas o impacto da internet será ainda maior. podemos imaginar, num horizonte de dez anos, que todo o patrimônio audiovisual da humanidade estará à disposição do telespectador para ser acessado a qualquer instante. É claro que os canais de distribuição tradicionais vão conseguir sobreviver, com vários conglomerados transnacionais disputando a tapa o mercado global, mas serão constantemente assediados por novos grupos que tentarão se afirmar com o uso de vantagens tecnológicas. será um contexto extremamente competitivo.

ora, neste quadro, o que uma emissora aberta pode oferecer? a transmissão de grandes eventos ao vivo: shows, reportagens, programas de auditório, esportes e... também ficção. sim, por que não? durante dez anos os programas ficcionais foram ao vivo e podem voltar a ser. o seriado e.r. (nbc, 1994-), maior sucesso do prime time norte-americano, teve dois capítulos de grande audiência transmitidos ao vivo. a sensação de simultaneidade entre a experiência do espectador e o processo que gera a representação, a convergência entre estes dois tempos, intensifica o apelo emocional. eu, espectador, sei que aquelas imagens estão sendo geradas neste mesmo instante e que estou vivendo, junto com os atores e toda a equipe, a emoção de sua realização. o passo seguinte é delegar ao público parte da responsabilidade pelo produto que está indo ao ar, a famosa interatividade.

e difícil prever quais as modalidades de interação que o futuro nos reserva. esta palavra aplicada à diversão contém um paradoxo, pois a noção de entretenimento pressupõe que delegamos a responsabilidade pelo espetáculo a um terceiro. queremos justamente garantir o máximo de participação com um mínimo de dispêndio. no entanto, a possibilidade de influir no desenrolar da ação oferece um ganho adicional que parece compensar o desgaste de participar nesse desenrolar dos acontecimentos. a

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crescente popularidade dos videogames, cuja venda nos estados unidos superou neste ano a receita de ingressos da bilheteria dos cinemas norte-americanos, é o melhor testemunho desta tendência. atualmente, já temos um nível sofisticado de interação com os computadores que utilizamos. num futuro muito próximo, estas habilidades que estamos adquirindo serão usadas também na construção de complexos mundos ficcionais.

mas, enquanto não acontece esta fabulosa e feérica convergência entre o computador e a tv, já podemos perceber diversas indicações desta tendência na programação que tem ido ao ar diariamente.

talvez uma das primeiras experiências de interatividade na televisão tenha sido o você decide (rede globo, 1992-). o sucesso internacional do programa indicava que este era um caminho a ser desenvolvido. infelizmente os canais brasileiros não souberam aproveitar a vantagem conquistada; agora quem está explorando esta fronteira com sucesso são os holandeses. a endelmo — hoje a mais valiosa produtora européia — criou os reality shows. o programa no limite, produzido pela globo, deriva deste formato. mesmo a tv pública norte-americana aderiu à moda com o programa the 1900 mouse, no qual uma família deve enfrentar três meses vivendo em uma casa vitoriana sem luxos como água encanada ou eletricidade. várias emissoras estão criando variações de reality shows em todo o mundo.

estes programas levantam uma infinidade de questões sobre o lugar da mídia na sociedade contemporânea. gostaria aqui de ressaltar três aspectos: 1) o público pode julgar a performance de cada participante e escolher o herói do torneio. assim, os espectadores passam a ser co-diretores desta ficção.

2) apesar do artificialismo das situações, o gênero é mais realista que a ficção tradicional. afinal, seus personagens não são profissionais e o registro das imagens se pretende documental.

3) a transmissão contínua via internet amplia as possibilidades de interação e permite atingir um público global.

acredito que estes são os vetores que vão definir o futuro da televisão aberta. ela será uma vitrine para um mundo ao vivo, capaz de se transformar imediatamente conforme as reações do telespectador. no brasil, quem caminha nesta direção com ótimos resultados de público é o apresentador gugu liberato. antes de entrar no ar, a produção de domingo legal tem o dobro do número de quadros necessários para o programa. É gugu quem define, durante o programa e conforme os resultados do ibope, qual será a próxima atração. ele também controla o ritmo do programa, estendendo um quadro ou cortando para um novo assunto rapidamente, sempre conforme o

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ibope. assim, o programa é literalmente improvisado enquanto vai ao ar. contando com uma equipe pequena, orçamento limitado e apenas um link de satélite, domingo legal suplanta toda a infra-estrutura da rede globo, justamente porque consegue gerar esta sensação de imediatez que o público procura.

quaisquer prognósticos são provisórios diante do salto tecnológico a que estamos assistindo. quem souber explorar as possibilidades que estão se abrindo poderá conquistar um lugar privilegiado neste novo mercado global. os holandeses conseguiram. por que não os brasileiros? basta recuperar a capacidade de inovação e risco que já foi uma das qualidades da nossa tv.

roberto moreira — graduado em cinema pela escola de comunicações e artes da universidade de são paulo (eca —usp), fez mestrado em história da arte pela universidade estadual de campinas (unicamp). É diretor, roteirista e montador. fez estágio na fabrica, instituição do grupo benetton voltada para pesquisas na área de comunicação. e consultor do itaú cultural e professor de dramaturgia no curso superior do audiovisual da eca-usp.

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nunca fui santa(episódios de censura e autocensura)1

inimá simões1. nunca fui santa é a tradução brasileira de bus stop, filme dirigido por joshua logan em 1956, com

marilyn monroe num de seus melhores desempenhos. trata-se aqui não só de uma expressão adequada ao papel da tv na história recente do país, mas também de uma singela homenagem às criativas traduções feitas no brasil - de legendas, dublagens, títulos mesmo - que muitas vezes serviram como linha auxiliar à censura. ficaram famosos os exemplos em que a personagem diz em inglês "eu tomo barbitúricos", que era traduzido prontamente por "eu tomo vitaminas"; ou então "eu sou lésbica" transformada em "eu sou diferente". se um dia este texto for traduzido para o inglês exijo isonomia no tratamento: que "nunca fui santa" se transforme em " the censorship and the brazilian tv", ok?

a estréia oficial da tv brasileira ocorreu no dia 18 de setembro de 1950, em são paulo, com uma programação que incluía discursos, danças regionais, hinos e bênçãos. poucos meses depois o novo meio de comunicação já dava o ar de sua graça, provocando reações iradas contra o programa maracas e bongôs, estrelado por rayito de sol, conhecida rumbeira da noite paulistana, cuja apresentação na tv tupi gerou protestos de meia dúzia de pessoas que representavam um universo de pouco mais de 10 mil espectadores (0,5% da população da cidade naquela época), audiência igual ou menor que a de um único conjunto habitacional na zona leste da capital paulista nos dias atuais.

É provável que a grita não tenha sido tanto em razão dos saracoteios calipígios da dançarina, uma constante hoje em dia nos programas infanto-juvenis, e sim, muito mais, pelo fato de a audiência formada pela faixa de maior poder aquisitivo da população ter considerado de muito mau gosto aquilo que fora apresentado na telinha. naqueles tempos, a tv tinha um alcance bastante limitado e sua "hibernação" se manteve até 1965 pelo menos, quando os militares que haviam tomado o poder pouco antes definiram que, entre as novas prioridades, estaria o desenvolvimento da televisão. o quadro até então mostrava um número reduzido de aparelhos receptores, uma ou outra loja patrocinando programas ao vivo e uma audiência que se pretendia qualificada - ao menos em tese! - na origem de uma programação "extravagante": gincanas infantis, encenações de grandes nomes da dramaturgia nacional e internacional, bales, concertos de música clássica, missas, musicais. completando a cena, os apresentadores envergavam smokings e trajes soirée.

com esse perfil, ficava quase impossível entrar em choque com a moral conservadora da época, cujo braço punitivo era representado por uma

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censura muito mais sujeita aos humores das entidades religiosas (mais especificamente as católicas) do que propriamente do estado. aqui e ali podiam surgir situações controvertidas na pequena tela, mas isso era absolutamente involuntário, como na ocasião em que o repórter esso mostrou uma índia nua. em relação à moral vigente, portanto, a tv não representava nenhuma ameaça, mas já servia para alimentar crises políticas. foi o que aconteceu quando o general juarez távora foi a uma emissora do rio de janeiro fazer um pronunciamento sobre o primeiro aniversário da novembrada de 1955, movimento que tentou impedir a posse do presidente eleito juscelino kubitschek. távora foi imediatamente detido por desobedecer orientação prévia do general lott, ministro da guerra. em outras palavras, na tv brasileira não cabia o maiô cavadinho e sexy de virginia lane, mas em compensação já se oferecia espaço para os eternos conspiradores2.

2. até o golpe de 1964, o cinema detinha praticamente o monopólio da censura, porque os filmes "faziam a cabeça" de 150 milhões de espectadores/ano. entre os filmes proibidos no período destacam-se os cafajestes (1959), de ruy guerra, em que norma bengell se exibia em nu frontal na seqüência da praia; os amantes, de louis malle (1960), considerado pornográfico e liberado depois de muita polêmica. e o caso mais revelador, envolvendo rio 40 graus (1955), de nelson pereira dos santos, proibido pelo chefe da polícia carioca porque não mostrava os ângulos mais favoráveis da cidade. sendo assim, concluía ele, era um filme comunista.

aliás, em agosto de 1961, carlos lacerda fez um pronunciamento nos estúdios da tv excelsior do rio acusando o então presidente jânio quadros de estar preparando um golpe de estado. o discurso, virulento, não provocou a renúncia de jânio, até porque sua transmissão ficou nos limites da cidade maravilhosa, mas mostrou que a tv já era um meio expressivo o suficiente para se mandar recados políticos, atacar opositores e mobilizar a opinião pública. lacerda foi o nosso primeiro político a reconhecer a força da tv para conquistar corações e mentes, fato confirmado nas eleições dos estados unidos em que os candidatos richard nixon e john kennedy se confrontaram diante das câmeras. o primeiro se apresentou com a chamada five o'clock shadow (ou barba por fazer), que passava uma impressão soturna, depressiva. o outro, mais bem preparado para o veículo, irradiava uma luminosidade que impressionou a massa de telespectadores, as mulheres principalmente, e saiu vitorioso. restou a constatação de que poucos se preocuparam com as teses políticas, porque na tv o que vale mesmo é a fotogenia, a capacidade de se comunicar em tom coloquial, de passar uma impressão positiva.

ainda no campo político, a tv brasileira teve papel importante por ocasião do golpe de 1964, quando boa parte das emissoras se colocou a favor dos militares e contra uma suposta tomada do poder pelos comunistas, divulgando repetidamente imagens das grandes marchas "com deus pela

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liberdade". em \ü de abril, o governador de são paulo, ademar de barros, fez um pronunciamento nos estúdios da tupi:

"nós que temos por padroeira nossa senhora da conceição aparecida, reafirmamos a nossa fé cristã e o nosso propósito inabalável de envidar os maiores esforços no sentido de garantir à família, à sociedade e aos trabalhadores o direito às liberdades fundamentais..."

a tv tupi e demais órgãos associados promoveram ainda a campanha "dê ouro para o bem do brasil", em que a população entregou alianças, correntinhas, colares, moedas etc. para pagar a dívida do país...!!

o golpe de 1964, feito para livrar o país da "ameaça comunista", gerou perseguições em todos os setores da vida nacional. o rádio e a televisão não escaparam da rangia. na rádio nacional do rio de janeiro, emissora estatal, dezenas de funcionários, técnicos e artistas da estatura de mário lago foram demitidos a partir de denúncias anônimas ou deduragem explícita. as emissoras de tv enfrentaram um clima semelhante, ainda que em escala menor. sófocles também foi denunciado, mas por uma defasagem temporal de mais de 20 séculos não pôde comparecer ao dops (departamento de ordem política e social) para esclarecer o sentido de algumas passagens levadas ao ar no programa tv de vanguarda da tupi. a tv excelsior, que apoiara o governo deposto de joão goulart, sofreu retaliações, sendo invadida por uma tropa do exército, metralhadoras à mão, sob o comando do general gustavo borges, insuflado, dizem, pelo governador carlos lacerda.

até o início da década de 1960 as emissoras de tv, quase sempre vinculadas a grupos da área de comunicação, eram sustentadas pela receita publicitária de emissoras de rádio, jornais, revistas ou outros empreendimentos. a partir de então ela ganha uma nova dimensão. o sucesso das novelas diárias gera uma audiência cativa que vai crescer em progressão geométrica, com o caminho facilitado pela decisão do governo militar de montar uma infra-estrutura básica no setor de comunicações, que termina a médio prazo por universalizar a recepção de tv, encarada como instrumento estratégico desde o primeiro momento do novo regime. É preciso entender que os esforços dos militares para exercer censura sobre os meios tradicionais não se mostravam eficientes, na medida em que jornais e revistas continuavam a manter posição de relativa independência, contestando as medidas e noticiando as ameaças às liberdades individuais. o teatro e o cinema, que sofriam a ação direta do aparato repressivo, atravessavam, paradoxalmente, um período de grande efervescência, bastando recordar o impacto das montagens do grupo opinião, do teatro de arena, do teatro oficina. na mesma ocasião, a fórmula combativa do cinema novo mobilizava platéias e recebia aplausos internacionais. no campo das

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artes plásticas e na música popular, a vibração era a mesma.a tv era o meio de comunicação mais suscetível às pressões, até porque

tanto ela como o rádio sempre foram concessões públicas, teoricamente fiscalizadas pela sociedade (leia-se governo) e, portanto, mais afeitas ao controle político e policial. neste contexto, a tv se tornou, no decorrer das décadas de 1970 e 1980, o meio de expressão encarado pela intelectualidade brasileira como o lugar da genuflexão aos poderosos de plantão, do acatamento acrítico a tudo que o novo regime tentava impor à população. enquanto o cinema, o teatro, as artes plásticas e a mpb manifestavam uma clara posição crítica, a tv se voltava para a telenovela escapista, de clara inspiração no melodrama mexicano, em que pululam nobres e vilões, mocinhas apaixonadas e freiras bondosas. a tupi, a excelsior e a recém-inaugurada tv globo mergulharam de cabeça no gênero. esta última adotou uma linha popularesca em sua programação, destacando dercy gonçalves, silvio santos e o programa casamento na tv, apresentado por raul longras, em que mocinhas solitárias e rapazes desajeitados buscavam solução para suas vidas, até que tudo veio abaixo com a revelação de que longras era um homem separado.

esse período testemunha uma guinada da tv brasileira, em que ela, de maneira geral, adere de corpo e alma aos projetos da ditadura militar, cuja prioridade era afastar da cena pública os artistas e intelectuais mais influentes, substituindo-os por gente mais cordata, convencida pelas teses da segurança nacional. há uma evidente exortação da mediocridade, a supremacia da truculência nas relações diárias, o estímulo ao consumismo, e, como num velho filme desbotado, as inevitáveis conclamações em nome de família, pátria e religião. sérgio porto, o genial criador de stanislaw ponte preta e um dos mais severos críticos da função da tv naquele período, reage, a propósito de um texto seu recusado na tv rio: "vocês me desculpem, mas pior que isso eu não consigo fazer".

bem ou mal, a tv ensaiava alguns projetos no campo do jornalismo. em são paulo e no rio de janeiro pelo menos, alguns bons programas de entrevistas e debates políticos eram mantidos no ar. jânio quadros, quando presidente, chegou a proibir os debates políticos na tv, como a comprovar que não se preocupava apenas com os biquínis nos desfiles de miss ou com o lança-perfume no carnaval. a partir da década de 1960, a tv tupi de são paulo manteve no ar um programa de debates — pinga-fogo — que alcançou prestígio junto à audiência mais exigente. uma das ocasiões memoráveis foi marcada pela presença do coronel américo fontenelle, "importado" do rio para organizar o trânsito de são paulo. em outra oportunidade, foram reunidos nos estúdios a agressiva deputada estadual conceição da costa

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neves e o dramaturgo plínio marcos, e o encontro quase degenerou em pancadaria. o programa saiu do ar e a tela foi ocupada pela imagem padrão da emissora. nestes casos, a própria emissora tomava a iniciativa para evitar problemas com a censura.

apesar do perfil conformista, a tv deixava entrever algumas ousadias, que não escaparam de situações kafkianas. fernando faro, a pedido de cassiano gabus mendes, ocupava horários de fim de noite na tv tupi, quando os anunciantes rareavam e os encargos de produção recaíam sobre a emissora. mobile, em 1962, inaugurou a série. em seguida vieram poder jovem, divino maravilhoso e finalmente colagem, quando outros nomes - abujamra, avancini, lima duarte - além do próprio faro assinam os créditos do programa. mas aí já estamos no final de 1968 e a censura está mais rigorosa, começando a prestar mais atenção naquele horário em que aparecem márika gidali, poesia concreta, chico buarque, filmes experimentais canadenses, textos de genet, joyce e eliot e promovem-se jogos durante a transmissão, enquanto outros são completados pelo telespectador. num dos programas ocorreu o episódio envolvendo a lesma. o gastrópode foi colocado sobre um vidro transparente e sobre ele jogado um punhado de sal. o efeito foi naturalmente registrado e no dia seguinte os responsáveis estavam todos na polícia federal, convocados a explicar direitinho o que significava aquilo tudo. para o zeloso censor, a lesma seria o governo e o sal, o povo.

a tv e o controle da informação

com o endurecimento do regime militar a partir do final de 1968, a participação do jornalismo, que já era secundária na programação, ficou ainda mais reduzida. os telejornais, geralmente feitos por equipes pequenas e usando imagens extraídas de filmes comprados ou cedidos por agências, se mantinham no ar apenas para cumprir a legislação. a grande exceção foi o jornal de vanguarda da tv excelsior, que se propunha a interpretar as notícias e mantinha uma equipe numerosa, com profissionais de prestígio indiscutível como newton carlos, villas-boas corrêa e millôr fernandes. dirigido por fernando barbosa lima, o telejornal saiu do ar por iniciativa própria logo depois do ato institucional n- 5 (ai-5). as proibições dirigidas aos telejornais vinham geralmente da polícia federal ou da censura e eram feitas por telefone ("tal assunto está proibido"), provocando confusões freqüentes ("mas quem está falando aí?").

quando o ai-5 foi anunciado, em 13 de novembro de 1968, todas as

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garantias e liberdades ficaram suspensas. o ato foi anunciado pela tv, com a leitura do preâmbulo feita pelo então ministro da justiça, gama e silva, e o restante do texto pelo locutor alberto curi. no dia seguinte as tvs foram "discretas" na cobertura da quebra constitucional, enquanto a imprensa escrita reagia — principalmente o jornal do brasil, o correio da manhã e o estado de s. paulo - por meio de reportagens e editoriais, que serviram de justificativa para a intervenção da censura nas próprias redações. este tipo de violência se mostrou desnecessária nas emissoras de tv, que estavam alienadas dos fatos políticos, já se dedicando a mostrar espécies raras de baleias, inauguração de usinas, crianças acenando bandeirinhas etc., resultado de uma linha editorial destinada a compor cenários edificantes.

por uma dessas ironias da história, a televisão ganhou um presente de grego pouco tempo depois de o jornal'nacional'estrear na programação da globo, em 1.º de setembro de 1969. o noticiário, o primeiro que procurava oferecer uma cobertura completa do país, com bases em várias capitais, era apresentado por cid moreira e hilton gomes. um mês depois de sua estréia, um grupo da luta armada seqüestrou o embaixador norte-americano charles elbrick para trocá-lo por presos políticos brasileiros. para que o diplomata fosse solto, foram feitas três exigências às autoridades: distribuição de alimentos pelo exército nas favelas cariocas, um avião para levar os recém-libertos para o exterior e, finalmente, a leitura de um manifesto na tv. o manifesto escrito por franklin martins (hoje jornalista e comentarista político da própria tv globo) foi lido por um constrangido cid moreira, tão apavorado com o teor do documento que chegou a dizer ao vivo que estava ali como mero leitor do texto.

coube à tv cumprir um papel encomiástico, louvaminheiro. como já foi dito, ela foi o meio de comunicação escolhido para louvar as realizações da ditadura militar, do brasil potência do general mediei, cuja imagem destinada à história (apesar de ter sido o presidente do período mais obscurantista da nossa história) é a do presidente-torcedor, com o radinho de pilha grudado na orelha, acompanhando transmissões esportivas e saudando a seleção tricampeã de futebol na volta do méxico3.

3. o presidente emílio garrastazu mediei, originário do serviço nacional de informações (sni), órgão máximo de informações, foi quem melhor definiu o papel da tv: "os noticiários que acompanho regularmente, no fim da noite, são verdadeiros tranqüilizantes para mim. vejo tanta notícia desagradável sobre a irlanda, o vietnã, os índios americanos, e no que respeita ao brasil está tudo em paz" (folha de s. paulo, 22/3/73).

a jovem guarda e os festivais

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em 1965, a tv record precisava cobrir um horário dominical aberto subitamente com a suspensão das transmissões esportivas, e uma agência publicitária sugeriu um programa para a juventude. daí surgiu jovem guarda, comandado pelo ídolo roberto carlos e seus companheiros inseparáveis, erasmo carlos e wanderléa. em pouco tempo o programa se transformou em sucesso nacional, pois o videoteipe embarcava de avião na segunda-feira cedinho no aeroporto de congonhas para um périplo que cobria várias praças, levando alegria aos adolescentes do resto do brasil, que tinham enfim a possibilidade de acompanhar os últimos sucessos na sua própria cidade. a operação se repetiu semanalmente durante cinco anos, pelo menos. a idéia era aproveitar um pouco a inserção da juventude como interlocutora atuante no mundo moderno e levar ao público nova postura e novos padrões visuais nem sempre aceitos com tranqüilidade. muito se falou sobre os cabeludos de calças justas e sobre a decomposição da nossa juventude. a censura recebeu centenas de cartas de pais, padres, professores, vereadores de pequenas cidades e juizes de menores pedindo uma atuação mais severa e rigorosa para coibir os cabeludos. em várias capitais essa reação teve relativo sucesso, suspendendo às vezes a transmissão de programas locais que divulgavam o rock e seus penduricalhos comportamentais. embora visto como alienado pela parcela jovem engajada na mpb, o programa jovem guarda enfrentou problemas que demonstram com clareza o grau de paranóia que campeava no país4.

4. erasmo carlos foi denunciado como comunista por um "araponga" de lorena, são paulo, porque terminou seu número musical no programa de silvio santos com os punhos cerrados, gesto codificado imediatamente pelo zeloso olheiro dos órgãos de informação. conferindo o teipe em brasília, a direção da censura pediu que o câmera autor do enquadramento do movimento de erasmo fosse também investigado quanto às suas preferências políticas.

de qualquer maneira, a ala da música jovem enfrentou muito menos perseguição dos órgãos de segurança que a nova geração da mpb, que surgiu principalmente nos festivais de música popular promovidos pelas tvs excelsior, record e globo a partir de 1965, quando elis regina ficou em primeiro lugar com "arrastão", música de edu lobo e vinícius de moraes. até a década seguinte, os festivais revelaram ao público uma geração de artistas jovens que ocupou o cenário artístico com músicas que tratavam — boa parte delas pelo menos — da realidade brasileira. chico buarque, gilberto gil, caetano veloso, paulinho da viola, sidney miller, geraldo vandré, sérgio ricardo, edu lobo, elis regina, dori caymmi, guarabira, taiguara, ivan lins, gonzaguinha, luís melodia, jards macalé, gal costa, nana caymmi, os mutantes e tantos outros ganharam fama instantânea por causa dos festivais. as músicas inscritas eram enviadas para a censura, que as liberava - segundo

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a polícia federal — apenas para a competição. tratava-se de um mix explosivo: uma situação de endurecimento político de um lado e uma geração de artistas talentosos e combativos de outro. o episódio mais grave envolveu geraldo vandré,

cuja música "caminhando (para não dizer que não falei das flores)" foi liberada inadvertidamente por dois censores para apresentação no festival internacional da canção da tv globo e se transformou, para irritação suprema dos militares, num sucesso instantâneo, o hino adotado pelas oposições ao regime5.

5. a música de vandré não venceu o festival da tv globo, ficando em segundo lugar na parte nacional. a vitoriosa foi "sabiá", de chico buarque e tom jobim, vaiada estrepitosamente porque a platéia do maracanãzinho preferia a melodia simplória que servia de suporte à letra incendiaria de vandré.

uma gravadora lançou rapidamente a música e ela virou sucesso nacional, deixando a polícia federal e a censura atarantadas. funcionários de brasília, são paulo e rio de janeiro foram punidos, enquanto uma onda de comunicados internos cobrava a responsabilidade pela liberação da música. finalmente, por decisão do próprio ministro da justiça, ficou decidido que não ocorreriam retaliações públicas, que poderiam promover a vitimização dos artistas e causar efeito contrário, ou seja, lançar setores da classe média contra o governo. mas vandré nunca mais apareceu na televisão, as emissoras de rádio foram orientadas a não tocar a música e os festivais entraram em decadência irreversível. vandré era o mais visado, mas outros artistas tiveram seu quinhão, principalmente chico buarque, taiguara, caetano e gil, que terminaram, cada um a seu modo, recorrendo ao exílio.

fato chocante: um compositor, concorrente no festival abertura, da tv globo, após a desclassificação de sua canção, escreveu uma carta ao diretor da censura pedindo a proibição do festival:

"nunca, que tenha conhecimento, assisti tamanha incompetência ou venalidade na seleção de poemas e músicas, principalmente num concurso que, como fui informado, pretende-se o melhor, objetivando o engrandecimento da música e da poesia popular tão comercializada [...] somei-me aos que, como eu, desejam o melhor para o nosso país e arrisquei em parceria inscrever um preludiozinho. a revolta não é pela exclusão da minha, mas pela inqualidade (sic) das selecionadas"6.

6. a correspondência datada de 14/1/75 foi protocolada no departamento de polícia federal em brasília e o processo não foi adiante porque a direção do órgão, depois de várias consultas, concluiu que o festival estava sendo realizado de acordo com a legislação censória.

os órgãos de segurança acataram a denúncia e abriu-se um processo. um triste fim — que misturou música e repressão — para uma das poucas

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iniciativas da televisão em favor da cultura brasileira.

ordem unida na tv

no decorrer dos anos 70, o governo militar operou com um instrumental suficiente para impor uma ordem unida a toda a sociedade, fechando as brechas a todas as manifestações não sintonizadas com o poder. pior do que isso: no caso dos meios de comunicação, estava sempre presente a avaliação subjetiva da censura, do sni (serviço nacional de informações), da polícia federal, dos centros de informação das forças armadas, dos informantes, dos colaboradores enfim, cuja ação provocava enormes estragos. na área do comportamento, por exemplo, a contaminação se dava pelo viés reducionista, aquele que transformava o jovem cabeludo em afronta à família, o hippie em mera expressão do binômio amor livre/drogas e a presença de estilistas nos júris de tv num escárnio à masculinidade brasileira. e todas essas questões — isoladamente ou em conjunto — remetiam a um pretenso complô comunista de dimensões internacionais.

as empresas tomaram suas precauções, entre as quais montar departamentos, dirigidos por pessoas com bons contatos na área de informações (ex-censores, por exemplo), para estabelecer canais de consultas permanentes ou para liberar com facilidade o material "problemático". apesar disso, foram registrados centenas de incidentes, ainda que a maioria deles não deixasse seqüelas. restava o fato de que se tornava muito difícil planejar uma programação, partindo do pressuposto de que uma cena ou frase poderiam deflagrar a ira das autoridades e motivar cortes ou interdição completa, afastando os anunciantes, que eram (e são ainda) os financiadores da televisão ou, em última instância, a sua principal fonte de lucro.

para se ter uma idéia do grau de paranóia a que se chegou nos anos 70, basta dizer que a censura federal destacou uma pessoa para realizar uma avaliação sobre o desenho animado tom & jerry, exibido ao público infantil de emissoras ao redor do mundo. a tarefa consistiu em descobrir se o seriado continha mensagens subliminares perigosas à manutenção da paz e da tranqüilidade no país. o caso terminou bem. segundo o parecer final de lenir de souza, tom & jerry continha qualidades, além de, segundo ela, confirmar a vitória do bem sobre o mal.

o cie (centro de informações do exército), que deveria cuidar das ameaças à integridade da nação, se perdia em documentos internos que beiravam o ridículo. o informe 111/1971, de teor confidencial, anunciava,

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por exemplo, que augusto marzagão estava propondo a realização, de um festival da música negra na tv globo. o relatório do cie observa:

"a sugestão em si, sob o ponto de vista cultural, é muito boa e até louvável, no entanto, parece ser inoportuna em face das tentativas seguidas feitas pela subversão brasileira em suscitar o problema da discriminação racial em nosso país, importando temas, gestos e técnicas do movimento poder negro que se desenvolve entre as sociedades negras dos eua".

e sugere candidamente: "o tema poderia ser substituído para 'i congresso folclórico', com apresentação de músicas regionais do brasil e dos demais países, independente de raça, cor, religião ou regime político".

outro documento do mesmo órgão alertava:"está havendo uma tentativa progressiva de alguns grupos da imprensa

nacional de ressurgirem (sic), no brasil, a denominada 'imprensa marrom'. no momento, procuram atingir a honra de vários artistas populares através de noticiário maldoso e infamante, alguns incidindo na vida íntima e privada dos mesmos. observa-se, no entanto, que a incidência do desgaste recai, seguidamente, sobre determinados artistas que se uniram à revolução de 1964 no combate à subversão e outros que estão sempre dispostos a uma efetiva cooperação com o governo. têm sido mais atingidos: josé fernandes, wilson simonal, alcino diniz, rosemary, roberto carlos, o jogador jairzinho, erlon chaves, agnaldo timóteo, clara nunes, joão dias, wanderley cardoso, o conjunto brazuca, lilico, antônio marcos, marcos lázaro e outros"7.

7. informação número 2755/s-103. 2-cie de 17 de novembro de 1971. sob o carimbo de "confidencial", o texto termina assim: "entre os órgãos de imprensa de maior atuação nesse campo podem ser destacados: revista intervalo (ed. abril); revista amiga-tv-tudo (bloch editores); jornalecos semanais: o pasquim e jÁ do rj e coluna social do jornal Última hora do rio de janeiro".

no ministério da justiça o clima não era diferente. o pedido de busca n.º 218/mj, de 24/5/71, comenta a infiltração de comunistas e aliados nos meios de comunicação, citando explicitamente o ator carlos vereza e o diretor de tv dias lopes. em determinada personagem adverte:

"as telenovelas selecionadas para serem encenadas para os telespectadores serão aquelas de autores comunistas e que levantem novas teses a serem discutidas pela audiência, baseando-se principalmente em temas e argumentos que afetem a família e tragam 'idéias novas' e 'avançadas'".

neste caso, visava-se atingir dias gomes, autor de novelas. o documento tem um fecho primoroso: "dentro do meio artístico, vários elementos cantam o samba 'apesar de você', de chico buarque de holanda, e ameaçam os democratas com afirmações do tipo 'a mesa vai virar' etc.".

não satisfeitos com a censura prévia que obrigava jornais, revistas,

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editoras e até mesmo emissoras de tv (no caso das novelas, seriados e filmes publicitários) a enviarem material para avaliação antes de chegar ao público, os órgãos de segurança mantinham os principais apresentadores de programas, detentores dos maiores índices de audiência, sob vigilância estrita.

os anos 70: um show de censura

qualquer referência aos principais apresentadores da tv brasileira em toda a sua história inclui sempre silvio santos, flávio cavalcanti e chacrinha. do início dos anos 60 à primeira metade da década de 1980, pelo menos, assistimos uma grande disputa entre os três pela liderança da audiência. apesar da disposição de manterem bom relacionamento com os militares, estiveram com a censura permanentemente nos calcanhares, a rastrear eventuais derrapagens ou excessos, o que não era difícil detectar porque, naquela época, como agora, quando a tv comemora seus 50 anos, a briga pelo ibope termina por promover escaladas apelativas, idênticas ao que se viu na disputa recente entre faustão e gugu liberato, em que o público foi brindado com atrações que atentam contra quaisquer princípios éticos.

dos três apresentadores, flávio cavalcanti foi o que enfrentou maiores dificuldades. tido como "revolucionário" de primeira hora (apoiador do golpe de 1964), ele parece ter revisto seus conceitos a partir de 1968. o público era atraído pelo perfil polêmico, oscilando entre o agressivo e o carinhoso, uma espécie de pater famílias que servia de referência sobre inúmeras questões. em seu programa de 29 de agosto de 1971, na tv tupi do rio, levou uma mãe-de-santo que incorporava o espírito de seu sete, um exu de umbanda. a entidade fez entrar no palco ex-cegos, aleijados e cancerosos que haviam sido curados. rezou, cantou e jogou pinga no auditório. milhares de pessoas, mobilizadas pela "atração", ficaram na calçada, ansiosas para entrar no auditório. chacrinha não perdeu a chance e no mesmo dia levou seu sete da lira à sua discoteca, onde fumou charuto com ele, além de tomar passes. ao final da apresentação, a polícia federal apreendeu os teipes e advertiu os dois apresentadores, o que levou a globo e a tupi a firmarem um acordo para evitar atrações sensacionalistas e de mau gosto. em outra ocasião, levou ao programa o cantor tony tornado, que estava na mira da censura por seu comportamento considerado simpático à causa do black power. o cantor fazia sucesso com "br-3", música premiada num festival da tv globo, mas as autoridades suspeitavam que a letra (subliminarmente, é

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claro!) incitava o consumo de drogas injetáveis, na mesma linha de "lucy in the sky with diamonds", dos beatles, cujas iniciais formavam a sigla lsd.

o cie esteve muito atento ao desempenho de flávio um instante maestro cavalcanti. outro relatório confidencial encaminhado à polícia federal denuncia:

"patrimônios da nossa música popular como ary barroso, carmem miranda, noel rosa, ataulpho alves e outros vêm sendo desmoralizados, enquanto são promovidos vinícius de moraes, chico buarque de holanda, marília medalha, marcos vale, mpb-4, tony tornado, tom jobim, gal e gil e outros, todos de esquerda e contrários à revolução de 64. por coincidência, todos promovendo espetáculos nas universidades, com o objetivo de agitar a área estudantil, em conotação com as resoluções da organização comunista 'união internacional dos estudantes', tomadas pelo comitê central, na reunião realizada de 26 a 29 de janeiro de 1972, em varsóvia, havendo possibilidade de ligação entre essas apresentações nas faculdades e a promoção individual recebida no programa flávio cavalcanti."

o documento explica que o programa está promovendo o chamado conflito de gerações, é deseducador, contrário ao interesse público e serve à propaganda comunista do tipo "informação difusa", muito empregada na ação da contracultura empreendida pelo partido. o apresentador seria um "inocente útil", segundo classificação largamente empregada pelos órgãos de informação da época.

no começo de 1973, a concorrência desmedida entre os apresentadores levou flávio a oferecer atrações cada vez mais sensacionais a seu público. na época, o programa alcançava 13 estados e era visto por 10 milhões de pessoas. a gota d'água para a sua suspensão de dois meses na tv tupi foi a apresentação de um triângulo amoroso em que o marido emprestava a esposa a um amigo. conversa vai, conversa vem, a moça diz que gostaria de ficar com os dois. flávio recomenda que ela volte para o marido em nome da família brasileira. mas o mal já estava feito: recebeu 60 dias de suspensão, em meio a uma onda de boatos de que a própria emissora seria suspensa, o que, se consumado, seria a derrocada final da tupi.

silvio santos sempre foi o mais bem-comportado dos três e seu programa, de grande audiência, circulou por várias emissoras até que conseguiu seu próprio canal, ponto de partida para a formação do sbt (sistema brasileiro de televisão), no qual, atualmente, seu herdeiro artístico, gugu liberato, protagoniza as ações mais ousadas e apelativas. pragmático, silvio santos sofreu poucas ameaças nos anos de chumbo. uma delas deveu-se a um mal-entendido ocorrido a partir de um artigo de um jornalista de manaus que acusou o apresentador de mostrar um boneco inflável para fins

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sexuais no seu programa. depois de alguma tensão, a polícia federal foi convencida de que não passava de um boneco do corpo de bombeiros usado para treinamento em casos de afogamento.

no caso de chacrinha e sua verve circense, os problemas se relacionavam quase sempre aos maiôs das chacretes e às brincadeiras que fazia com o auditório. nos arquivos da censura federal estão centenas de cartas enviadas por donas-de-casa, entidades religiosas, advogados, militares, além de ofícios de dezenas de câmaras municipais do interior, pedindo intervenção. em correspondência a octaciano nogueira, presidente do conselho superior de censura (csc), em agosto de 1980, quando o programa era transmitido pela tv bandeirantes, chacrinha reclama:

"já há um ano, a censura de são paulo vem tratando os meus dois programas de tv, buzina do chacrinha e discoteca do chacrinha com arbitrariedade censória para a qual não encontro explicações razoáveis. essas arbitrariedades começaram de certa feita quando um censor paulista ligou para os estúdios reclamando das roupas das chacretes e de algumas tomadas de detalhes anatômicos. por não ter sido bem identificado ao telefone, a pessoa da tv que o atendeu não acreditou que fosse uma autoridade da censura e desligou o aparelho. [...] na semana seguinte o censor apareceu nos estúdios faltando três minutos para o começo do programa e determinou que as moças trocassem de roupa, roupa que havia sido usada já em quatro programas. o fato causou pânico. o programa atrasou e houve prejuízo moral e prejuízo material da emissora, pelo atraso. [...] há cerca de um mês a produção foi chamada na censura pelo fato de dar takes mais fechados das chacretes. eu também fui repreendido aos gritos e pelo telefone pelo simples fato de ter pronunciado o refrão 'vocês querem mandioca?'".

na seqüência, chacrinha relata o episódio que teria ocorrido no dia l2 de julho de 1980, quando uma mulher se anuncia como censora e pede para ver a roupa das chacretes antes do início do programa, o que foi recusado. ao final da transmissão, um delegado, dez agentes federais e o chefe da censura lhe deram voz de prisão. chacrinha foi levado à polícia federal, onde deu depoimento de cinco horas, foi fichado, fotografado e pagou fiança para sair livre.

tempo quente/telinha amena

no governo do general ernesto geisel (1975-79), o humor dos órgãos de repressão oscilava conforme o equilíbrio de poder entre os setores moderados e radicais do governo. a censura se mantinha atuante, levando

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suas advertências às emissoras: "É proibido divulgar notas contra autoridades do paraguai"; "É proibida qualquer notícia ou nota sobre a chegada ao brasil do professor darcy ribeiro"; "ficam proibidas as notícias sobre a corrida de nudistas (streakitig)". o telejornalismo passou ao largo da grande vitória do mdb (movimento democrático brasileiro) nas eleições de 1974. no jornal nacional, a estratégia era transparente e implicava começar o bloco noticioso relatando algum sucesso isolado da arena. este período que marcou o início da abertura política ficou marcado por fatos de extrema violência, cujo clímax se deu com a morte do jornalista vladimir herzog. herzog assumiu o cargo de diretor de jornalismo da tv cultura de são paulo em setembro de 1975, depois que seu nome foi analisado exaustivamente e aprovado pelo sni. no dia em que começou a trabalhar na emissora, tornou-se alvo de uma campanha liderada por um jornalista a soldo da direita radical, que repetia invariavelmente que o partido comunista estava tomando conta do jornalismo da cultura. um mês depois, herzog foi convocado a comparecer às instalações do doi-codi para um depoimento e de lá não saiu vivo. foi assassinado nos porões da repressão militar e o projeto da emissora de desenvolver um jornalismo participante acabou com ele. sua morte, em outubro de 1975, marcou o início do fim do regime militar e evidenciou que a ideologia da segurança nacional só trazia insegurança e pavor aos brasileiros.

nos meses seguintes, a tensão aumentou. mais mortes nos porões da repressão, inquietação na área militar, insegurança total. Às vezes, os episódios têm um toque de provocação gratuita, despojada de qualquer racionalidade. o episódio bolshoi é ilustrativo desta postura. o fantástico, revista de domingo da tv globo, anunciou ao público que iria mostrar o corpo de baile do bolshoi apresentando o bale romeu e julieta, libreto baseado em shakespeare, com música de prokofieff. uma atração de primeira em qualquer lugar do mundo. nunca ficou claro de onde saiu a ordem de proibição. falou-se dos "bolsões sinceros mas radicais", eufemismo para designar a direita hidrófoba, barra-pesada, que colocava obstáculos ao projeto de distensão do governo articulado pelo general golbery do couto e silva. o ponto de partida para a intervenção deve ter sido o fato de o bale ser russo e, portanto (conforme o raciocínio dos órgãos de repressão), instrumento de propaganda comunista. não se pode descartar também a hipótese de o gatilho ter sido acionado pela data da apresentação: 29 de março de 1977, antevéspera do aniversário da "revolução de 1964", comemorada naqueles tempos com feriado, desfile militar e leitura da ordem do dia. o fantástico deu uma tremenda mancada com sua audiência de 20 milhões de brasileiros e a tv globo nem pôde noticiar ou comentar o ato da

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censura, ficando reduzida à condição de reles trambiqueira, aquela que promete e não cumpre.

o governo geisel havia se iniciado com a expectativa de oxigenação do ambiente político e social, mas volta e meia eram emitidos sinais contrários, indicando dificuldades no cronograma estabelecido para a distensão política no país. além dos fatos já citados e depois de várias cassações de deputados federais, em junho de 1977 a cúpula do mdb vai à televisão em horário reservado por lei, com transmissão via embratel para todo o país. aparecem ulysses guimarães, alceu collares, franco montoro, paulo brossard e alencar furtado, líder do partido na câmara federal. furtado cita as prisões arbitrárias e o desaparecimento de cidadãos brasileiros, dizendo que o mdb se coloca radicalmente contra esta situação. no dia seguinte veio a resposta fulminante do governo, cassando o líder do mdb.

não eram só as autoridades em brasília que exerciam o poder de censura. pelo país afora, freqüentemente encontramos prefeitos, juizes de comarca e até vereadores vestindo a fantasia de vestais, disfarçando interesses eleitoreiros ou menos louváveis. não foi raro ver prefeitos mandando desligar a antena repetidora de suas cidades para que a população não assistisse a uma notícia negativa para a autoridade local. vereadores enchiam os correios com cartas indignadas em relação à exposição corporal das chacretes. mas há também ocasiões em que as próprias emissoras assumem a responsabilidade pelo veto a notícias, fato comum em alguns estados nordestinos em que o dirigente político controla emissoras de tv.

um caso significativo aconteceu durante a greve dos metalúrgicos no abc paulista, em 1978, depois de uma década de silêncio imposta a ferro e fogo aos sindicatos. a cobertura das emissoras foi pífia, como se os fatos não tivessem importância alguma. isso deve ser atribuído, em parte, à pressão dos "órgãos de inteligência", ainda bastante ativos, e à pouca disposição de enfrentá-los. das emissoras, a mais envolvida com a "filtragem" dos eventos foi a tv globo, cuja cobertura se mostrou favorável ao patronato, obrigando os repórteres a esconderem o logotipo da emissora sob risco de sofrerem agressões nas ruas8.

8. a favor da tv globo vale registrar que suas equipes de jornalismo eram altamente qualificadas e estavam à altura do momento histórico. o programa globo repórter chegou a produzir um documentário sobre os acontecimentos do abc, que permaneceu engavetado por orientação - comentou-se na época - do próprio roberto marinho.

o slogan "o povo não é bobo, abaixo a rede globo", surgido durante as manifestações, voltou a ser entoado quando a emissora reiterou sua posição olímpica em relação às manifestações de rua favoráveis às eleições diretas, iniciadas em são paulo em 1984, e que, em seguida, empolgaram todo o país

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até o comício gigantesco no rio de janeiro.meses depois, quando o congresso nacional se preparava para votar a

emenda dante de oliveira, que restabelecia a eleição direta para presidente da república, o tempo fechou em brasília. em abril de 1984, a cidade foi ocupada pelas tropas comandadas pelo general newton cruz, comandante do planalto, e as emissoras foram orientadas a enviar todo o material produzido para a censura, resultando numa avalanche de fitas muito superior à capacidade de verificação dos funcionários. nesse momento, já estava em marcha uma reação nos departamentos de jornalismo à orientação do estamento militar, que já não tinha o controle total da situação. a tv gazeta de são paulo pagou para ver. exibiu a cobertura dos acontecimentos em brasília e foi tirada do ar sem apelação. o poder militar estava enfraquecido, sem dúvida, mas ainda operante, conforme o jargão militar.

era o fim melancólico do governo figueiredo (1979-85), que havia começado auspiciosamente em 1979, com um esforço de sua assessoria especial no sentido de moldar uma imagem palatável do general até então soturno e de ares truculentos. foram promovidas aproximações com a imprensa e figueiredo foi colocado em situações que destacavam sua informalidade, seu jeito espontâneo. a exposição à mídia seguia uma estratégia de popularizar sua figura e ganhou adesão "espontânea" de várias emissoras. o sbt, canal de silvio santos, estreou rapidamente a semana do 'presidente, conduzido por gugu liberato, e, em maio de 1982, a globo colocou no ar o povo e o presidente, com ney gonçalves dias, em que figueiredo aparecia sem camisa, cavalgando, pilotando motocicleta ou conversando informalmente.

telenovela: a parceria com a censura

enquanto as novelas seguiram o figurino mexicano, fiel ao dramalhão tradicional e seus temas recorrentes, como a paternidade desconhecida, a troca de identidades, as heranças controvertidas, as complicações dos gêmeos e a ascensão de cinderelas, entre outros, as novelas não enfrentaram problemas. quando beto rockfeller (tv tupi, 1968-69), de ritmo ágil e senso de humor bem brasileiro, levou a trama para o asfalto das cidades, rompendo com a concentração catártica, a censura começou a olhar as telenovelas com mais atenção. em beto rockfeller, o problema estava mais no elenco que na história. bete mendes fazia uma personagem doce e romântica, mas, no restante do tempo, participava de movimentos radicais de esquerda; plínio

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marcos, dramaturgo já reconhecido, fazia o amigo do protagonista e vivia sob forte pressão. naquele momento, era o inimigo número um dos órgãos de repressão porque tinha caracterizado os militares como gorilas numa encenação teatral. plínio sempre reconheceu que o fato de estar no elenco da novela garantiu sua integridade pessoal.

ainda em 1968, um decreto determinou que os capítulos das novelas teriam que passar previamente pelo crivo da censura. a partir daí, as falas, personagens e cenas escritas pelo autor ganham parceria compulsória. de maneira geral, as emissoras acatam as sugestões feitas pelos burocratas acantonados na censura federal extirpando trechos, aparando arestas e freqüentemente alterando o sentido original proposto pelo autor. janete clair, dias gomes, lauro césar muniz, mário prata, ivani ribeiro, gilberto braga, agnaldo silva, todos, enfim, sofreram com a parceria indesejada.

selva de pedra (1972) mereceu uma reprimenda de rogério nunes, diretor da censura, conforme correspondência enviada a walter clark, o todo-poderoso executivo da globo: "estão sendo inseridas cenas de discussões violentas, problemas e desavenças entre pais e filhos, casamentos arranjados por interesses, mãe solteira, amor livre, lenocínio". ele cita os procedimentos que tem à mão: "impor cortes quando possível e até mesmo proibir capítulos". ora, a novela não pode parar o seu fluxo. a interrupção mata o folhetim eletrônico porque a continuidade alimenta o hábito do telespectador, que todos os dias, no mesmo horário, procura aquilo a que já está acostumado. sustar o andamento de uma novela significa sempre um prejuízo irreparável para uma emissora, daí a tendência de acatar as sugestões e os cortes, que são freqüentemente estapafúrdios. a escrava isaura, por exemplo, adaptação do romance de bernardo guimarães, um dos maiores sucessos da tv brasileira, exportada para cerca de 50 países, recebeu orientação oficial para "amenizar os enfoques sobre o comportamento de leôncio, conquistador inveterado e inescrupuloso, e quanto às cenas que retratam os maus-tratos dados aos escravos pelos feitores''' (grifo meu).

os critérios adotados pela censura remontam ao código hays, elaborado em 1922 para atender às pressões de entidades religiosas sobre o cinema norte-americano e aposentado desde o final da segunda guerra mundial. a diferença é que o código americano definia com clareza os limites de atuação dos roteiristas, enquanto o brasil da ditadura militar deixava tudo ao sabor da subjetividade, sem levar em conta a própria evolução dos costumes. enquanto num filme norte-americano a idéia do filho que maltrata o pai é suportável desde que ele (o filho) seja punido no final, aqui entre nós estavam proibidos "os comportamentos condenáveis dos filhos que querem agredir a autoridade dos pais". mas o que quer dizer isso? o mesmo se

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repetia no caso da mãe solteira. pelo código hays restavam duas opções: sofrer as conseqüências do amor fora do casamento ou a redenção pelo casamento a posteriori. aqui não. um censor, ao escrever em 1977 sobre nina, novela de walter durst para as 22 horas, adverte: "estão proibidas cenas que tratam de gravidez de aluna de colégio para moças".

o que está subjacente ao desempenho da censura é a idéia de que o telespectador não tem discernimento, é emocional e intelectualmente imaturo, necessita ser protegido da realidade e, para tanto, a saída é mantê-lo preso a crenças tradicionais e imutáveis. o senso comum costuma dizer, desde os anos 50, que a tv invade as residências e encontra a família refestelada no sofá, emocionalmente desarmada. em correspondência dirigida a dona lucy wright, presidente da união cívica de santos, que pede controle ainda maior sobre filmes e novelas, rogério nunes termina revelando as verdadeiras funções do departamento de censura: "ajustar as programações da tv aos interesses fundamentais da pátria". para ele, governo e pátria se superpõem. são a mesma coisa.

o trabalho "árduo" dos censores interfere na estrutura dramática (saltos temporais, alterações psicológicas do personagem etc.), infernizando a vida dos autores. mário prata, que escreveu estúpido cupido, fez os cálculos do que fora cortado de seu texto numa entrevista ao caderno folha ilustrada da folha de s. paulo na primeira semana de 1977, quando a novela chegava ao seu final:

"nenhum capítulo do total de 160 deixou de ter algo censurado. cento e sessenta capítulos dão um total de 3.040 páginas de 35 linhas. como uma média de 10% foi censurado, isso quer dizer que a novela teve 10.500 linhas cortadas. [...] escrever passou a ser um exercício metafórico".

as parcerias impostas pela censura criaram situações de comédia involuntárias. em o casarão (1976), de lauro césar muniz, um personagem é candidato a prefeito da pequena cidade de tangará, mas não pode participar normalmente da trama por estar em campanha política. É que estava em vigor no país a lei falcão, que estabelecia regras para as campanhas eleitorais (a participação dos candidatos na tv se restringia à exibição de foto, nome e número). era uma lei tão ampla e poderosa que interferiu até na vida de personagens de ficção.

a opção mais radical consistia na suspensão definitiva da novela, antes mesmo da estréia. tal fato ocorreu pelo menos duas vezes, envolvendo a tv globo. primeiro com roque santeiro (a fabulosa história de roque santeiro e sua viúva... a que era sem nunca ter sido), de dias gomes, em agosto de 1975. a verdade é que a globo não foi totalmente apanhada de surpresa pela proibição. apesar de a censura ter aprovado de início a sinopse e os primeiros

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capítulos, começaram a surgir desentendimentos quanto ao horário de exibição e em relação a alguns cortes. o próprio walter clark esteve várias vezes em brasília para tentar um acordo. no fim, a globo firmou posição de não alterar seu cronograma e o horário das 20 horas ficou vago, surgindo a necessidade de reprisar um sucesso anterior. no parecer de 20/8/75, os censores gilberto pereira campos e maria josé bezerra de lima escrevem:

"É sem dúvida uma história mística de cunho sócio-rural com matizes de para-religiosidade, e nela se envolvem os habitantes de um vilarejo — asa branca — que cresceu à sombra de um mito. entretanto este mito, roque santeiro, tido como santo milagreiro, não morrera heroicamente em defesa de sua cidade, mas continuava vivo, desfrutando do produto de seu roubo, dinheiro e objetos sacros. [...] de um lado, verifica-se em toda a extensão dos capítulos examinados a verticalização de apelos negativos que vão desde cenas irreverentes e diálogos gratuitos até a indução da crendice"9.

9. segundo os censores, a novela continha ainda muitos personagens negativos: revoltados, adúlteros, levianos, aproveitadores, prostitutas e fanáticos. a solução foi adaptar a cidade cenográfica de asa branca para gravar saramandaia, novela inspirada na literatura fantástica para evitar maiores contratempos. anos depois, descobriu-se nos arquivos do sni a existência da gravação de um telefonema de dias gomes em que ele dizia a nelson werneck sodré que estava adaptando a peça "o berço do herói" (proibida em 1965) para a tv, o que todo mundo já sabia, menos os rapazes da repressão.

despedida de casado repete o drama no ano seguinte. foi a única sinopse entre quatro apresentadas à censura a ser liberada para o horário das 22 horas, mas depois de 30 capítulos escritos e gravados, no final de 1976, os funcionários de brasília voltaram atrás e proibiram sua exibição, alegando que o autor pregava a dissolução do casamento. walter durst não estava "contaminado ideologicamente" como dias gomes e resolveu enfrentar pessoalmente os censores convidando-os para discutir sua novela. não resultou em nada, porque a atividade censória é mecânica, carente de espírito crítico. a trama envolvia três casais que se reuniam num grupo terapêutico para discutir suas relações e questionar se eram felizes. foi para o índex, obrigando a emissora a reprisar o bem-amado.

em outras ocasiões, o não-acatamento às orientações de brasília foi providencial no sentido de promover mudanças em cargos de direção nas emissoras. foi o que ocorreu na tv tupi de são paulo em razão de cenas exibidas na novela o profeta (1977-78), nas quais aparecia o cardeal de são paulo, d. paulo evaristo arns — persona non grata aos militares —, lendo cartas que haviam sido proibidas pelos censores. em razão da desobediência, o diretor-geral da polícia federal, coronel moacyr coelho, envia ofício ao ministro da justiça, armando falcão, consultando-o sobre a punição a ser aplicada. a emissora não atendera à ordem de supressão do texto de uma

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carta de conteúdo político elaborada por d. evaristo arns e, pior, transmitira um capítulo inteiro que não passara pela análise da censura. a crise, muito mal explicada, levou à saída de guga de oliveira da superintendência de produção e programação da tv tupi de são paulo (emissora líder da rede) e do diretor de jornalismo da emissora.

para matar uma eventual curiosidade sobre o conteúdo político da carta de d. evaristo arns, reproduz-se seu trecho inicial:

"o grande pecado de hoje é a injustiça e a exploração. como pregadores da mensagem de cristo, nós temos obrigação de ajudar nossa sociedade a tomar consciência da gravidade do pecado e orientá-la a descobrir o plano de deus: a dignidade da pessoa humana, a fraternidade, a igualdade e a justiça".

o período recente

da posse de josé sarney em 1985 até a promulgação da constituição de 1988, as emissoras e a censura continuaram se estranhando, o que se explica, em parte, pelo clima de descontração e liberdade que o país vivia depois de duas décadas de opressão. os desentendimentos se centraram de preferência na exibição de filmes anteriormente proibidos (pornochanchadas na tv record, ou o caso de calígula na cnt, de propriedade de josé carlos martinez, da direção do ptb - partido trabalhista brasileiro), novelas diárias que se valem de erotismo e sensualidade para aumentar a audiência (e o faturamento) e minisséries da tv globo, alternativa para se desenvolver uma nova dramaturgia no setor. o pagador de promessas, dirigida por tizuka yamazaki, com base no texto de dias gomes, exibida na tv globo, traz uma novidade. a minissérie teve o número de capítulos reduzido em função de referências à reforma agrária e o pedido inicial de interdição total não partiu da censura e sim do patrocinador, o grupo bradesco seguros.

a nova constituição estabelece o fim da censura e, no seu lugar, surge o sistema de classificação etária, destinado a orientar a programação das emissoras. mas novos tempos engendram novas posturas. em 1993, a novela o marajá, escrita por josé louzeiro, anunciada como paródia ao momento que o país vivia, foi proibida antes de se exibir um único capítulo. a interdição foi obtida graças aos efeitos de uma liminar impetrada em nome do ex-presidente fernando collor de mello, com base no artigo 5a da constituição federal, que garante a qualquer cidadão o direito de não ter sua imagem utilizada pelos meios de comunicação sem sua prévia autorização.

trata-se, sem dúvida, de um precedente perigoso, na medida em que abre

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a possibilidade de qualquer pessoa usar este instrumento para inibir a criação artística, configurando uma forma disfarçada de censura.

os últimos dez anos foram marcados por uma alteração no perfil da televisão brasileira, com a incorporação de contingentes até então à margem do consumo. além disso, como aconteceu nos estados unidos, a tv aberta passou a sofrer a concorrência da tv a cabo e de outras formas de acesso via satélite. tais fatos interferiram diretamente na programação das principais redes, acirrando a concorrência pelo bolo publicitário. em razão do novo quadro, proliferaram os abusos nos horários destinados ao grande público no tocante às imagens que consagram a violência e a veiculação de uma sensualidade calcada nas artes meramente rebolativas, com enquadramentos marotos. ou abordagens pretensamente sofisticadas, que tomam por base o comportamento de uma classe média/alta angustiada.

silvio santos, um dos símbolos da televisão brasileira, costuma dizer com todas as letras que cultura e informação são obrigações do governo. com tais palavras, resume bem o problema da tv no brasil. houve uma prioridade absoluta do desenvolvimento técnico, que permitiu que a televisão brasileira se tornasse uma das mais desenvolvidas e sofisticadas do mundo, tudo em detrimento de um senso maior de responsabilidade em relação à sociedade. deduz-se também, a partir do seu raciocínio, que às emissoras cabe oferecer diversão barata ao grande público e sobre a audiência conquistada faturar milhões de reais com sorteios, loterias, carnes e competições em geral. nesse sentido, só resta pensar que vale tudo. que estamos no limite. e sai de baixo!

inimá simões - psicólogo e jornalista formado pela universidade de são paulo (usp). mestre em cinema com dissertação sobre o cinema erótico brasileiro. trabalhou como jornalista em várias empresas (tvs, rádios, revistas, jornais etc.) e publicou vários livros, entre os quais: o imaginário da boca (sobre o cinema da boca do lixo em sp); salas de cinema em são paulo (ensaio sobre os hábitos de sociabilidade do paulistano e a evolução do circuito cinematográfico); um país no ar... (com maria rita kehl, sobre a tv brasileira); roberto santos: a hora e vez de um cineasta (biografia afetiva do diretor e processo evolutivo do cinema nacional) e roteiro da intolerância: uma história da censura cinematográfica no brasil, finalista do prêmio jabuti 2000. desenvolve atualmente pesquisa sobre as relações entre a imprensa e o congresso nacional.

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comunicação /educação: aproximações11. as reflexões contidas neste artigo têm estado presentes na revista comunicação & educação,

editada pelo curso de pós-graduação lato sensu gestão de processos comunicacionais da escola de comunicações e artes da universidade de são paulo(eca-usp) em parceria com a editora segmento. a revista encontra-se no sétimo ano, com 19 números publicados.

maria aparecida baccega

já se tornou lugar-comum afirmar que se faz cada vez mais necessária a formação do cidadão crítico e que a formação desse cidadão crítico é atribuição da educação. algumas vezes, toma-se educação como um processo privativo da escola, num reducionismo que a realidade contemporânea já não comporta, especialmente no caso do brasil. aqui, a televisão, com meio século de presença entre nós, compartilha com a escola e a família o processo educacional, tendo-se tornado um importante agente de formação. ela até mesmo leva vantagem em relação aos demais agentes: sua linguagem é mais ágil e está muito mais integrada ao cotidiano: o tempo de exposição das pessoas à televisão costuma ser maior do que o destinado à escola ou à convivência com os pais.

educação é um processo social, no qual imergimos ao nascer. É no processo de educação, sobretudo por meio da palavra, que "recebemos" as análises da realidade feitas pelas gerações anteriores, os comportamentos, os estereótipos, os modos de ver e de pensar.

o processo educacional, porém, não tem apenas esta face. com ele e nele aprendemos também a elaborar o novo, fazendo avançar a história. a palavra, um dos seus mais importantes sustentáculos, pois carrega a "prática social solidificada" (expressão de adam schaff), realiza, na verdade, dois movimentos que se imprimem no processo de educação: no primeiro, faz a mediação entre o social, o construído, essa "prática solidificada" que carrega, e o indivíduo. nesse movimento, ela forma a base do pensamento de cada um de nós e possibilita a continuidade do processo histórico. o segundo movimento caracteriza-se pela mediação que a palavra faz entre o individual (aquilo que recebemos das gerações anteriores e incorporamos, ou seja, o resultado do primeiro movimento) e o inovador — a possibilidade que cada indivíduo tem de ser sujeito, de reelaborar, produzindo o novo, que se inscreverá num maior ou menor distanciamento do que já está e já é.

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essa inovação, esse novo, configura-se como algo já virtualmente contido no social - espaço da história do tempo que vivemos. os agentes do processo educacional somos todos os que participamos de uma determinada comunidade, que vivemos no tempo e no espaço de uma dada sociedade, que recebemos e reconfiguramos permanentemente a realidade.

hoje essa realidade é atravessada pela presença dos meios de comunicação. a condição de educar é própria da natureza desses meios, cada vez mais desenvolvidos tecnologicamente, o que lhes permite estar em muitos espaços ao mesmo tempo. eles ocupam lugar privilegiado no processo educacional, ao lado da escola, da família e de outras agências de socialização. mostram às pessoas os fatos já editados, redesenhados, como se fossem a "realidade".

o fato, até chegar ao rádio, à televisão ou ao jornal, até estar na fala do vizinho ou no comentário dos alunos, passou por uma série de filtros — instituições e/ou pessoas — que selecionaram o que ouvimos, vemos ou lemos, que fizeram a montagem do mundo que conhecemos, que editaram a realidade, enfim. editar é construir uma realidade outra a partir de supressões ou acréscimos em um acontecimento, ou, muitas vezes, apenas pelo destaque de uma parte do fato em detrimento de outra. É reconfigurar alguma coisa, dando-lhe novo significado, atendendo a determinado interesse, buscando determinado objetivo. fazendo valer determinado ponto de vista.

se queremos formar o cidadão crítico, temos que nos preocupar, portanto, com as relações que seremos capazes de estabelecer com os meios educadores competentes. buscar compreender seus mecanismos possibilitará a cada um de nós, a nossos alunos, a todos os que educamos e por quem somos permanentemente educados, que consigamos, a partir do que nos chega editado, selecionar o mais adequado para a elaboração do novo, tanto no que se refere à atribuição de importância maior ou menor aos fatos que nos apresentam como à crítica do ponto de vista a partir do qual cada fato é apresentado.

uma das bases para que essa relação com os meios se efetive é o conhecimento da realidade em que vivemos. e ele que possibilitará estabelecer as inter-relações entre os fatos, em vez de percebê-los como capítulos de mais uma novela, em detrimento das discussões sobre os rumos que desejamos para a nossa sociedade.

construção do campo comunicação/educação

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vivemos no mundo e com o mundo, diz paulo freire. mas que mundo é esse?

o mundo no qual e com o qual vivemos é hoje, predominantemente, esse que é trazido até o horizonte de nossa percepção, até o universo de nosso conhecimento pelos meios de comunicação, com destaque para a televisão. trata-se, portanto, de um mundo editado, no qual vivem os cidadãos. a realidade editada compõe a cultura na qual todos nos formamos. aí está a interação comunicação/cultura, aí reside a conjunção comunicação/educação.

a construção do campo comunicação/educação como novo espaço teórico capaz de fundamentar práticas de formação de sujeitos conscientes é tarefa complexa, que exige o reconhecimento dos meios de comunicação como um outro lugar do saber, atuando juntamente com a escola.

para avançar nessa elaboração, é preciso buscar conhecer o lugar em que os sentidos se formam e se desviam, emergem e submergem: a sociedade, com seus comportamentos culturais, levando-se em conta, principalmente, a pluralidade de sujeitos que habita cada um de nós. ou seja: no mundo de discursos sociais dos vários campos com os quais interagimos, nós nos tornamos sujeito(s) de cada um deles. por isso dizemos que cada "eu" é sempre um conjunto de "eus" de que nos apropriamos e que transformamos em nossos discursos, dando-lhes a condição de maior ou menor originalidade.

na complexidade desse encontro - comunicação/educação — os sentidos se ressignificam e a capacidade de pensar criticamente a realidade, de conseguir selecionar informação (disponível em quantidade cada vez maior graças à tecnologia, como via internet, por exemplo) e de inter-relacionar conhecimentos, torna-se indispensável.

afinal, como viver numa sociedade na qual os bens simbólicos que circulam pelos meios de comunicação estão imbricados na sua própria porosidade, parecendo levar à perda da vitalidade? que dizer do campo cultural que se constitui desse modo, no qual circulamos e no qual formamos nossa identidade? conhecer seus mecanismos é um dos caminhos para que o jogo sujeito/objeto (este, constituído pelos bens simbólicos, que são as formas simbólicas mercantilizadas) seja operado num processo de interação efetiva e não de mera subordinação.

para tratar da questão do consumo de bens simbólicos, temos, portanto, que tratar da mídia e nos aproximar da complexidade que cerca a produção e a circulação do conjunto de bens culturais que ela produz.

logo, é necessário, também, falar-se de cultura e colocar a questão dos

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meios de comunicação nesse campo. ocorre que, para se fazer tal discussão, os pólos costumam se aguçar e se armar: de um lado, os apocalípticos, os que condenam a priori os meios de comunicação, considerando-os os demônios da contemporaneidade, destruidores da família, da ética, dos valores humanos, enfim; de outro, os integrados, os que se rendem, também a priori, endeusando-os e atribuindo a eles o sagrado papel de sustentáculos do progresso. de um lado, os tradicionalistas, que têm uma visão elitista de cultura; de outro, os que aceitam incluir os meios de comunicação no campo da cultura, com a ressalva, porém, de que se trata de uma diminuição, que eles se constituem em instrumentos de degradação da cultura. enquanto isso, os meios de comunicação foram crescendo e se articulando, garantindo uma presença cada vez mais relevante na sociedade contemporânea, educando. mesmo assim, mais que um objeto de estudo, os meios têm sido vistos como algo a ser exorcizado, a ser banido das fronteiras dos homens, das fronteiras do que se elegeu considerar cultura.

É preciso enfrentar a discussão, perceber o campo, construí-lo como objeto científico, conhecê-lo, pois são os meios que, contemporaneamente, atribuem significado à realidade, conformando nossas identidades. sua presença envolve a todos, percorrendo todos os níveis: do internacional ao nacional, ao local; do individual ao particular, ao genérico, enlaçando-os, num movimento permanente de ir e vir. eles apresentam profundas implicações no funcionamento da sociedade contemporânea, participando ativamente do processo educativo.

nessa condição, os meios têm sido, há algum tempo, um dos objetos das ciências sociais: sociologia, antropologia, psicologia, pedagogia etc., estudados a partir do olhar de cada uma delas. a concepção de campo da comunicação e, especificamente, do campo da comunicação/educação é recente e constrói-se permanentemente.

o campo da comunicação/educação é multi e transdisciplinar: economia, política, estética, história, linguagens, entre outros saberes, o compõem. cada um deles, deslocado para esse campo, dialoga com os outros, elaborando, desse modo, um aparato conceituai próprio que coloca os meios no centro das investigações e procura dar conta da complexidade do campo. são as pesquisas que resultam desse diálogo entre os saberes que nos permitem apontar os meios de comunicação como os maiores produtores de significados compartilhados que jamais se viu na sociedade humana, reconhecendo-se, desse modo, sua incidência sobre a realidade social e cultural.

comunicação/educação e campo cultural

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pesquisas em todo o mundo indicam que as pessoas ficam expostas em média de três a quatro horas diárias à televisão. outras revelam que a exposição aos meios, incluindo a mídia impressa, cobre a terceira parte do tempo dos seres humanos nas sociedades industrializadas, perdendo apenas para "dormir" e "trabalhar"2. apesar disso, continua faltando uma institucionalização adequada dos estudos de mídia, capaz de colocar-se entre o "leitor" dos meios e os produtos dos meios, de maneira a se obter uma leitura mais científica, mais crítica e menos de senso comum. (a leitura dos produtos veiculados pelos meios apenas pelo senso comum tem grande importância para a manutenção do status quo, uma vez que esse tipo de leitura não necessita de comprovações e opera no sentido da recepção acrítica.) esse é um dos resultados das lutas travadas entre os apocalípticos e os integrados, entre os elitistas e os que consideram pejorativamente os meios: sua expulsão do âmbito da pesquisa, negando-lhes prestígio (base para os financiamentos), dificultando e até impossibilitando estudos e sistematizações que tenham a mídia como objeto principal.

2. bechelloni, giovanni. televisione come cultura. i media italiani tra identitá e mercato. nápoles, liguori, 1995, p. 47.

enquanto isso, os meios de comunicação, e em particular o rádio e a televisão, foram se desenvolvendo (o que em muito se deve ao avanço da tecnologia), enraizaram-se e já se tornaram centrais na prática cultural, sendo utilizados como o recurso mais importante em termos de consumo cultural.

para dar conta dessa nova realidade, é preciso ampliar o conceito de cultura. bechelloni considera que o conceito de campo cultural poderá ajudar. para ele, "o campo cultural é constituído de um conjunto de relações sociais ativadas pelos atores, instituições e empresas especializados na produção e na circulação de bens culturais e simbólicos; o mercado dos bens simbólicos é o lugar de reconhecimento do campo cultural" ³ (grifo meu).

3. idem, ibidem, p. 49.

o campo cultural, assim conceituado, comporta tanto aqueles que produzem nos limites das artes tradicionais (sentido restrito) como, em sentido ampliado, "os sujeitos que contribuem para a produção, a distribuição e a circulação de bens simbólicos constituídos pelas formas modernas da comunicação, compreendendo a indústria cultural e as artes pós-eletrônicas: da fotografia ao cinema, do rádio à televisão, do design à moda, do periódico ao livro. os agentes do campo cultural ampliado produzem e consomem bens simbólicos ativados pelas mídias pré e pós-eletrônicas (tradicionais, novas, novíssimas)"4.

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o campo cultural no sentido ampliado tem como sujeito principal os meios de comunicação, juntamente com a escola e outras agências de formação. aqui se manifesta o campo comunicação/educação.

4. idem, ibidem, p. 49.

importância da televisão

tomando como referentes o tempo e o dinheiro, bechelloni sustenta que podemos falar de três tipos de mídia: as velhas mídias (livro, periódico, filme), que custavam aos fruidores tanto tempo como dinheiro; as novas mídias (o rádio e a televisão), que custam aos fruidores apenas tempo, pois o acesso a elas é gratuito; e as novíssimas mídias (o videocassete, a tv a cabo, o pay per view, o computador), que trazem também para o fruidor um custo em tempo e em dinheiro.

como se vê, o tempo, que não é passível de ampliação, está presente em todos os tipos. dentro de seus limites reside a nossa possibilidade de reorganização, de nova edição do mundo pautado e editado pela mídia. por isso, a competência para a escolha e a condição de inter-relação entre os fatos que só o conhecimento amplo e sólido de linguagens, história, antropologia, sociologia, filosofia etc. possibilita tornam-se o desafio central na formação de cidadãos. e aqui o papel da escola e do professor emergem, ressignificados. também aqui se percebe a importância da construção do campo comunicação/educação.

a classificação apresentada possibilita também que se perceba a importância da televisão e do rádio, com destaque para a televisão, a qual, em virtude da linguagem que utiliza, construída na conjunção do verbal e do não-verbal, torna "real", como se fosse completo, o fragmento editado que o telespectador vê/ouve. e preciso saber ler e interpretar o mundo que, metonimicamente, os meios nos passam como sendo a totalidade, e saber reconfigurar essa totalidade. o acesso gratuito a esses meios possibilita-lhes penetrar em todas as classes sociais, o que os tornou "o recurso mais importante" e fonte de referência para o consumo cultural, pois é neles que se tornam públicos os fatos. como diz eugênio bucci:

"a televisão é muito mais do que um aglomerado de produtos descartáveis destinados ao entretenimento da massa. no brasil, ela consiste num sistema complexo que fornece o código pelo qual os brasileiros se reconhecem brasileiros. ela domina o espaço público (ou a esfera pública) de tal forma, que, sem ela, ou sem a representação que ela propõe do país, torna-se quase impraticável a comunicação — e quase impossível o

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entendimento nacional. [...] o espaço público no brasil começa e termina nos limites postos pela televisão. [...] o que é invisível para as objetivas da tv não faz parte do espaço público brasileiro. o que não é iluminado pelo jorro multicolorido dos monitores ainda não foi integrado a ele" 5.

a tv "convida permanentemente o telespectador a identificar a 'realidade' com aquilo que ele vê, e o telespectador se sente confortável por ter acesso tão direto, tão imediato ao mundo 'real'"6. É desse modo que ela une o brasil: construindo o espaço público. e essa construção nem sempre se dá (ou, na maior parte das vezes, não se dá) a partir de critérios que levem em consideração a cidadania. no mais das vezes, atende a interesses forjados pelo ideário dominante e divulgados em escala mundial. e assim vão-se formando as gerações.

5. bucci, eugênio. brasil em tempo de tv. são paulo, boitempo, 1997, p. 9-11.6. arbex.josé. a vitória da amnésia. caros amigos, são paulo, casa amarela, n 19, outubro de 1998, p.

9.

construção de significados

a cultura da mídia se manifesta em um conjunto articulado e diversificado de produtos (pólo do enunciador/emissor) que entram em relação com o conjunto articulado e diversificado de vivências do enunciatário/receptor, cujo universo de valores, posto em movimento, ativa os significados dos produtos. na verdade, a cultura da mídia não está no enunciador/emissor, não está no enunciatário/receptor: está no território que se cria nesse encontro, gerando significados particulares, que, se contêm interseção com cada um dos pólos, não se limitam a nenhum deles. caso contrário, a mídia seria apenas "veículo" de significados e não "construtora" de significados. sua complexidade reside exatamente no fato de, construindo significados no território que inclui cada um dos pólos — enunciador/emissor e enunciatário/receptor —, ela exigir permanentemente a dialética entre o "já visto" e o "por ver", ou seja, a "novidade" que responde pelas e alimenta as mudanças contínuas de identidade versus a "estabilidade" que cada grupo social busca em sua dinâmica. o único limite é o horizonte da formação social na qual estão e que inclui tanto o já manifesto como o ainda virtualmente contido como possibilidades a serem realizadas. É nesse território, em que se negociam significados, que a educação, com destaque para a escola, vai atuar.

por essas e incontáveis outras razões, podemos perceber como fundamental a construção do campo comunicação/educação. ele inclui -mas

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não se resume a - educação para os meios, leitura crítica dos meios, uso da tecnologia em sala de aula, formação do professor para o trato com os meios etc. etc. ele se rege, sobretudo, pela construção da cidadania, pela inserção neste mundo editado, com o qual todos convivemos, no qual todos vivemos e que queremos modificar.

a escola, ressignificada, é chamada mais uma vez, e sempre, para, no bojo dessa realidade, apontar caminhos de democratização. um desses caminhos passa pela distinção entre a informação, fragmentada, tal qual veiculada pelos meios de comunicação, e o conhecimento, totalidade que implica reelaboração do que está. prevê ter claro que o virtual de um domínio nada mais é que o resultado da interdiscursividade de todos os domínios, possível naquela formação social; que os diversos fenômenos da vida são concatenados em referência à sociedade como um todo. para tanto, as informações fragmentadas não são suficientes. e essa inter-relação só é possível pela transdisciplinaridade.

com isso já estamos novamente no campo da comunicação/educação. nele circulam essas

"situações novas que encontraram sua expressão teórica mais avançada em uma compreensão da cultura como configuração histórica dos processos e das práticas comunicativas. essas que necessitam, mais do que nunca, articular os saberes quantitativos a um conhecimento qualitativo capaz de decifrar a produção comunicativa de sentido, toda a trama de discursos que ela mobiliza, de subjetividades e de contextos, em um mundo de tecnologias midiáticas, cada dia mais densamente incorporadas à cotidianidade dos sujeitos e cada dia mais descaradamente excludentes dos direitos das maiorias à voz e ao grito, à palavra e à canção"7.

7. MARTÍN-BARBEIRO.J. prefácio. in: baccega, m. a. comunicação e linguagem: discursos e ciência. são paulo, moderna, 1998.

conhecimento e informação

são os meios de comunicação, em especial a televisão, que divulgam, em escala mundial, informações (fragmentadas) hoje tomadas como conhecimento, construindo, desse modo, o mundo que conhecemos. trata-se, na verdade, de processo metonímico — a parte escolhida para ser divulgada, para ser conhecida, vale pelo todo. É como se "o mundo todo" fosse constituído apenas por aqueles fatos/notícias que chegam até nós.

informação, porém, não é conhecimento, podendo até ser um passo importante. o conhecimento implica crítica. ele se baseia na inter-relação e

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não na fragmentação. todos temos observado que essa troca do conhecimento pela informação tem resultado numa diminuição da criticidade.

o conhecimento é um processo que prevê a condição de reelaborar o que vem como um "dado", possibilitando que não sejamos meros reprodutores; inclui a capacidade de elaborações novas, permitindo reconhecer, trazer à superfície o que ainda é virtual, o que, na sociedade, está ainda mal desenhado, com contornos borrados. para tanto, o conhecimento prevê a construção de uma visão que totalize os fatos, inter-relacionando todas as esferas da sociedade, percebendo que o que está acontecendo em cada uma delas é resultado da dinâmica que faz com que todas interajam, de acordo com as possibilidades daquela formação social, naquele momento histórico; permite perceber, enfim, que os diversos fenômenos da vida social estabelecem suas relações tendo como referência a sociedade como um todo. para tanto, podemos perceber, as informações — fragmentadas — não são suficientes.

os meios de comunicação, sobretudo a televisão, ao produzirem essas informações, transformam em verdadeiros espetáculos os acontecimentos selecionados para se tornar notícias. já na década de 1960, guy debord percebia "na vida contemporânea uma 'sociedade de espetáculo', em que a forma mais desenvolvida de mercadoria era antes a imagem do que o produto material concreto", e que "na segunda metade do século xx, a imagem substituiria a estrada de ferro e o automóvel como força motriz da economia"8.

8. connor, steven. cultura pós-moderna. introdução às teorias do contemporâneo. trad. adail ubirajara sobra] e maria stela gonçalves. são paulo, loyola, 1992, p. 48.

por sua condição de "espetáculo", parece que o mais importante na informação passa a ser aquilo que ela tem de atração, de entretenimento. não podemos nos esquecer, porém, de que as coisas se passam desse modo exatamente para que o conhecimento — e, portanto, a crítica — da realidade fique bastante embaçado ou simplesmente não se dê.

o conhecimento continua a ser condição indispensável para a crítica. a informação, que parece ocupar o lugar desse conhecimento, tornou-se, ela própria, a base para a reprodução do sistema, uma mercadoria a mais em circulação nessa totalidade.

a confusão entre conhecimento e informação, entre totalidade e fragmentação, leva à concepção de que a informação veiculada pelos meios é suficiente para a formação do cidadão, de que há um pressuposto de interação entre os meios e os cidadãos e de que todas as vozes circulam

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igualmente na sociedade.É a chamada posição liberal, a qual parece esquecer-se de que idéias,

para circular, precisam de instrumentos, de suportes — rádio, televisão, jornal etc. — que custam caro e que, por isso, estão nas mãos daqueles que detêm o capital. e que é essa elite, também, a detentora do lugar de prestígio, a partir do qual emite seu "discurso competente"9.

9. conforme conceituado por chauÍ, marilena. cultura e democracia. o discurso competente e outras falas. 3a ed. são paulo, moderna, 1982.

na realidade contemporânea, ganharam destaque as questões referentes ao significante/significado/significação, ao simulacro, à imagem de maneira geral. a nós nos parece que a questão do estético e/ou da estetização dos fatos e acontecimentos sociais que os meios de comunicação promovem deve ser discutida, prioritariamente, num cenário que inclua a história e o sujeito. É necessário que recoloquemos as questões das relações de poder, das novas formas de exercício desse poder, nesse cenário da contemporaneidade, em que descontinuidade histórica e sobreposição de modos de produção — de capitalismo internacional a resquícios de relações quase feudais, em que a terra é uma questão ainda não resolvida — se fazem presentes. e preciso trazer à tona a importância do resgate da individualidade, e não a exacerbação do individualismo.

comunicação é produção social de sentido. e esse sentido se constrói nas relações sócio-históricas dessa sociedade. os meios de comunicação, que são da natureza dessa sociedade, atuam como fator de coesão social. editando o mundo e agendando temas que a sociedade irá discutir, a comunicação entra no processo permanente de produção de significado, portanto de construção da realidade, em todas as suas manifestações, quer sejam culturais, econômicas ou políticas. como lembra martín-barbero10,

"até mesmo a aprendizagem de toda sofisticação hoje passa pela tv: publicidade, videoclipes de música que mostram, por exemplo, o que se está fazendo de mais avançado com computador. a comunicação é produção social de sentido, de prazer, de estética, de cidadania".

os discursos, base na qual se assentam os meios de comunicação, são amplificados para todo o mundo. são vozes e pontos de vista escolhidos para divulgação, que nos dão a base para nos inserirmos no mundo. a comunicação passou a ser, então, uma das instituições que "levam a pensar", sobretudo pela aura de conhecimento agregada à informação.

10. fÍgaro, roceli. sujeito, comunicação e cultura (entrevista com jesus martín-barbero. comunicação &educação, são paulo, cca/eca/usp, maio/agosto de 1999, n" 15, p. 62-80.

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só para terminar

para conhecer melhor o mundo, formando-se o cidadão crítico, torna-se fundamental desvelar os mecanismos de edição utilizados pelos meios, para inter-relacionarmos fatos/edição/construção da cidadania. para isso, é importante que comecemos a tirar a poeira de cada uma das camadas que formam a nossa história (a história dos que fazem a história), resgatando-as. fundamental nos apropriarmos delas (antes que outros definitivamente o façam e nós as percamos) para com elas construirmos o futuro em que habitarão os cidadãos que queremos.

o conhecimento, que não exclui a informação, poderá colaborar muito. a escola, desvelando os processos de produção da notícia e de edição do mundo, pode ajudar a transformar a informação veiculada pelos meios de comunicação em conhecimento.

os meios de comunicação, como procuramos mostrar, estão incorporados como educadores privilegiados. enquanto ainda falamos em educação para os meios, ou leitura crítica dos meios, o campo comunicação/ educação já está constituído. já não se trata mais, portanto, de discutir se devemos ou não utilizar os meios de comunicação no processo educacional ou de procurar estratégias de educação para os meios. trata-se de constatar que, educadores primeiros, são eles que estão construindo a cidadania.

maria aparecida baccega - professora associada da escola de comunicações e artes da universidade de são paulo (eca-usp). diretora editorial da revista comunicação &educação, publicada pela eca-usp em parceria com a editora segmento. coordenadora do curso de pós-graduação lato sensu gestão de processos comunicacionais.

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antropofagia patriarcal1

eugênio bucci1. texto baseado em artigo originalmente escrito em 1998 para a revista nuevo texto critico,

publicada na universidade de stanford.

a pergunta

o hino nacional deveria ser "aquarela do brasil", de ary barroso. as coisas seriam mais verdadeiras entre nós, e de nós para os outros. em lugar do braço forte e de peito que desafia a própria morte — ou será a própria morte que desafia o nosso peito? —, em lugar do gigante pela própria natureza, ninguém menos que o mulato inzoneiro. em lugar de glória no passado, do sol do novo mundo, a terra boa e gostosa da morena sestrosa e essas fontes murmurantes. sai a prontidão bélica, entra a preguiça e o bamboleio que faz gingar. o hino nacional não mais ecoaria como um chamamento ao combate a que se deve ouvir de pé, empertigado, em posição de sentido, com a mão cobrindo o coração; se espalharia feito um batuque vagaroso, convidando a audiência a mexer as cadeiras e arrastar as sandálias. se os hinos costumam cantar o destemor diante do inimigo, o que inclui gritos de desafios e ameaças aos estranhos e aos contrários, o hino brasileiro teria a suprema originalidade de convidar todos a brincar, junto com a lua, ao som do pandeiro, bem debaixo de um coqueiro que dá coco. num final de campeonato internacional, se um atleta desta nossa terra fosse o campeão, seria bonito ver o estádio se balançando ao som do nosso hino. e nas cerimônias oficiais o presidente da república poderia menear a cabeça de um lado a outro sobre a gravata, e se; veria de cima do palanque os ombros do povo chacoalhando de gosto e de manemolência. seríamos um país mais verdadeiro porque muito mais profundamente falso (como logo será demonstrado).

no final dos anos 90, "aquarela do brasil" — gravada pela primeira vez em 1939 por francisco alves — viveu seu apogeu. entre outras formas de homenagem, a que lhe prestou a rede globo foi a mais consagradora. em 1999, numa seqüência de programas musicais que eram parte das comemorações da virada do século, a emissora promoveu uma consulta a inúmeros críticos e compositores populares, a artistas das mais variadas extrações e a intelectuais de diferentes matizes — além da indefectível

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votação dos telespectadores pelo telefone — e elegeu a obra-prima de ary barroso como a canção mais importante do século, ou algo por aí. unanimidade. "aquarela do brasil" é o símbolo sonoro da brasilidade, ao qual nenhum outro haverá de igualar-se. É inconcebível, ao menos nas legislaturas que correm, que o congresso nacional venha '

a adotá-lo como hino, em detrimento daquele outro de cuja letra só nos lembramos em golfadas da memória. mas não é inconcebível que a televisão o faça. e já se ouve, nas coberturas telejornalísticas de eventos culturais ou esportivos, menções ao samba de ary barroso designando-o como o hino informal da nação brasileira. foi esse o comentário do narrador da globo quando alguns acordes da "aquarela" foram executados pela orquestra na abertura das olimpíadas de sydney, em setembro de 2000.

a tv, ainda no ano 2000, atua como a principal mediadora nas relações de cada brasileiro com sua identidade nacional imaginária, a ponto de decretar qual é o nosso hino de fato. mas, se o hino oficial é uma fabricação identitária, "aquarela do brasil" não fica atrás. ela também emerge como construção e, nesse sentido, é também uma falsificação - a partir da qual se explica o profundamente falso da verdade que aí se insinua. "aquarela do brasil" não é gerada da realidade pura (coisa que não há); ela é igualmente um rótulo confeccionado ideologicamente, típico da exaltação nacional que marcou a cultura da era vargas. o brasil de ary barroso reflete um ideal do eu-nós-nacional tal como ele vinha sendo concebido na ditadura do estado novo: um rótulo para consumo do mundo, com pandeiro, caldeirão de raças etc. a verdade que "aquarela do brasil" encerra pode ser menos dura que a verdade militarista dos hinos mais convencionais, mas é do mesmo modo um cenário artificialmente montado, ainda que menos superficial. "aquarela" não é um hino de cima para baixo - daí ser menos superficial: emerge de um pacto que têm as massas populares como interlocutoras ativas.

vargas, no alto do pacto populista, operou pelo rádio sua imagem de nacionalidade e, décadas depois, essa mesma imagem, retrabalhada, ganharia fôlego renovado com a tv. a partir dos anos 60, a tv assumiu o papel de absorver e precipitar as tendências de comportamento e de identificação em meio ao caldeirão de signos que borbulham no cenário discursivo a que chamamos precariamente de realidade. de início, atuou assim em sintonia com as políticas culturais forjadas no interior do estado autoritário do regime militar- como era autoritário, embora com raízes populistas, o estado governado por vargas. depois, a partir dos anos 90, manteve o mesmo papel em sintonia preferencial com o mercado da cultura, a um tempo nacional e globalizado.

alguns querem supor que essa dinâmica identitária já não guarda

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subordinação com lógicas autoritárias, uma vez que se encontra hoje maisdistante das políticas estatais e se aproxima da vida social sem outras

mediações institucionais que não seja a mediação natural dos processos comunicativos. nenhum dos autores deste livro filia-se integralmente a essa visão, por certo; todos os que aqui comparecem partilham de uma visão mais crítica. o que de fato ocorre é que a instituição mediática de mercado substitui a instituição estatal. mesmo assim, a pergunta deve ser levada em conta: estaria a tv, agora, atuando como um canal ou, mais propriamente, como o suporte de uma esfera aberta a espontaneidades culturais? a mesma pergunta pode ser formulada de várias outras maneiras. registremos algumas. haveria, no mundo organizado pela tv, um campo para a expressão de uma autenticidade que precederia a própria tv, ou seja, de uma autenticidade não construída pela tv, mas construída também na tv? teria a televisão a capacidade de ajudar no florescimento de uma novo estágio da cultura nacional, sem ser a fôrma rígida da imagem dessa cultura? a elevação de "aquarela do brasil" à condição de hino informal da pátria é um episódio ilustrativo desse tipo de indagação. ponte que vincula o brasil unificado como estereótipo pela era vargas ao brasil integrado por força da imagem eletrônica da tv a partir das décadas de 1960 e 1970, a eleição do hino informal faz com que a cultura regurgite um naco mal digerido do passado para ruminá-lo nas bases do espetáculo contemporâneo, servindo-se para isso de um prato requentado, sem dúvida, mas também retransformado com temperos da cultura pop industrializada. parece que, redevorando o próprio passado, remastigando-o num banquete em que se deglutem o repertório dito brasileiro, o internacional popular (como diria renato ortiz) e a tecnologia, tudo isso de uma vez só, a cultura se reorganiza — para usar o termo - antropofagicamente. quer fazer aflorar o reprimido. o passado ressurge como utopia de libertação, reatando a identidade perdida no plano subjetivo. "aquarela" seria assim a celebração do "primitivo brasileiro", aquilo que a "civilização" da ditadura militar e do mercado não teriam sido capazes de reprimir e soterrar.

assim, a conduta televisiva faria lembrar, ainda que, até aqui, a distância, muita distância, as receitas de oswald de andrade para um caminho de autenticidade nacional: a antropofagia. teria, então, a indústria cultural à brasileira se convertido à estética libertária oswaldiana? essa teleindústria não se declara assim — mas bem que gostaria. não se declara por não o saber, por nem sequer suspeitá-lo, mas encontraria novas raízes de legitimação nacional se ousasse fazê-lo. por fim: seria a cultura contemporânea da televisão nacional — já conectada irreversivelmente aos repertórios globalizados da cultura mundial (ou mundializada a partir dos

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centros de poder como os estados unidos) — uma reedição viva das utopias antropofágicas? seria a televisão a antropofagia que deu certo?

estéticas revolucionárias de outrora e sua negação no presente

para dar cabo de perguntas assim, é preciso começar buscando elementos de resposta na obra de oswald de andrade, o inventor da antropofagia como método (escola? receita?) cultural, e depois confrontá-los com as situações contemporâneas. o que se pretende aqui, no entanto, é promover algo mais que isso. a intenção é estabelecer um paralelismo entre a hipótese de uma televisão brasileira mais ou menos antropofágica e outra, que de vez em quando se apresenta, segundo a qual as linguagens estéticas da publicidade, no mundo inteiro, teriam tornado seus os procedimentos artísticos inventados pelos surrealistas. o paralelismo se justifica. primeiro porque espelha a análise de uma proposta estética nacionalista) com a análise de um movimento internacional(ista), ambos mais ou menos enraizados no modernismo. depois, porque antropofagia e surrealismo surgem no início do século como movimentos revolucionários no campo da arte, mais ou menos conectados com movimentos políticos de esquerda (oswald tinha ligações com o partido comunista no brasil; os surrealistas se aproximaram bastante do trotskismo na europa). antropofagia e surrealismo, segundo perspectivas diversas, mas comparáveis, pretendiam mudar a arte e também o mundo além da arte. queriam aniquilar o establishment. o primeiro paradoxo que surge, então, quando se fala em antropofagia da televisão ou em surrealismo da publicidade é exatamente o de que nem a tv nem a publicidade querem mudar nenhuma ordem social, mas, ao contrário, renová-la e revigorá-la. teríamos, então, antropofagias e surrealismos de sinais invertidos?

em "antropofagia ao alcance de todos", prefácio de benedito nunes para a utopia antropofágica, são exploradas as relações de parentesco entre os escritos-manifestos de oswald de andrade e as vanguardas artísticas que marcaram o início do século xx, como o surrealismo e o dadaísmo. a busca do primitivo, "fosse através da emoção intensa, do sentimento espontâneo, fosse através da provocação do inconsciente, que deriva para o automatismo psíquico e a catarse", tornada traço comum para dadaístas e surrealistas, pode sem muitos problemas ser estendida para a antropofagia modernista brasileira.2 citando o "manifeste dada" de tristan tzara, de 1918, nunes destaca a semelhança textual com que as palavras "dada" e "antropofagia"

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ingressam no imaginário vanguardista: "como dada, 'antropofagia' nasceu de 'uma necessidade de independência, de desconfiança para com a comunidade'; como dada é uma palavra-guia que conduz o pensamento à caça das idéias". "e quais eram os sentidos da palavra antropofagia?" nunes prossegue:

2. nunes, benedito. "a antropofagia ao alcance de todos". in: andrade, oswald de. a utopia antropofágica, 2' ed., são paulo, globo, 1995, p. 9.

"precisamos considerar, então, na leitura do manifesto antropófago, a ocorrência simultânea de múltiplos significados, e ter em mente que o uso da palavra 'antropófago', ora emocional, ora exortativo, ora referencial,

faz-se nesses três modos da linguagem e em duas pautas semânticas; uma etnográfica, que nos remete às sociedades primitivas, particularmente aos tupis de antes da descoberta do brasil; outra histórica, da sociedade brasileira, à qual se extrapola, como prática de rebeldia individual, dirigida contra os seus interditos e tabus, o rito antropofágico da primeira"3.

do cruzamento entre o etnográfico e o histórico, encontraremos a utopia oswaldiana como rebelião que faz aflorar o reprimido, o reprimido pela civilização.

"por baixo do parlamentarismo do império, ficou o poder real do tacape; sob o verniz das instituições importadas, a política e a economia primitivas, e sob os ouropéis da literatura e da arte, a imaginação alógica do indígena, surrealista avant la lettre."4

o surrealismo avant la lettre que emana do primitivo, expressão interior contra o simbólico, contra a ordem, subverte o que seria o domínio do patriarcado em favor do que, se imagina, teria sido a plenitude do matriarcado. e tudo pelo critério da festa. "a alegria é a prova dos nove. no matriarcado de pindorama."5

e tudo pelo critério da liberdade e da revolução. "contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituição e sem penitenciárias do matriarcado de pindorama."6

3. idem, ibidem, p. 16.4. idem, ibidem, p. 17. os versos a que faz referência encontram-se no "manifesto antropófago", que

assim os apresenta: "já tínhamos o comunismo. já tínhamos a língua surrealista. a idade de ouro.catiti catitiimara notiánotiá imaraipeju(lua nova, ó lua nova, assopra em fulano lembranças de mim.)"5. andrade, oswald de, op. cit., p. 51.6. idem, ibidem, p. 52.

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há um livro de hal foster sobre o surrealismo, the compulsive beauty, que se lê com gosto. beleza convulsiva, amor louco, rebeliões. ali não se faz, porém, nenhuma associação com a antropofagia tropical de oswald. as que se farão aqui, portanto, ficam por nossa conta.

foster promove a incorporação do conceito freudiano de uncanny (no original alemão unheimlich) que, no brasil, foi traduzido simplesmente como "o estranho"7. para foster, esse uncanny, unheimlich ou esse estranho freudiano é uma palavra-chave (palavra-guia?) para a leitura do surrealismo. o texto original de freud trata do retorno do reprimido, mas de um retorno deslocado ou, poderíamos dizer, desfigurado, adjetivo capital para o entendimento do repertório surrealista. assim, esse retorno específico produz o efeito do estranhamento, rompendo, no dizer de foster, "normas estéticas e a ordem social". bem ao gosto antropofágico, note-se. mas não se trata de uma insurreição que tem na alegria sua prova dos nove, como queria oswald, nem de um levante pelo restabelecimento da ausência de toda ordem, nem de um retorno puro e simples do que estivesse represado; trata-se, isto sim, para o surrealismo, de uma expressão artística que elege, com algum controle, suas finalidades estéticas e éticas. o autor completa: "os surrealistas não apenas são movidos pelo retorno do reprimido, mas também pela idéia de redirecionar esse retorno para fins críticos"8.

desde já é bom que se saiba: a relação dos surrealistas com o conceito do unheimlich era intuitiva, não vinha de leituras e de estudos — estes, aliás, não aconteceram, ao menos por aquela época, segundo sustenta o próprio foster:

"breton [o maior líder surrealista] conhecia a psicanálise apenas por resumos. somente a partir de 1922 ele pôde começar a ler freud em traduções, e os trabalhos mais importantes do pai da psicanálise só chegariam até ele mais tarde (por exemplo, ensaios de psicanálise, que incluía "além do princípio de prazer" e "o ego e o id", em 1927, e ensaios de psicanálise aplicada, com o texto "the uncanny", em 1933)." 9

7. ver 0 estranho, texto de 1919 de freud, parte do volume xvii das obras completas, publicadas no brasil no cd-rom edição eletrônica brasileira das obras completas de sigmund freud, rio de janeiro, imago, s/d.

8. foster, hal. the compulsive beauty. cambridge, massachusetts, mit press, 1993, paperback edition, third printing, 1997, p. xvii.

9. idem, ibidem, p. 2.

mesmo assim, a vinculação entre surrealismo e o estranho freudiano, pretendida em the compulsive beauty, não poderia estar mais bem sustentada:

"como é sabido, o estranho para freud envolve o retorno de um fenômeno familiar (imagem ou objeto, pessoa ou evento) que se tornou

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estranho por ação de repressão. esse retorno do reprimido deixa o sujeito ansioso e o fenômeno, ambíguo, e essa ambigüidade ansiosa produz os primeiros efeitos do estranho: (1) uma indistinção entre o real e o imaginado, o que é basicamente o objetivo do surrealismo, tal como o define breton em dois manifestos; (2) uma confusão entre o animado e o inanimado, o que é exemplificado em figuras de cera, bonecas, manequins e autômatos, todas imagens cruciais no repertório surrealista; e (3) uma usurpação do referente pelo signo ou da realidade física pela realidade psíquica, e aqui de novo o surreal é freqüentemente vivenciado, especialmente por breton e dali, como um eclipse do referencial pelo que o simboliza, ou pela escravidão do sujeito em relação a um signo ou a um sintoma, e o efeito disso é com freqüência aquele mesmo do uncanny: ansiedade. 'as mais notáveis coincidências de desejo e realização, a mais misteriosa repetição de experiências similares em determinado lugar ou em determinada data, as mais ilusórias visões e os mais suspeitos ruídos.' isso soa como a própria beleza [o sublime, o maravilhoso] para os surrealistas; de fato, é a definição de estranho para freud"10.

mais adiante, foster desenha o nexo essencial entre o psíquico e o histórico. essa passagem, a propósito, lembra o nexo esboçado por benedito nunes entre os sentidos etnográfico e histórico de antropofagia, que seriam mediados pelos "três modos da linguagem", como nunes mesmo os nomina: "ora emocional, ora exortativo, ora referencial". eis o que diz foster:

"para mim, a concepção surrealista de maravilhoso e o estranho freudiano, com o retorno de imagens familiares tornadas estranhas pela repressão, estão relacionados ao conceito marxista de antiquado (outmoded) [e aqui o termo "antiquado" vem da tradução que flávio kothe deu a walter benjamin, que desenvolveu o "conceito marxista" ao qual se refere foster] e anacrônico, com a persistência de formas culturais antigas no desenvolvimento desigual dos modos de produção e formações sociais; mais ainda, que os primeiros suprem o que os segundos não conseguem suprir: sua dimensão subjetiva"11.

10. idem, ibidem, p. 7. a citação que ele faz de freud tem a seguinte origem: freud, s. the uncanny. in: studies in parapsychology. new york, philip rieff, 1963, p. 54.

11. idem, ibidem, p. 163. ver também benjamin, walter. sociologia. são paulo, Ática, 1985, p. 32: "a forma de um meio antigo de construção que, no começo, ainda é dominada pela do modo antigo (marx), correspondem imagens na consciência coletiva em que o novo se interpenetra com o antigo. essas imagens são imagens do desejo e, nelas, a coletividade procura tanto superar como transfigurar as carências do produto social, bem como as deficiências da ordem social da produção. além disso, nessas imagens desiderativas aparece a enfática aspiração de se distinguir do antiquado — mas isto quer dizer: do passado recente".

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como vimos, o conceito de outmoded, de antiquado, de démodé, foster toma-o emprestado a walter benjamin. ele tem a ver com memórias em mais de uma dimensão, mas aqui essas memórias nos interessam mais de perto não como categorias propriamente objetivas ou históricas, e sim em seu retorno, por assim dizer, subjetivo. para os surrealistas, o outmoded estaria em objetos tão distintos como ruínas, fotos velhas, um vestido que saiu de moda cinco anos antes: o que tais objetos guardam como resíduo é a memória de um tempo (histórico) que se cruza com a memória pessoal (psíquica). sua ressurreição dentro de uma obra, por uma via necessariamente subjetiva, produzirá o efeito do estranhamento aos olhos do espectador, fazendo o que estava perdido lá atrás no tempo retornar com renovada força, uma força que desestabiliza o presente. estamos falando, portanto, de memórias traumáticas, memórias da infância, que sempre são recuperadas ou viabilizadas por uma figura maternal. "para ambos, benjamin e surrealismo, isso fala com uma voz materna."12

12. idem, ibidem, p. 163.

a voz materna aqui não é uma referência marginal. É básica, central. se nos afastarmos um pouco da argumentação de foster e formos até o texto original de freud, encontraremos passagens mais que expressivas da centralidade da voz materna no conceito do estranho. eis um trecho:

"acontece com freqüência que os neuróticos do sexo masculino declaram que sentem haver algo estranho no órgão genital feminino. esse lugar unheimlich, no entanto, é a entrada para o antigo heim [lar] de todos os seres humanos, para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez, no princípio. há um gracejo que diz 'o amor é a saudade de casa'; e sempre que um homem sonha com um lugar ou um país e diz para si mesmo, enquanto ainda está sonhando: 'este lugar é-me familiar, estive aqui antes', podemos interpretar o lugar como sendo os genitais da sua mãe ou o seu corpo."

nesse caso, também, o unheimlich é o que uma vez foi heimisch, familiar; o prefixo 'un ['in-"] é o sinal da repressão."

o estranho freudiano é o antes familiar tornado assustador ou incômodo pela repressão.

mas, pelo menos para os surrealistas, a voz materna não é a genitora de uma outra ordem, uma ordem antipatriarcal. É a via do retorno, mas não da emancipação. para situar sucintamente a genealogia desse fracasso, permaneçamos um pouco mais com a discussão em torno do outmoded (o antiquado de benjamin) e de sua via materna de retorno. o que terá produzido tudo o que fosse outmoded — o envelhecido, o ressequido, o sepultado ou simplesmente o démodé — aos olhos dos surrealistas? para

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aragon, a modernização. para dali, a humanização13. em um contexto mais amplo, a civilização. como vimos, é pelo feminino (materno) que os surrealistas encontram espaço para degluti-lo, reciclá-lo e revivê-lo. a voz maternal é a voz que traz de volta o que morto estaria e que conspira contra a ordem (patriarcal). mas, eis o ponto, não se trata de um feminino que negue (ou supere) o masculino. trata-se, ao contrário, de um feminino instrumentalizado pelo masculino dominante do surrealismo, isto é, a plenitude maternal não se consuma em suas últimas conseqüências, mas resulta aparelhada: a estética (feminina) não se liberta inteiramente de um fim político (masculino). bem a propósito, foster opera bastante com a noção de que há no surrealismo, mesmo que inconscientemente, uma instrumentalização do feminino. mais: haveria mesmo uma diabolização dele, além de um certo heterossexismo. como ele mesmo diz: "forças reprimidas no modernismo ressurgem, com freqüência, no surrealismo, como o feminino diabolizado"14. daí o fracasso, ao menos nessa via, da utopia libertadora pretendida pelos surrealistas.

assim, foster começa a esboçar sua perturbadora conclusão:"o surrealismo não apenas revolve o retorno do reprimido em geral, mas

oscila entre duas fantasias em particular que têm a ver com o conceito de estranho: uma da plenitude materna, de tempo e espaço de intimidade corporal e unidade física anterior a qualquer separação ou perda, e uma outra de punição paterna, do trauma que tal perda ou separação podem acarretar"15.

assim, o desenvolvimento do surrealismo, já longe do controle de seus ideólogos, um surrealismo que sobrevive às suas aspirações de berço, teria contribuído menos para engendrar a libertação e mais para reafirmar, com os sinais invertidos, a repressão contra a qual teria se insurgido.

13. idem, ibidem, p. 189-190.14. idem, ibidem, p. 190.15. idem, ibidem, p. 193.

a antiutopia

já é hora de voltarmos um pouco à antropofagia e, de modo especial, já é hora de tocarmos no tema deste artigo, a saber, o modo como certos traços da antropofagia se verificam hoje na televisão brasileira.

contra o humanismo europeu, oswald de andrade celebrava o carnaval, o grande festim brasileiro que encarnaria os ideais do matriarcado:

"nunca fomos catequizados. fizemos foi carnaval"16. É por aí que retorno ao tema. todo ano, vemos a televisão tomada pelas fantasias e pelos

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batuques. mulatas seminuas (maternas tornadas estranhas) ou mesmo completamente nuas (ainda mais maternas, ainda mais estranhas) rebolam na tela enquanto sorriem, convidando-nos para a festa que nos inclui compulsoriamente. o telespectador começa a chacoalhar os olhos e já sente balançar as melhores partes de seu corpo, todas conectadas ao grande espetáculo eletrônico que se anuncia. ele está lá, e não sozinho consigo, lá dentro da televisão nacional, na formidável orgia paga de pindorama enriquecida com efeitos especiais de luzes e alegorias metálicas.

16. andrade, oswald de, op. cit., p. 49.

oswald antevia a terra livre, sem prostituição, mas o que vemos agora é um mercado que nos engole, dentro de um turbilhão de prazer prêt-à-porter, um prazer que faz de cada um freguês e operário passivo, quase virtual. simplesmente não nos restam escolhas. É isso ou nada; é isso ou nada somos. o facho incandescente em que (in)existimos, a linguagem eletronificada em que nos constituímos, está materializada no aparelho de tv. bum-bum-baticumdum.

o que agrava e aprofunda essa gigantesca cloaca insaciável do capital-espetáculo, que a tudo deglute sugerindo a existência de uma antropofagia industrializada — embora da antropofagia mesma seja não menos que a negação — e que prepara o megafrenesi do carnaval, é que a televisão entre nós não é apenas show, mas englobou também o campo da cidadania, quer dizer, engendrou e delimitou o que se entende por espaço público no brasil. a tv é mais, muito mais que um meio; é uma instância, confundindo-se com o próprio processo de constituição da integridade nacional e com o processo pelo qual os brasileiros se reconhecem como brasileiros.

o francês dominique wolton também recorre ao exemplo da rede globo para demonstrar sua tese de que a televisão exerce o papel de integrar as sociedades nacionais. um papel que, segundo wolton, é positivo. diz ele:

"a televisão brasileira ilustra quase à perfeição a minha tese sobre o papel essencial da televisão geralista17. nela encontramos, com efeito, o sucesso e o papel nacional de uma grande televisão, assistida por todos os meios sociais, e que pela diversidade de seus programas constitui um poderoso fator de integração social. ela contribui também para valorizar a identidade nacional, o que constitui uma da funções da televisão geralista."18

17. ele chama de "geralista" a tv de canais abertos, feita para todo o público e não para um segmento específico.

18. wolton, dominique. elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. são paulo, Ática, 1996, p. 153. note-se que o entusiasmo de wolton com a sua tv "geralista" ocupa uma certa contramão nos debates contemporâneos, o que lhe confere até um certo charme, não necessariamente reacionário. mais numerosos são aqueles entusiasmados com as centenas de opções ao alcance do controle remoto do telespectador. muitos desses desprezam a tv geralista como se fosse lixo. george gilder é um bom

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representante dessa tendência. em a vida após a televisão (são paulo, ediouro, 1996 — o original americano é de 1994) ele afirma: "as pessoas têm pouco em comum, exceto seus interesses lascivos e seus medos e ansiedades mórbidas. tendo necessariamente por alvo esse mínimo denominador comum, a televisão piora a cada ano" (p. 13).

a folia carnavalesca, ao tomar conta da programação dos canais abertos brasileiros, está acontecendo não apenas dentro de uma tela destinada a divertir toda gente; está acontecendo no interior da própria delimitação do espaço público. mas será que ela conduz a alguma subversão desse espaço? ou, ao contrário, será que concorre para reforçá-lo à medida que promove o grande circo eletrônico enquanto se calcificam as relações sociais que perpetuam os mecanismos de reprimir o que deve estar reprimido?

uma cloaca industrial

se voltarmos outra vez a oswald de andrade (sempre o retorno), vamos encontrar: "só me interessa o que não é meu. lei do homem. lei do antropófago"19. ora, mas essa é também a lei do telespectador, pois o que dele não é terá sido o dele reprimido. por isso a festa de carnaval toma conta da tela: o telespectador quer ver a bacanal ao vivo, desde que não seja o dele, mas o dos outros. "só me interessa o que não é meu." sensualidade ensaiada na prateleira do vídeo-supermercado. acontece que também essa formulação é falsa e nos conduz ao engano de que existe para valer uma separação entre o que é e o que não é "meu", e à ilusão de que o telespectador, vendo tv, poderia apropriar-se de algo, quando o que ocorre é o exato oposto, como veremos.

19. andrade, oswald de, op. cit. p. 47.

para começar, frisemos que todo o espetáculo do carnaval é um circo da ordem. as fantasias das escolas de samba reproduzem a exuberância tupi, ou a alegada exuberância tupi, mas elas, as escolas, desfilam como boiada numa passarela demarcada, para deleite das "elites vegetais" embriagadas da casa-grande pós-moderna que bebe uísque no camarote, do público que apodrece dentro de casa. "mas o carnaval de salvador não é assim", alegará alguém. "o carnaval de salvador toma conta da praça, da rua, o povo ocupa todos os espaços da cidade." sim, é verdade. e isso também terá sua vez no imenso show carnavalesco da tv. mas vejamos como é que isso se dá. a multidão se espalha líquida e fervilhante, pulando ritmada sobre os logradouros públicos, mas tudo sob as bênçãos dos coronéis, que dizem a hora de começar e a hora

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de acabar a festa."só me interessa o que não é meu", saliva o telespectador. ele tem fome

das intimidades que pensa alheias, do bizarro, do baixo, do lúbrico, do abjeto. É ele o antropófago imaginário, mas é um tipo muito deprimido de antropófago, um antropófago parasitário e paralisado, um antropófago que nada cria. pois as imagens não lhe pertencem, nem lhe pertencerão, nem mesmo quando lhe atravessam o corpo. É ele quem pertence àquilo que se sucede como cachoeira multicolorida e faiscante diante dos seus olhos.

a própria televisão parte, então, para agir ela mesma como antropófaga em nome da sua platéia insaciável. oferece festivais de pancadarias, mortes ao vivo, filmes baixos e apresentadores deseducados. seu repertório parece uma explosão sem rumos. mas, outra vez, é curioso: o ato de devorar os novos ingredientes do espetáculo — e aí o campo da televisão como espaço público ou espaço comum se espalha como chamas, expandindo-se sobre o que toca e, no mesmo instante, destrói — não produz reelaborações criativas ou libertárias, mas simples acomodações. tudo choca para que tudo fique como está. a tv, antropófaga em nome do público, devora o próprio.

há mais para ser dito: a cloaca, ou o arremedo de uma antropofagia transfigurada em indústria a que chegamos, não recicla o que nos seria estrangeiro e o que nos seria reprimido em nosso próprio passado, o que nos seria inédito, mas apropria-se de tudo indistintamente, indo da pilhagem à pasteurização num único segundo. a volta do reprimido não se dá por libertação, mas por uma dessublimação repressiva (à la marcuse). antropófago no brasil, infelizmente, lamentavelmente, é o poder.

antropofagia e surrealismo do poder

antropófago no brasil é o poder, mas um antropófago antioswaldiano, com a televisão que lhe serve de base e de forma — e esse mesmo poder continua sendo o oposto da utopia antropofágica. isso nos afasta, obrigatoriamente, de uma maneira ingênua de olhar as coisas mas, por certo, não joga por terra o sonho de pindorama. apenas para que não pairem mal-entendidos, não se trata de desprezar as pretensões estéticas (e libertárias) da antropofagia. não pode haver arte entre nós sem uma mínima atitude antropofágica. o compositor caetano veloso, expoente do movimento da tropicália que, nos anos 60, foi corretamente interpretado como uma retomada em outras bases do "manifesto antropófago", lançou um livro em que discute o assunto. a sua defesa da antropofagia é de uma sinceridade e de

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uma eloqüência arrebatadoras:"oswald de andrade, sendo um grande escritor construtivista, foi também

um profeta da nova esquerda e da arte pop: ele não poderia deixar de interessar aos criadores que eram jovens nos anos 60. esse 'antropófago indigesto', que a cultura brasileira rejeitou por décadas, e que criou a utopia brasileira de superação do messianismo patriarcal por um matriarcado primai e moderno, tornou-se para nós o grande pai"20.

20. veloso, caetano. verdade tropical. são paulo, companhia das letras, 1997, p. 257.

aqui, um breve comentário marginal tem pertinência: a menção à figura paterna, ao grande pai, não aparece casualmente no texto de caetano. muitos criticaram a antropofagia exatamente porque, ao negar "o nome do pai", ela estaria apenas evitando a questão da falta de identidade da cultura brasileira, se é que se pode falar nesses termos. transformando em totem o próprio oswald, o negador por excelência do patriarcalismo, caetano talvez pense em neutralizar esse tipo de crítica. fim do comentário marginal.

o fato, todavia, é que não estamos tratando do que acontece com a criatividade bem ou malsucedida de um artista, ou mesmo de um movimento artístico. estamos falando de uma indústria gigantesca, uma indústria que banalizou procedimentos e mitos da antropofagia num retrocesso político e estético. de modo que a questão posta ao longo deste texto prossegue. se formalmente podemos verificar de maneira exaustiva que a televisão se faria passar por uma seguidora contumaz do manifesto de oswald de andrade, ela continua a ser um fator de organização social que é o contrário da utopia antropofágica.

um artigo como este nunca pode se apresentar como um estudo conclusivo e seria uma impostura inadmissível pretender iludir o leitor com aparências conclusivas. isto aqui é uma desconclusão por princípio. e, por ter a licença de não ter que ser conclusivo, este artigo pode ainda ensaiar — é este o termo exato, ensaiar — mais um fôlego da mesma idéia. sem esse novo fôlego, o cenário que se apresenta não se completaria. ei-lo: é possível estender o que acontece com a televisão brasileira aos meios eletrônicos globalizados. pensando na tv do mundo todo, um monstruoso emaranhado de metais, antenas, satélites, cabos e aparelhos que envolvem o planeta como uma enorme teia eletrônica, pensando no enorme conglomerado das comunicações numa escala global, e na fusão de capitais que ela trouxe, é imperioso que nos distanciemos da noção clássica de veículo. a partir desse dado novo, da teia globalizada, é preciso considerar, nem que seja por mero exercício crítico, a hipótese dessa grande rede como lugar em que se dá a própria constituição do sujeito em relação ao outro. isso é apenas uma

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extensão do que já se afirmou até aqui, mas essa extensão, se validada, vai nos levar a um problema de outra natureza. seríamos obrigados a admitir haver aí, nessa rede, uma função imaginária que está engolindo a função simbólica.

a hipótese, então, é a seguinte: teríamos chegado à desestruturação da ordem simbólica tal como ela é entendida classicamente, instância institucional e reguladora, em favor de uma superexpansão do imaginário a ponto de torná-lo provedor de ordenamentos (ver, a esse propósito, o artigo de maria rita kehl neste volume). na mesma proporção, mas num outro nível, poderíamos dizer que há um recuo do direito e uma expansão do mercado, a tal ponto que não é mais um passaporte que identifica um indivíduo numa portaria de hotel, mas o seu cartão de crédito, o que vale dizer: não é mais um estado quem carimba o nome de alguém sobre alguém; é uma companhia privada, existente antes de mais nada como marca de consumo, marca no imaginário, quem estipula o carimbo do nome (e seu correspondente valor de troca, ou seu crédito) sobre o sujeito. está aí o nexo imaginário entre o sujeito e o seu outro, posto do outro lado do guichê do hotel.

assim como o mercado nomeia e ordena, aquilo que antes pensávamos como veículo e por onde flui essa nova função do imaginário sobre o simbólico deixa de ser mero veículo para ser concebido como lugar - ou como espelho, que se dissolve no instante mesmo da comunicação —; lugar que nos contém.

neste ponto surge uma intrigante interrogação: teria a instância do poder migrado para o interior dos meios de comunicação? se a resposta é sim, nem que seja apenas um "sim, em termos", não há como escapar à hipótese de que as aparências antropofágicas, assim como as aparências surrealistas dispersas pela indústria do entretenimento planetário, não mais subvertem o simbólico mas, ao contrário, o consolidam.

faço minha a dúvida que foi lançada por hal foster e trago-a, antropofagicamente, para a utopia oswaldiana. eis o que diz foster:

"breton esperava que o surreal pudesse se tornar real, que o surrealismo pudesse superar essa oposição com efeitos libertários. mas não será exatamente o oposto que aconteceu, será que no mundo pós-moderno de capitalismo avançado o real é que se torna surreal, que nossa floresta de símbolos traz menos rupturas do que traz um fator disciplinador em seu delírio?"21

21. foster, hal, op. cit., p. 209-210.na teia mediática planetária pode-se ver uma propaganda de cigarro em

que um sujeito aparece com a cara de camelo. surrealismo revolucionário? não, capitalismo. na televisão brasileira, o carnaval nos empanturra, ali está

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"a idade de ouro", ali estão "todas as girls", os adereços nas mãos dos passistas são ready mades de duchamp, as letras dos sambas-enredos são ready mades oswaldianos ou, melhor, ready mades declamativos de si mesmos. e daí? o pop não parece ser mais um jeito despojado de ingressar no mundo da cultura e de fazer arte para o consumo? será que o pop não é a nova etiqueta do poder? será por isso que ele é autofágico? então é este o circo da ordem, primai na sua aparência e patriarcal em suas relações? e, por fim, será que os procedimentos e os mitos da própria antropofagia não estão servindo de última roupagem para o patriarcado do capital?

podemos até adotar "aquarela do brasil" como nosso novo hino nacional. É o que dá sinais de desejar o mundo mediado pela tv. eu, particularmente, seria até favorável. mas isso realmente significaria um retorno libertador de um passado reprimido ou seria apenas mais uma acomodação da identidade brasileira à nova lógica espetacular do capital?

eugênio bucci —jornalista, foi editor da revista teoria e debate e diretor de redação de super interessante e quatro rodas. foi articulista da folha de s. paulo e, como crítico de televisão, assinou colunas em o estado de s. paulo e veja. escreveu, entre outros livros, brasil em tempo de 71^(boitempo editorial, 1996) e sobre ética e imprensa (companhia das letras, 2000).

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televisão e violência do imaginário1

maria rita kehl1. artigo baseado em palestra realizada no seminário "mentes e mídia: a criança na era digital", do

instituto sedes sapientiae, em junho de 2000, em são paulo.

na segunda metade do século xx, a televisão redefiniu, em escala planetária, as formas como se organizam a comunicação e os vínculos sociais nas mais diferentes culturas. sua presença no cotidiano de grande parte da população mundial produziu não apenas novos modos de sociabilidade como também uma série de efeitos sobre a subjetividade. um dos mais graves, a meu ver, é o surgimento de uma nova forma de violência que afeta todas as modalidades do laço social: a violência do imaginário. não me refiro à violência representada através das imagens televisivas, nem a uma versão imaginária da violência, mas a um modo de violência que é próprio do funcionamento do imaginário, e que incide de forma quase hegemônica sobre as culturas em que a televisão tem um lugar muito predominante.

hoje podemos dizer que já existe um consenso a respeito do fato de que as modernas sociedades industriais são sociedades muito violentas; há também um consenso de que essa violência não é apenas — embora também — a violência da exclusão social, a violência que é própria da luta de classes, dos miseráveis que têm que forçar para conseguir um lugar. por fim, há também um certo consenso de que a televisão tem forte influência nisso, de que a televisão, de alguma forma — estou chamando de televisão, mas podemos dizer a produção imaginária da cultura de massas em geral —, tem uma responsabilidade forte na produção da violência.

mas há muitas controvérsias sobre a relação da imagem com a violência. há pesquisas que estabelecem uma relação de causa e efeito entre a programação da tv e o comportamento, por exemplo, das crianças que se expõem a essa programação: assim, a criança que fica assistindo a esses desenhos animados em que um personagem estoura uma bomba na casa do outro tenderia a ser mais agressiva com os amiguinhos. outras pesquisas desmentem as primeiras: não, não é assim, as crianças assistem desenho animado e não saem estourando a casa e jogando o irmãozinho pela janela; não é uma questão de modelo e imitação e, se assim fosse, a nossa sociedade já teria se autodestruído, pois modelos de destruição é o que não falta na tv.

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entre as crianças principalmente: se tudo se reduzisse a uma questão de modelo e imitação, as escolinhas seriam lugares insuportáveis de se freqüentar, precisariam contratar um segurança para cada aluno. e, no entanto, embora as pesquisas não consigam confirmar a idéia mais simplista de que a criança imita o que ela vê, eu sustentaria a tese de que, nas sociedades regidas pela cultura de massa — a cultura de massa é uma formação predominante na nossa sociedade e, nela, a tirania da imagem é avassaladora —, há, sim, um tipo de violência que é próprio do funcionamento do imaginário em si. essa violência do imaginário tem, sim, relações com os padrões de comportamento na vida real, mas não há aí uma relação de causa c efeito. e, mais ainda, a violência do imaginário independe dos conteúdos que as imagens apresentam.

evidentemente, a qualidade e o conteúdo das imagens fazem alguma diferença, porque a exposição constante de crianças e de todo o público a cenas de violência, a um padrão de respostas violentas para todos os conflitos - que é por excelência o que a filmografia média da cultura norte-americana nos traz, e em grande parte pela televisão -, vai aumentando cada vez mais o nosso limiar de tolerância diante da truculência. isso não quer dizer que as pessoas saiam imitando a violência; dá-se algo menos mecânico. com o tempo, vamos tolerando cenas que nos horrorizariam há dez anos, há 20 anos. hoje assistimos tranqüilamente a cenas que nos fariam sair da sala há alguns anos. e essa elevação do padrão de tolerância para o horror me preocupa muito. você se acostuma com a violência, quase como se fosse a única linguagem eficiente para lidar com a diferença; acha normal que, na ficção, todos os conflitos terminem em tiro e pancadaria. e como fica quando se vê essa cena de horror na rua? você vai ser cúmplice, vai achar normal também?

mas não é esse o aspecto que gostaria de destacar quando falo na violência do imaginário. vou começar anunciando três premissas sobre as quais pretendo sustentar meu pensamento. a primeira já foi desenvolvida por mim no texto "imaginário e pensamento", publicado numa coletânea há dez anos2. nesse livro, textos de vários autores refletem sobre a rede imaginária da sociedade de massa. em meu artigo, desenvolvi um pensamento que não vou repetir integralmente aqui, mas que gostaria de retomar: o funcionamento do imaginário dispensa a necessidade do pensamento. ele não proíbe o pensamento, não reprime o pensamento, mas esse modo de funcionar próprio das imagens e da nossa exposição a elas produz um modo de funcionamento psíquico no sujeito que prescinde do pensamento. brevemente, diria que isso ocorre por que o imaginário funciona segundo a lógica da realização dos desejos. cada imagem apresentada é como se fosse

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um microfragmento de gozo que o espectador consegue obter. então, a cada fragmento de gozo, o pensamento cessa.

2. novaes, adauto (org.). a rede imaginária. são paulo, companhia das letras/secretaria municipal de cultura de são paulo, 1991.

por quê? o pensamento não passa de um longo rodeio que o ser humano é obrigado a fazer em busca de um objeto sempre perdido; é um movimento que tenta reconstituir, pela via simbólica, pela via da representação, um substitutivo para esse objeto. sabemos, desde a interpretação dos sonhos, de freud, que o desejo não tem que se realizar necessariamente em ato. pode bastar-lhe a linguagem. por que um sonho realiza um desejo? porque um desejo se realiza quando ele encontra a sua representação. dizendo de outra maneira: o deslizamento do significante, a cadeia dos significantes que remetem sempre, cada um, a outro significante, estanca temporariamente quando se produz um significado.

a produção de significado produz uma espécie de descarga, em termos freudianos, uma espécie de relaxamento da tensão que vinha movendo o pensamento até este ponto — mas, claro, esse relaxamento é provisório. o interessante do pensamento é que ele tem que produzir sempre novas significações porque, como não temos acesso direto ao real — o tempo todo o real nos escapa —, o tempo todo temos que resimbolizar o real e prosseguir com o deslizamento do significante até produzir um novo significado. ora, "realizar um desejo" é encontrar uma representação para um desejo que não conhecemos, ao qual nunca temos acesso. este encontro (ou invenção) da representação estanca momentaneamente o trabalho psíquico do pensamento. ora, a produção imaginária oferece continuamente representantes para a satisfação do desejo. então, num certo sentido, podemos dizer que ela dispensa o pensamento.

diante da tv ligada, isto é, diante de um fluxo contínuo de imagens que nos oferecem o puro gozo, não é necessário pensar. o pensamento é um trabalho, e ninguém agüenta pensar (trabalhar) o tempo todo. ele só é convocado a operar quando falha a realização de desejos. então, essa é a primeira premissa: o funcionamento imaginário dispensa o pensamento. isso não quer dizer que as pessoas parem de pensar para sempre por efeito desse gozo imaginário, mas que, diante do fluxo de imagens, paramos de pensar. e, quanto mais o fluxo de imagens ocupa espaço na nossa vida real e na nossa vida psíquica, menos é convocado o pensamento.

a segunda premissa é conseqüência da primeira: o funcionamento do imaginário incita passagens ao ato, pois, onde o pensamento não opera, o sujeito, incapaz de simbolizar aquilo que vê, é compelido de certa forma a

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interferir, a existir em ato onde não pode existir como sujeito simbólico. vou tentar desenvolver essa idéia logo adiante.

esse ato sem pensamento, ou seja, um ato que se daria quase que contra o pensamento, como reação à angústia causada pelo vazio de pensamento, esse é o ato da superficialidade, esse é o ato da irreflexão. isso tem relação com o que hanna arendt desenvolveu em seu livro sobre a "banalidade do mal": uma relação entre o vazio de pensamento e o mal. É uma articulação muito interessante. há uma certa equivalência entre o que ela está chamando de male o que estou chamando de violência; não é muito difícil aproximar essas duas idéias. a violência do imaginário, própria dessa situação social grave que estamos vivendo, não é muito diferente do que hanna arendt tenta conceituar como o mal absoluto. para ela, o mal absoluto não é o mal produzido com intenções malignas, a partir da perversão de alguém, é o mal que vem da superfluidade do ser humano, da ausência de reflexão, da banalização da nossa condição humana. arendt escreve que isso é condição suficiente para se produzir alguma coisa parecida com o mal absoluto. É verdade que ela está tentando entender o totalitarismo, o nazismo — o mal absoluto organizado, e organizado, evidentemente, por cabeças pensantes—, e não essa espécie de forma caótica do mal que estamos vivendo hoje em dia e que nos assusta muito.

para nos interrogar a esse respeito eu também lanço mão de um artigo de contardo calligaris3. ele relata um crime que aconteceu nos estados unidos, em que dois adultos estupraram e mataram um menino de 10 anos. e aí se descobriu que esses adultos eram usuários de um site, ao qual ficavam ligados em rede, um site cujo nome é algo como "amigos da perversão infantil" ou "amigos dos corpos da criança", algo assim. através desse site, as pessoas se comunicavam e trocavam as suas fantasias de pedofilia. contardo calligaris termina apresentando um paradoxo: por um lado, é muito bom poder viver numa sociedade em que todas as fantasias podem ser comunicadas, não têm que ser recalcadas, uma sociedade em que tudo possa ser dito; por outro lado, ele gostaria que nessa sociedade as crianças não estivessem ameaçadas. as crianças e também nós, os adultos. que a liberdade não tivesse necessariamente como conseqüência o estupro e o assassinato.

3. CALLIGARIS, contardo. o insustentável peso das palavras e das imagens. folha de s. paulo, 15 de junho de 2000, p. e-8.

em primeiro lugar, eu questionaria se é possível existir uma sociedade que incita e demanda que tudo tenha expressão e visibilidade, em que todos possam dizer tudo e, ao mesmo tempo, não passar ao ato. gostaria de propor uma reflexão sobre o artigo de contardo calligaris justamente relacionada à

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idéia da violência do imaginário. a reflexão é a seguinte: qual é a diferença de registro psíquico de uma idéia que é expressa apenas como tal e outra expressa como um imperativo de passagem ao ato? a idéia pode ser a mesma. alguém pode dizer "sonho estuprar uma criancinha", e até escrever esta mesma frase. mas qual é a diferença de registro que faz com que num contexto social, numa cultura, essa confissão seja recebida assim: "puxa vida, coitado desse cara, ele precisa de ajuda"; e outra cultura em que a resposta seja: "ah, mais uma para a gente gozar, vamos nessa"? pois bem, esta segunda é a nossa cultura. a diferença está na cultura, na sociedade, a diferença não está naquilo que estava escrito no site. está numa cultura em que a nossa existência psíquica depende de uma passagem ao ato, e de preferência de uma passagem ao ato em público, em que nós possamos também fazer do nosso corpo imagem, e imagem para o outro assistir e fruir.

depois do terrível episódio do seqüestro de um ônibus no rio de janeiro, no dia 12 de junho de 2000, que terminou com a morte de uma refém e do criminoso, ouvi muita gente perguntando: "teria sido a mesma coisa se a televisão não estivesse ali, transmitindo tudo ao vivo?". a dúvida tem razão de ser. É verdade que o seqüestrador, que estava tão enlouquecido (drogado ou não, pouco importa) dentro daquele ônibus, era um sobrevivente do massacre da candelária; já vinha, portanto, de condições extremamente violentas. mas será que a performance dele e a do soldado que acabou produzindo o desfecho da desgraça (matando a refém à queima-roupa quando queria atirar no seqüestrador) teriam sido as mesmas se a televisão não estivesse ali, transmitindo toda a tensão por horas a fio?

ali, no ônibus parado, com o seqüestrador que mostrava a arma e gritava ameaças da janela para as câmeras e para os policiais que cercavam a área, cada um estava representando sua própria cena. imagem e ato. como o testemunho da sociedade, por meio da televisão, em vez de funcionar para coibir o desfecho violento, funcionou justamente como permissão?

a idéia da permissão, no inconsciente, associa-se imediatamente a um imperativo. se tudo é permitido, tudo é possível; se você pode, você deve. se você pode expressar que deseja estuprar uma criancinha e isso não causa escândalo, se não há, no senso comum, no consenso produzido pela sociedade, nenhum limite para essa idéia, isto equivale a um incentivo: vá lá e faça, é a sua obrigação, é o mínimo que você pode fazer. e como é que se formaria esse imperativo de passagem ao ato que é decisivo para a violência do imaginário?

o imaginário é o registro psíquico que dá consistência à experiência. É evidente que não se trata de fazer aqui uma fala contra o imaginário. os três registros psíquicos — imaginário, simbólico e real — são três registros

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indissociáveis. o funcionamento psíquico, na falha de um desses registros, é um funcionamento capenga. os três registros se articulam, como o tripé que sustenta o sujeito do desejo. o imaginário dá consistência para a experiência, dá corpo para a experiência. tanto que, tanto em freud como em lacan, a fundação do imaginário se dá com a imagem do corpo, com a constituição da imagem do próprio corpo. É quando a criança se identifica com a imagem de seu corpo que começa a se constituir o eu; a imagem do corpo proporciona uma precária unidade a este sujeito ainda fragmentado e produz a ilusão de uma identidade, também precária, a partir da identificação da criança, sujeito de uma experiência sem unidade, com esta forma unificada, "perfeita", do corpo no espelho — tomando aqui o "espelho" como metáfora do olhar do outro, em particular, a mãe. É a partir daí que se ancoram todas as seguintes formações imaginárias do sujeito. o imaginário é o que dá consistência à experiência, e é o domínio do corpo. mas esta imagem do corpo no espelho não sou "eu". a identificação com a imagem é uma forma de alienação, em que a consistência da experiência subjetiva se ancora na imagem do que se é para o olhar do outro.

já o simbólico é fundado exatamente no ponto em que essa imagem já não dá conta do ser. É o registro da falta: o registro da morte. o significante vem no lugar da coisa que falta, a palavra, seja ela qual for, sempre vem nos trazer notícia de uma morte, de uma ausência, de uma falta, e da própria falta-a-ser do sujeito, que a identificação imaginária não resolve. o conceito psicanalítico de outro - assim mesmo, com maiúscula, para se diferenciar do outro, com minúscula, aquele outro qualquer que é o nosso semelhante - indica o campo simbólico, que é a própria estrutura da linguagem à qual todos estamos submetidos desde nossa entrada na cultura. o outro, lugar da linguagem, tesouro dos significantes, no dizer de lacan, antecede nossa existência e nos ultrapassa também. nossa sujeição a ele nos faz supor, erroneamente, que o outro detém um saber sobre nós: sobre nosso desejo, nosso lugar neste mundo e, conseqüentemente, sobre o ser. e embora o outro seja um conceito do campo simbólico ele se encarna para nós, ao longo da vida, em várias figuras de autoridade e saber: pai e mãe, por exemplo, ou mais tarde professores, autores e o próprio psicanalista. diante dessas encarnações do outro, indagamos: quem sou? que faço aqui? qual meu desejo? mas o outro não "sabe" nada, ele não se organiza na forma de nenhuma significação. ele representa apenas nossa possibilidade de falar.

outra diferença importante entre simbólico e imaginário, portanto, é que, no registro imaginário, o pai, na sua consistência corporal de ser real, é, durante algum tempo para a criança, a própria encarnação da lei e do saber do outro. portanto, o pai surge ao mesmo tempo como uma figura capaz de

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barrar o sujeito, capaz de proibir o acesso ilimitado ao corpo da mãe, e como rival, como uma figura persecutória, de poderes ilimitados. isso no imaginário. mas quando o pai pode ser simbolizado neste outro registro em que existe a falta, ou seja, no registro do simbólico, em que nada é completo, ele já não e a lei: ele faz a lei. ele traz a lei para a criança, representa a lei. e ele também é um ser de falta.

isso faz diferença porque o outro, como mencionei acima, se apresenta à criança encarnado em algumas figuras. num primeiro momento, o outro é encarnado na figura da mãe, que adivinha o desejo da criança, que sabe tudo, que conforta - a mãe é representada como um ser todo-poderoso. num segundo momento, o outro se encarna na figura desse pai que é a lei para a criança, que detém o saber sobre o gozo materno e, por isso mesmo, barra a mãe.

retomo aqui conceitos conhecidos apenas para enfatizar a distinção do outro no imaginário em relação ao simbólico. enquanto o outro está

encarnado em figuras de autoridade, de poder, e também de amparo e proteção, está sob o registro predominantemente imaginário, em que não se inscreve a falta. esse outro encarnado é sempre persecutório para o sujeito, pois é uma figura que sabe desse sujeito, do seu desejo, que antecipa para o sujeito muito mais do que ele próprio sabe de si. por isso instala-se no campo da rivalidade narcísica. se o outro está encarnado no corpo da mãe ou do pai, vem incidir exatamente sobre o corpo da criança — e o corpo é onde se ancora o que lacan chamaria de sua fortaleza narcísica. na defesa dessa fortaleza narcísica onde a criança vai se instalar como eu, como identidade, brota a agressividade. a agressividade é exatamente a resposta à invasão da fortaleza narcísica pelo outro e também pelo outro — agora estou me referindo a um outro qualquer, não mais o que encarna a lei (como o pai) ou o que surge como um ser todo-poderoso (como a mãe), mas ao outro que é também semelhante, e que grafamos com "o" minúsculo. lacan vai dizer: a primeira recepção ao outro, seja ele um irmão ou um estranho qualquer, sempre é agressiva, até que o outro possa ser percebido como alguém com quem o sujeito pode se identificar (o que também não se dá sem conflito), com quem se pode estabelecer novos vínculos. mas a primeira resposta à entrada do outro no campo narcísico da criança é uma resposta agressiva.

nesse funcionamento imaginário, portanto, o outro evoca sempre uma reação paranóica. ora, nas sociedades de massa, faz sentido pensar que o outro está encarnado nessa produção imaginária da qual a televisão é o principal veículo. isso porque ela é, de certa forma, onipresente e onisciente, como deus. ela pode estar em todos os lares ao mesmo tempo e o tempo todo, como emissora de fragmentos de um grande saber. atualmente ela já

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extrapolou o espaço dos lares: você vai a um restaurante e ela está ligada, vai para um saguão de aeroporto e ela está ligada, entra num ônibus para fazer uma viagem e há uma televisão ligada. enfim, ela funciona um pouco como a ficção do grande irmão de george orwell, só que não está apenas nos olhando. também está nos propondo. não somos nós que estamos sendo vistos por esse outro, mas ele está nos oferecendo uma produção de visibilidade e de imagens contínua, que funciona para o sujeito como oferta incessante de objetos para o desejo.

É este exatamente o funcionamento da mãe para o bebê — e este funcionamento é necessário para o bebê sobreviver. mas também é necessário que tal funcionamento cesse, a determinada altura, para advir daí o tal sujeito do desejo. esse funcionamento imaginário é o mais primário, o mais primitivo da relação do sujeito com o outro. e é nas falhas desse funcionamento que o desejo pode advir e que o objeto de desejo, como objeto que se perdeu na separação da criança em relação à mãe, pode se instalar no inconsciente como um objeto sempre perdido e que vai motivar, então, o trabalho psíquico do sujeito para o resto da vida.

o que acontece quando o outro se encarna, imaginariamente, num objeto da cultura? mais ainda: o que acontece quando o outro se encarna na produção de imagens da cultura, reconhecida por todos como lugar de saber e de satisfação de desejos? este outro tornado para sempre imaginário representa ao mesmo tempo um poder e um saber sobre o sujeito — que então não tem mais que se indagar sobre o desejo, já que esse poder e esse saber estão dados de fora. ao mesmo tempo, representa uma rivalidade, uma ameaça, porque é ameaçador que alguém saiba de nós antes de nós mesmos, que alguém nos diga quem somos, o que devemos fazer, antes que tenhamos possibilidade de criar alguma consistência subjetiva por meio da experiência com o real, dos tropeços e cabeçadas que o real nos faz dar. além disso, a suposta onisciência do outro nos dispensa o trabalho do pensamento, trabalho de simbolização de nossos embates com o real. esperamos que o fluxo contínuo de imagens dê conta deste trabalho. dispensados da necessidade de pensar e simbolizar, dispensados do trabalho psíquico que nos constitui como sujeitos do desejo, ficamos perigosamente ancorados no eu imaginário e submetidos à violência própria das formações imaginárias.

a violência do imaginário deve ser analisada então sob três aspectos. em primeiro lugar, significação e imagem se confundem: a imagem detém o trabalho psíquico ao produzir algo que se parece com uma significação. porque os significantes são arbitrários, porque uma palavra pode nomear alguma coisa mas não é aquela coisa, porque uma palavra não é o corpo da coisa, por tudo isso as palavras são sempre insuficientes e nós temos sempre

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que produzir novas palavras, novas metáforas, para mover o pensamento e nossa relação com o real. quando uma idéia informe ou um desejo não-formulado encontram uma imagem — assim como, no plano imaginário, o sujeito se identifica com seu corpo e se ilude supondo que, sabendo identificar seu corpo, ele sabe quem é — produz-se o efeito de uma significação. ora, o efeito de significação é o gozo imaginário, pois é onde se produz a descarga da energia livre que circula na cadeia de significantes.

na significação, a imagem ocupa o lugar do ser (que é, de fato, um lugar vazio); do ponto de vista da constituição subjetiva, se o ser produz uma ilusão de identidade quando o sujeito encontra a sua imagem, o ser se ancora na fortaleza narcísica da imagem do corpo. instalado aí, o sujeito tem que defender sua imagem violentamente como a única garantia do seu ser, já que não pode se deparar com a falta, simbolizar a falta, não pode se identificar com um outro tipo de trabalho psíquico; e ao mesmo tempo toda a imagem do outro, como um outro ser, o incita e o ameaça. se o contato com o outro não passa pela reflexão, pela simbolização do outro, há de ser sempre um contato ameaçador e violento.

então a violência e a agressividade podem se produzir como resposta a essa ameaça que o outro representa e como busca de deter a inquietação trazida pela falta, uma vez que esta encarnação do outro, na sociedade de massas, numa grande produção imaginária de significados, nos diz o tempo todo que não deve haver falta. a falta se torna intolerável.

o segundo aspecto da violência do imaginário é o seguinte: a significação, o encontro com a imagem, barra o movimento do pensamento. e o imaginário propõe uma existência no corpo. ora, para que o corpo sustente a existência, ele precisa o tempo todo estar em ação; não pode ser um corpo inerte. vivemos numa sociedade que nos demanda uma atividade contínua, ainda que vazia. em vez de ser estimulado à reflexão e à dúvida, o sujeito é compelido a agir, respondendo a uma demanda do outro. para existir no corpo desse outro, para não desaparecer -porque uma imagem desvanece no momento em que ela não está sendo vista —, para comparecer no campo do outro, ele é compelido a agir. isso explica não apenas essa compulsão a alcançar os nossos 15 minutos de fama, que já foi prenunciada há décadas por andy warhol, mas também a compulsão a existir por meio do ato violento, porque é esse o ato que também vai chamar o agente da rede imaginária a registrar nossa existência. não é um outro ato que faz significado na nossa cultura: basicamente, é o ato violento.

daí decorre o terceiro aspecto: o imaginário como o lugar dessa encarnação do outro sem falta — e a publicidade, por exemplo, é uma das vozes desse outro que sabe sobre o nosso desejo e nos oferece a

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oportunidade de obturar a falta — faz com que o objeto causa do desejo seja intolerável. quer dizer, a idéia de que temos que constituir esse objeto num campo simbólico, que continua sendo o lugar em que o objeto não se presentifica nem se estabiliza como coisa, torna-se intolerável. o campo de circulação de mercadorias passa a ser imaginariamente o lugar do objeto a (o pequeno objeto que captura o desejo, ou o pequeno outro), e a demanda ocupa o lugar do desejo. só que a demanda é imperativa, o desejo não. a relação de demanda impõe a violência entre os sujeitos. É quando eu tenho que ter isto que me é negado que a violência se instaura: tenho que ter o que você tem, ou tenho que obter de você o que preciso. É aí que a violência se estabelece.

por último, gostaria de articular o que disse até aqui com algumas idéias de hanna arendt sobre a banalidade do mal. ela recorre a outros filósofos que também se indagaram sobre o que é o pensamento. dois conceitos nos interessam de perto. primeiro, o conceito platônico do pensamento como diálogo: mesmo acontecendo no silêncio, no isolamento, na reflexão, mesmo sendo um exercício que se dá de mim para comigo, ele supõe o outro. mas aqui não se trata do outro e sim do pequeno outro. pensamos junto com o semelhante. a idéia de platão e sócrates é que o pensamento se dá num diálogo interno com o outro. modernamente, podemos dizer que o pensamento se dá onde se instaura a falta, e que o sujeito que pensa já é necessariamente o sujeito dividido, o sujeito que já duvida. a dúvida já é indício do sujeito dividido. evidentemente, platão e sócrates não se referiam ao sujeito dividido como hoje pensamos o sujeito da psicanálise, mas diziam "eu sou dois quando penso". e esse pequeno outro, interlocutor do fluxo de palavras do meu pensamento, supõe alguém que esteja no mesmo registro de falta.

que falta é essa? falta de ser, falta de verdade? consideremos a falta de verdade — usemos essa falta para não ficarmos numa falta por demais abstrata. É porque me falta verdade, consistência, estabilidade para o ser — o meu ou o das coisas — que busco o outro, a quem também falta, para, não numa lição autoritária e nem numa submissão ao saber do outro, mas no diálogo com ele, constituir alguma coisa próxima daquilo que falta. não é com o outro que se pensa; o outro é suposto que sabe. o outro submete - principalmente o outro na sua consistência imaginária. o outro simbolizado, que já é um universo marcado pela falta, permite pensar. mas não é com o outro que penso, é com o semelhante, é com o pequeno outro.

ora, isso exige também um tipo de formação social em que os sujeitos de alguma forma se encontrem nesse lugar em que a falta é possível. esta não é exatamente a sociedade de massas. não quero dizer que na sociedade de

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massas não existam formações à margem do grande fluxo de imagens. mas na formação típica das sociedades de massa os sujeitos não se encontram entre si; estão juntos diante do outro, tentando ocupar um lugar diante desse outro, de preferência um lugar de privilégio, de proteção, de ser abarcado pelo saber do outro. É onde não há essa submissão ao outro imaginário que tudo sabe que o pensamento, o diálogo, acontece.

outra idéia interessante, que hanna arendt vai tomar de kant, é que o pensamento não é igual à produção do conhecimento. isto é interessante porque, talvez, diante do outro, busquemos o conhecimento, o saber. tanto faz se ligamos a televisão para ver um noticiário, se abrimos uma enciclopédia, se lemos um livro de freud ou de lacan: diante de um sujeito de suposto saber nós procuramos sempre o conhecimento. no pensamento, não procuramos o conhecimento, procuramos produzir significação. não necessariamente verdade, mas significação. a falta humana que é a falta de verdade está presente no pensamento. e evidente que cada produção de significação nos permite um pequeno gozo, que é uma ilusão de que encontramos uma verdade. mas é porque essa verdade não é estável — e nas sociedades modernas menos ainda porque a multiplicidade, a diferença, tudo isso desestabiliza cada encontro nosso com a suposta verdade — que o pensamento continua.

por outro lado, vai dizer ainda hanna arendt, o lugar em que o homem está quando pensa é diferente do lugar em que o homem está quando age. o que não significa que deveríamos ser passivos, pensadores em nosso quarto, isolados, mas sim que o momento do pensamento não é exatamente igual ao momento do agir. É necessária uma certa suspensão da nossa compulsão ao ato para se produzir o pensamento. uma certa renúncia tanto a esse gozo que quer produzir imediatamente um efeito de verdade, uma significação, como ao ato que produz uma espécie de conforto de existir no corpo - existo porque meu corpo age, porque meu corpo aparece para o outro. essas duas coisas têm que estar suspensas, como condição para o pensamento.

por fim, o pensamento só existe na linguagem: na linguagem da palavra. o funcionamento imaginário pode dar substância ao pensamento, consistência, mas o pensamento existe na palavra. e é importante pensar nas características da palavra como um lugar de instabilidade da verdade. três características importantes da palavra: primeiro, a palavra permite falar sobre ela própria. se posso pensar sobre a própria palavra, nenhuma palavra é, porque sempre posso produzir sobre ela uma outra palavra que pode deslocá-la do lugar onde aparentemente ela era. ela já é um lugar da incerteza em relação ao ser e à verdade. segundo, a palavra é capaz de mentir, não é um lugar de garantia de verdade. mas, terceiro — e isso é o

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mais importante para hanna arendt —, a palavra é capaz de produzir metáforas, novos signos, o começo de alguma coisa que ainda não existia no real. um pensamento é capaz de dar início a um movimento, a uma formação social, a uma representação que ainda não existia no real. É para isso que a pensamos, diz hanna arendt. essa é a característica humana que mais dignifica a nossa condição — ser capaz de começar alguma coisa que não existia antes. ao mesmo tempo, se o pensamento não busca a verdade mas busca o sentido, pensar dá o sentido para a vida. hanna arendt retoma uma frase de sócrates que diz: "o pensar acompanha o viver". ou seja, uma vida sem pensamento é uma vida sem sentido.

vamos nos aproximando da idéia de que uma sociedade regida por formações imaginárias torna-se uma sociedade violenta. a violência do imaginário é a resposta à ausência de sentido na nossa vida quando o pensamento é dispensado, e quando o nosso único lugar de existência é o corpo e o ato. esta é a violência do imaginário. hanna arendt dirá que o vazio de pensamento é uma condição que se produz nas sociedades de massa e uma das condições das origens do totalitarismo - e me pergunto se a prevalência do imaginário, tal como a vivemos, não é, de certa forma, uma condição totalitária. não que vivamos na mesma condição de um totalitarismo de estado próprio da alemanha nazista. esta não é a única formação totalitária possível. uma formação totalitária é uma formação em que as significações que participam do laço social estão tão fechadas que não há lugar para se começar algo novo, pois os cidadãos se vêem tão totalmente cercados, congelados e paralisados num discurso de significações estabelecidas que não há brecha para o rompimento desse outro sem falta. uma sociedade em que o imaginário prevalece, em que as formações imaginárias é que elaboram o real — esse real ao qual não temos acesso - é uma sociedade de certa forma totalitária, independentemente de qual seja a situação do governo, do estado, da polícia.

esta é a paralisia que estamos vivendo hoje, diante, inclusive, das notícias mais chocantes, dos fatos mais escandalosos — que nos incomodam, que nos angustiam, sim, mas que nos dão a impressão de que não há nada a fazer porque assim é. "É o que é" - eis uma formulação própria das formações imaginárias. "assim é." não estamos mais diante de um vir a ser, nem diante de um mundo em construção ou de um universo instável em que nossa vontade e nossa ação podem começar algo, dar início a algo, em que nosso diálogo pode produzir novos significados. estamos diante de um lugar que "é o que é", nenhuma nova informação nos mobiliza a pensar e, principalmente, nenhuma informação funciona para ensejar uma possibilidade de mudança.

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diante disso, toda passagem ao ato é uma passagem de pura destruição. diante desse muro de significações, desse muro do "é o que é", nada mais podemos fazer a não ser ou existir nele sendo em ato, ou destruí-lo de alguma forma violenta, já que não contamos com o pensamento e a reflexão para nos ajudar a modificar nada. a reflexão fica supérflua, e se isso acontece, diz hanna arendt, os homens ficam supérfluos. e se os homens ficam supérfluos a banalidade do mal se instaura. espero não fazer, com isto, um raciocínio aterrorizante — este é apenas um dos aspectos da sociedade em que nós vivemos, e tenho a impressão de que todas as formas de produção de diálogo e de pensamento não são meras formações reativas e sim estratégias de produção de novos furos nesse outro, a fim de desestabilizar sua consistência imaginária.

por fim, voltando ao artigo de contardo calligaris sobre essa compulsão de "se posso conceber, posso fazer", podemos agora concluir que a expressão pública de fantasias ditas inconfessáveis, como no exemplo daquele site de pedófilos, não tem o estatuto de um registro simbólico de idéias e pensamentos. elas já vêm na forma de ato, de imagem em palavra — algo assim como freud vai dizer que funcionam as palavras no sonho. elas já são realização de desejo, mas realização consentida pelo espaço público de uma sociedade que não pede nenhuma renúncia ao gozo. daí para se passar ao ato não há mais diferença — se você pode, você deve.

um outro exemplo muito claro disso é o funcionamento de nossas campanhas políticas, porque, independentemente do que um político diga, o efeito sobre o eleitor não passa pelo conteúdo das propostas, pela avaliação da qualidade política do que o candidato propõe. a linguagem publicitária se apossou de tal maneira da campanha política que, independentemente do que um político propuser para seu governo, o debate político já funciona segundo a lógica da realização de desejos. o eleitor não vota mais no candidato que expõe algumas idéias razoáveis, que apresenta problemas que talvez possam ser resolvidos; o eleitor vai votar no que nos faz gozar na hora, diante da imagem dele. no momento mesmo em que a imagem de um candidato se associa a imagens capazes de dar prazer ao eleitor-telespectador, por mais fantasiosas que sejam, por mais que o candidato minta, ele conquista o eleitor ao fazê-lo gozar diante das imagens de campanha, como se aquilo já fosse um desejo realizado, de modo que o eleitor vai votar na esperança de prolongar aquele gozo. talvez assim se explique também por que, seja qual for o candidato eleito, um mês depois está todo mundo furioso com ele. porque, acabada a campanha, acaba o gozo imaginário. e aí não há o que ele possa fazer para recuperar a imagem - coisa que tentará fazer, para infelicidade de todos nós, na próxima campanha.

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maria rita kehl - psicanalista, ensaísta, doutora em psicanálise pelo departamento de psicologia clínica da pontifícia universidade católica de são paulo, poeta. participante do grupo tver desde sua fundação, em 1998. autora de: a mínima diferença (ensaios), imago, 1996; processos primários (poesia), estação liberdade, 1996; deslocamentos do feminino (tese de doutoramento), imago, 1998. organizadora da coletânea a função fraterna (relume dumará, 2000).

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a tv públicalaurindo lalo leal filho

a televisão brasileira é herdeira do rádio em todos os sentidos. dele vieram a mão-de-obra pioneira, as fórmulas dos programas e o modelo institucional adotado. diferentemente dos estados unidos, onde a inspiração estava no cinema, ou da europa, onde o teatro era referência importante, aqui o rádio foi a matriz da televisão.

seus primeiros programas nada mais eram do que o rádio televisionado. o show de inauguração da tv tupi de são paulo, em 18 de setembro de 1950, é o melhor exemplo. foi um espetáculo de rádio realizado diante das câmeras, com um desfile de nomes consagrados: walter foster, lolita rodrigues, hebe camargo, lima duarte, dionísio de azevedo, flora geny, márcia real, wilma bentivegna, lia de aguiar, ivon cury, homero silva. a segunda emissora fundada em são paulo, a tv paulista, transmitia diariamente, na hora do almoço, o programa manoel de nóbrega, um sucesso dos auditórios da rádio nacional paulista. os comerciais eram lidos por um locutor que ficava muito vermelho ao falar e, por isso, era chamado pelos colegas de "o peru que fala". seu nome artístico: silvio santos.

improviso total, mas muita criatividade. sem modelos externos, a tv brasileira criou padrões e se consolidou como uma das mais importantes do mundo.

a raiz desse processo pode ser encontrada no discurso de assis chateaubriand pronunciado na solenidade de inauguração da tv tupi de são paulo. vale a pena ser lembrado:

"esse transmissor foi erguido com a prata da casa, isto é, com os recursos de publicidade que levantamos, sobre as pratas wolff e outras não menos maciças pratas da casa; a sul américa que é o que pode haver de bem brasileiro, as lãs sams, do moinho santista, arrancadas ao coiro das ovelhas do rio grande, e mais do que tudo isso, o guaraná champagne da antarctica, que é a bebida dos nossos selvagens. o cauim dos bugres do pantanal mato-grossense e de trechos do vale amazônico. atentai e verei mais fácil do que se pensa alcançar uma televisão: com prata wolff, lãs sams bem quentinhas, guaraná champagne borbulhante de bugre e tudo isso amarrado e seguro no sul américa, faz-se um bouquet de aço e pendura-se no alto da torre do banco do estado, um sinal da mais subversiva máquina de influenciar a opinião pública — uma máquina que dará asas à fantasia mais caprichosa e poderá

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juntar os grupos humanos mais afastados"1.o sociólogo renato ortiz considera esse discurso "uma bela peça do

surrealismo político latino-americano"2, reconhecendo que ele pode ser lido de várias formas. uma delas é a busca de patrocinadores para um veículo que ainda não tinha público, outra é a idéia da formação da nacionalidade brasileira por intermédio de uma "máquina subversiva". mas o mais importante é que a televisão brasileira surgia sem nenhum referencial. nem externo, já que é contemporânea das tvs européia e norte-americana, nem interno. como sua herança é o rádio, tudo está para ser feito em matéria de imagem. o resultado dessa abertura total é o nascimento de uma televisão única, que logo depois de sua fundação incorpora à herança radiofônica os avanços que já vinham sendo alcançados pelo teatro e pelo cinema brasileiros.

1. ortiz, renato. a moderna tradição brasileira. brasiliense, são paulo, 1988, p. 59. este autor retirou a citação de simÕes, inimá. tv tupi. rio de janeiro, funarte, s. d.

2. ortiz, renato, op. cit, p. 59.

nascem programas como o tv de vanguarda, o grande teatro tupi, o sítio do pica-pau amarelo. brecht, lorca, shakespeare e monteiro lobato estão na tela. as tvs tupi, rio e excelsior criam o padrão brasileiro de televisão.

não apenas os artistas e as fórmulas dos programas vêm do rádio, o modelo institucional tem a mesma origem. o discurso de assis chateaubriand passa longe de qualquer idéia de serviço público. sua preocupação principal é com os anunciantes, deixando claro que o rumo a ser seguido é o mesmo adotado pelo rádio. e não há como argumentar com um possível desconhecimento de alternativas. o reino unido, com a bbc (british broadcasting corporation), e vários outros países da europa ocidental implantavam na mesma época suas emissoras de televisão em moldes públicos, também inspirados no rádio europeu.

aqui, a idéia de um serviço público de radiodifusão não deveria ser algo tão excêntrico. afinal, nos anos 20, o modelo vislumbrado por roquette pinto, o pioneiro do rádio no brasil, era semelhante ao adotado na europa. a sua rádio sociedade do rio de janeiro deveria ser mantida pelos ouvintes, sem propaganda, como até hoje acontece com as emissoras de rádio e televisão da bbc de londres, que têm no ouvinte e no telespectador a fonte básica de financiamento. daí o nome "sociedade" ou "clube" presente em grande número de emissoras brasileiras. eram sociedades ou clubes de ouvintes, característica fundamental do modelo público.

a esse modelo correspondia uma programação que não poderia fazer concessões ao vulgar. ao que se sabe, sem terem tido qualquer contato, roquette pinto e o primeiro diretor-geral da bbc, o engenheiro escocês john

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reith, formulavam conceitos semelhantes sobre as finalidades do rádio. dizia o brasileiro, na inauguração da rádio sociedade do rio de janeiro, em 20 de abril de 1923: "todos os lares espalhados pelo imenso território do brasil receberão o conforto moral da ciência e da arte"3. na mesma época, reith afirmava que o objetivo do rádio era "levar para dentro do maior número possível de lares tudo o que de melhor existe em cada parte do esforço e realização humana"4.

a década de 1920, em todo o mundo, foi decisiva para a definição do modelo institucional adotado pelo rádio. nos estados unidos, o padrão comercial tornou-se hegemônico. no leste europeu, o estado assumia o controle do rádio e, na europa ocidental, a idéia do serviço público se consolidava. no brasil, os esforços de roquette pinto não conseguem se impor às perspectivas comerciais abertas pelo novo veículo. em pouco tempo, as "sociedades" e "clubes" de ouvintes desaparecem na prática, permanecendo apenas nos nomes das emissoras que fazem da propaganda a alma do negócio radiofônico. o brasil adota o modelo norte-americano, no qual o rádio é um empreendimento comercial como outro qualquer. a diferença entre os modelos europeu e norte-americano — e, por extensão, entre o europeu e o brasileiro - foi bem definida por sepstrup em 1986: "a propaganda nos estados unidos foi tratada como visitante de honra do broadcasting. na europa ela é uma visitante tolerada e recebe o mais humilde lugar na mesa"5.

3. sampaio, mário ferraz. história do rádio e da televisão no brasil e no mundo. rio de janeiro, achiamé, 1984, p. 113.

4. leal filho, laurindo. a. melhor tv do mundo, o modelo britânico de televisão. são paulo, summus, 1997, p. 24.

5. sepstrup, preben. the economic dilemma of television advertising. european journal of communication, 1 (4), p. 129.

a legislação brasileira que permite a introdução da propaganda no rádio é de 1932. em princípio, só 10% da programação poderia ser ocupada por anúncios. o presidente getúlio vargas

"apesar de sua tendência centralizadora, tinha que compor com as forças sociais existentes (neste caso o capital privado, que possuía interesses concretos no setor de radiodifusão). não deixa de ser sugestivo observar que a própria rádio nacional, encampada pelo governo vargas, praticamente funcionava nos moldes de uma empresa privada. seus programas (música popular, radioteatro, programas de auditório) em nada diferem dos outros levados ao ar pelas emissoras privadas. se é verdade que o estado utiliza e controla a nacional através de sua superintendência, quando se olha a porcentagem da programação dedicada aos chamados 'programas culturais'

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observa-se que eles não ultrapassam 4,5%. por outro lado, entre 1940 e 1946, o faturamento da emissora, graças à publicidade, é multiplicado por sete. ao que tudo indica, a acomodação dos interesses privados e estatais se realiza no seio de uma mesma instituição sem maiores problemas"6.

essa é a referência histórica mais significativa para que possamos entender o modelo brasileiro de radiodifusão. trata-se de uma articulação perfeita entre o privado e o estatal, com reflexos diretos nos programas levados ao ar. a idéia de uma programação de nível elevado sucumbe diante dos interesses comerciais, não apenas nas suas relações essencialmente econômicas, mas, como se vê no exemplo da nacional, também no âmbito político. ao estado não interessa uma programação diferenciada, nem mesmo na emissora por ele controlada. a programação sonhada por roquette pinto sobrevive apenas na rádio mec, sucessora da rádio sociedade do rio de janeiro, doada ao governo federal em 1936. uma das cláusulas da doação exigia a manutenção da qualidade cultural da programação e proibia a venda de espaços comerciais. foi o que permitiu manter viva a idéia da existência de emissoras livres das disputas por audiência, ainda que mantidas pelo estado e não apenas pelos ouvintes, como imaginava o seu fundador.

6. ortiz, renato, op. cit, p. 53.

o modelo adotado pela tv

É nesse quadro institucional, consolidado em relação ao rádio, que surge a televisão no brasil. não há, no início dos anos 50, nenhuma referência a qualquer modelo que não seja o comercial. ocorre aqui exatamente o oposto ao verificado no reino unido. lá, a referência dada pelo rádio para a televisão era o modelo público, praticado ao longo de quase 30 anos. o que se vai discutir, no início dos anos 50, é se a bbc deve ou não ter o monopólio da tv. quando, após longos debates dentro e fora do parlamento, chega-se à conclusão de que a concorrência é saudável, abre-se espaço para o surgimento de emissoras mantidas pela publicidade, desde que atuem sob estrito controle público.

por aqui, o modelo comercial adotado pela televisão corre solto, sem nenhuma outra alternativa, até o final dos anos 60, quando a tv já havia se consolidado como o mais importante instrumento da indústria cultural brasileira.

mas, como a qualidade da programação está sempre intrinsecamente ligada ao modelo institucional adotado, no final da década de 1960 começam a surgir críticas duras ao que é mostrado pela televisão comercial. surgem dois tipos de resposta: ameaça de censura aos programas de auditório e a

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criação, em são paulo, de uma emissora pública que apresentasse uma programação de melhor nível. os programas de auditório refreiam seus ímpetos, ao mesmo tempo que são glamourizados, na rede globo, com a implantação do chamado padrão globo de qualidade. a grita contra o baixo nível reflui, como acontece ciclicamente na história da televisão brasileira, e surge o primeiro modelo alternativo ao comercial, com a implantação da rádio e tv cultura de são paulo, emissoras da fundação padre anchieta.

isso ocorre 19 anos depois da inauguração da tv no brasil, em 15 de junho de 1969, e é saudado como um acontecimento capaz de arejar a programação da televisão brasileira. o jornal o estado de s. paulo do dia 3 de setembro de 1969 diz que

"um dos grandes problemas de ordem espiritual da população de são paulo — e não só da cidade mas de todo o estado — prendia-se até há pouco ao baixo nível cultural dos programas de televisão, o veículo que está irremediavelmente participando do estilo de vida da maioria da nossa população [...]. mas o advento da tv-2 teria de ser festejado pelos paulistanos [...] não apenas porque soube planejar, organizar e introduzir programas de alto nível tanto no campo da difusão artística e dos conhecimentos gerais, quanto no da própria educação formal e de caráter ilustrativo"7.

tentando reproduzir o modelo inglês de gestão, a fundação padre anchieta adotou como poder máximo um conselho curador formado por representantes de instituições públicas e privadas da sociedade paulista, inspirado no conselho de governadores da bbc de londres. com algumas limitações, se comparado ao seu inspirador, ainda assim o conselho curador da fundação padre anchieta é a principal barreira institucional às investidas do estado e da iniciativa privada sobre as emissoras.

7. citado por leal filho, laurindo. atrás das câmeras, relações entre cultura, listado e televisão. são paulo, summus, 1988, p. 22.

nessa tarefa, o conselho tem como instrumento legal o fato de a fundação ser uma instituição de direito privado, o que impede a ingerência dos poderes do estado na sua gestão. as limitações estão no fato de existirem no conselho cadeiras vitalícias e de haver uma presença excessiva de representantes de órgãos estaduais e municipais8.

8. o conselho curador da fundação padre anchieta é constituído por 55 membros, sendo três vitalícios, 21 eleitos pelo próprio conselho e 21 natos. estes últimos são o representante dos funcionários da fundação padre anchieta e mais os reitores da universidade de são paulo (usp), da pontifícia universidade católica de são paulo (puc-sp), da universidade mackenzie, da universidade estadual de campinas (unicamp) e da universidade estadual paulista (unesp); os presidentes da fundação de amparo à pesquisa do estado de são paulo (fapesp), da união brasileira de escritores, da união estadual dos estudantes (uee), do conselho estadual de educação, da associação mantenedora do ensino superior, da comissão de educação da assembléia legislativa, da comissão de cultura, ciência e tecnologia da assembléia legislativa, do conselho estadual de cultura e da sociedade brasileira para o progresso da

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ciência; os secretários estaduais da educação, da cultura e da fazenda e os secretários municipais de são paulo da educação e da cultura.

ao longo de sua história, a rádio e tv cultura atravessam fases difíceis, quando o estado, ainda que impedido legalmente, tenta interferir na programação gerando longas e desgastantes batalhas jurídicas. deve-se ressaltar que os momentos mais críticos podem ser localizados com clareza durante os governos estaduais nomeados pela ditadura. É quando se tenta fazer das emissoras públicas órgãos estatais. isso só não ocorre graças à ação destemida do curador de fundações do estado, que impede a ingerência oficial.

mas a independência de uma emissora pública não se apóia apenas na sua estrutura jurídico-institucional. ela é importante, mas só surte pleno efeito se complementada por uma total independência financeira, e isso a fundação padre anchieta nunca alcançou. com praticamente a totalidade dos seus recursos provenientes do orçamento do estado de são paulo, a instituição acabava ficando à mercê dos governantes de turno. muitas vezes a liberação de recursos durante a ditadura esteve condicionada à

propaganda oficial presente nos programas de entretenimento e, principalmente, no telejornalismo. a veiculação de matérias obrigatórias, impostas pelo governador nomeado, era uma constante na programação.

se no plano institucional seguiu-se o exemplo da bbc, no financiamento aquele modelo foi ignorado. lá, a independência financeira diante do estado e da propaganda é dada pelo pagamento das taxas anuais feitas pelos usuários do serviço de radiodifusão. aqui, isso não foi cogitado e apenas na segunda metade dos anos 90 o governo do estado, querendo aliviar as pressões sobre seu orçamento, propôs que a manutenção da fundação padre anchieta passasse a ser feita mediante cobrança de um adicional nas contas de energia elétrica. foi a primeira vez que surgiu uma proposta concreta para retirar a televisão pública paulista da dependência do tesouro estadual. recebida com críticas e ceticismo pela imprensa, a proposta não prosperou.

o governo federal e grande parte dos demais estados brasileiros não cogitam em transformar suas emissoras estatais em públicas. todas são instituições de direito público, o que permite forte ingerência política. algumas dessas emissoras não passam de serviços oficiais de informação dos governos estaduais a que estão subordinadas. no caso da tve do rio de janeiro, criou-se, já nos anos 90, a figura da organização social. trata-se de uma forma de gestão que busca tornar algumas instituições estatais mais ágeis do ponto de vista administrativo, livrando-as das amarras do serviço público. o governo federal transferiu a gestão da tv educativa para a nova

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organização social e firmou com ela um contrato de gestão. com isso, passou a ser possível operar as emissoras como se fossem entidades privadas.

do ponto de vista administrativo, houve um ganho, sem dúvida. mas pelo lado da independência em relação ao estado pouco se caminhou. como quem contrata a organização social é o governo federal, este sente-se no direito de ditar as normas da programação. o melhor exemplo para distinguir a emissora estatal da pública foi a censura imposta pelo secretário de comunicação do governo federal, andréa matarazzo, à entrevista concedida pelo líder do mst joão pedro stedile, na primeira semana de maio de 2000. ela foi veiculada pela tv cultura de são paulo e impedida de ir ao ar pelas tvs educativas do rio e nacional de brasília. o sociólogo emir sader, a propósito desse fato, afirmou que

"a tv cultura é a melhor realização democrática e plural da grande mídia brasileira [...]. enquanto isso, a tve e a tv nacional são exemplos claros de tvs estatais: o presidente da república se submete à sua voraz política de alianças, nomeando e destituindo diretores conforme os votos de que precisa no congresso nacional".

e, numa referência às dificuldades de se entender no brasil as diferenças entre público e estatal, diz:

"o pensamento único nos quer aprisionar na alternativa estatal/privado, com o primeiro representando o burocrático, o esbanjador, o que arrecada mal e gasta pior os impostos, o arbitrário, para fazer do segundo, por exclusão, o espaço da liberdade, do desejo, da criatividade, da subjetividade etc. tentam abolir um terceiro elemento - o público. esse responde a iniciativas que atendem ao conjunto da cidadania, com recursos estatais, mas levado a cabo pela cidadania organizada" 9.

9. sader, emir. tv estatal e tv pública. correio brasiliense, brasília, 14 de maio de 2000.

apesar dessas dificuldades a idéia da televisão pública obteve alguns avanços no brasil. aos dois primeiros momentos citados (o projeto de roquette pinto para o rádio e a criação da fundação padre anchieta em são paulo), somam-se o debate na constituinte e o seu resultado: o artigo 223. ao fazer referência explícita ao modelo público, o texto diz que "compete ao poder executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal"10.

10. constituiÇÃo da república federativa do brasil. brasília, senado federal, 1988, p. 145.

passados 12 anos da promulgação da carta, esse e tantos outros artigos ainda não se tornaram realidade. mas, ainda assim, não podem deixar de

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servir como referência fundamental para o debate que se trava em torno do aprofundamento do processo democrático no país. a tv pública está longe de ser realmente complementar à privada e à estatal, uma vez que está restrita até hoje à fundação padre anchieta de são paulo, como já se viu. no entanto, algumas iniciativas vislumbram, pelo menos, a possibilidade de esse tema permanecer em debate e não sofrer tão longos lapsos de esquecimento, como os 46 anos que separaram a inauguração da rádio sociedade do rio de janeiro da primeira transmissão da tv cultura de são paulo e os 20 anos de intervalo posterior, verificado até a promulgação da constituição de 1988.

a fundação da associação brasileira de emissoras públicas, educativas e culturais (abepec) e a criação da rede pública de televisão, em 1999, são significativos para a questão da tv pública. embora reúnam majoritariamente emissoras estatais, só o fato de se pretenderem públicas já é importante. no interior da abepec há espaço para discussões como a proposta por este artigo, o que já é um grande avanço. e as emissoras vinculadas aos governos estaduais, ao firmarem compromissos de produção e veiculação de programas em conjunto com suas congêneres de todo o país, passam a criar vínculos nacionais que vão além dos compromissos básicos existentes com os respectivos governos estaduais, o que pode representar uma forma de contrapressão política.

ao mesmo tempo, o congresso nacional demonstra sensibilidade para a questão ao criar a frente parlamentar de defesa da tv pública, com o significativo número de 245 assinaturas de deputados e senadores. soma-se a isso o debate ainda tímido, mas nem por isso menos importante, aberto por alguns jornais e revistas sobre a questão. além do já mencionado artigo de emir sader, cabe ressaltar o texto publicado pela folha de s. paulo, assinado pelo presidente da fundação padre anchieta, em que o conceito de televisão pública sai do restrito círculo acadêmico e ganha a grande imprensa.

sob o título "tv pública no brasil", diz cunha lima que "felizmente entre a tv comercial e a estatal surge o mais instigante veículo de comunicação eletrônica de massa: a tv pública, nem comercial nem governamental". É esse modelo institucional de televisão que possibilita, em todo o mundo, a geração de programas não contaminados pelo comércio ou por ingerências políticas. nesse sentido, o presidente da fundação padre anchieta afirma que a tv pública

"busca ser uma alternativa para o cidadão. e busca isso por alguns caminhos já aceitos pela embrionária rede de televisão pública: produzir uma programação educativa que não pretende substituir a escola, mas complementar a educação do homem brasileiro para a cidadania; divulgar cultura, mas não apenas os valores consagrados no mercado comercial da

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arte; implantar um jornalismo [...] que não faça da notícia um mero espetáculo, mas um retrato compreensível da realidade, que transforme formatos de captação, edição e divulgação de notícias, em que os repórteres não sejam meros prepostos da pauta compulsória e os apresentadores não pareçam ventríloquos de um moralismo farisaico de classe média"11.

11. lima, jorge da cunha. a tv pública no brasil. folha de s. paulo, são paulo, 21 de julho de 2000, p. 3.

ao completar 50 anos de vida no brasil, a televisão começa a descobrir seu lado público. a avidez de lucro aberta pela grande possibilidade comercial do veículo, a conivência dos vários governos com o modelo hegemônico privado e a apatia da população diante do que sempre foi oferecido pela tv inibiram a busca de alternativas. hoje, diante de um novo e prolongado surto de queda de qualidade da programação exibida pela tv comercial, a discussão em torno do modelo público se amplia, e talvez seja esse o fato mais importante a se comemorar no cinqüentenário da televisão brasileira.

laurindo lalo leal filho — sociólogo e jornalista, professor livre-docente da escola de comunicações e artes da usp (eca-usp) e autor de a. melhor tv do mundo, o modelo britânico de televisão (summus, 1997), entre outros livros.

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a lei da selvavera de oliveira nusdeo lopes

inegavelmente, a televisão brasileira atingiu um padrão de excelência técnica em seus 50 anos de existência que a coloca entre as primeiras do mundo. no entanto, infelizmente, a mesma análise não pode ser feita no que se refere aos aspectos jurídico-legais relativos à regulamentação do exercício da atividade televisiva. entre nós, a legislação não contribui para formar uma mentalidade, tanto do público como dos concessionários de televisão, baseada no direito à informação do primeiro e na obrigação dos segundos de prestar um serviço de qualidade, respeitando os valores éticos e sociais e não apenas atendendo aos interesses dos anunciantes.

comparada à legislação de outros países, a brasileira é de um laconismo que reflete com perfeição a falta de consciência da relevância do meio televisivo no mundo contemporâneo e, conseqüentemente, a responsabilidade social subjacente ao exercício dessa atividade.

a questão deve ser enfocada levando-se em conta, primeiramente, o fato de não se tratar de uma atividade primordialmente privada. pelo contrário, trata-se de um serviço público ou de utilidade pública por excelência, dado o seu papel na informação, na educação, no lazer e na formação cultural da sociedade. o caráter eminentemente público dessa atividade é reforçado pelo fato de ser necessária a concessão pública para operar as ondas de um canal de televisão — uma vez que o espectro eletromagnético pelo qual trafegam as ondas de rádio, televisão e outros meios de comunicação (exceto os por cabo) não é ilimitado. se o estado não disciplinasse, não exercesse e não fiscalizasse a concessão de canais de rádio e tv, a atividade seria impossível.

no brasil, porém, o estado se limita ao seu papel de conceder canais. fora isso, o que impera, desde sempre, é a total falta de regulamentação da matéria, talvez por medo de que qualquer discussão sobre o assunto possa dar a impressão de censura e obscurantismo. É preciso ressaltar que tal incômodo é menos verdadeiro do que parece e tem sido utilizado como perigoso argumento contra qualquer forma de avanço no controle democrático sobre os meios de comunicação de massa. essa omissão se explica pelo objetivo de governantes de ganhar a simpatia dos empresários do setor. em nada serve aos interesses sociais.

um breve estudo sobre a legislação de outros países, todos de matiz

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desenvolvido e democrático, demonstra como é possível facilmente conciliar a mais ampla liberdade de informação e artística com o exercício responsável dos operadores de canais de televisão. são várias as diferenças entre os regulamentos nacionais e estrangeiros sobre a matéria. em primeiro lugar, tome-se o modo de escolha do concessionário. na grande maioria dos países, há um procedimento público de escolha, com critérios previamente fixados, amplamente divulgados e conhecidos por todos os possíveis interessados. esses critérios privilegiam a competição entre os interessados, que devem apresentar propostas de programação e se comprometer com elas.

os critérios norte-americanos

tomemos como exemplo a situação dos estados unidos. lá, todo o setor de comunicações é regulamentado pela fcc, federal communications comission, criada em 1934. trata-se de uma agência federal ligada ao congresso nacional, mas com independência funcional em relação a ele. note-se a ironia: enquanto comemoramos 50 anos de televisão no brasil, os norte-americanos já contam 66 anos da regulamentação eficaz dos meios de comunicação.

para selecionar o concessionário, se houver mais de um interessado, a fcc efetua uma comparação para determinar qual deles melhor servirá ao interesse público, levando em conta — basicamente - dois critérios: qual deles oferece o melhor serviço e como a escolha de um dos candidatos poderá garantir a máxima difusão do controle dos meios de comunicação de massa. no primeiro aspecto, alguns fatores são levados em conta: a participação integral do proprietário nas operações da estação (integração entre a propriedade e a gerência), a programação proposta, o passado na área de radiodifusão, o uso eficiente da freqüência, entre outros. quanto à integração entre a propriedade e a gerência, o propósito da fcc é favorecer o localismo, ou seja, se o proprietário e gerente participa da comunidade à qual se destina sua emissora, a percepção das necessidades da população local será mais eficiente, de forma a possibilitar melhor prestação do serviço àquela população. esta busca reflete-se também em outros aspectos considerados pela fcc, como a participação do interessado em atividades que demonstrem o conhecimento dos interesses da comunidade.

outro valor básico da fcc é a garantia da diversidade. muitas vezes foi selecionada uma proposta que, em princípio, poderia não parecer a melhor entre as opções. porém, naquela determinada localidade, a escolha visa

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assegurar mais diversidade nas programações postas à disposição do público, ampliando, assim, as opções de informação e de programação cultural. também para favorecer a diversidade, desde os anos 70, o órgão norte-americano vem adotando medidas para incrementar o papel das minorias na área de radiodifusão.

a vida longa das concessões nacionais

a inglaterra possui órgãos de controle da radiodifusão, cabendo à independent television comission proceder às licitações para escolha do concessionário. recentemente, foi concluído o procedimento de escolha do terceiro canal privado, após anos de desenrolar do processo, o qual evoluiu em várias fases, inclusive com publicação das propostas para que o público pudesse acompanhar cada lance. a título de comparação, lembremos que, no brasil, apenas a partir de 1997 as escolhas passaram a ser feitas por meio de licitação. antes vigorava a mais completa ausência de critérios para a escolha do concessionário, possibilitando que fosse feita de forma totalmente arbitrária, segundo estrita conveniência pessoal dos governantes.

no entanto, esta salutar medida chegou atrasada e não é suficiente, por si só, para resolver os problemas existentes no brasil. isso porque a quase totalidade dos possíveis canais (e, portanto, do espaço destinado à televisão no espectro eletromagnético) já se encontra em operação e de acordo com os procedimentos de escolha anteriores. além disso, tais concessões apenas podem ser cassadas ou não-renovadas diante de um rol de exigências absurdamente rígidas, também não verificáveis em praticamente nenhum outro país, atribuindo garantias muito maiores aos concessionários do que à sociedade.

a constituição federal de 1988 (artigo 223, § 5a) fixou um prazo de concessão de dez anos para rádio e 15 para televisão (!). além disso, para a não-renovação da concessão, são exigidos votos de dois quintos do congresso nacional em votação nominal. tal exigência, aliada ao prazo excessivamente longo das concessões nacionais, vai contra o sistema normal de concessões do mundo democrático, em que a fiscalização constante do exercício da atividade por parte do concessionário deve dar a base para a decisão de renovação do contrato. o modelo brasileiro não estimula a avaliação freqüente do serviço prestado pela empresa e dificulta um debate aberto no momento da renovação. o resultado é que as concessões existentes ficam praticamente congeladas, gerando quase que direitos vitalícios aos

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concessionários da área de radiodifusão. além disso, a exigência de votação nominal cria um fator evidente de constrangimento aos congressistas, na medida em que poderão estar contrariando interesses de empresas ou pessoas extremamente poderosas, capazes de arruinar a reputação de algum desafeto em questão de segundos. (para complicar ainda mais o cenário, há um outro fator: uma parcela ponderável dos congressistas é constituída de detentores de ao menos uma concessão de rádio ou televisão. legislam — ou não legislam — em causa própria.) na inglaterra, como em vários outros países, é diferente. exige-se para a renovação que as obrigações assumidas por ocasião da concessão inicial tenham sido observadas, senão integralmente, ao menos de forma satisfatória. nos estados unidos, o prazo para as concessões é de oito anos, tanto para rádio como para televisão, isso depois de 1996, pois até então era de apenas sete anos para rádio e meros cinco anos para televisão. ali, a não-renovação da licença, apesar de não ser a regra, é uma hipótese real, se o concessionário não prestou os serviços de forma adequada ou se violou leis e regras aplicáveis. há levantamentos demonstrando a cassação ou não-renovação em 64 casos entre 1970 e 1978. as causas mais comuns são declarações falsas perante a fcc, perda do controle sobre o staff da emissora, discriminação racial em processo de seleção de funcionários e, até mesmo, raramente, problemas com o conteúdo das mensagens e da programação. a existência de material obsceno na programação ou de matérias expressamente proibidas pode ocasionar a não-renovação ou cassação. também são consideradas graves a falta de espaço para pontos de vista diversos em questões raciais e a habitual emissão de ataques a minorias.

no brasil, registros de cassação ou não-renovação ocorreram apenas no período ditatorial, em função de considerações tanto morais como políticas - que, porém, eram de fundo obviamente autoritário e não podem servir de modelo para um projeto democrático para os meios de comunicação.

outro aspecto em que o brasil está bastante atrasado é o da participação do cidadão nos processos de concessão de canais de rádio e tv. nos estados unidos, o público pode participar ativamente de todas as fases, inclusive na renovação de licenças por meio das chamadas petitions to deny ("petições para negar", numa tradução ao pé da letra). ou seja, um grupo de cidadãos pode recorrer à fcc expondo detalhadamente os motivos pelos quais entende que uma licença não deve ser renovada, e a fcc é obrigada a analisar o pedido e suas razões. também são usuais as public hearings, audiências públicas, para participação do público em geral e até mesmo a constituição de sociedades civis para lidar exatamente com questões ligadas à mídia. possibilidades como essas, no brasil, ainda estão em fase absolutamente

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inaugural. isso na melhor das hipóteses.no que se refere à prestação do serviço, é possível verificar que a grande

maioria dos países faz exigências para a concessão inicial, além de ordenar a observância de regras e leis gerais aplicáveis. havendo descumprimento das normas, cabem as penalidades, algumas bastante severas.

vigiando o conteúdo

a alemanha impõe o respeito ao pluralismo ideológico aos operadores de rádio e televisão. assegura aos diversos grupos políticos, sejam agrupamentos ideológicos, sejam sindicatos, o chamado direito de antena, ou seja, uma cota do horário de transmissão proporcional a sua dimensão e a sua importância. na área privada, há limites rígidos para a publicidade, que não pode ultrapassar 20% de cada hora transmitida. além disso, é vedada a inserção de mensagens publicitárias durante programas religiosos ou dirigidos ao público infantil.

na frança, existem limites semelhantes. toda a área é regulamentada pelo conselho superior do audiovisual, o csa, ao qual cabe assegurar a igualdade de tratamento, a independência e a imparcialidade no setor, o pluralismo, a liberdade de concorrência, a vigilância sobre a qualidade dos programas e o desenvolvimento de uma cultura audiovisual francesa. há relatos sobre a atuação do csa nas eleições francesas dando conta de que o órgão contrata estagiários para monitorar todas as transmissões e verificar se está efetivamente ocorrendo igualdade de tratamento para os vários candidatos.

com relação ao eventual não-cumprimento das obrigações legais ou contratuais (que constam do instrumento da concessão), o csa já impôs multa no valor de 1 milhão de dólares a um canal de televisão que exibiu cenas de violência sexual antes do horário permitido e impôs a obrigação de aplicação de verba suplementar na aquisição de programas originais franceses a um canal que repetidamente não observava as cotas mínimas de exibição de produtos audiovisuais nacionais em sua programação.

na inglaterra, existem dois órgãos que atuam na questão da programação: a broadcasting complaints comission e o broadcasting standard council. a primeira é competente para o recebimento e encaminhamento das queixas apresentadas pela audiência com relação aos programas transmitidos e o segundo tem autoridade naquilo que se refere a violência, obscenidade, ética etc.

nos estados unidos, a fcc também possui poderes para impor penalidades

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que vão desde a advertência até a cassação da licença, sendo a mais comum delas a multa. há casos de multas por divulgação de programas com conteúdo indecente e obsceno que chegaram à cifra de 1 milhão de dólares.

limites para a propriedade

finalmente, outro aspecto que merece ser considerado no estudo comparativo é o da proibição de concentração de propriedade de canais de rádio e de televisão. praticamente todos os países possuem regras para vedar a existência de monopólios ou oligopólios no setor. com isso, visam garantir a salutar convivência de diversos pontos de vista e opiniões e a multiplicidade de informação como pilares de uma sociedade democrática.

nos estados unidos, um dos países mais liberais e mais preocupados com a livre concorrência, existem basicamente três políticas diferentes efetuadas pela fcc para garantir a multiplicidade e a diversidade nos meios de comunicação. a primeira delas, já mencionada, é o favorecimento ao localismo nas concessões. a segunda diz respeito aos limites de propriedade ou controle de canais que uma pessoa ou grupo pode ter em todo o território do país ou em uma determinada localidade. existe uma série de vedações ao número total de emissoras de um mesmo serviço ou de serviços de várias espécies (rádios am, fm e televisão) que se pode ter tanto numa determinada área como em todo o país. a terceira política refere-se aos controles sobre o funcionamento das redes de televisão, com regras que disciplinam desde o relacionamento com as afiliadas até a distribuição de programas das redes e de terceiros, passando pelo tempo de exibição máximo de programação da rede permitido durante o chamado horário nobre. a fcc impediu uma série de abusos que eram impostos às afiliadas, como a vinculação exclusiva, e garantiu direitos como opção de horário de programação para as redes, direito de rejeitar programas etc.

e importante ressaltar que a atuação da fcc está sujeita ao controle do judiciário, caso haja algum tipo de ação de quem se sinta prejudicado.

mas a atuação do judiciário se dá após as medidas da fcc, e não o contrário. várias emissoras ou mesmo sociedades civis constituídas para atuar na área de defesa dos cidadãos ou de grupos de minoria no setor efetivamente recorrem com freqüência ao judiciário e tais questões, que no brasil nem sequer são de fato discutidas pela sociedade, são analisadas até mesmo pela suprema corte daquele país. o judiciário analisa basicamente se a fcc atuou dentro de sua competência, observando o procedimento devido, e

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se não houve afronta à constituição ou à lei em alguma decisão, sem entrar no mérito da análise feita pelo órgão. por exemplo: quando se discutiu se a fcc poderia também atuar contra a indecência na programação de rádio e televisão, a suprema corte não analisou se um determinado programa foi efetivamente indecente, mas se a atuação da fcc era legítima em face da constituição e das leis aplicáveis.

a legislação brasileira

feitas essas observações para servir de referência ao caso brasileiro, passemos à análise da nossa legislação. a constituição de 1988, embora fruto de um processo razoavelmente democrático, não trouxe avanços significativos na área da radiodifusão, além de ter procedido a vários retrocessos, garantindo privilégios imensos aos concessionários (é importante usar sempre esse termo, já que os canais de televisão não são propriedade privada de ninguém; apenas as empresas que os operam são propriedade privada).

por outro lado, a legislação ordinária referente à matéria é, na maior parte, antiquada - o código brasileiro de telecomunicações (cbt) é de 1962 (lei 4.117/62) e as outras principais leis são de 1963 (decreto 52.795/ 63) e de 1967 (decreto-lei 236/67) -, com grande inspiração autoritária e pouca consciência relativa às obrigações inerentes à prestação do serviço de radiodifusão como um serviço público, para o público. pode-se dizer, sem muito medo de errar, que tais leis oscilam entre o autoritarismo descarado e o paternalismo arcaico, de forma que não se garantem à sociedade a qualidade do serviço prestado e os seus direitos de ser bem informada, de ter acesso a uma ampla diversidade cultural. não se garantem também o espaço reservado para programas educativos e a observância a princípios éticos e sociais na prestação do serviço. alguns avanços eventualmente existentes nos dois primeiros diplomas legais citados acabaram sendo mutilados pelo decreto 236/67, já da época ditatorial1.

1. as exigências relativas à prestação do serviço estão contidas no artigo 38 do cbt: subordinação dos serviços de informação, divertimento, propaganda e publicidade às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão, visando aos superiores interesses do país; transmissão da voz do brasil; criação de condições para evitar a prática das infrações previstas no próprio cbt; impedimento de uma mesma pessoa em participar da direção de mais de uma concessionária ou permissionária do mesmo tipo de serviço, na mesma localidade; destinação de 5% do tempo para serviço noticioso. além disso, o decreto-lei 236 introduziu a exigência de transmissão semanal de pelo menos cinco horas de programação educativa obrigatoriamente entre 7 e 17 horas. já as infrações estão previstas no artigo 53 do cbt: incitar a desobediência às leis ou decisões judiciais; divulgar segredos de estado ou assuntos que prejudiquem a defesa nacional; ultrajar a honra nacional; fazer propaganda de guerra ou de processos de subversão da

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ordem política e social; promover discriminação de classe, cor, raça ou religião; insuflar a rebeldia ou a indisciplina nas forças armadas ou nas organizações de segurança pública; comprometer as relações internacionais do país; ofender a moral familiar, pública ou os bons costumes; caluniar, injuriar ou difamar os poderes legislativo, executivo ou judiciário; veicular notícias falsas, com perigo para a ordem pública, econômica e social; colaborar na prática de rebeldia, desordens ou manifestações proibidas.

a censura privatizadae o exercício da propriedade cruzada

em nível constitucional, a matéria é tratada especificamente no capítulo v do título viii - da comunicação social. em primeiro lugar, no artigo 220, há a garantia absolutamente necessária a um verdadeiro estado democrático de ser vedada a censura de qualquer natureza, em qualquer nível e em qualquer meio.

neste aspecto, cabe ponderar o que se pode denominar de censura privada. É patente que uma das primeiras conquistas democráticas deve ser a vedação de censura estatal a qualquer meio de comunicação. porém, a forma como foi desenvolvido o setor de comunicação de massa no país, majoritariamente por grandes organizações empresariais do setor privado, com toda a lógica a ele inerente, conduz ao problema da censura exercida em nível privado, ou seja, aquela levada a efeito pelos próprios detentores de determinado meio de comunicação que, em função de interesses políticos, empresariais ou mesmo religiosos, obstrui o livre fluxo de informações, opiniões e interpretações.

por isso muitos países garantem o chamado direito de antena, ou seja, o direito assegurado a determinados grupos políticos ou sociais relevantes de utilizar por algum período os canais de radiodifusão para expressar suas idéias, pois a exigência de grandes somas de capital para o funcionamento de empresas ligadas ao setor impede que a maioria deles possa exercer a atividade ou mesmo dispor de condições econômicas para custear a eventual utilização por alguma fração de tempo. e o caso de espanha, alemanha, portugal, holanda, frança, entre outros. além disso, também é comum observar-se a exigência legal da mais ampla pluralidade no caso de matérias controvertidas, garantindo que as mais diversas opiniões existentes sobre determinado assunto encontrem oportunidade para ser divulgadas.

não se pode esquecer que o debate político-social na atualidade é feito quase que exclusivamente por intermédio dos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão. e necessária a criação de mecanismos hábeis para garantir que o debate seja efetivo, de forma a permitir à

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sociedade o amplo conhecimento dos mais variados pontos de vista existentes, proporcionando a cada um as condições informativas para a formação livre de sua convicção, daí advindo a liberdade de consciência.

relacionado com esse ponto, a constituição traz em seu artigo 220, § 5.o, a vedação de existência de monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação de massa, exatamente para permitir que a informação e a formação intelectual e cultural não sejam exercidas por um ou por poucos grupos detentores do capital necessário. tal disposição ainda não foi objeto da devida regulamentação, permanecendo letra morta até hoje.

apesar de existirem pálidas tentativas de proibir a excessiva acumulação de propriedade dos meios de radiodifusão no decreto-lei 236/67, as limitações não são observadas em matéria de contratos de afiliação e retransmissão. tampouco existe no brasil qualquer regra impeditiva da chamada propriedade cruzada de meios de comunicação, ou seja, de veículos de diferente natureza, como, por exemplo, mídia impressa e meios de radiodifusão numa mesma área geográfica, tal como ocorre nos estados unidos e na itália.

outro dispositivo constitucional relacionado aos mencionados acima é o artigo 223, que estabelece o princípio da complementaridade dos sistemas público, privado e estatal para a radiodifusão, ao qual foi conferido idêntico destino do anterior, ou seja, a falta de regulamentação. o resultado é que, na prática, as emissoras de rádio e televisão permanecem majoritariamente propriedade de empresas privadas.

É verdade que a lei de televisão a cabo (lei 8.977/95) institui a obrigatoriedade de disponibilização para o público de alguns canais gratuitos, tais como os do legislativo, comunitários, universitários e outros. porém, é necessário que todo o sistema seja permeado pelo princípio da complementaridade, com a garantia de que algumas freqüências de televisão aberta sejam operadas por entidades públicas e estatais.

com relação aos princípios a serem observados pelas emissoras na programação, propriamente, o artigo 221 da constituição determina: preferência para finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. tal artigo, porém, assim como os anteriores, carece de regulamentação. não há praticamente nada que implemente exigências concretas a serem observadas pelos concessionários e menos ainda qualquer tipo de punição para o caso de não cumprimento.

na prática, as emissoras atuam segundo seu próprio e peculiar interesse,

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preocupando-se apenas com os índices de audiência de forma a garantir um melhor faturamento publicitário. mesmo a exigência existente no decreto-lei 236/67 de transmissão de pelo menos cinco horas semanais de programação educativa acaba ficando à mercê do concessionário, que decide segundo seu entendimento o que é programa educativo. ressalte-se a necessidade de uma urgente regulamentação quanto à definição de programas educativos, pois tem sido comum a aplicação desse conceito a meros programas de entretenimento.

as obrigações contidas no cbt e nos decretos citados não refletem uma profunda preocupação com a utilização dos meios de comunicação de forma democrática, apta a garantir o livre fluxo de informações e opiniões, ampla diversidade cultural e direito de proteção da sociedade contra eventuais abusos cometidos pelas emissoras, tanto do ponto de vista ético-moral como do político-social.

uma camisa-de-força protege as empresas

um dos principais embaraços à instauração de uma verdadeira política pública de comunicação social, voltada ao atendimento dos requisitos democráticos da comunicação, é a norma contida no artigo 223, § 4.º. segundo ela, o cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo, depende de decisão judicial.

além de uma série de imprecisões técnicas do ponto de vista jurídico (por exemplo, que tipo de decisão judicial: liminar ou definitiva?), a regra significa uma verdadeira camisa-de-força para o poder público, garantindo muito mais os interesses dos concessionários que os da sociedade, na medida em que praticamente congela as concessões existentes, não permitindo uma constante avaliação do desempenho do emissor e a imposição da mais grave das sanções possíveis numa concessão, que é exatamente a sua cassação.

o sistema de concessões naturalmente inclui a constante fiscalização do serviço prestado pelo órgão concedente (no caso, o governo federal), com o inerente poder de punir diante de condutas irregulares dos concessionários, evidentemente observando-se a necessária graduação das punições de acordo com a gravidade da prática. pode-se argumentar que tal norma visa à proteção dos concessionários contra decisões arbitrárias dos responsáveis pelo sistema, tomadas por motivos puramente político-ideológicos. o argumento, todavia, é frágil. o poder público somente poderia cassar a concessão demonstrando inequivocamente, após um amplo processo

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administrativo com total garantia de ampla defesa (como de resto em qualquer processo administrativo, ainda mais de natureza sancionatória), que a emissora não está cumprindo adequadamente o serviço ou, pior, está utilizando a concessão para fins particulares ou até mesmo ilícitos, com inegáveis prejuízos para toda a sociedade. isso sem falar na possibilidade de eventual cassação ser aplicada após uma série de outras penalidades mais leves já terem sido impostas.

nos países mais democráticos sempre há um órgão regulador, com maior ou menor vinculação estatal, dotado dos necessários poderes fiscalizatórios sobre as concessões de rádio e televisão, inclusive com poderes para suspensão e cassação em casos-limite. basta que a legislação preveja de forma clara as sanções aplicáveis em caso de descumprimento pelo concessionário das obrigações assumidas e das leis existentes, bem como a sua gradação, de forma a impedir que pequenas infrações possam servir de pretexto para a cassação ilegítima pelo detentor de tal poder.

de outro lado, ao impor ao poder público a obrigação de recorrer ao judiciário para reaver um serviço que, em última análise, é seu (apenas sua execução foi concedida ao particular), está-se permitindo que o emissor se beneficie de sua má conduta, inclusive para formar unilateralmente a opinião pública tanto contra a decisão do órgão público como para influenciar o judiciário, sem mencionar o absurdo de conceder tal poder a uma pessoa, o juiz.

deve-se considerar, por último, que há maneiras de instituir este controle de forma que ele seja o mais democrático possível, por meio, por exemplo, de um órgão de fiscalização formado por diversos setores da sociedade e representantes de todos os poderes, impedindo que um único segmento determine toda a política de comunicação de massa do país.

em tese, este órgão foi previsto pelo artigo 224 da constituição de 1988, o conselho de comunicação social. contudo, a lei que efetivamente o criou — lei 8.389/91 - atribuiu-lhe competências bastante tímidas: emitir pareceres, estudos e recomendações sobre as consultas que lhe forem enviadas pelo congresso, sem qualquer atribuição normativa ou decisória. funciona apenas como auxiliar das decisões do congresso sobre as matérias relativas a comunicação social. ou seja, a participação da sociedade supostamente ensejada pelo conselho restou frustrada. as atribuições do órgão, além de restritas, são facultativas. logo, não é de surpreender que até hoje, quase dez anos após sua criação, o conselho nunca tenha efetivamente saído do papel.

da análise de toda a legislação nacional em comparação com várias outras, percebe-se nitidamente o atraso do país na matéria. não há

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efetividade no tocante ao controle do monopólio e do oligopólio no setor, não se implementaram as exigências de programação contidas na constituição, não há discussão sobre formas de conter eventuais abusos cometidos pelas emissoras. enfim, no que diz respeito à nossa legislação, há pouco o que comemorar no cinqüentenário da televisão. não há controle do conteúdo do serviço prestado, não há participação da sociedade nos assuntos relacionados ao tema e, acima de tudo, não há conscientização de que não se trata de um serviço meramente privado, mas de real serviço público, exercido para a sociedade, e não para enriquecimento ou proveito dos concessionários.

vera de oliveira nusdeo lopes - mestre em direito pela universidade de são paulo (usp), procuradora do estado de são paulo e jornalista. integrante do grupo tver.

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a democratização dos meios de comunicação de massa

fábio konder comparato

"um governo popular, sem informação popular, é um prólogo àfarsa, à tragédia, ou a ambas as coisas."james madison

poder e legitimidade

uma das grandes verdades postas em foco pela reflexão histórica e política dos últimos 200 anos é que o exercício estável do poder social, em qualquer de suas modalidades — política, econômica, religiosa, intelectual —, depende necessariamente de sua aceitação voluntária por parte das pessoas sobre as quais ele se exerce.

não basta, com efeito, que um grupo social disponha dos chamados recursos de poder— por exemplo, a força militar, a propriedade territorial ou o controle empresarial — para que lhe esteja assegurada, para sempre, a estabilidade de sua posição de mando. não se há de esquecer que toda relação de poder, pela sua própria natureza, é bilateral: se alguém pode mandar, é porque outrem está pronto a obedecer. tirante o caso da coação irresistível, a obediência representa sempre uma manifestação livre e racional de vontade. até mesmo a coação irresistível é uma situação precária e instável. o escravo, ou o prisioneiro de campo de concentração, não obedece mecanicamente às ordens do senhor ou comandante, mas dobra-se às injunções da força bruta, somente enquanto não encontra uma falha no sistema de cativeiro por meio da qual possa recobrar a liberdade.

É por essa razão fundamental que os detentores de poder, desde sempre e em qualquer contexto social, esforçam-se por obter a submissão voluntária e pacífica, se não convicta, de seus subordinados; em outras palavras, buscam o reconhecimento social de sua legitimidade.

a noção de legitimidade, como justificação da situação de poder, foi explicada por talleyrand em suas memórias1, a propósito da restauração da

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dinastia bourbon no trono da frança, após o interregno bonapartista. para o grande diplomata, ela se traduz pelo consentimento dado a um regime político, em razão de sua longa permanência no tempo:

1. mémoires 1754-1815. paris, plon, 1982, p. 632. as idéias de talleyrand sobre a legitimidade inspiraram, como sabido, o ensaio de guglielmo ferrero, pouvoir— les génies invisibles de la cité, publicado em 1942 em nova york pela livraria brentano's.

"um governo legítimo, seja ele monárquico ou republicano, hereditário ou eletivo, aristocrático ou democrático, é sempre aquele cuja existência, forma e modo de ação são consolidados e consagrados por uma longa sucessão de anos, eu diria mesmo por uma prescrição secular. a legitimidade da potência soberana resulta do antigo estado de posse, assim como ocorre, para os particulares, com a legitimidade do direito de propriedade".

a noção veio a ser depois, como sabido, amplamente elaborada e desenvolvida por max weber, constituindo uma das colunas-mestras de sua sociologia política. weber tomou como ponto de partida, da mesma forma que talleyrand, o fato da permanência ou continuidade, já agora não só de regimes políticos, mas de todo o sistema de relações sociais, sob a forma da vigência (geltung) de uma ordenação de valores. distinguiu a esse respeito, numa terminologia peculiar, o poder (macht) da dominação (herrschaft)2. o primeiro "significa toda possibilidade (chance) de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa possibilidade". a segunda "é a possibilidade de obter obediência a uma ordem de determinado conteúdo, num dado círculo de pessoas". e acrescentou: "certo mínimo de vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno) na obediência, faz parte de toda relação autêntica de dominação".

2. wirtscbaft und gesellschaft- grundriss der verstehenden sociologie. 5 ed. revista. tübingen (j.c.b. mohr),1985,p. 28,541 e ss.

segue-se daí, como salientou weber em várias passagens de sua obra, que nenhum titular de dominação (aquele que o pensamento político grego denominava kyrios3) pode satisfazer-se com o fato puro e simples da obediência de seus subordinados. todos eles procuram sempre inculcar na consciência dos sujeitos passivos a convicção da legitimidade da ordem social na qual estão inseridos4. ao contrário, portanto, do que deixa entender talleyrand, para max weber a permanência ou continuidade de um regime político (como de qualquer outro sistema de dominação, de resto) não depende exclusivamente do seu valor intrínseco, de sua justiça ou excelência, por assim dizer, natural. a "dominação legal com quadro administrativo burocrático" do sociólogo alemão nada tem a ver com os conceitos descarnados de legitimidade pela simples capacidade de decisão

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(carl schmitt) ou pela regularidade procedimental (luhmann), as quais transformaram, como disse excelentemente o professor paulo bonavides, a crença na legalidade numa legalidade sem crença5.

3. cf. aristóteles. política, 1283 b, 5.4. "keine herrschaft begnügt sich, nach aller erfabrung,freiwillig mit den nur materiellen oder nur

affektuellen oder nur wertrationalen motiven als chancen ihres fortbestandes. jede sucht der art der beanspruchten legitimität zu erwecken nd zu pflegen" (weber, op. cit., p. 122).

5. a despolitização da legitimidade. revista trimestral de direito público, 3/1993, p. 31.

a experiência histórica não cessa de demonstrar que nenhum sistema de poder permanece como legítimo na consciência coletiva sem um esforço contínuo de justificação. em outras palavras, a legitimidade é sempre, em maior ou menor grau, o resultado de uma técnica de legitimação.

antônio gramsci dedicou grande parte de suas reflexões do cárcere à importância dessa atividade legitimadora e ao papel político daqueles que a exercem ex professo, por ele denominados genericamente intelectuais 6.

6. cf. a edição de trechos escolhidos dos "cadernos do cárcere" do grande pensador italiano, reunidos sob o título gli intellettuali e l'organizzazione delia cultura, nova edição revista e integrada com fundamento na edição crítica do istituto gramsci, realizada por valentino gerratana, editori reuniti, 1977.

gramsci classifica esses profissionais da retórica e da argumentação em duas espécies. de um lado, os que formam um grupo social autônomo e tradicional, como os clérigos. de outro, os que se ligam organicamente à classe dominante, ainda que não lhe estejam subordinados, como as diferentes categorias de profissionais liberais no sistema capitalista.

ora, assim como os grupos ou classes dominantes evoluem no curso da história, o mesmo acontece com as diferentes categorias de legitimadores profissionais do sistema de dominação social.

a ordem feudal européia fundava-se na justificativa teológica ministrada pelo estamento clerical, dentro do sistema ternário, característico da idade média: uns oram, outros combatem e outros lavram a terra. o poder senhorial tinha por função garantir pelas armas a manutenção dessa tripartição funcional7.

nas monarquias absolutistas do renascimento, analogamente ao que sucedera durante o império romano, como assinalou tocqueville 8, a dominação pessoal e incontrastável do monarca passou a ser justificada politicamente pelos juristas da corte. eles substituíram, nessa tarefa, os teólogos e canonistas da igreja romana, os quais já não podiam justificar a dominação soberana dos reis, a partir do momento em que estes passaram a repudiar a suserania política do papado.

7. essa característica essencial do feudalismo foi bem analisada por georges duby, em sua obra i^es trois ordres ou 1'imaginaire du féodalisme (paris, gallimard, bibliothèque des histoires, 1978).

8. "\je droit romain, qui a perfectionnépartout ia sodété civile, partout a tendu à dégrader ia sociétépolitique, pane qu 'il a été principalement 1'oeuvre d'un peuple très-civilisé et très-as servi. ijes

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róis l'adoptèrent donc avec ardeur, et l'établirent partout ou ils furent les maitres. i^es interpretes de ce droit devinrent dans toute 1'hurope les ministres ou leursprincipaux agents. i^es légistes leurfournirent au besoin 1'appui du droit contre le droit méme. ainsi ont-ils souventfait depuis. a côtè d'unprime qui violait les lois, il est très-rare qu 'il n 'est pasparu un légiste qui venait assurer que rien n 'étaitplus legitime, et quiprouvait savamment que ia vtolence étaitjuste et que 1'opprimé avait tort" (ijancien regime et ia révolution. 3a ed. paris, gallimard, vol. 1, 1952, nota à página 266).

nos principados e reinos protestantes, ao contrário, a justificação teológica do poder monárquico desenvolveu-se sobre novas bases. no livro que fez publicar em 1523, intitulado a autoridade temporal e em que medida ela deve ser obedecida, lutero retomou a visão de santo agostinho sobre a dualidade dos reinos — o espiritual e o temporal — para sustentar, com base na célebre afirmação da epístola aos romanos 13, 1 (omnis potestas a deo), que ambos os reinos foram ordenados por deus, e que, por conseguinte, os decretos emanados da autoridade temporal deveriam ser vistos como expressão da vontade divina. paralelamente, porém, a necessidade de resistência às imposições e sanções decretadas pelos soberanos católicos levou os líderes protestantes à elaboração de uma teoria da resistência, que constituiu a base ideológica da futura política revolucionária9.

9. a contribuição do protestantismo à elaboração do conceito de liberdades individuais e do direito de resistência à opressão foi bem exposta por quentin skinner, em sua obra as fundações do pensamento político moderno (companhia das letras, 1999, partes quatro e seis).

seja como for, o que se nota com certa regularidade histórica até o século xx é o alargamento progressivo do grupo de intelectuais (para usarmos a terminologia gramsciana), encarregados de exercer a legitimação da ordem social estabelecida. os imperadores romanos e os senhores feudais contentaram-se com os serviços de apoio de um só grupo de profissionais. o absolutismo monárquico renascentista já precisou de dois: os juristas e os pensadores políticos, como jean bodin, maquiavel ou thomas hobbes. os estados protestantes a partir da reforma, bem como as monarquias absolutas do século xvii, foram obrigados a contar também, por acréscimo, com os serviços de legitimação prestados pelos pensadores religiosos10. a partir do século xix, a burguesia empresarial capitalista suscitou um amplo espectro de "intelectuais orgânicos" — advogados, professores de direito, economistas, cientistas sociais, jornalistas, engenheiros, líderes religiosos (sobretudo calvinistas) —, todos empenhados em demonstrar, com base nos mais diversos argumentos, a excelência do sistema econômico capitalista, aliado a um regime político de severa limitação dos poderes governamentais.

10. o caso de bossuet, em relação a luís xiv, é clássico. veja-se a sua obra inacabada politique itrée des propresparoles de 1'ecriture sainte, publicada postumamente apenas em 1709

o que importa assinalar aqui é que o século xx veio trazer uma mudança

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importante ao esquema classificatório de gramsci. os grupos dominantes nos regimes de concentração do poder estatal, bem como a classe empresarial nos países de capitalismo liberal, em vez de contratarem profissionais autônomos para a tarefa de legitimação da ordem estabelecida, passaram a assumir diretamente essa incumbência, pela criação, sob a forma de entidades estatais ou privadas, dos grandes órgãos de comunicação de massa.

abriu-se, com isto, uma nova era política.

a era da comunicação de massa e da privatização do espaço público

a evolução do modo de comunicação social, da antiga sociedade do face a face à moderna sociedade de massas, fez-se em função do estado da técnica. sem a invenção dos caracteres móveis de imprensa, no século xv, seria impossível haver jornais, isto é, órgãos que produzem a multiplicação do mesmo escrito, permitindo informar uma multidão de leitores, em curto espaço de tempo, sobre os mesmos fatos ou difundir regularmente opiniões sobre a atualidade. a técnica de emissão de ondas hertzianas ampliou a capacidade de comunicação simultânea, para alcançar a multidão dos iletrados, primeiro em lugares fixos e depois em qualquer lugar, mediante aparelhos portáteis. da mesma forma, os filmes cinematográficos, que antes só podiam ser exibidos em salas públicas, passaram depois a ser vistos em casa, por intermédio do aparelho de televisão. a internet inaugurou a era da comunicação global, pela utilização conjugada do telefone e do computador.

em suma, as vias de comunicação evoluíram no sentido de uma conjugação de veículos e técnicas, para criar uma rede complexa e global, que conglomera empresas de produção da comunicação (imprensa, rádio, televisão, cinema), empresas de distribuição dos produtos, a indústria da informática ou da computação eletrônica (compreendendo hardware e software) e o vasto setor de telecomunicações, inclusive por via de satélites espaciais.

a internet, em particular, representou uma verdadeira revolução comunicativa. o número de computadores munidos de conexão direta com a rede passou de menos de 100 mil em 1988 para mais de 36 milhões em 1998. neste mesmo ano, o mundo contava com 143 milhões de usuários da internet. em 2001, estima-se que haverá mais de 700 milhões.

a indústria conglomerada das comunicações (multimídia) já é o setor mais próspero da economia mundial. nos estados unidos, o item mais

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importante da pauta de exportações é o conjunto dos filmes produzidos em hollywood: a receita bruta obtida com eles foi de 30 bilhões de dólares em 1997. não é de admirar, assim, que em janeiro de 2000 tenha-se anunciado que a maior operação de concentração empresarial jamais realizada no mundo acabava de ocorrer no setor de comunicações, a incorporação da time warner pela america online, no valor de 166 bilhões de dólares.

as conseqüências dessa estupenda transformação técnico-econômica não foram ainda assimiladas pela teoria política e, menos ainda, pela ordenação jurídica.

a vida política, como todas as demais formas de relacionamento social, pressupõe a organização de um espaço próprio de comunicação. no regime democrático, esse espaço é necessariamente público, no sentido etimológico da palavra, porque o poder político supremo (a soberania) pertence ao povo, e é ele que deve, por conseguinte, decidir em última instância - se não diretamente, pelo menos por meio de representantes eleitos — as grandes questões de governo.

na realidade, porém, a organização do espaço público de comunicação - não só em matéria política como também econômica, cultural ou religiosa — faz-se, hoje, com o alheamento do povo, ou com sua transformação em massa de manobra dos setores dominantes. assim, enquanto nos regimes autocráticos a comunicação social constitui monopólio dos governantes, nos países geralmente considerados democráticos o espaço da comunicação social deixa de ser público para tornar-se, em sua maior parte, objeto de oligopólio da classe empresarial, a serviço de seu exclusivo interesse de classe.

o constitucionalismo liberal concebera o parlamento como sendo o locus privilegiado de deliberação e decisão pública das questões políticas entendendo-se por deliberação o debate que precede, necessariamente toda decisão de questões complexas.

na verdade, esse debate só era teoricamente considerado público porque se realizava coram populo, isto é, diante do povo, para sua instrução e orientação, tendo em vista as próximas eleições. o debate parlamentar, em si mesmo, é incapaz de alterar, ainda que minimamente, a decisão de voto das diferentes correntes políticas representadas no parlamento. jamais se viu um partido da situação mudar de opinião sobre uma questão política diante dos argumentos apresentados pela oposição; e vice-versa. ademais, em um número crescente de países, o governo, pela via constitucional ou não, passou a controlar a ordem do dia das sessões parlamentares. no brasil, desde há muitos anos, a eleição dos membros componentes da mesa dos órgãos do congresso nacional é feita mediante prévio acordo com a presidência da

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república.na teoria clássica do governo representativo, portanto, a transparência ou

a repercussão pública dos debates parlamentares supunha que o povo quisesse e pudesse informar-se do que se discutia e decidia no parlamento. sucede que nem todos os países de regime (formalmente) democrático adotam o parlamentarismo como forma de governo e, mesmo naqueles onde ele existe, o executivo tornou-se, de longe, o grande centro de decisões políticas. ora, os órgãos do executivo, como ninguém ignora, deliberam e decidem sempre a portas fechadas. os parlamentos tornaram-se, hoje, na quase totalidade dos países, meros ratificadores das decisões políticas previamente tomadas na esfera do executivo.

o verdadeiro locus de deliberação política passou a ser, assim, aquele oferecido pelos veículos de comunicação de massa. mas, evidentemente, ele não é público, e sim privado.

nos países em que vigora claramente o regime oligárquico sob aparências democráticas, como é o caso do brasil, a exploração dos mais importantes órgãos de comunicação de massa é feita por grupos empresariais privados, estreitamente afinados com os interesses de sua classe, que controla o governo nacional e o parlamento. nesses países, o desenrolar das eleições mais importantes faz-se sempre sob a influência decisiva da propaganda veiculada pela grande imprensa, pelo rádio e, sobretudo, pela televisão. quando é impossível deixar de noticiar algum fato depreciativo em relação ao complexo político-empresarial dominante, o debate público é desde logo falseado, com a utilização da técnica que os norte-americanos denominam agenda-setting, ou seja, passa-se a noticiar outras matérias, em geral sensacionalistas, para desviar a atenção pública do assunto incômodo. em pouco tempo, os fatos desabonadores para a classe dirigente são esquecidos.

em primeiro lugar, não há realmente debate, pois este supõe uma liberdade de se proporem questões, isto é, de se fixar a agenda, como dizem os norte-americanos. ora, as matérias que vêm a público por intermédio dos meios de comunicação de massa não são propostas pelos cidadãos, mas pelos controladores desses órgãos. até mesmo no parlamento, os grandes jornais ou as grandes redes de televisão são capazes de influenciar o processo legislativo ou a atividade fiscal propondo questões que, em seguida, se tornam objeto de comissões parlamentares de inquérito ou de projetos de lei. e quando estes não convém ao interesse das grandes empresas de comunicação são sistematicamente desmoralizados sob a indelével pecha de responderem a interesses pessoais dos parlamentares.

em segundo lugar, o debate nunca é público, porque o povo jamais tem

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acesso às discussões e faz figura de platéia em representação teatral.desse esquema avassaladoramente oligárquico só escapa a internet, em

razão de sua estrutura atomística. compreende-se, assim, por que essa via democrática de comunicação tenha sido o veículo bem-sucedido de mobilização do povo, por intermédio das ongs (organizações não-governamentais), em memoráveis campanhas empreendidas contra políticas projetadas pela oligarquia mundial. em 1997, os principais países agrupados na ocde (organização de cooperação e desenvolvimento econômico) elaboraram a portas fechadas um projeto de acordo multilateral de investimentos, o qual visava impedir que os estados favorecessem as empresas de controle nacional e suprimir as restrições impostas às empresas multinacionais em países subdesenvolvidos. graças à internet, foi possível mobilizar contra esse projeto associações de defesa dos países subdesenvolvidos no mundo inteiro. um ano depois, o projeto foi abandonado. foi também em grande parte graças aos protestos de ongs de todos os continentes, convocadas por meio da internet, que a conferência ministerial dos membros da organização mundial do comércio, reunida em seattle em novembro de 1999, fracassou.

princípios para uma democratização dos meios de comunicação de massa

deve-se partir do princípio fundamental de que a comunicação social, numa sociedade democrática, é matéria de interesse público, isto é, pertinente ao povo, não se podendo, portanto, admitir nenhuma forma direta ou indireta de controle particular sobre os meios de comunicação de massa.

o segundo princípio a ser assentado é o da incompatibilidade visceral do sistema capitalista com a verdadeira democracia, que combina soberania popular ativa com o respeito integral aos direitos humanos. o capitalismo, pela sua própria natureza, é um sistema oligárquico (governo da minoria), ou, se se preferir, timeocrático (do étimo grego time — avaliação, preço, pagamento), pois o funcionamento do sistema supõe a soberania dos detentores do capital na empresa e no mercado e a livre concorrência entre eles, o que conduz, necessariamente, à concentração ilimitada de capital e à centralização de seu controle11.

11. marx distinguiu a concentração da centralização do capital. aquela nada mais é do que "o agrupamento quantitativo dos elementos componentes do capital social"; mas esse agrupamento pode fazer-se em muitas mãos, ou em uma só, isto é, pode ser mais ou menos centralizado. a noção marxista de centralização do capital corresponde, pois, aproximadamente, ao moderno conceito de poder de controle

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empresarial (cf. o capital. tradução brasileira de reginaldo sant'anna. 16 ed. rio de janeiro, civilização brasileira, 1998, livro i, vol. 2, p. 730 ss).

adam smith fixou a lei de concorrência no sistema capitalista, em função da quantidade de financiamento de capital oferecido no mercado12 . a medida que a oferta desse capital de empréstimo aumentava, os juros tendiam a baixar. ora, aumentando a disponibilidade de capital no mercado, os lucros tenderiam também necessariamente a baixar, o que viria acirrar a concorrência.

para o pai da teoria capitalista, como se vê, o capital nada mais seria do que uma mercadoria igual a outras, sujeita portanto à lei da oferta e da procura. acontece que, efetivamente, o capital significa poder; e não somente poder econômico, como parece a adam smith13, mas também e necessariamente político. dada a visceral incompatibilidade entre o capitalismo e a democracia efetiva, a soberania do capital não pode, logicamente, ficar confinada ao terreno econômico-empresarial: ou os detentores do capital se organizam para afastar o povo do controle efetivo do estado, ou o povo acaba se organizando para afastar os capitalistas do controle do sistema econômico. como costumavam dizer os juristas de minha geração, tertium non datur, isto é, traduzindo em linguagem política atual, não existe a terceira via proposta pelos pseudo-socialistas.

12. cf. wealth of nations. livro ii, cap. iv.13. 'wealth, as mr. hobbes says, is power. but the person who either acquires, or succeeds to a great

fortune, does not necessarily acquire or succeed to any political power, either civil or military. his fortune may, perhaps, afford him the means of acquiring both, but the mere possession of that fortune does not necessarily conveys to him either. the power which that possession immediately and directly conveys to him, is the power of purchasing; a certain command over ali the labour, or over ali the produce of labour, which is then in the market" (wealth of nations. livro i, cap. v).

ademais, a concorrência não é, no capitalismo, simples regra de eficiência em proveito do consumidor, como a teoria econômica nos quer fazer crer, mas a própria alma do sistema. tudo tende à obtenção do poder máximo no mercado: a alternativa se estabelece entre aumentar o poder no mercado ou desaparecer. o grande empresário, portanto, pelo menos em seu setor de atividades, não conhece adversários a serem elegantemente vencidos num jogo de gentlemen, mas inimigos a serem destruídos ou subjugados numa verdadeira campanha bélica. o atual panorama de fusões e incorporações empresariais em todo o mundo nos dá uma pálida amostra da amplitude dessa guerra14.

14. segundo o relatório mundial do desenvolvimento humano das nações unidas de 1999, em 1997, somente as fusões e incorporações transnacionais, isto é, sem contar as que se realizaram no interior de um só país, representaram 236 bilhões de dólares, ou seja, quase a metade do pib brasileiro atual.

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o terceiro princípio a ser assentado, como fundamento da construção de uma comunicação democrática, é a superação da dicotomia estado—sociedade civil, sobre a qual se fundou o compromisso histórico entre capitalismo e democracia representativa no século xix. tudo se decidiu no campo do sufrágio. a evolução fez-se de forma lenta, gradual e segura, do voto censitário ao sufrágio universal, passando pela admissão do direito de voto das mulheres e dos analfabetos. quando se chegou ao fim da linha, as classes dominantes já estavam seguras de que podiam controlar, sem risco, o mecanismo eleitoral, graças sobretudo à montagem do eficiente sistema de legitimação representado pelos meios de comunicação de massa.

a construção teórica do binômio estado-sociedade civil, aliás, é assunto que está a merecer uma reanálise em profundidade por parte dos politicólogos. baste-nos, por ora, como sugestão a futuros doutorandos à

procura de temas de tese, assinalar a importância de um reexame do pensamento de hegel, verdadeiro criador dessa concepção dicotômica da sociedade política. para ele, a sociedade civil, enquanto sistema das necessidades (system der bedürfnisse), "conserva o que resta do estado da natureza" e é, por isso mesmo, necessariamente inigualitária e individualista15. ela representa o âmbito do indivíduo concreto, com suas necessidades e seu egoísmo, constituindo, portanto, um "sistema atomístico"16, em que cada indivíduo é uma mônada autônoma. para que o indivíduo egoísta possa satisfazer suas necessidades e seus fins particulares, é indispensável tratar todos os outros indivíduos, igualmente, como meios ou instrumentos; ou seja, infringir o princípio que kant considerou a lei máxima da moralidade17.

daí por que, assinala hegel, se o estado foi confundido com a sociedade civil, dando-lhe por função unicamente a proteção da propriedade privada e da liberdade individual, a união política se desfaz. o estado, como "realidade efetiva da idéia ética", paira acima da sociedade civil, da mesma forma que na grécia antiga a deusa atenas pairava acima dos penates, ou deuses familiares18.

15. cf. o § 200 de sua grundlinien der philosophie des rechts, consultada na 3 edição de suas obras completas por fr. frommanns verlag, stuttgart, 7 vol, 1952.

16. cf. enciclopédia das ciências filosóficas. trad. de paulo meneses. são paulo, loyola, 1995, iii, § 523, p. 298.

17. cf. grundkgung sur metaphysik der sitten. edição crítica da felix meiner verlag. hamburgo, 1994, p. 51.

18. grundlinien der philosophie des rechts, cit., § 257.

não é difícil encontrar em marx os ecos dessa concepção. em a questão judaica, em particular, algumas idéias e, até mesmo, as mesmas expressões hegelianas são reproduzidas. o projeto marxista, porém, desde o início, foi

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pôr a filosofia de hegel de ponta-cabeça. já não se tratava, pois, de exaltar o estado como meio de resgatar a sociedade civil de seu egoísmo, pois a organização estatal nada mais seria do que o reflexo do sistema de poder vigente na esfera social, dilacerada pela luta de classes e submetida à dominação do capital. a máquina estatal não devia ser aperfeiçoada ou reforçada, mas sim destruída19.

no movimento socialista ficou, porém, a dúvida: marx estaria advogando anarquicamente a abolição do estado ou apenas a destruição da máquina estatal burguesa?

a verdade é que as idéias hegelianas e também, por repercussão, a concepção marxista precisam ser reexaminadas. a verdadeira democracia, vale dizer, o regime político em que o povo é, ao mesmo tempo, governante e governado, não admite divisão e, muito menos, separação entre a esfera estatal e a esfera social. a vida social, em qualquer de seus múltiplos aspectos, deve submeter-se ao princípio unitário da soberania popular. o que não significa, de modo algum, desmanchar anarquicamente a organização do poder de governo da polis. as esferas de poder, como frisou aristóteles, organizam-se por andares; a política é uma ciência arquitetônica por excelência (epistememalista architektonikè)20. mas, em todos esses andares, há de predominar a vontade e o interesse do povo: na escola, na empresa, nos hospitais, no bairro, na cidade, na região, na nação. até mesmo na esfera internacional o princípio democrático deve ser aplicado, dando-se aos povos o direito de governar o mundo mediante a reestruturação democrática da organização das nações unidas.

19. alie umwälzungen vervollhommneten diese maschine statt si zu brechen. die parteien, die abwechselnd um die herrschafí rangen, betrachteten die besiznahme dieses ungeheueren staatsgebàudes ais die hauptbeute des siegers (der achtzehnte brumaire des louis bonaparte. in: karlmarxfriedrich engels werke. berlim, dietz verlag, institut für marxismus-leninismus beim zk der sed, 1960, vol. 8, p. 197.

20. Ética a nicômaco 1094a, 25-30.

as propostas

para que o povo possa ver assegurado o seu direito fundamental à informação (constituição federal, artigo 5.º, xiv), é indispensável construir um sistema institucional que impeça ou, pelo menos, dificulte seriamente a monopolização dos meios de comunicação de massa pela classe empresarial. para tanto, é preciso vedar a organização dos veículos de comunicação sob a forma de empresa capitalista, o que significa proibir a utilização de sociedades mercantis, pois em todas elas o poder de controle pertence, em princípio, aos detentores do capital.

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resta, portanto, a organização da pessoa jurídica sob a forma de associações sem fins lucrativos, cooperativas ou fundações, públicas ou privadas. mas algumas precisões impõem-se a esse respeito.

assim, em todas essas organizações, a estrutura do poder deveria ser dividida em conselho deliberativo e direção. naquele, os representantes dos jornalistas ou editores deveriam ocupar pelo menos a metade dos lugares. os diretores seriam designados pelo conselho, mas só por unanimidade poderia este nomear algum de seus membros como diretor.

É importante lembrar, neste particular, que a lei holandesa sobre os meios de comunicação social, de 1988, exigiu, para que os órgãos de imprensa pudessem receber auxílio financeiro oficial, que os jornais fossem editados sob a responsabilidade de um corpo de editores, independente dos controladores.

É indispensável, também, que o setor de comunicação social seja regulado e fiscalizado por um órgão administrativo autônomo, do tipo independent regulatory commission ou autorité administrative indépendante, como ocorre nos estados unidos e na frança; vale dizer, um órgão administrativo não subordinado nem ao governo nem ao legislativo, tanto na união como em cada um dos estados e no distrito federal.

esse órgão seria competente para outorgar concessões, permissões ou autorizações para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, substituindo o mecanismo instituído pelo artigo 223 da constituição, o qual propicia, como sabido, escandalosa troca de favores entre o presidente da república e os parlamentares.

ademais, incumbiria igualmente a esse órgão administrativo autônomo a fiscalização do cumprimento dos princípios estabelecidos no artigo 221 da constituição, no que concerne à produção e à programação das emissoras de rádio e televisão — depois, bem entendido, que esse dispositivo for devidamente complementado por lei, o que até agora, lamentavelmente, não ocorreu.

não seria desarrazoado pensar que a composição desse órgão administrativo autônomo poderia ser feita por representantes do ministério público, da ordem dos advogados do brasil e de organizações não-governamentais.

mas a democratização dos meios de comunicação de massa não se faz apenas com a reestruturação dos órgãos de imprensa, rádio e televisão. um regime de cidadania ativa exige que todos tenham livre acesso às vias de comunicação exploradas por esses veículos, o que se pode e deve assegurar mediante a ampliação do direito de resposta e a introdução do direito de antena.

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o direito de resposta, tradicionalmente, visa garantir a defesa da verdade e da honra individual. legitimado a exercê-lo, portanto, é sempre o indivíduo em relação ao qual haja sido difundida uma mensagem inverídica ou desabonadora. ainda que se não possa nele enxergar um direito potestativo, como quer uma parte da doutrina21, é inegável que ele se apresenta como um meio de defesa particularmente vigoroso, em geral garantido pela combinação de pesada multa em caso de descumprimento pelo sujeito passivo.

21. sic, vital moreira. o direito de resposta na comunicação social. coimbra editora, 1994, p. 16, citando lax, pierluigi. 11 diritto di retifica nell’editoria e nella radiotelevisione. pádua, cedam, 1989.

É, sem dúvida, necessário estender a utilização desse mecanismo jurídico também à defesa de bens coletivos ou sociais, que a teoria moderna denomina interesses difusos. os defensores do bem comum ou interesse social acham-se sempre em posição jurídica subalterna em relação aos controladores dos meios de comunicação social, só tendo acesso obrigatório a esses veículos nos raros casos previstos em lei22.

a legitimação para o exercício do direito coletivo de retificação deveria caber, analogamente ao previsto na lei 8.978, de 1990: 1) ao ministério público; 2) a órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que despidos de personalidade jurídica, quando especificamente criados para a defesa de interesses difusos ou coletivos; 3) a organizações não-governamentais, existentes sob a forma de associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre suas finalidades estatutárias a defesa desses interesses.

já no tocante ao direito de antena, isto é, o direito de livre comunicação por meio do rádio e da televisão, é importante lembrar que as constituições portuguesa (artigo 40) e espanhola (artigo 20, alínea 3, infinè) já o incluem como um dos direitos fundamentais do cidadão. a constituição portuguesa atribui legitimação para o seu exercício aos "partidos políticos, as organizações sindicais, profissionais e representativas das atividades econômicas, bem como outras organizações sociais de âmbito nacional". a constituição espanhola fala, genericamente, em "grupos sociais e políticos significativos, respeitados o pluralismo da sociedade e as diversas línguas da espanha".

22. e o que sucede, por exemplo, na hipótese de publicidade enganosa ou abusiva em detrimento do consumidor. a lei 8.078, de 1990, criou para o caso a sanção de uma contrapropaganda imposta (artigo 60).

entre nós, a regulação do exercício do direito de antena caberia, naturalmente, ao órgão administrativo autônomo antes referido.

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fica assim delineado um esboço de programa para a democratização dos meios de comunicação de massa.

ao encerrar esta exposição, imagino que as reações que ela pode suscitar entre os bem-pensantes são idênticas às que certamente provocou a proposta de uma democratização geral da empresa, por mim lançada anos atrás23. acode-me, portanto, repetir aqui as mesmas palavras dirigidas por jean jaurès, no início do século xx, aos que tachavam de rematada loucura os seus projetos socialistas de governo para a frança:

"os progressos da humanidade medem-se sempre pelas concessões que a loucura dos sábios faz à sabedoria dos loucos".23. cf. a. reforma da empresa, aula inaugural por mim proferida na abertura dos cursos jurídicos da faculdade de direito da universidade de são paulo em 1981, inserida em direito empresarial. são paulo, saraiva, 1990, p. 27 e ss.

fábio konder comparato - doutor em direito da universidade de paris e professor titular da faculdade de direito da universidade de são paulo. foi membro do conselho nacional de defesa do consumidor e do conselho nacional de defesa dos direitos da pessoa humana. É doutor honoris causa da universidade de coimbra.

* este texto será publicado também em livro a ser editado em homenagem ao professor paulo bonavides.