bruno peron - aresta do livramento

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ARESTA DO LIVRAMENTO Bruno Peron

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Bruno Peron, Aresta Do Livramento, Março de 2014

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  • ARESTA DO LIVRAMENTO

    Bruno Peron

  • ARESTA DO LIVRAMENTO

    Bruno Peron

    Brasil Edio do Autor

    1 Edio Maro de 2014

  • PERON LOUREIRO, Bruno. Aresta do livramento. Brasil, Publicao Autnoma, Livro Eletrnico, 1 Edio, Maro

    de 2014. Fonte: .

    No necessrio pedir autorizao ao autor desta publicao para consulta, gravao em disco, divulgao,

    encaminhamento a outros leitores e reproduo dos captulos e trechos contidos nela desde que se atribua

    devidamente o crdito da obra ao autor e fonte.

  • NDICE

    Prefcio 1. Arena dos meios...................................................................................... 3 2. Caridade.................................................................................................... 5 3. Renovao dos ares no MERCOSUL................................................. 7 4. Animosidades sobre a mudana climtica........................................... 9 5. Mapa das desigualdades......................................................................... 11 6. A completude.......................................................................................... 13 7. A geopoltica do ltio.............................................................................. 15 8. Sentido de poltica...................................................................................17 9. O atrativo dos museus........................................................................... 19 10. A fome e o fim do mundo.....................................................................21 11. A vez do Ir............................................................................................. 23 12. Espionagem moda latino-americana................................................. 25 13. Pirataria e iluses da cidadania.............................................................. 27 14. O idioma guarani.....................................................................................29 15. De excessos e carncias......................................................................... 31 16. Brasil de pernas abertas.......................................................................... 33 17. Brasileiros no Suriname......................................................................... 35 18. Propaganda enganosa............................................................................. 37 19. Verdadeiro ou falso................................................................................ 39 20. Desastre no Haiti.................................................................................... 41 21. A UNILA e vizinhos desconhecidos................................................... 45 22. A reforma agrria.................................................................................... 47 23. Machu Picchu e as letras........................................................................ 49 24. Dualidades na anlise poltica............................................................... 53 25. O trabalho na terra do carnaval............................................................ 57 26. As Malvinas e a intromisso descarada................................................61 27. O rugido da Quarta Frota...................................................................... 65 28. A engrenagem ptrida............................................................................ 69 29. Expanso do canal de Panam..............................................................71 30. Ladainhas habituais................................................................................. 73 31. Belo Monte para quem........................................................................... 77 32. Burocracia dos impostos........................................................................81 33. Mundo fraternal...................................................................................... 85 34. Gastos militares na Amrica do Sul..................................................... 89 35. Vestal da procriao humana................................................................ 93

  • 36. Quem ensina, quem aprende.................................................................97 37. Armas nucleares e propsitos comedidos........................................... 101 38. Tecnologias de informao e comunicao........................................ 105 39. Confinados pelo mata-burro................................................................. 109 40. Manipuladores de ideais......................................................................... 113 41. Repasto dos poderosos.......................................................................... 115 42. Afinidades de Brasil e Caribe................................................................ 119 43. Enquanto isto, a diviso do Par.......................................................... 123 44. Tailndia e ideais nobres........................................................................ 127 45. Acima do paralelo 38.............................................................................. 129 46. Hausto de mediocridade........................................................................ 133 47. Opsculo de bons princpios................................................................ 137 48. Paroxismo de esperana......................................................................... 141 49. Voragem dos privilegiados.................................................................... 145 50. Pedidos de indulgncia........................................................................... 149 51. Altrusmo s avessas............................................................................... 151 52. Tempos de insustentabilidade............................................................... 155 53. Humanidade em luto.............................................................................. 159 54. Virtudes de qualquer cidado................................................................ 163 55. Enguiamento da Histria..................................................................... 167 56. Verdugos da natureza............................................................................. 171 57. Ceitil de respeito......................................................................................175 58. Esforo mancomunado......................................................................... 179 59. Disfarce de meio-cidados.....................................................................183 60. Cultura e redoma de abstrao............................................................. 187

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    PREFCIO

    com a expresso de outro sentimento que apresento esta Aresta do livramento. Neste livro, reno artigos que publiquei entre outubro de 2009

    e setembro de 2010 na imprensa brasileira. O momento era de retorno ao Brasil depois de quase dois anos morando na Cidade do Mxico, onde tive o privilgio de conhecer melhor a Amrica Latina e tambm de nutrir-me de outras perspectivas para estudar o Brasil. No Mxico, ampliei meu entendimento sobre os conflitos de fronteira entre o Norte e o Sul e notei como possvel valorizar o prprio sem se opor incondicionalmente ao novo e ao forneo. Estou certo de que o pas onde toda a Amrica Latina est presente (devido s migraes de latino-americanos ao Mxico) foi influente na forma como defendi os interesses de nossa regio em meus escritos.

    A maturidade que esta vivncia no Mxico me trouxe, no entanto, no me impediu de expressar opinies abrasadoras sobre os caminhos polticos do Brasil e tambm revoltosas contra tomadores de deciso do governo brasileiro. Esta postura justifica o uso do adjetivo tupinica em meus textos pela primeira vez, como comprova A reforma agrria. Em princpio, tive inteno de dar ao termo tupinica uma conotao neolgica repreensiva, mas logo passei a empreg-lo apenas como sinnimo de brasileiro, sem implicaes negativas. Embora ciente de que tupiniquim e brazuca tambm se refiram nossa nacionalidade, encontrei-me numa situao mais convidativa e prpria para continuar adjetivando-nos como tupinicas.

    Apesar destas opes terminolgicas, poucas outras me causariam tanto desconforto em momentos posteriores quanto as de pas subdesenvolvido, pas em desenvolvimento e pas desenvolvido. Fiz, nos textos que publiquei neste perodo, uso frequente destas expresses que remetem a hierarquias globais dentro de escalas de desenvolvimento. Ao escrever este Prefcio alguns anos mais tarde, confesso que no me referiria ao problema com a mesma terminologia. Tal mudana de perspectiva se deve ao aprofundamento que tive sobre desenvolvimento a ponto de entend-lo de duas formas excludentes: 1) processo que tem por sinnimo uma grande mudana ou transformao; ou 2) ardil de pases hegemnicos para manter os

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    outros pases em situao perene de atraso. Portanto, o que tenho feito reduzir minhas chances de cair em armadilhas terminolgicas e ideolgicas.

    Finalmente toda esta disposio que esclareci nos pargrafos anteriores levou-me a intitular este livro como Aresta do livramento. Porque meus textos costumam ter uma tnica mesclada de diagnsticos e propostas, achei conveniente entender esta fase como uma de libertao, resgate ou salvamento. Nesta obra, e tomando-se em conta a adjetivao tupinica, est o embrio de ideias que se consolidariam em momentos posteriores de meus escritos. Uma delas a da qualidade baixa e insuficiente de nossa formao cidad. Demorou, mas aprendi: o problema est em ns e no neles. Assim surge meu conceito de meia-cidadania para se referir a esta questo.

    Meus leitores e minhas leitoras, fao o convite a que mergulhem nas pginas seguintes sem medo de reconhecer que a todos ns nos falta coragem para o livramento. Mostrarei, contudo, alguns caminhos. Boa leitura.

    Bruno Peron Loureiro

    Londres, 14 de maro de 2014.

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    1. Arena dos meios

    arena de intermediao poltica assume configuraonova. Enquanto h algumas dcadas se confiava muito mais nos partidos, mobilizaes de

    rua e passeatas populares, o dilogo tem-se trasladado aos meios de comunicao. Embora as formas tradicionais de interao poltica continuem existindo, as pessoas dispem de ferramentas novas para o fazer e o dever polticos.

    Exponho alguns argumentos: debates entre candidatos a cargos polticos (executivos e legislativos) que se exibem na televiso, problemas sociais que se discutem na rdio, listas de nomes sujos de ex-polticos que circulam na Internet, notcias da ltima reunio da Organizao das Naes Unidas (ONU) que chegam por mensagens nos celulares, e reivindicaes que se fazem por cartas de leitores nos jornais espera de que, em seguida, algum secretrio municipal responda por esta mesma via.

    O diagnstico de que, ao contrrio de qualquer esclarecimento, os cidados nos temos distanciado de nossos representantes polticos, que passaram a chamar-se autoridades numa relao vertical, enquanto os meios de comunicao assumem uma responsabilidade para a qual no estavam muito bem preparados. De uma arena de confrontao direta entre os personagens ou a poltica como ela deve ser escorrega-se para outra que promete mais do que pode cumprir.

    As relaes polticas j eram complexas, uma vez que no h consenso e os resultados costumam justificar os meios para alcan-los. Agora, no entanto, ficou mais complicado entender por que somos convocados regularmente s urnas, por que a poltica carreira para uns e fonte de renda para outros, e por que ainda acreditamos que os polticos so os responsveis por tudo. Sobre este ponto, espera-se deles que nos deem melhores condies de vida e que sejam culpados por qualquer desgraa.

    Cartas de leitores que reivindicam melhoria de algum servio pblico em seu bairro e em sua cidade aparecem comumente nos jornais: pedidos de melhor qualidade no sistema pblico de sade, tapamento de buracos nas ruas e avenidas, queixas de semforos mal colocados ou falta deles em cruzamentos especficos, mato alto no terreno do vizinho, denncias de

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    desperdcio de gua no lavamento de calada, entre outras expresses de relaes polticas que se desvinculam de suas manifestaes tradicionais.

    J que as Prefeituras Municipais dispem de atendimento por telefone ou atendimento pessoal e, assim, qualquer reivindicao de interesse pblico pode ser feito diretamente, o que induz tantos a acreditar que os meios de comunicao canalizam todas as vozes como se fosse um rgo do setor governamental? Como se no bastasse, ainda h os que negam qualquer gosto pela poltica ou ligao com a mesma sob o pretexto de que ela s envolve negcios sujos e, portanto, estas pessoas eximem-se da poltica.

    Nossa sede de participao encontrou um grande osis. Enquanto cremos que poltica s para polticos, estimulamos assuntos polticos em opinies sobre: impostos abusivos, queimada de cana-de-acar que suja os quintais, questes ambientais, multas de trnsito que se tomam como injustas, temores violncia e improbidade, censura liberdade de expresso no alvor deste sculo, entre outros temas do leque comunicacional. A arena dos meios nos convida a repensar sobre um velho tema, no mesmo?

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    2. Caridade

    onstantemente ponho em dvida a crena de que entendo o significado da palavra caridade e de que reconheo quando uma ao caridosa

    ou no. No sei se porque faltam exemplos deste fenmeno ainda pouco compreendido ou se porque se o confunde com outros que no se dirigem pelo desprendimento e pelo desinteresse.

    Dar dinheiro e bens materiais remanescentes e expressar um sentimento verossmil e hipcrita podem ser desperdcio de tempo. Nota-se, no entanto, como estes atos perpetuam algumas culturas em que a maioria gosta de saber que pratica uma boa ao ou est sendo til a algum, ainda que s nas aparncias. Soa um sinal ntimo de aprovao ao que bondade.

    A preocupao com as aparncias to grande que induz muitos a crer que so caridosos por doar alguns milhares de reais de sua conta de milhes, ou deixar o outro motorista passar o carro quando a regra de trnsito prev transferncia de turno, ou solidarizar-se com algum que cai na rua quando o costume de conduta o olhar hostil. Pouco disso tudo caridade.

    A dificuldade que tive em redatar este texto parte no s da falta de compreenso precisa do que a caridade, mas tambm da assuno de que ainda no nos encontramos num nvel evolutivo que nos d naturalidade ao praticar aes caridosas. Com este argumento, no quero dizer que eu a conhea plenamente mais do que qualquer outra pessoa ou que a pratique constantemente por escrever sobre o assunto.

    s vezes, manifestam-se diferenas culturais ou mal-entendidos de quando se nos aproveitam da boa vontade. Conto duas. Uma quando me dispus, durante o tempo em que vivi no Mxico, a ajudar com as malas de um amigo japons que regressaria ao seu pas aps o trmino dos estudos. Vendo que eu poderia praticar uma boa ao aquele dia, e me reconforta quando tenho conscincia destes atos, ofereci-me para ajudar.

    Logo chegaram vrios outros de seus amigos japoneses. Ajustes finais, cerimnia de despedida, expresses de tristeza. Finalmente, deixou-me a mala mais pesada. Devia ter uns 40 kg. Era um chumbo. Os demais carregaram sacolas, uma mochila, e outra mala mais leve entre duas pessoas.

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    Outra situao foi quando me dispus a fazer canelones para um evento beneficente do qual participei como voluntrio. Passei uma manh com um grupo preparando-os e digo que foi proveitoso. A sensao de fazer algo sem exigir recompensa traz benefcios para a alma. Acredito que, quando o fazemos com o objetivo de praticar o bem, aproximamo-nos da caridade.

    No fim da tarde, quando peguei carona com um dos organizadores do evento, ele me perguntou se eu teria meia-hora para descarregar outros canelones da geladeira e finalizar o trabalho beneficente. De uma vez. Quando cheguei ao local, havia duas geladeiras completas destas massas e a minha breve disposio tomou-me vrias horas mais. Ser que abusaram da minha caridade?Ou finalmente descobri o seu significado?

    difcil defini-la, descrev-la e exemplific-la. A definio mais simples e compreensvel escutei do mdico veterinrio Carlos Mader, com quem tive o privilgio de dialogar sobre temas espiritualistas durante alguns anos em Piracicaba, interior de So Paulo, com o pensamento na cincia e na razo: Caridade o muito que se d do pouco que se tem. Este patamar requer esforos extras para alcanar a caridade, no mesmo?

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    3. Renovao dos ares no MERCOSUL

    s esforos em prol do adiamento da entrada da Venezuela ao Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) perdem flego. Mesmo alguns setores

    que no apostavam na adeso daquele pas ao bloco comeam a ver enfraquecidos seus argumentos e a aceitar que, pelo menos na balana comercial, o Brasil obter maiores benefcios e o conjunto ter maior vigor se a Venezuela fizer parte deste mecanismo de integrao.

    O MERCOSUL no vai bem. Os propsitos contidos no Tratado de Assuno (de maro de 1991) parecem engatinhar. Nestes ltimos anos, o MERCOSUL correu o risco de ir de mal a pior. Segundo notcias recentes, o governo argentino tem levantado barreiras aos produtos brasileiros. O medo do protecionismo emerge entre os lderes comerciais do nosso pas. Ningum esperava, porm, que esta prtica assombrasse os pilares do MERCOSUL.

    A entrada da Venezuela poder trazer um novo condimento ao bloco e a ajudar a desembaraar este processo de integrao, que, convenhamos, sofre de paralisia burocrtica e de falta de vontade poltica. Se o objetivo precpuo do bloco de ordem econmica como o prprio nome diz, por que alguns insistem em julgar o temperamento do presidente venezuelano Hugo Chvez ou em buscar qualquer indcio de falta de democracia na Venezuela como se aqui no Brasil tudo estivesse na linha certa?

    Reincide-se, ademais, na confuso entre os termos governo e Estado como se fizessem referncia ao mesmo conceito, embora o primeiro remeta temporalidade e o segundo aluda a uma estrutura burocrtica. O governo de Chvez transitrio. O referendo que se props em defesa de reformas constitucionais, algumas das quais trariam a possibilidade de reeleio em cargos executivos, aprovou-se em demonstrao da vontade popular na Venezuela. Empregaram-se mecanismos democrticos, portanto.

    A oposio brasileira ao ingresso da Venezuela argumenta que Chvez imps um regime antidemocrtico no pas que preside e, destarte, poder engendrar instabilidades num bloco de integrao que deve esforar-se para sair do atoleiro. Acredito no potencial do MERCOSUL e apoio medidas que o priorizem nestes tempos de regionalismo e outras alianas econmicas entre

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    os pases. Em julho de 2006, deu-se incio a uma aventura burocrtica com a assinatura do Protocolo de Adeso da Venezuela.

    Em 29 de outubro de 2009, deu-se um passo importante neste atoleiro. Por 12 votos a 5, a Comisso de Relaes Exteriores do Senado brasileiro aprovou a adeso da Venezuela ao MERCOSUL. S pendia ainda aprovao em plenrio para garantir a posio favorvel do Brasil. Assim, faltaria a voz do Paraguai, uma vez que os parlamentares de Argentina e Uruguai j ratificaram o Protocolo de Adeso. Algo indica que este longo processo est finalmente prestes a colher frutos.

    Embora o maior propsito do MERCOSUL seja comercial, apareceram entraves culturais, polticos e sociais ao ingresso da Venezuela. Qualquer projeto de integrao se pulveriza quando se aduzem as diferenas entre os pases como barreiras. A menos que elas se somem. O Brasil exporta anualmente, para dizer em nmeros redondos, 6 bilhes de dlares Venezuela e importa 1 bilho, ou seja, tem supervit comercial de 5 bilhes.

    Cito, entre outros benefcios do ingresso da Venezuela ao MERCOSUL para o Brasil, o acesso da produo de empresas brasileiras ao mercado venezuelano, a oportunidade de dinamizar a economia da regio Norte, e o alento de engrenar este processo de integrao latino-americana que , dentro deste espao geogrfico, o mais apto a contrabalanar a influncia de outros blocos econmicos no mundo.

    bom renovar os ares no MERCOSUL.

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    4. Animosidades sobre a mudana climtica

    tema da mudana climtica, para uns, pedra no calado porque afeta seus negcios, enquanto, para outros, motivo de ao premente a fim

    de estancar um processo de evoluo apocalptica. O debate mundial acalorado.

    Habitantes de estados brasileiros com reas florestais extensas, como Acre, Amazonas e Par, j se acostumaram a receber notcias de que tantos quilmetros quadrados dos terrenosdestes estados so diariamente desmatados, assim como frequente no interior do estado de So Paulo que as casas se sujem de queimada de cana-de-acar devido a prticas primitivas na colheita. Se experincias ambientais nefastas so to prximas, por que no resolver o problema interno antes de cobrar atitudes de outros pases?

    Os problemas ambientais enfeixam-se num conjunto inadivel de temas, como o da mudana climtica. O modelo de consumo e industrializao danoso est longe de substituir-se completamente. O desmatamento e as emisses de gs carbnico pela poluio veicular e industrial, quando no emitem gases de efeito estufa, colaboram para o aquecimento global. Alguns dos efeitos que j se notam so o derretimento de geleiras e o calor excessivo.

    A questo oportuna no contexto da rodada de negociao sobre mudana climtica que ocorreu em Barcelona, Espanha, em novembro de 2009. Participaram mais de quatro mil profissionais que direta ou indiretamente interferem no assunto. Esta ocasio reuniu esforos pressagiosos ao que se decidiria na Conferncia de Copenhague, que teve lugar na capital de Dinamarca de 7 a 18 de dezembro de 2009 com o objetivo de estabelecer um novo acordo mundial em substituio ao Protocolo de Kioto, que expirou em 2012.

    Todos os pases propem-se discursivamente a cooperar nos debates e nas aes sobre o tema, mas a grande dificuldade que alguns resistem a assumir compromissos jurdicos, como China e Estados Unidos. de conhecimento dos estadistas e de desconfiana dos demais cidados que o procedimento de vinculao por meio de acordos e tratados internacionais

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    moroso. Toma tempo para realizar-se. E um cronmetro com bateria fraca dificulta a ao em reunies oficiais de mudana climtica.

    A presso sobre os Estados Unidos maior devido s assimetrias no papel de cada pas na resoluo de problemas de impacto mundial. Aquele foi premiado jocosamente em Barcelona como fssil do dia, cujo ttulo se

    outorgou pela Climate Action Network (CAN) ou um grupo de mais de 450 ONGs que definem diariamente o pas que mais obstrui a negociao. Ainda, desalentador que o presidente estadunidense Barack Obama deve esperar a postura do Congresso de seu pas antes de tomar decises referentes s questes climticas, ou seja, a legislao nacional sobre a matria deve antecipar a firma de qualquer acordo internacional.

    Ativistas, defensores do meio ambiente e militantes preveem que o evento de Copenhague ser mais um daqueles que rende discursos fericos sobre a mudana climtica e trombam com a burocracia. Antes qualquer reunio que nada, diriam os menos pessimistas. Em seu turno, os otimistas faro o happy hour de fim de expediente com a conscincia tranquila porque tero proferido o necessrio para acalmar as animosidades. O risco que corremos, contudo, o de a natureza sucumbir sob nossos caprichos.

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    5. Mapa das desigualdades

    edefine-se o mapa das desigualdades. No se trata mais de entender a sociedade brasileira e as latino-americanas de modo mais amplo em

    funo unicamente da concentrao de renda, em que se aduz a distino clssica entre ricos e pobres, seno da concentrao de conhecimento, saber e tecnologia.

    A ateno desvia-se para as desigualdades no acesso formao de qualidade, bens e servios que proveem capital cultural, e artefatos com enorme valor tecnolgico que deslizam precisamente na direo dos setores endinheirados. H uma proporo enorme de pessoas que no logra produzir ou obter estes recursos. O mapa a que me refiro transcende a geografia.

    Seria superficial cogitar as desigualdades hoje em dia somente em torno da produo, a circulao e o consumo materiais, como se o aspecto mais importante nas estatsticas de desenvolvimento estivesse no universo do dinheiro. Um diagnstico mais complexo exige pensar nos aspectos culturais, educativos, tecnolgicos e na capacidade de produzir e usufruir deles.

    Em vez de argumentar que o padro econmico determina o educativo, como se o problema fosse s financeiro, prefiro redesenhar o mapa das desigualdades desde o padro de acesso ao conhecimento, informao e tecnologia em segmentos diversos no Brasil. A Internet, por exemplo, ferramenta diria para uns, enquanto outros sequer tm computador e quanto menos banda larga.

    Os jovens compem a camada da populao que tende a aceitar os avanos modernos dos meios de comunicao como naturais, enquanto os ancios observam-nos com desconfiana. Estes questionam as interaes virtuais, o nvel baixo da informao dos canais televisivos de maior audincia, e a falta de ateno governamental na formao dos jovens.

    O contorno atual do mapa das desigualdades desenha-se melhor pelos que olham a mudana de poca desde um intervalo temporal maior e num contexto mundial, uma vez que difcil para um jovem imaginar a vida sem vdeo-jogos, computador, Internet, celular, iPod, mp3, DVD, entre outras facilidades eletrnicas que a juventude maneja com naturalidade.

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    Juntamente com as desigualdades internas, o Brasil se esfora para reduzir o desequilbrio da balana tecnolgica que o aparta dos pases mais desenvolvidos. H sinais positivos no setor areo, no sucro-alcooleiro, e no de explorao petroleira de guas profundas, mas os televisores, os acessrios de informtica e os equipamentos da rea mdica ainda so quase todos importados.

    Estes bens materiais vm de algum pas que, no h muito tempo, investiu na formao de seus cidados para que estesobtivessem conhecimento e desenvolvessem tecnologia. Pases como Coreia do Sul, Japo e Taiwaninseriram-se adiante neste mundo competitivo, enquanto outros, como o Brasil, confiaram demais em seus gros, etanol e petrleo.

    Na escala de desenvolvimento entre os pases, nota-se como os que se situam num patamar superior tendem a investir crescentemente em poder brando e no setor de servios, enquanto a mentalidade industrial ainda anima e resiste como ideal de pases inferiores na escala, como Brasil. Neste, a inaugurao de fbricas com sede noutros pases motivo de orgulho.

    Tenho um ligeiro gosto por pensar nas coisas fora do senso comum. Os pases do topo do desenvolvimento mundial h muito superaram esta fase ou crena na industrializao nacional, que se tem relegado aos pases de posio inferior na escala de desenvolvimento. Se a industrializao for uma etapa inescusvel do capitalismo, estaremos perdidos e definitivamente fadados ao atraso.

    As desigualdades econmicas so cada vez mais preocupantes no Brasil, porm as que trazem maior prejuzo para os rumos de um pas se referem ao grau baixo de conhecimento, saber e tecnologia que seus cidados eventualmente possuam, produzam e difundam. velha a mxima de que conhecimento poder, mas novo o desafio de lev-la a srio no Brasil.

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    6. A completude

    lgo completo s acho que existe nominalmente. Ou aparece no ttulo de ensaios curtos como este ou de poesias que decolam, mas aterrissam

    antes de redundar na especulao. Escrever ou falar sobre a completude requer uma ousadia rara. um atrevimento que est longe de ser indito ou de partir da vontade de uma s pessoa. Em que me inspirei?

    Num dos dilogos por correio eletrnico que abri e no fechei nem acho que o deva fazer com a escritora Marisa Bueloni, que vive no interior paulista, ela me afirmou o seguinte: [...] parece que a gente nunca est pronta [...] Sempre vai ficar faltando algo. [...] Termino um texto, mando pro site e ele publicado. E ali, relendo, vejo como poderia ter escrito de outra forma, com outra sintaxe. Ela agregou:Descubro um vocbulo mal colocado... D uma aflio desesperadora. Mas acho que arte assim mesmo: nunca est fechada, pronta, acabada.

    Conversvamos sobre os desafios em torno da tarefa de escrever um livro, a evoluo de um escritor em relao aos primeiros textos de uma carreira que amadora para muitos, e o principal tema por que o amadurecimento nos deixa, aos habituados escritura, a sensao de que os textos anteriores poderiam haver sido escritos de maneira diferente.

    De ser assim, aguardaramos eternamente o momento perfeito de emitir uma opinio, os artistas plsticos no desenvolveriam suas obras hoje porque amanh podero aprender uma tcnica diferente, os pedreiros no construiriam uma casa jamais porque sempre ficar uma medida pendente, o mdico no atenderia o doente porque lhe faltou conhecer em detalhes algum sistema vital, o dentista no extrairia a crie hoje porque logo o paciente aparecer com outra, e no teria graa ir escola porque o conhecimento no tem limites.

    certo que, quando releio algum dos meus primeiros textos, pergunto-me: Como pude escrev-los em pargrafos to longos? Um tema complicado, assim, logo no incio do texto? No notei esse erro de concordncia? Ser que a leitura no pareceu maante aos leigos? Por que no suprimi esse pargrafo e agreguei outro que fosse mais claro e explicativo?

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    Por mais que revise o texto, a fruta no amadurece enquanto no passem os dias. A completude no poderia obedecer a outra lgica seno a de que tudo tem seu tempo. Mas algo certo. Ainda que os dias, os meses e os anos transcorram, no a alcanaremos. A sede permanecer. Assim como a sensao misteriosa de que algo poderia ter sido diferente.O que no quer dizer melhor nem pior. Apenas diferente.

    Como valorizo alguns breves dilogos! A completude d n nas ideias e embaralha as aes. Se no desato os ns, ao menos puxo o cadaro. O ato h de gerar algum desabafo. Do tipo que caracteriza alguns destes textos concisos de opinio. Eles sempre provocam alguma coceira.

    O tema deste texto instigante, provocador e inescusvel. Persegue-nos a ameaa de completude. Mas no recomendo que se queira sempre completar, seno aparece outro n.

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    7. A geopoltica do ltio

    Japo, embora no disponha de riquezas minerais, um dos pases mais poderosos do mundo, enquanto a Bolvia rica em recursos

    naturais, mas um pas desigual, explorado e pobre. No urge discutir se este mais um exemplo de ironia da natureza ou de m administrao das ddivas naturais com que alguns rinces do planeta so presenteados, porm so incapazes de recompensar as mesmas terras de onde surgem.

    A experincia da Amrica Latina em minerao, com raras excees, de uma troca inqua ou incapaz de materializar-se em retorno como polticas sociais populao, ainda que no s os Estados sejam responsveis por poltica nesta rea.

    cada vez maior a ateno internacional depositada na crosta salina ou reservatrio de Uyuni. Este possui 10 mil km, 180 km de comprimento e 80 km de largura e localiza-se no sudoeste do departamento de Potosi, Bolvia, que uma das regies com maior riqueza mineral no planeta. Esta rea, que est 3.670 metros acima do nvel do mar, possui jazidas de chumbo, prata, zinco, bismuto e resguarda alguns dos maiores projetos de minerao da Amrica do Sul.

    A informao mais notria, contudo, de que a prola dos Andes contm as reservas de ltio mais importantes do mundo, alm de boro, magnsio, potssio e sal comum. Estima-se uma reserva em Uyuni de 9 milhes de toneladas de ltio, que considerado o insumo do futuro em tecnologia. Alguns chamam-no de petrleo do novo sculo em referncia ao papel deste recurso energtico na centria passada.

    No toa que se prognostica o uso massivo de carros eltricos, que supostamente provocariam menor agresso ao meio ambiente, e que cresce o uso de ltio em baterias de produtos eletrnicos com os que estamos habituados. O ltio bastante empregado em computadores e telefones celulares, indstria aeronutica e aeroespacial, e at como agente teraputico em psiquiatria. o mais leve dos metais dispostos na tabela peridica.

    E como o ltio participa de um tabuleiro de geopoltica? Aqui argumento que a conhecida diviso internacional do trabalho entra em jogo

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    novamente. Conquanto quisessem os bolivianos assegurar a explorao nacional das jazidas de Uyuni, empresas privadas asiticas e europeias j esto de olho num potencial que poucos so capazes de transformar num produto de alto valor agregado. Restam Bolvia poucas sadas entre vender o ltio ou deix-lo soterrado sem rendimento algum.

    Pores territoriais de Argentina, Bolvia e Chile na regio andina possuem 70% das reservas mundiais de ltio, o que no nada dispensvel em face do aumento do preo desta matria-prima estes ltimos anos. Pergunto por que o Japo, um pas to pequeno, formado praticamente por quatro ilhas principais no continente asitico, e dependente da importao de recursos naturais para suas indstrias de ponta est to frente das nossas ddivas, prolas e preciosidades latino-americanas?

    Hugo Chvez ameaa mover tropas fronteira da Venezuela com a Colmbia com o objetivo de defesa de uma suposta possibilidade de guerra em resposta ao acordo de uso de sete bases militares deste pas pelos Estados Unidos. Enquanto isso, enviou um correio eletrnico em massa um pesquisador brasileiro que diz ter tido seu acesso a uma reserva indgena em Roraima negado a menos que tivesse cidadania estadunidense ou europeia. Falar de poltica j ligeiramente amargo, mas a geopoltica nos faz ter que engolir situaes intragveis.

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    8. Sentido de poltica

    uso de prefixos nos idiomas s vezes embaralha nossas ideias. Os prefixos convidam-nos a entender previamente o significado das

    palavras que os seguem: anti-capitalista, ps-moderno, superestrutura, supracitado, ultra-conservador. Se os termos vo com ou sem hfen, j outra histria. O tempo nos adaptar s novas convenes sobre a lngua portuguesa.

    Temo-nos relacionado de uma maneira distante e preconcebida com a poltica como se esta nos rememorasse um bicho de sete cabeas. Sem pretenso de acreditar que a poca atual a-poltica, em aluso aos que creem eximir-se das relaes oficiais de poder, ou ps-poltica, cuja expresso supe uma fase posterior de mimetismo incompleto do que um dia este universo de ordenao do poder representou, o que se v hoje so nuanas de um nico fenmeno.

    Seria irresponsvel de minha parte veicular o tema fora dos conjuntos da arte, a economia, a sociedade, e outros que compem sua complexidade. Por isso, desenvolvem-se campos do conhecimento como o da cultura poltica, a economia poltica, a sociologia poltica, entre outros. Gosto de traar paralelos entre inquietaes populares e saberes acadmicos a fim de no redundar num texto maante sobre tema banal.

    A primeira crtica que fao sobre a desvinculao cultural do cidado com a esfera de relaes polticas. Explico-me noutras palavras: o dissabor, o descrdito e o afastamento com relao ao mbito da poltica no implica perda de vnculo real dele, uma vez que somos obrigados a votar, pagamos impostos e tributos variados, recorremos frequentemente a servios pblicos e, vez ou outra, reclamamos de alguma ao mal prestada.

    A outra crtica sobre o nosso despreparo em ser cidados. No sabemos ser cidados. A maioria da populao desconhece as garantias jurdicas mnimas, incapaz de reivindicar direitos e, quando o faz, busca recursos que no foram oferecidos pelas instituies de governo. O dilogo com secretrios municipais atravs de cartas em jornais e a crena de que um governante deve prover tudo so exemplos do descompasso a que me refiro.

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    Quando escrevo algo sobre poltica, j o fao com a inteno de esclarecer pontos nebulosos e a ressalva de associ-la a outras esferas, como a cultura. Cada vez que a lapiseira meu cmplice neste assunto, sinto o af de redirecionar o que entendemos por poltica. H um movimento grande para deslegitim-la, ausentar-nos de nossos direitos e deveres, e recrudescer a influncia do mercado em relaes que este no est preparado para mediar.

    dignificante ser cidado, saber exercer esta prerrogativa e conhecer seu alcance e seus limites. A poltica com cidadania o que todos os brasileiros teramos o prazer de nutrir, reverenciar e sustentar. Ao contrrio, uma poltica sem cidadania vazia e dela no tiramos proveito como habitantes de uma nao moderna. cedo usar os prefixos a ou ps quando ainda no se entende o sentido de polticanem se usufrui dele.

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    9. O atrativo dos museus

    o h visita que eu faa a algum museu sem observar a reao dos espectadores: as obras que mais lhes chamam ateno e a maneira

    como se consomem objetos artsticos e histricos. Qual a funo do museu? A organizao do acervo, o conhecimento interdisciplinar, a museologia e o patrimnio alertam sobre o carter educativo deste espao de memria que, a exemplo do Museu da Lngua Portuguesa em So Paulo, no serve somente para expressar o passado.

    Se as sociedades so complexas, por que a linguagem e o contedo dos museus teriam que ser simples? Os museus so lugares de manifestao, preservao e reconhecimento de nossas riquezas culturais que merecem considerao especial. As visitas de brasileiros a museus no Brasil so pouco frequentes, porm curioso que estes espaos de cultura sejam prioridade de turistas brasileiros na Europa,diferentemente dos olhares apressados e negligentes que percorrem os lugares correspondentes no prprio pas.

    Dados do Anurio de Estatsticas Culturais do Pas de 2009, do Ministrio da Cultura, indicam a existncia de 1.496 museus no Brasil, que se distribuem irregularmente entre os estados. As unidades concentram-se nos estados de So Paulo (410), Rio Grande do Sul (358), Minas Gerais (308) e Rio de Janeiro (194). As regies Sul e Sudeste possuem-nos em maior nmero. Enquanto praticamente metade das cidades gachas conta com museus, o estado todo de Roraima s possui trs.

    H formas variadas de manifestar, preservar e difundir as culturas de uma regio, alm da pergunta que surge sobre o que pode ser objeto de museu devido ao que um grupo valoriza mais ou menos de suas identidades. Ainda, possvel pensar na diferena entre apreciar uma pintura rupestre aborgine de milhares de anos num museu a cu aberto no Piau e visitar um museu em Braslia sobre a curta histria poltica da cidade. Embora soem bem distintas, as duas experincias so representativas do pas.

    O problema dos museus que no ocorre s no Brasil que costumam demandar um oramento pblico considervel para sua manuteno, a menos que sua reputao ou algum outro atrativo convertam-nos numa fonte de renda privada e lucrativa. Caso contrrio, eles dependero

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    de excurses escolares e visitantes que no gastam mais que poucos segundos no usufruto de objetos de museus at passar ao seguinte acervo ou prxima sala de exibio. O museu envolve estudo, labor, lazer e interatividade.

    A fim de estimular a visitao, promover a diversidade cultural e defender a preservao de identidades, deveria haver sempre alguma rotatividade em parte das obras nos museus, alm do emprego de outros recursos que despertem o interesse mais amplo da populao nestes espaos de cultura. O uso de novas tecnologias, a interao entre o objeto e o espectador e a relevncia de entend-los no s em funo da memria somam pontos a seu favor.

    Velhas concepes sobre o que ou deveria ser objeto de museu corroem-se diante da intensidade da brisa que sopra na direo da importncia da manifestao, preservao e difuso das identidades para o desenvolvimento do pas, para a diverso como aliada da funo educativa, e para a referncia histrica que revela os contornos de quem, como, onde e por que somos. Por fim, as vestes atuais dos museus prometem fazer a moda de um mundo onde se espera cultuar as diversidades.

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    10. A fome e o fim do mundo

    capacidade destrutiva do ser humano triunfa. H os que dizem, ao contrrio das tentativas que se dedicam a bendizer-nos, que o

    aniquilamento sempre foi uma caracterstica intrnseca desta espcie. Desinteressados na resoluo de problemas precpuos, acabamos sendo espectadores de uma arena de luta cultural e tcnica sem precedentes. Isto tudo ocorre ao mesmo tempo em que a maior expresso de agonia resume-se em teses apocalpticas do fim do mundo em 2012.

    Antes de que a humanidade supra suas carncias bsicas e reformule sua relao com a natureza, alguns prognosticam que finalmente os gros sero selecionados a fim de equilibrar a nossa senda evolutiva. Ainda que eu tenha ressalvas diante deste argumento, acredito que as tochas que renitem acesas nas nossas mos devem iluminar atitudes e esforos para que os pases dialoguem em irmandade e desapaream situaes nefastas, como a fome.

    Para tratar de uma das mazelas do mundo, o combate crise alimentar e a luta contra a fome foram os objetivos temticos da Cpula Mundial de Segurana Alimentar, que se realizou em Roma entre 16 e 18 de novembro de 2009 e foi promovida pela Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e a Alimentao (FAO, da sigla em ingls).

    Em foros anteriores, o prazo para erradicar a fome mundial havia sido estipulado para 2025. Estas reunies tomam em conta que os preos dos alimentos nos pases em desenvolvimento so elevados, o nmero de famintos aumenta no mundo, e a questo afeta um de cada seis seres humanos, o que no uma quantidade desprezvel. Na ocasio da Cpula de Roma, no se reiterou uma data limite para acabar com a fome mundial nem se firmou um acordo para que os pases mais desenvolvidos destinassem novos recursos para incentivar a agricultura.

    O alerta de que a populao mundial cresceria mais rapidamente que a proviso de alimentos no recente, porm h um cenrio apocalptico quando este problema se alia ao do desmatamento, da mudana climtica e do depsito de lixo em lugares inadequados. Demandam-se maiores investimentos agrcolas nas regies em que residem os pobres e famintos, principalmente de Amrica Latina, frica e sia, enquanto o protecionismo

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    dos pases mais ricos prejudicial s economias menos desenvolvidas. Vale recordar que a agricultura fonte de renda para 70% dos pobres no mundo.

    Na Cpula de Roma, props-se a necessidade de uma governana mundial para regular as questes alimentares, uma vez que a balana tem pesado mais de um lado a partir dos esforos concentrados nalguns pases. Porta-vozes da organizao no-governamental Action Aid Internationalafirmaram que Brasil, China e ndia tiveram o melhor desempenho na reduo da fome. Nesta avaliao, releva-se a poluio atmosfrica na China e a contaminao de gua e esgoto na ndia.

    A crena no fim do mundo transforma-se em convico quando se avalia o tema da fome, mas talvez no to precoce quanto as previses para 2012. Contudo, triste aceitar que os clculos cientficos apontam nessa direo apesar da descrena de alguns. Somente no quesito alimentao, um bilho de seres humanos sobrevivem com fome ou no resistem. Regies inteiras do planeta so esquecidas pelo progresso material de outrem. Para um final apocalptico, devem-se juntar fatores. J os acumulamos de sobra.

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    11. A vez do Ir

    s Estados Unidos, incapazes de manter sua hegemonia sobre a Amrica Latina, pressionam a comunidade internacional para

    sancionar o Ir devido ao acercamento diplomtico deste pas regio. A encenao estadunidense vai em contra do reconhecimento de que o mundo deixou de ter um suposto patro para assumir uma realidade multipolar. Ainda que um governo mundial seja impertinente em relaes

    internacionais, a poltica exterior dos Estados Unidos ainda acredita que poder obt-lo.

    Teer torna-se um dos maiores inimigos de Washington ao abrir embaixadas na Amrica Latina, estabelecer dilogos e acordos com lderes da regio e propiciar o intercmbio das culturas orientais com as nossas. Vozes afirmam que o Ir aproximou-se da Amrica Latina porque a poltica exterior de George Walker Bush negligenciou esta regio, que era tida como esfera de influncia dos Estados Unidos. Ser rancor de um projeto de Amrica para os americanos que no deu certo?

    o cmulo da hipocrisia que os Estados Unidos condenem o programa nuclear do Ir e as Naes Unidas apliquem sanes a este pas. Recordo que Iraque, Ir e Coreia do Norte foram tachados pela diplomacia estadunidense de Eixo do Mal. O Iraque recebeu uma invaso covarde em maro de 2003, enquanto a Coreia do Norte foi objeto de especulao internacional por haver testado armamento balstico e nuclear. Onde est o direito de defesa nesta anarquia (falta de governo) mundial?

    O Ir converteu-se em inimigo dos Estados Unidos porque sustenta culturas e valores diferentes, interesses que se opem ou conflitam com os deste pas. O Ir , ademais, chamado pelos Estados Unidos de terrorista e tido por eles como uma ameaa paz mundial devido ao seu programa nuclear. As reaes estadunidenses encolerizaram-se pelo estreitamento de laos do Ir com Venezuela, Bolvia, Cuba, Equador, Nicargua e Brasil. Com a Bolvia e s para citar um caso, houve um acordo de cooperao de mais de 1 bilho de dlares.

    A Amrica Latina aguardou a chance de libertar-se da coleira que a prendia aos ditames dos pases centrais, que sempre tiveram armas nucleares e

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    cometeram atrocidades piores que as que acusam o governo iraniano. Ainda que no concordemos com toda linha ideolgica do Ir, como nas acusaes de desrespeito aos direitos humanos, as relaes bilaterais e multilaterais prescindem de uma convergncia total. A ameaa implcita do Ir de que o mundo seja menos inundado pelo capitalismo estadunidense. O foco da questo a reduo da importncia dos Estados Unidos na Amrica Latina e o ganho de espao de naes que pressionam pelo multilateralismo.

    O governo do Ir quer tambm estreitar relaes comerciais e culturais com o Brasil, sobretudo nas reas de adubos, gs, energia nuclear, medicina e petroqumica. O Brasil importa dos iranianos combustveis, frutas secas, tapetes e peles. O Ir tem pesquisa avanada em medicamentos, apresentou ao mercado alguns deles contra o cncer e a diabete, e abastece 80% das necessidades internas no setor. A taxa de analfabetismo iraniana de entre 2% e 3%, e 45% da populao tm curso superior.

    Brasileiros que vivem em Teer, capital do Ir, relatam que a maioria da populao deste pas bem educada e tem interesse no Brasil. O presidente iraniano, que est no poder desde 2005, fez uma visita simblica ao nosso pas em 23 de novembro de 2009. Argumentos de uma reeleio conturbada e questionada e da imposio de freios liberdade so insuficientes para conter esta oportunidade para o Brasil, cujo governo favorvel ao programa nuclear com fins pacficos, e para o restante da Amrica Latina.

    A aproximao do pas onde prosperou a antiga Prsia Amrica Latina tem muito menos de prejudicial a ns que aos pilares imperiais dos que se qualificam como Americans. Chegou a vez do Ir. E tambm a nossa de ser parte efetiva do continente americano sem preconceitos desmedidos.

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    12. Espionagem moda latino-americana

    Peru tem acusado o Chile de espionagem. O assunto tem dado o que falar.

    Poucas vezes um tema de filme hollywoodiano inspira os acontecimentos perifricos ou terceiro-mundistas. Existe uma linha divisria que separa as atividades dos gigantes das dos anes. Isto no significa que estes sempre aspirem a discutir assuntos da mesma ordem ou que precisem de preparao para todos eles.

    Em resposta s acusaes do Peru, vozes oficiais do Chile naturalmente negaram que houvesse um espio em Lima, capital do Peru. Ou algo como um suboficial que agia a servio das foras armadas chilenas.

    Uns incitam os pases latino-americanos a levantar a cabea e enfrentar os problemas como atores de relevo, enquanto outros culpam, como de costume, o nosso vizinho do Norte e a estratgia estadunidense de desestabilizar os nossos frgeis pases. Os menores fazem-se de indefesos, enquanto os maiores pretendem ser mais do que so na Amrica Latina.

    Pela definio, espionagem uma atitude secreta destinada a obter e transmitir informao sobre um pas, especialmente no mbito de defesa nacional.

    Apesar da suspeita de que a ao espi no Peru no recente, as acusaes fundamentam-se na transmisso de documentos sigilosos via correio eletrnico entre 2008 e 2009. O anonimato que se consegue pela Internet virou objeto de investigao de Estado. Junto com os avanos nos meios de comunicao, prope-se o combate a crimes virtuais.

    As relaes diplomticas entre os dois pases andinos, que j no estavam em seu melhor momento, cambalearam. Peru e Chile mantm boas relaes comerciais, porm j disputaram pores territoriais e a histria frequentemente aponta alguma hostilidade entre eles. Litgios entre Peru e Chile j alcanaram cortes internacionais de arbitragem.

    O princpio de no-interveno nos assuntos internos de outro pas emerge da argumentao de peruanos que temem o avano do Chile onde

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    este no chamado. Acordos e negociaes infelizmente nem sempre se cumprem, porm.

    Ainda, um fator eleitoral evidencia o desgaste entre Peru e Chile. A aprovao da presidente chilena Michelle Bachelet muito maior que a do peruano Alan Garca em seus respectivos pases. O Peru tem sido palco de confrontao entre os indgenas em defesa de suas terras e de seu modo de subsistncia e a investida de ocupao do governo peruano segundo seus planos de aproveitamento agrcola.

    O entendimento diplomtico entre Peru e Chile passa pelo cenrio interno perturbado no primeiro pas com relao s polticas de Alan Garca e pela resistncia ao modelo de desenvolvimento chileno mais alinhado aos Estados Unidos.

    A acusao de espionagem eleva a questo a um patamar de briga de gigantes onde incide a desconfiana, a traio e apelaes de vrios tipos. A Amrica do Sul atravessa um perodo conturbado, uma vez que o conflito tem sido recorrente entre vizinhos. Peru e Chile numa arena; Colmbia e Venezuela noutra.

    Nunca a regio esteve to dividida relativamente aseus planos de desenvolvimento e seus projetos de nao. por isso que os Estados Unidos tm intervindo pouco nesta rea de influncia que noutros perodos histricos. No h necessidade. O sonho integracionista da Nossa Amrica incorre em pesadelos. melhor que ningum se atreva a espion-los.

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    13. Pirataria e iluses da cidadania

    combate pirataria um desafio fora de poca para o nvel de desenvolvimento do Brasilque aprofundaria a marginalizao em que

    muitos consumidores e trabalhadores se situam. Os primeiros so incapazes de pagar o preo que se pede de certos produtos no mercado, enquanto os trabalhadores so vtimas da informalizao do emprego.

    O ciclo da pirataria perpetua-se porque h pessoas insatisfeitas com o preo elevado que se cobra pelos produtos autnticos e originais, e que sao desinformadas do impacto que a comercializao ilegal de produtos gera na economia formal de um pas e na perda em arrecadao tributria; h tambm outrosque resistem a contribuir para o inchao da mquina estatal, que ainda no descobri se est a favor do povo brasileiro ou se uma sanguessuga.

    O Plano Nacional de Combate Pirataria tem trs vertentes: econmica, educativa e repressiva. A ao visa a monitorar todo o processo de produo, transporte, recepo e venda de produtos piratas no Brasil. Em 3 de dezembro, comemora-se o Dia Nacional de Combate Pirataria e Biopirataria. Quando nos rendemos ao descrdito no pas, propostas charmosas mas anacrnicas surgem.

    A orientao oficial sobre este tema tem sido precipitada. Protege-se a indstria em vez do cidado. Antecipa-se uma era de direitos que se est longe de assegurar-nos. Por que? Enquanto se fala de defesa de todo tipo de propriedades (inclusive da propriedade intelectual), somos constantemente furtados, roubados, assassinados, mutilados, violados, enganados, corrompidos e desgastados na nossa cidadania.

    O Brasil est beira de uma guerra civil. O fogo do drago capitalista alastra-se por estas terras aparentemente pacficas em busca de uma fera que resista na mesma proporo. Esbraveja-se sobre a perda de 2 milhes de empregos formais com a pirataria, a sonegao fiscal de at R$30 bilhes e o crime contra a propriedade intelectual. Falo de algumas modalidades de reproduo capitalista que abocanham os despreparados.

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    O principal argumento dos combatentes pirataria o de que o governo e as empresas nacionais sofrem respectivamente de perdas em arrecadao e seus negcios. Muito do que se perde, no entanto, prejuzo de monopolizadores de marcas e produtos (muitas deles so empresas estrangeiras), portanto no de interesse nacional mobilizar exaustivamente e com dinheiro pblico fiscais, investigadores e policiais para combater este tipo de delito. No recomendvel que assim seja nas condies atuais.

    Mfias brasileiras, chinesas, coreanas, libanesas, entre outras, atuam na pirataria internacional. A Receita federal tem confiscado toneladas de produtos contrabandeados, falsificados ou piratas, como bebidas, alimentos, cigarros, medicamentos, culos, relgios, CDs, DVDs, componentes de informtica. Muitos destes produtos so destrudos, mas tambm se entregam os que esto em boas condies como doaes ou para leiles.

    O tema da pirataria exige uma resposta efetiva do poder pblico em pases adiantados e srios. No Brasil, porm, h questes inadiveis para os cidados, como a de garantir emprego para a maioria de sua populao e promover a concorrncia entre empresas de certos ramos industriais. Enquanto no se resolvem problemas prementes, continuaremos sendo iludidos por pessoas que fingem que fazem bem seu trabalho.

    Apesar das ideias que expus acima, no defendo a pirataria. Muito menos a de alimentos e medicamentos. A atividade indica, contudo, o sintoma de uma chaga no nosso pas. As polticas tm-se concentrado no efeito e no na causa das molstias. Enquanto isso, perdemos como consumidores e trabalhadores. Estamos cansados de renunciar cidadania.

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    14. O idioma guarani

    ingls o idioma que se adota convencionalmente e instrumentaliza a possibilidade de comunicao entre povos distintos em qualquer

    rinco do mundo. Sua hegemonia tambm se expressa na informtica, cuja linguagem majoritariamente inglesa. O chins e o japons so dois idiomas em ascenso. Noutros tempos, o alemo e o francs eram a primeira escolha no Brasil depois da obrigatoriedade do portugus. Hoje o espanhol ganha espao. Nenhum destes idiomas, porm, genuinamente americano.

    A lngua um instrumento de expresso, poder e resistncia. Atravs dela e sobretudo nos pases da Amrica Latina, chegaram-nos ameaas, ideias, religies, valores e a busca insacivel de comrcio. Hctor Lacognata, um parlamentar paraguaio, props que o guarani se convertesse numa das lnguas oficiais e de trabalho do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), cujo projeto de integrao a maioria dos cidados pertencentes ao bloco ainda no sabe o que nem para que serve.

    O ponto de partida de meu argumento que o guarani falado por pouco mais de dez milhes de pessoas de regies do Paraguai, Argentina, Bolvia e Brasil. O guarani e o espanhol so as duas lnguas oficiais do Paraguai, enquanto a primeira tornou-se tambm oficial desde 1992. O guarani falado por mais de 90% dos paraguaios, 27% deles s falam este idioma, e oficial tambm na provncia argentina de Corrientes. Em algumas regies paraguaias, o guarani mais relevante que o espanhol.

    Alm de rebater as crticas que se fazem s assimetrias do MERCOSUL ou pequenez do Paraguai diante da gigantez econmica do Brasil, a oficializao do guarani no bloco atenderia a parte das reivindicaes indgenas da dvida histrica que se tem com estes povos. O guarani um idioma de origem amerndia e considerado o primeiro da categoria a conquistar a posio de oficial na Amrica. O risco de extino de um idioma sempre maior quando no houver este tipo de reconhecimento.

    Por ser uma lngua de existncia prvia vinda de Colombo Amrica e em respeito s razes indgenas como uma das vertentes de nossa formao, reconheceu-se finalmente o guarani como um dos idiomas oficiais do MERCOSUL. Este avano teve lugar na 37 cpula de presidentes do

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    bloco em Assuno, Paraguai, nos dias 23 e 24 de julho de 2009. uma vitria no s dos indgenas da regio, mas tambm daqueles que lutam pela preservao das nossas identidades.

    prefervel aprender um idioma nosso, que seja autenticamente latino-americano, a intercambiar expresses e ideias com roupagem alheia. A Unio Europeia contm dezenas de idiomas oficiais at de regies cuja populao no passa de um milho de habitantes. Por que aqui no se d a ateno devida ao guarani, j que os outros idiomas nativos tm caducado? A Amrica Latina tem a oportunidade de dar exemplos ao mundo.

    Esta ateno concedida ao idioma guarani no significa um incentivo ao abandono gradual do portugus e do espanhol nos pases do MERCOSUL seno uma maneira de dar voz a uma de nossas razes, que a indgena, e de valorizar o que daqui sem qualquer sentimento de atraso e culpa. Os pases ditos desenvolvidos, ao contrrio do que transmite a histria, tero que aprender o guarani e respeitar o espao cultural latino-americano.

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    15. De excessos e carncias

    o pude conter a emoo enquanto lia uma nota de um jornal jamaicano pela Internet.

    Ela estampava que, no Sudo, 2.000 pessoas morreram e 250.000 tiveram que abandonar suas casas devido violncia somente durante o ano de 2009. O pas sofre de uma grave crise humanitria. O mundo sensibiliza-se quando a vtima notria. No 11 de setembro de 2001, foi assim. Por que quase no se fala do genocdio que toma lugar no Sudo?

    Atravessado pelo caudaloso rio Nilo, que noutros tempos proveu condies para o desenvolvimento de civilizaes pomposas, o Sudo completa o mapa da pobreza na frica. No obstante a funo de bero da humanidade que se lhe atribui a este continente, alguns dos indicadores mais tristes de desenvolvimento no mundo residem nas margens banhadas pelo Nilo. Entre outras mazelas, a regio hospeda o analfabetismo, a desnutrio e a seca.

    Toda brisa que sopra de ultramar rebate no excesso de problemas que cultivamos por aqui na Amrica Latina. A nossa uma poro de terra de uma imitao descomedida. Enquanto isso, a cara-metade (fao referncia aqui frica) que um dia nos conectou na Pangeia sofre conflitos tnicos, disputas territoriais e desrespeitos ao semelhante. Vozes opacas s se referem aos piratas da Somlia e a outras ameaas ao maldito livre mercado.

    No podemos aceitar vises to encobertas e interesseiras.

    Pensar na harmonia mundial no s um pretexto para a realizao de conferncias sobre mudanas climticas. Queremos saber o que est acontecendo no Sudo, por que tantos morrem ou fogem anualmente, quem pode fazer a diferena para um plano de assistncia humanitria neste pas e que destino tm milhes de crianas que se entregam involuntariamente aos urubus.

    O Sudo no possui um nico conflito. Ao menos dois despertam a ateno: um deles a guerra civil entre o norte e o sul do pas que durou mais de vinte anos e reaparece na busca de independncia do sul, cujo tema foi votado no incio de 2011; o outro o conflito tnico-cultural que se iniciou

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    oficialmente em fevereiro de 2003 na regio de Darfur, oeste do Sudo, e espalha a violncia.

    A regio tem atrado grupos pacifistas e defensores dos direitos humanos. Houve uma misso de paz organizada pelas Naes Unidas, porm o procedimento de repartio poltica do continente africano rendeu divises e rixas incrontrolveis. No mesmo espao geogrfico pertencente ao Sudo, grupos rivais esto dispostos a promover o massacre para alcanar seus objetivos.

    guisa de recapitulao, a nota que li sobre o Sudo na imprensa caribenha me fez recordar a persistncia do problema. To grave e to ignorado. No Brasil, as enchentes trazem infortnios e perdas; alhures, milhares de pessoas morrem de falta de gua. De excessos e carncias, temos histria para contar.

    Ursos polares encurralam-se em geleiras, enquanto corpos depositam-se em valas no Sudo. Notas periodsticas sobre fatos de outros pases induzem-nos a uma leitura idlica da desgraa; quando no a um passar de olhos apressado. Por que nos preocuparia este acontecimento? Ainda mais sobre o Sudo: pas pobre ao qual muitos duvidam que haja soluo.

    A Terra, porm, obedece a um ciclo de rotao. Alm disso, a Conferncia das Naes Unidas sobre as Mudanas Climticas em Copenhague de dezembro de 2009 teve enorme audincia. bom lembrar.

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    16. Brasil de pernas abertas

    setor produtivo ocupa esferas inimaginveis. Mal podemos conceb-lo. A respirao, por sorte, realiza-se involuntariamente. Como se no

    bastasse, decises importantes para o Brasil tm sido tomadas por pessoas ineptas e que sustentam o interesse prprio. Este artigo clareia a viso dos que ainda definem suas vidas em funo das exigncias do mercado.

    H rastros to fortes de mediocridade neste pas, que temos perdido o senso de coletividade: empresas assenhoreiam-se do espao pblico, direitos s servem para dar emprego a burocratas e ludibriar os que ainda creem na cidadania, o clientelismo corri segmentos diversos da vida em sociedade e h os que dizem que fenecem os que no fizerem parte do sistema.

    Confesso que, quando divago sobre as mazelas do Brasil, no sei por onde comear. Enfoco um problema e logo descubro que h uma srie de outras peas de domin que no tomei em conta. O contraponto bsico a que me refiro, a fim de que no haja chiado na estao, de que tudo voltado ao setor produtivo em nosso pas. Dessa forma, uma conversa descontrada pode-se converter em negcio.

    O crescimento exagerado da populao um negcio; o excesso de mo-de-obra desqualificada um negcio; os recursos naturais, desde a poca em que recebamos naus portuguesas, um negcio; a ignorncia um negcio; a perenidade de um campo de oposio entre Estado e mercado nos debates polticos tambm um negcio. Sobre este ltimo argumento: pagamos impostos elevadssimos Mquina Pblica, porm dependemos ainda de planos de sade, seguros de automveis e pedgios em rodovias.

    Palestras de motivao empresarial muitas vezes me causam preocupao, qualquer tentativa de converso de algo em negcio me provoca repdio, e o caminho que o Brasil tem trilhado tanto interno como externo de uma prostituio barata. Nossos jovens esto sendo convidados a se profissionalizar para servir o resto da vida como mo-de-obra descartvel de grandes empresas sanguessugas.

    O pas est de pernas abertas. Nossos polticos ainda se acham autoridades e no notam o funeral que se lhe reserva categoria. A soluo

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    encontrada por muitos cidados a de descentralizar a poltica, criar formas paralelas de poder atravs de movimentos sociais e organizaes no-governamentais, mostrar-lhes que no nos serve uma poltica que no escuta os cidados.

    E o tal do setor produtivo como volta nesta histria? Dogmas do trabalho incentivam a insero nele o quanto antes por necessidade, valor ou para engordar indiretamente o bolso de poucos. O labor no capitalismo muito diferente de seu conceito num sistema alternativo, socializante, onde se trabalha para a humanidade. O primeiro modelo est vinculado a uma ordem concentradora, cruel e enganadora.

    O trabalhador iludido at mesmo em suas poucas horas dedicadas ao lazer. Nelas, o setor produtivo entra novamentequando se faz uso da televiso aberta, mas com investimento elevado em publicidade de grandes marcas que no do vez s pequenas, ou de espaos que se cedem iniciativa privada para a emulao da modernidade. Os shopping centers so uma mostra dos males urbanos.

    No fazemos ideia do que significa contratar um mal motorista para a locomotiva chamada Brasil. O pas est uma desgraa. til para investidores que s querem espoliar o nosso dinheiro. Pagamos caro nos impostos, combustveis, pedgios. No sei como no estamos em guerra civil. Dizem que somos um povo pacfico. Discordo. Somos explorados, ignorantes e submissos.

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    17. Brasileiros no Suriname

    interior do Suriname foi palco de um episdio de violncia que os grandes meios de comunicao insistem em velar que so comuns no

    Brasil. Enquanto se criticou o pas vizinho como uma terra sem leis porque

    a polcia no mostrou a cara quando foi necessrio, como poderamos comparar o Suriname com o Brasil e a institucionalizao do banditismo que transforma a nossa legislao em patrono dos poderosos?

    Era vspera de Natal. Durante a reunio de famlias na noite de 24 de dezembro de 2009 em Albina, regio fronteiria com a Guiana Francesa e a 150 quilmetros da capital Paramaribo (no Suriname), houve um ataque com cassetetes, facas e faces a mais de 200 estrangeiros no Suriname. Golpes atingiram quem estava na frente. No foi, portanto, um ato discriminado contra brasileiros porque, entre as vtimas, havia tambm chineses, javaneses, colombianos, peruanos e pessoas de outras nacionalidades.

    Por alguns dias, s se falou deste assunto. E no toa. A nuvem do sensacionalismo encontrou seu espao para situar brasileiros, como sempre, na arena das vtimas.

    Responsabilizaram-se pelo ataque os quilombolas surinameses conhecidos como marrons, que at ento conviviam pacificamente com estrangeiros, segundo alguns depoimentos. O que provocou a ira dormente dos nativos? Duvido que um ato isolado mobilizaria centenas de surinameses, como num conluio, a agredir, depredar, estuprar, queimar carros e casas. Faltam peas neste quebra-cabea.

    O Suriname j sofreu de colonialismo, ditadura, conflitos tnicos, penria, contrabando, trfico de drogas. Por causa destes problemas, o setor comercial contratou segurana privada para conter a violncia. A uma populao total de 440.000 surinameses, somam-se mais de 15.000 brasileiros que trabalham no garimpo de ouro. Entre as vtimas de nacionalidade brasileira, a maioria exerce atividade ilegal no pas.

    Logo aps o episdio, avies oficiais brasileiros pousaram no Suriname em misso de resgate, porm uma minoria das vtimas brasileiras quis regressar. Voltariam ao Brasil para fazer o que? No simples

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    reconstituir o ambiente de trabalho. Tudo indica que melhor roubar por l que ser roubado por aqui. Naquela ex-colnia holandesa que se independentizou em 1975, o contrabando uma forma de no pagar o imposto de 38% criado pelo governo surinams sobre o lucro das vendas de ouro.

    O trfico de drogas e o contrabando de ouro so algumas das modalidades de banditismo que o Brasil exporta. Muitos vo para fazer coisa errada. Antes de sensibilizar-se com a viso dos brasileiros no Suriname, ainda que a violncia no se justifique em lugar algum, nunca demais recordar do massacre que o Brasil promoveu covardemente no Paraguai no sculo XIX pela guerra da Trplice Aliana. Triste lembrana. Exterminou-se quase a totalidade da populao masculina paraguaia.

    A mensagem deste conflito de que o Suriname dos surinameses. Faz-se o mesmo naquele pas por forasteiros que se fez no Brasil em prol de pases mais poderosos e em prejuzo dos recursos naturais locais. Naes vizinhas buscam maneiras de resistir ao fluxo internacional de empreendedores e mo-de-obra desde o Brasil, que no tem sido capaz de assegurar a justia interna no trabalho. Se os atos ilcitos esquivaram o governo surinams, no tiveram a mesma felicidade com os nativos.

    Provoca indignao que, na chamada da oportunidade, brasileiros reproduzam modelos de explorao e prticas ilegais noutros pases. Algo no est bem na nossa relao com os vizinhos.

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    18. Propaganda enganosa

    poltica de incentivo ao uso de etanol no Brasil nos convida novamente arena de circo. Como se no bastassem os assaltos constantes ao

    nosso dinheiro, a gasolina ser mais vantajosa que o lcool por alguns meses para a decepo dos portadores de carros bicombustveis (flex). A propaganda a favor da substituio dos tanques de combustveis foi ostensiva anos atrs. Hoje nem todos os brasileiros temos pacincia para fazer o clculo dos 70% antes de abastecer. Fomos enganados.

    O Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento culpou o excesso de chuvas no perodo de colheita de cana-de-acar, que inibiu o corte de mais de 60 milhes de toneladas. A mesma instituio pblica federal previu que o mercado de etanol se normalizaria em at 120 dias. Est na moda culpar as chuvas pela incompetncia humana no Brasil. Foi assim no apago de novembro de 2009, que, para mim, no passou de uma conspirao, um evento mal explicado.

    Ainda que a produtividade tenha aumentado na transformao de cana-de-acar em etanol devido aos avanos tecnolgicos, o preo do etanol se determina pelo mercado internacional. Vale apontar que 2/3 do etanol brasileiro exportado porque convm lucratividade da indstria de lcool. Portanto, o argumento da falta de chuvas improcedente. Explico: o lcool no teria faltado aos brasileiros pela colheita menor de cana-de-acar se no houvesse sido mandado ao exterior pelo atrativo do mercado internacional.

    Para os produtores de etanol, o raciocnio simples: em vez de produzir dez litros por um real, podero vender cinco litros pelo mesmo preo final se o lucro for maior.

    Se o Brasil tivesse uma poltica de segurana energtica, assim como os Estados Unidos elaboraram a sua para proteger o consumidor estadunidense, o etanol seria um produto barato para o consumo interno e o brasileiro teria prioridade em seu comrcio. A servilidade do governo tupiniquim aos latifundirios e ao mercado internacional obriga-nos a fazer preces para que o preo do etanol baixe ou para que chova menos no prximo vero.

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    O dessangramento do consumidor brasileiro no pra a. Com a reduo da safra de cana-de-acar da ndia, que um dos maiores produtores mundiais, o Brasil tende a abastecer o aumento de demanda internacional em detrimento do consumo interno. Ainda, fala-se do risco de as usinas substiturem sua produo de etanol pela de acar devido alta do preo internacional do segundo produto. Logo se anunciou a poltica que reduz provisoriamente de 25% a 20% a percentagem de lcool na gasolina a partir de fevereiro de 2010. O mercado determina se o brasileiro estar satisfeito ou no.

    Resumindo: somos imensamente roubados neste pas! Por isso que h dois Brasis: um dos tolos e outro dos instrudos. A complacncia dos tolos inibe a insatisfao dos instrudos. O resultado da equao a injustia com a nao. Aos poucos, a seriedade cede espao ao circo e a instruo vira motivo de zombaria. Qualquer brasileiro colhe portanto a mofa antes do respeito.

    Energia uma questo estratgica em qualquer pas. O Estado tem a obrigao de zelar por ela. Em vez disso, o jbilo pela descoberta de petrleo na camada pr-sal contraria o discurso oficial de aumentar o uso de energia limpa no Brasil. Quando o pas tem a chance de ser o exemplo mundial com o uso de etanol e biodesel, ele sofre esta recada em modelos de apropriao de petrleo.

    Trata-se de uma propaganda enganosa ou de reflexos de um pas que no sabe aonde quer chegar?

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    19. Verdadeiro ou falso

    relao intergovernamental entre Colmbia e Venezuela no est nos melhores momentos. Apesar de parecerem dois irmos que no se

    bicam, o discurso do presidente colombiano lvaro Uribe reitera que a poltica exterior de seu governo preza pela irmandade entre os povos que habitam estas naes. At este ponto vlido o que ele diz. O conflito, nestas condies, situa-se na arena de interesses divergentes dos mandatrios e em projetos dissonantes de resoluo de problemas internos e insero internacional.

    Enquanto Uribe se conforma com a aproximao da Colmbia aos pases nrdicos e tidos por mais desenvolvidos, o estadista venezuelano Hugo Chvez profere contra as investidas do Imprio na Amrica Latina e obstina-se em apresentar projetos alternativos de integrao entre os pases da regio, como a Alternativa Bolivariana para as Amricas (ALBA). Os dois governantes falam de irmandade, porm analistas retomam frequentemente as categorias de esquerda e direita para situar quem quem.

    dbia a poltica colombiana que visa luta contra o narcotrfico e o terrorismo atravs da abertura ingerncia dos Estados Unidos, cujo pas tem sido historicamente um dos responsveis pela espoliao da Amrica Latina. Um tratado entre Bogot e Washington autoriza o uso de sete bases militares colombianas a fim de que foras armadas forneas somem-se s internas no combate ao trfico de drogas, ondas de sequestro, assassinatos e outras demonstraes de violncia. As tropas dos Estados Unidos, no entanto, travam guerras desnecessrias no Oriente. Que esperaramos deles?

    A crise diplomtica entre Colmbia e Venezuela no um bom princpio de ano novo na regio seno um processo que estes pases no tm podido conter devido ao descompasso entre os ideais de seus governantes e orientao de suas polticas exteriores. Voltam a valer as hipteses de que atores forasteiros promovem a desintegrao da Amrica Latina. A instabilidade poltica na regio afeta os cidados que dependem do passo frequente atravs da fronteira ou do comrcio entre os pases.

    Em meados de 2009, Uribe acusou a Venezuela de embargar contra a economia colombiana nos moldes do que os Estados Unidos fazem com

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    Cuba desde pouco depois do triunfo da revoluo. Exageros parte, os discursos mais recentes de Uribe desmentem qualquer plano de guerra ou retaliao contra a Venezuela. Afinal, segundo ele, os dois pases so irmos. Se dependesse do efeito das palavras, Chvez sairia convencido. A realidade, porm, outra.

    A perenidade dos conflitos internos na Colmbia, que se devem em parte incapacidade de os governos atenderem demanda de guerrilheiros do sul do pas (ou de negociar com eles) e outros grupos que no se sentem suficientemente representados na poltica, tem induzido o pas a buscar auxlio externo. Os vizinhos Equador e Venezuela recusam a estratgia de reconciliao interna elaborada por Uribe e acabam por denunciar suas polticas como uma ameaa integrao dos povos sul-americanos.

    Sobre as tentativas de anlise da relao diplomtica entre Colmbia e Venezuela, no acredito que exista um lado verdadeiro e outro falso, embora haja enormes inconsistncias entre o que os discursos pregam e o que a realidade demonstra sobretudo no caso colombiano. Certas categorias de interpretao so inadequadas numa situao to complexa, delicada e que envolve a vida de milhes de cidados que efetivamente nunca se enxergaram fora da irmandade.

    Antes de que os ianques pisem em solo colombiano a fim de lutar por causas mercenrias, desejvel que faam ao menos uma orao com as palavras de Simn Bolvar, heri da libertao e da integrao latino-americanas. Se no a fizerem, o arrependimento poder ser mais doloroso.

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    20. Desastre no Haiti

    terremoto que teve lugar no Haiti em 12 de janeiro de 2010 comoveu o mundo.

    Foi uma tarde funesta entre tantas outras carncias. De pas mais pobre e de menor renda per capita da Amrica, o Haiti passou condio de devastado. A natureza apontou o dedo e escolheu uma vtima geogrfica que no teria condies de resistir. No com um tremor desta magnitude.

    A exatido do nmero de mortos no o foco do debate. Corre-se o risco de cair na frieza das cifras.

    O pas divide o espao de uma ilha com a Repblica Dominicana, tem dez milhes de habitantes e taxa de analfabetismo de 47%. As imagens do pior desastre natural dos ltimos duzentos anos no Haiti percorreram o sentimento de solidariedade em todo o mundo. A velocidade foi impressionante.

    Vrios pases autorizaram doaes milionrias e enviaram ajuda humanitria na forma de equipes mdicas e socorristas, alimentos e medicamentos. O terremoto no Haiti mereceu o destaque que tem tido.

    Sua capital Porto Prncipe ficou sem gua, energia eltrica e telefone, ou seja, servios bsicos de infraestrutura, e quarteires inteiros foram demolidos em poucos segundos.

    A traduo da expresso inglesa que tem sido usada na imprensa internacionalpara os efeitos do desastre de que a cidade foi achatada ou aplainada. As imagens so entristecedoras: muita poeira e escombros,

    corpos soterrados e sobreviventes perambulando sem rumo, crianas desamparadas e famlias armando barracas em lugares pblicos. O que era preocupante para as autoridades nacionais virou motivo de angstia.

    Escaparam presidirios aps o colapso da Penitenciria Nacional, o Palcio presidencial ruiu, e o aeroporto virou uma baguna. O cenrio urbano de medo de saques, novos sem-tetos e trfego areo intenso e descontrolado.

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    A situao que era difcil ficou ainda pior no Haiti. Na incapacidade de os governos anteriores tirarem boa parte da populao da pobreza, a reconstruo da infraestrutura passa a ser a prioridade no pas. A ajuda internacional imprescindvel para este objetivo. A Minustah, misso de paz das Naes Unidas que age no pas desde a deposio do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide em 2004, contempla um desafio de propores maiores.

    rdua a tarefa de reestruturar um pas que tem sido, desde a vinda de Colombo ao continente, escoadouro de produtos como acar, caf, algodo e cacau, base de uma economia agroexportadora. Conhecem-se outros pases latino-americanos e caribenhos por histria econmica similar.

    Ainda, os Estados Unidos tiveram forte presena comercial, militar e poltica no Haiti ao longo do sculo XX. O governo estadunidense decidiu repassar cem milhes de dlares para a reconstruo do pas devastado. Sobraram uns trocados da crise econmica mundial.

    Os Estados Unidos declararam que desejam liderar a reconstruo do Haiti, mas querem ficar com o fil. A reconstruo de pases e regies traz sempre boas receitas no futuro. Lembremo-nos do Plano Marshall.

    Numa situao de emergncia, qualquer ferramenta que esteja ao alcance til para a sobrevivncia, o resgate e a ajuda humanitria. As imagens da desgraa no Haiti so tristes e estimulam os diversos pases a buscarem convergncias e reconhecerem formas de cidadania mundial.

    O que acontece no Haiti mobiliza outros pases como se o mundo fosse uma grande nao.

    Costumo buscar informao minuciosa sobre algum acontecimento quando no tenho a oportunidade de experincia direta para sustentar uma opinio. A responsabilidade de elaborar argumentos e posies aps rever dados e fatos grande. A instantaneidade das notcias no pressupe a deglutio do chiclete, por isso valorizo a reflexo sobre algum acontecimento alheio em vez de tentativas precipitadas de supor antes de estar seguro.

    Desde um ponto de vista, o cenrio haitiano foi a vingana da natureza ao pas equivocado e menos preparado para este desastre natural.

    O conceito de justia terrena est de um lado e o de justia csmica, de outro. Certos eventos fogem do nosso entendimento. As prximas vtimas

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    podero estar em qualquer lugar, j que a natureza como a entendemos perdeu o controle e no se sabe onde mais apontar o dedo.

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    21. A UNILA e vizinhos desconhecidos

    o dia 12 de janeiro de 2010, Luiz Incio Lula da Silva sancionou o projeto de lei de sua prpria autoria em prol da construo da

    Universidade Federal da Integrao Latino-Americana (UNILA). A cerimnia ocorreu no Centro Cultural Banco do Brasil em Braslia, Distrito Federal.

    O presidente assinou o documento em dezembro de 2007, mas este s foi aprovado dois anos depois pelo Congresso Nacional.

    A universidade funcionar provisoriamente num espao cedido pela usina hidreltrica de Itaipu em Foz do Iguau, cuja cidade fica no estado do Paran e faz fronteira com Argentina e Paraguai. Zona turstica e emblemtica do encontro entre pases vizinhos. Embora as instalaes iniciais da UNILA sejam temporrias, a Itaipu Binacional doou uma rea de quase 40 hectares para a construo da universidade.

    A concretizao da ideia caminha muito mais rpido que o tempo que levou sua aprovao, uma vez que a previso de incio de turmas para o segundo semestre de 2010. A previso de incorporar, num prazo de cinco anos, dez mil estudantes cuja formao se enquadre dentro de um projeto de integrao latino-americana.

    Algumas das ofertas de cursos de graduao sero: Sociedade, Estado e Poltica na Amrica Latina; Relaes Internacionais e Integrao Regional; Comunicao, Poder e Mdias Digitais; Tecnologia e Engenharia das Energias Renovveis; Gesto Integrada de Recursos Hdricos; Interculturalidade e Integrao. Estas propostas interdisciplinares respondem a um contexto de integrao e, pela seleo dos temas, improvvel que se tornem umamodalidade de ensino a distncia, que inibe a proximidade entre estudantes e professores e o debate numa sala de aula.

    A criao desta instituio de ensino superior produto de um flego secular. O murmrio da integrao latino-americana no se pode ouvir at que algum levante o tom da voz.

    O cenrio curioso: um livro importado da pennsula Ibrica pode custar mais barato que um similar de pas vizinho; h dezenas de canais de televiso por assinatura de contedo estadunidense nos pacotes ofertados no

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    Brasil, alguns sem dublagem ou legenda, porm nenhum da Argentina, Paraguai ou Venezuela. A proposta de Lula justifica que, nalguns setores do desenvolvimento, a integrao aproximar os povos da Amrica Latina.

    A UNILA uma novidade na categoria porque, apesar do financiamento federal brasileiro e da localizao do prdio no lado de c, as aulas sero em espanhol e portugus, 50% dos professores sero brasileiros e a outra metade provir dos pases da regio, 250 professores sero efetivos e outros 250, visitantes.

    O reconhecimento das diferenas expande a nossa capacidade de auto-conhecimento e conscincia de lugar no mundo. Algum dia a ficha dos nossos governantes teria que cair. Uma ficha em que no estivessem inscritoscents, dollars ou euros. Destas j estamos fartos.

    O presidente brasileiro atingiu, ao longo de suas duas gestes, um recorde nacional com a criao de treze universidades federais, o que ultrapassa a cifra anterior alcanada por Juscelino Kubitschek de dez instituies. A educao tem sido tema de destaque nas discusses nacionais.

    Lula ainda props, para esquentar o tema da integrao, um parlamento comum e uma moeda nica entre os pases da regio do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). O cenrio de crise econmica mundial, desvalorizao do dlar e interveno impudente dos Estados Unidos na Amrica Latina (acordo de uso de bases militares na Colmbia, apoio tcito ao golpe militar em Honduras e envio de tropas militares abundantes em vez de mdicos ao Haiti) favorecem estas propostas integracionistas.

    As conquistas no mbito da educao e da integrao so visveis, embora o Brasil derrube lgrimas do outro olho quando limpa a que caiu do primeiro. Uma conquista costuma encobrir uma mazela na proporo de um para um. O mrito maior da criao da UNILA o de aliar avanos na expanso de universidades pblicas com projetos de integrao regional. Somos vizinhos que mal nos conhecemos.

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    22. A reforma agrria

    eforma agrria uma dessas questes que se reservam aos super-heris das polticas pblicas.

    Ainda que dentro do desejvel, possvel e necessrio para uma sociedade mais justa, as propostas de diviso de terras no Brasil incidem em interesses conflitantes: de um lado, os insatisfeitos com o pouco de que dispem; de outro, os ces que rosnam com o osso na boca.

    A concentrao da posse de propriedades abusiva no Brasil, portanto necessrio implantar um novo modelo de apropriao agrcola e resgatar os erros do passado.

    verdade que no basta ter acesso terra. Uma dificuldade que surge posteriormente aquisio de propriedade rural a falta de treinamento dos novos proprietrios e de infraestrutura para aproveitamento agrcola, como capital, irrigao, sementes e vias de transporte. Toma-se em conta que a maior parte do terreno no pas no usada em cultivo ou outra atividade de fins econmicos.

    Desde esta linha argumentativa, muitos sustentam que o problema seria ento o de excesso de terras ociosas e de falta de investimento em produtividade com tcnicas modernas na agricultura, planejamento do plantio e da colheita.

    A populao tupinica, segundo vozes reprovadoras da reforma agrria e longe de corresponder minha, majoritariamente urbana e, por isso, no faz sentido repartir terras rurais, que esto muito bem nas mos de poucos.

    Oras, como o Brasil poder investir em tecnologia na produtividade agrcola se ainda no superou a etapa de repartio das terras? O pas est atrasado em reforma agrria. Do ponto de vista de grandes proprietrios rurais, natural que se demonizem movimentos sociais e protestos que objetivam a distribuio de terras, porm falta uma conscincia coletiva.

    O uso da palavra invaso em vez de ocupao contribui para a tendncia dessas pesquisas inteis que reiteram a viso de latifundirios. A imagem do MST, que foi solicitada pela Confederao da Agricultura e

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    Pecuria do Brasil (CNA) indica que a maioria dos tupinicas reprova a ocupao de propriedades. Quem que daria uma resposta favorvel a que um estranho entrasse em sua casa ou em seu terreno sem pedir licena?

    Desvia-se, todavia, o foco da luta pela justia social ao desrespeito de direitos de propriedade privada.

    A defesa da reforma agrria esbarra na torcida agressiva do outro time. O caminho da repartio de terras no Brasil fundamental para promover a reduo de desigualdades. Concordo com que no basta dar terras se no houver uma continuidade da insero no sistema produtivo das famlias beneficiadas com a reforma. Enquanto no se supera uma etapa, no entanto, no possvel impulsionar a outra.

    O Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) elabora avaliaes e polticas de acesso terra, fiscalizao de imveis rurais para averiguar se cumprem funo social, combate grilagem (que significa a posse indevida de terras mediante expulso de seus proprietrios e apresentao de documentos falsos), e repasse de recursos a entidades de apoio reforma agrria. A instituio fiscaliza de 6 a 7 milhes de hectares por ano.

    O INCRA dispe de R$4,6 bilhes de oramento para 2010. O recurso destinado reforma agrria cada vez maior.

    Este tema exige uma postura radical dos governantes e ativistas sob o risco de sucumbir s mentiras e travas lanadas pelos opositores. Uma delas a de desmerecer movimentos sociais que lutam pelos oprimidos ou a de advogar que, em vez de repartir as terras, a tecnologia na agricultura de latifndios por si s geraria retorno benfico sociedade.

    As discusses sobre a reforma agrria tm sido monopolizadas pelos que se opem a ela. Falta a representatividade de opinies divergentes.

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    23. Macchu Picchu e as letras

    istoricamente ecos dos pases vizinhos do Brasil chegam deturpados.

    A prerrogativa do vencedor de conflitos ideolgicos e guerras que conta a histria do seu ponto de vista ou dos poderosos

    que oprimem os feitos dos mais fracos. Por isso, pouco se comenta sobre os esforos de combate pobreza na Venezuela, o sistema de sade pblica exemplar em Cuba, o modelo de Estado plurinacional na Bolvia ou o passado glorioso do Paraguai como potncia sul-americana.

    Ainda bem que dispomos das ferramentas da Internet