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7/25/2019 Britto - Para Uma Avaliacao Mais Objetiva http://slidepdf.com/reader/full/britto-para-uma-avaliacao-mais-objetiva 1/11 PARA UMA AVALIAÇÃO MAIS OBJETIVA DAS TRADUÇÕES DE POESIA *  Paulo Henriques Britto A avaliação de uma tradução de poesia é uma tarefa complexa e delicada. Temos consciência de que o texto poético trabalha com a linguagem em todos os seus níveis  —  semânticos, sintáticos, fonéticos, rítmicos, entre outros. Idealmente, o poema deve articular todos esses níveis, ou pelo menos vários deles, no sentido de chegar a um determinado conjunto harmônico de efeitos poéticos. A tarefa do tradutor de poesia será, pois, a de recriar, utilizando os recursos da língua-meta, os efeitos de sentido e forma do original  —  ou, ao menos, uma boa parte deles. Meu objetivo no presente trabalho é esboçar uma metodologia para a avaliação da tradução poética, examinando de modo sistemático os diferentes níveis da linguagem envolvidos no poema. Para isso, torna-se necessário definir de modo mais preciso o que queremos dizer quando afirmamos que um determinado elemento de um poema traduzido corresponde a um determinado elemento de um poema original. Podemos entender o conceito de “correspondência” em diversos níveis de exatidão. Vejamos um exemplo métrico. Digamos que eu queria traduzir para o português um determinado verso inglês com uma pauta acentual que podemos representar como se segue (onde “-” representa uma sílaba átona e “/ ” uma sílaba com acento primário, e “|” é o separador de pés): - / | - / | - / | - - | / / Temos aqui um verso em pentâmetro jâmbico com duas irregularidades: o quarto pé é  pirríaco e o quinto é espondaico. Numa primeira acepção da expressão “corresponder”, um verso português correspondente a esse verso inglês teria de ser precisamente um decassílabo com acento na 2 a , 4 a , 5 a , 6 a , 9 a  e 10 a  sílabas. 1  Esta seria a acepção mais “forte” da expressão “o verso A corresponde ao verso B”, porque se daria no nível mais próximo da realidade fônica do verso. Se enfraquecermos um pouco a acepção de “corresponder”, diríamos que qualquer decassílabo de ritmo predominantemente jâmbico no português corresponde a qualquer decassílabo predominantemente jâmbico no inglês. Saltando para um nível ainda mais alto de generalidade, qualquer decassílabo do português corresponderia a qualquer pentâmetro do inglês. Mas podemos ter uma correspondência ainda mais fraca: se considerarmos que o pentâmetro é um metro relativamente longo no inglês —  em oposição ao trímetro, por exemplo  —  e que o decassílabo e o alexandrino no  português são metros relativamente longos  —  em comparação com os hexassílabos e heptassílabos  —  poderíamos dizer que um alexandrino em português corresponde a um  pentâmetro inglês, na medida em que ambos são “versos longos”. Podemos esquematizar o que foi dito até agora assim: *  Agradeço as críticas e sugestões dos professores Márcia A. P. Martins e Victor Hugo Adler Pereira. 1  Há aqui uma simplificação, pois ao pressupormos que um pé jâmbico do inglês corresponde a duas sílabas em português brasileiro não levamos em conta as diferenças entre os sistemas métricos dos dois idiomas, em  particular os papéis desempenhados em cada um pela sílaba e pelo acento. Tampouco consideramos o fato importante de que determinados metros do inglês podem corresponder funcionalmente a metros portugueses formalmente diferentes. V., por exemplo, Britto (2000), onde defendo que o metro da balada inglesa —  usado na poesia narrativa popular  —  tem como melhor equivalente em português a redondilha maior do cordel nordestino.

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PARA UMA AVALIAÇÃO MAIS OBJETIVA DAS TRADUÇÕES DE POESIA* 

Paulo Henriques Britto

A avaliação de uma tradução de poesia é uma tarefa complexa e delicada. Temosconsciência de que o texto poético trabalha com a linguagem em todos os seus níveis  —  

semânticos, sintáticos, fonéticos, rítmicos, entre outros. Idealmente, o poema deve articulartodos esses níveis, ou pelo menos vários deles, no sentido de chegar a um determinadoconjunto harmônico de efeitos poéticos. A tarefa do tradutor de poesia será, pois, a derecriar, utilizando os recursos da língua-meta, os efeitos de sentido e forma do original  —  ou, ao menos, uma boa parte deles. Meu objetivo no presente trabalho é esboçar umametodologia para a avaliação da tradução poética, examinando de modo sistemático osdiferentes níveis da linguagem envolvidos no poema. Para isso, torna-se necessário definirde modo mais preciso o que queremos dizer quando afirmamos que um determinadoelemento de um poema traduzido corresponde a um determinado elemento de um poemaoriginal.

Podemos entender o conceito de “correspondência” em diversos níveis de exatidão.

Vejamos um exemplo métrico. Digamos que eu queria traduzir para o português umdeterminado verso inglês com uma pauta acentual que podemos representar como se segue(onde “-” representa uma sílaba átona e “/ ” uma sílaba com acento primário, e “|” é o

separador de pés):

- / | - / | - / | - - | / /

Temos aqui um verso em pentâmetro jâmbico com duas irregularidades: o quarto pé é pirríaco e o quinto é espondaico. Numa primeira acepção da expressão “corresponder”, umverso português correspondente a esse verso inglês teria de ser precisamente umdecassílabo com acento na 2a, 4a, 5a, 6a, 9a e 10a sílabas.1 Esta seria a acepção mais “forte”

da expressão “o verso A corresponde ao verso B”, porque se daria no nível mais próximoda realidade fônica do verso. Se enfraquecermos um pouco a acepção de “corresponder”,

diríamos que qualquer decassílabo de ritmo predominantemente jâmbico no portuguêscorresponde a qualquer decassílabo predominantemente jâmbico no inglês. Saltando paraum nível ainda mais alto de generalidade, qualquer decassílabo do portuguêscorresponderia a qualquer pentâmetro do inglês. Mas podemos ter uma correspondênciaainda mais fraca: se considerarmos que o pentâmetro é um metro relativamente longo noinglês —  em oposição ao trímetro, por exemplo  —  e que o decassílabo e o alexandrino no português são metros relativamente longos  —   em comparação com os hexassílabos eheptassílabos  —   poderíamos dizer que um alexandrino em português corresponde a um pentâmetro inglês, na medida em que ambos são “versos longos”. Podemos esquematizar o

que foi dito até agora assim:* Agradeço as críticas e sugestões dos professores Márcia A. P. Martins e Victor Hugo Adler Pereira.1 Há aqui uma simplificação, pois ao pressupormos que um pé jâmbico do inglês corresponde a duas sílabasem português brasileiro não levamos em conta as diferenças entre os sistemas métricos dos dois idiomas, em

 particular os papéis desempenhados em cada um pela sílaba e pelo acento. Tampouco consideramos o fatoimportante de que determinados metros do inglês podem corresponder funcionalmente a metros portuguesesformalmente diferentes. V., por exemplo, Britto (2000), onde defendo que o metro da balada inglesa —  usadona poesia narrativa popular  —   tem como melhor equivalente em português a redondilha maior do cordelnordestino.

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- / | - / | - / | - - | / / - / - / - / - - / / pentâmetro jâmbico decassílabo jâmbico pentâmetro decassílaboverso longo verso longo

 Na primeira linha, temos o caso do sentido mais forte de “correspondência”: a umdeterminado padrão de acentuação no inglês fazemos corresponder uma idênticaconfiguração de sílabas tônicas e átonas no português. No segundo, temos versos queseguem o mesmo ritmo geral, mas sem a exigência de que as inversões que ocorrem noinglês correspondam ponto a ponto às irregularidades da tradução. No terceiro nível,limitamo-nos a fazer corresponder o número de sílabas; no quarto, trabalhamos apenas coma noção mais vaga de “verso longo” em oposição a “verso curto”. Podemos agora entenderde modo mais preciso a noção de  perda na tradução poética: quanto mais fraca a acepçãode correspondência —  ou seja, quanto mais alto o nível de generalidade em que ela se dá  —  maior a perda. No exemplo acima, haverá mais perda se eu traduzir o verso original por umalexandrino do que se eu traduzi-lo por um decassílabo qualquer, por exemplo.

 Na avaliação do grau de perda, porém, o nível de generalidade não é o único fator aser levado em conta. No caso de uma tradução de letra de música, a prosódia musical pedeuma correspondência quase exata entre a configuração acentual do original e a da tradução,de modo que mesmo a passagem para o segundo nível de generalidade poderá serconsiderado uma perda muito grande. Por outro lado, num poema em verso livre umacorrespondência em sentido mais fraco poderá ser perfeitamente aceitável.

Podemos aplicar o mesmo esquema aos outros elementos da forma, e também doconteúdo semântico do poema. É o que veremos na análise de minha tradução do poema“The shampoo”, de Elizabeth Bishop. Comecemos com o texto original:2 

THE SHAMPOO

The still explosions on the rocks,

the lichens, grow

 by spreading gray, concentric shocks.

They have arranged

to meet the rings around the moon, although

within our memories they have not changed.

And since the heavens will attend

as long on us,

you’ve been, dear friend, 

 precipitate and pragmatical;

and look what happens. For Time is

nothing if not amenable.

2 Extraído de Bishop (1991).

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The shooting stars in your black hair

in bright formation

are flocking where,

so straight, so soon?

 —  Come, let me wash it in this big tin basin,

 battered and shiny like the moon.

Examinemos a forma de “The shampoo”. O poema tem três estrofes de seis versos.

Há uma estrutura rímica bem definida: rimam os versos 1 e 3, 2 e 5, 4 e 6 em cada estrofe.A fórmula da rima é, pois, abacbc, dedfef  e ghgihi. Na maioria dos casos a rima é perfeita,mas temos também algumas rimas apenas aproximadas, como as que vemos na segundaestrofe entre os versos 2 e 5 (us  –   is) e 4 e 6 ( pragmatical  –   amenable), e também naterceira estrofe, entre os versos 2 e 5 ( formation  –   basin). A estrutura rítmica é menosregular que a das rimas, porém não chega a ser de todo livre. Nas três estrofes temos versosmais longos e versos mais curtos. Os longos têm de 4 a 5 pés; sendo o ritmo predominanteo jâmbico, isto quer dizer que os versos longos oscilam de 8 a 10 sílabas. Já os versoscurtos têm sempre dois pés, o que equivale a quatro sílabas. A distribuição de versos curtose longos é variável; as únicas constantes são a presença de versos longos nas posições 1, 5 e6 de cada estrofe; os versos que ocupam a segunda, terceira e quarta posições podem serlongos ou curtos. Podemos resumir as estruturas das estrofes, onde L representa “verso

longo” e C, “verso curto”, na fórmula LCLCLL, LCCLLL e LCCCLL. Todos esses dadossão resumidos na primeira tabela do apêndice.

Examinemos a tabela. À esquerda, temos o poema em si, com os acentos primários(/) e secundários (\) assinalados. Na primeira coluna à direita do texto, temos o esquema derimas. Na segunda coluna, representamos na linha superior, em itálico, o número de acentos(identificado, para os fins deste trabalho, com o número de pés); e, na inferior, em redondo,o número de sílabas do verso. Na terceira assinalamos se o verso é longo (L) ou curto (C).

As duas últimas colunas da tabela resumem elementos ainda não mencionados: na penúltima temos as repetições de fonemas que não se incluem na pauta da rima —  no caso,aliterações. Por fim, na última coluna teríamos que listar os elementos semânticos do texto, para depois compará-los com os da tradução; porém não haveria espaço na página. Assim, por questões de espaço, vamos nos limitar neste trabalho a examinar mais detidamenteapenas os elementos formais do poema. A título de ilustração, examinaremos sob o aspectosemântico os três primeiros versos da primeira estrofe e uma passagem da segunda.

 Na tradução do poema, deveremos tentar preservar aqueles elementos queapresentam maior regularidade no original, já que eles serão possivelmente os maisconspícuos na língua original. Assim, o esquema de rimas  —   o elemento poético maisregular  —  deverá ser recriado na tradução. Como a métrica não é rigorosa, pode não ser

necessário reproduzir com perfeição a configuração acentual dos versos, mas pareceimportante conservar a oposição entre versos longos e versos curtos. Quanto às aliterações,elas parecem ser mais significativas na primeira estrofe; na segunda o recurso é poucoutilizado, e ele volta a ganhar importância nos dois últimos versos da terceira estrofe. Porfim, na última coluna ressaltamos um único efeito poético trabalhado no nível do léxico,destacando uma passagem da segunda estrofe em que Bishop se vale de um recurso muitoexplorado na poesia de língua inglesa: o contraste entre o vocabulário germânico,tipicamente formado por palavras curtas, monossilábicas ou dissilábicas, de significado

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concreto e conhecidas por qualquer falante, e o vocabulário de origem latina, constituído por termos polissilábicos, abstratos e mais “difíceis”. Após três versos onde predominam as palavras germânicas, as palavras latinas “ precipitate and pragmatical ” se destacam: duras,cheias de oclusivas, semanticamente muito abstratas, totalmente prosaicas; o efeito dehumor deste verso é enfatizado pela rima forçada com amenable  no final da estrofe.

Claramente, esta passagem constitui um efeito calculado da poeta, que seria importantereproduzir no português.Examinemos agora a tradução do poema:3 

O BANHO DE XAMPU

Os líquens —  silenciosas explosões

nas pedras —  crescem e engordam,

concêntricas, cinzentas concussões.

Têm um encontro marcado

com os halos ao redor da lua, embora

até o momento nada tenha mudado.

E como o céu há de nos dar guarida

enquanto isso não se der,

você há de convir, amiga,

que se precipitou;

e eis no que dá. Porque o Tempo é,

mais que tudo, contemporizador.

 No teu cabelo negro brilham estrelas

cadentes, arredias.

Para onde irão elas

tão cedo, resolutas?

 —  Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia

amassada e brilhante como a lua.

Examinemos em primeiro lugar os elementos da forma, esquematizados na segundatabela.4 Comecemos com os mais regulares dentre eles. Com relação à rima, foi possívelreproduzir o esquema do original, porém com um número bem maior de rimas imperfeitas:em inglês, dos nove pares rimados apenas três não rimam perfeitamente (rimas e, f  e h); no português, pelo contrário, temos apenas dois pares de rimas perfeitas (a  e c). Tentemosmedir o grau de perda que ocorreu na tradução das rimas. O que seria o sentido mais fortede “corresponder” no caso da rima? Digamos que seria ter em português o mesmo esquemade rimas, correspondendo a cada rima exata no original uma rima exata na tradução, a cada

3 Extraída de Bishop (2001).4 Quanto à atribuição de acentos primários e secundários na poesia em português brasileiro, sigo em linhasgerais a orientação de Cavalcanti Proença (1955).

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rima imperfeita uma rima imperfeita, e assim por diante.5 Neste nível, minha tradução nãoapresenta correspondência com o original. Portanto, subamos para o nível seguinte degeneralidade: apenas o esquema geral é observado; ou seja, o esquema abacbc, dedfef   e ghgihi  do original. Aqui, no segundo nível de generalidade, a tradução corresponde demodo bastante fiel ao original. Podemos imaginar uma tradução em que só se tentasse

reproduzir as rimas a  e c, ou mesmo só a c; teríamos então perdas progressivamentemaiores, culminando com uma tradução em versos não rimados.Podemos resumir essas observações no quadro abaixo, em que a minha tradução

corresponde ao segundo nível.

abcab’c (a, c: rimas consoantes; b: rima toante) abcab’c (a, c: rimas consoantes; b: rima toante)abcabc  abcabc a(b)ca(b)c  abcadc (ab)c(ab)c abcdec

(abcabc) abcdef

Quanto à métrica, já observamos que o original não obedece um padrão estrito,motivo pelo qual não se tentou a correspondência nos três primeiros níveis  —   a saber,correspondência exata da configuração acentual, correspondência do padrão rítmico geral, ecorrespondência no número de sílabas. Aqui considerou-se suficiente uma correspondênciade quarto nível, que reproduzisse a distribuição de versos longos e versos curtos. Foramutilizados o octossílabo e o decassílabo como versos longos, mas  —  como no português as palavras tendem a ser mais longas do que no inglês  —  empregou-se como verso curto ohexassílabo em vez do tetrassílabo. Temos um único verso com mais de 10 sílabas  —  umhendecassílabo  —  como penúltimo verso da última estrofe, lugar onde o original aparecetambém um verso de 11 sílabas. Consegui reproduzir com exatidão a alternância de versoslongos e curtos na primeira e na terceira estrofe: LCLCLL e LCCCLL, respectivamente.

Apenas na segunda estrofe a correspondência não foi exata: em vez do esquema LCCLLLdo original temos na tradução LLLCLL. Temos, pois, uma correspondência razoável noquarto nível, considerado o nível mais baixo relevante para este poema em particular. Odiagrama da página 2 resume os diferentes níveis em que se poderia trabalhar o primeiroverso da última estrofe. Podemos repeti-lo aqui:

- / | - / | - / | - - | / / - / - / - / - - / / pentâmetro jâmbico decassílabo jâmbico pentâmetro decassílaboverso longo verso longo

Passemos à terceira coluna do esquema. Aqui não houve nenhuma intençãoconsciente de reproduzir as aliterações, já que no português a aliteração é recurso muitomenos comum do que no inglês; neste quesito seria, portanto, difícil estabelecer níveis decorrespondência. Eis um caso em que o tipo de análise aqui proposta encontra dificuldades:o caso em que o recurso poético usado na língua-fonte inexiste —  ou existe em grau ou em

5 A rigor, o sentido mais forte imaginável de “correspondência” seria a utilização no português dos mesmos

sons ocorridos no inglês: assim, a rima a, [ks], teria que reaparecer na posição a em português. Mas como afonologia do português não é a mesma que a do inglês, essa primeira possibilidade é descartada de saída.

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modo muito diferente  —  na língua-meta. Também dificulta o cotejo o fato de a aliteraçãonão ser empregada de modo regular e sistemático no original. De qualquer modo, constateique encontramos na tradução um acúmulo de sibilantes nos três primeiros versos da primeira estrofe, tal como no original, e, nos últimos versos, algumas aliterações em [b], [s]e [l] que de algum modo correspondem às aliterações em [b], [S], [l] do original. Este

resultado, é bom ressaltar, foi fruto do acaso ou do inconsciente. Igualmente fortuita foi aconcentração de assonâncias em [e] na última estrofe, particularmente no primeiro verso,que não corresponde a nenhum efeito análogo no original. (Podemos encarar estasassonâncias como uma espécie de compensação para as perdas ocorridas nos outros níveis:um efeito criado em português para compensar os que não foi possível recriar a partir dooriginal.) Não tentaremos, pois, estabelecer uma distinção de níveis aqui.

 Neste trabalho não examinaremos de modo mais aprofundado os elementossintáticos, semânticos e lexicais. Por considerações de espaço, como já dissemos, vamosapenas esboçar a discussão dos três primeiros versos, e em seguida analisaremos o uso determos de origem latina na segunda estrofe, mencionado acima. Comecemos com os trêsversos iniciais:

The still explosions on the rocks,

the lichens, grow

 by spreading gray, concentric shocks.

Os líquens —  silenciosas explosões

nas pedras —  crescem e engordam,

concêntricas, cinzentas concussões.

O nível primeiro de correspondência seria, evidentemente, uma tradução literal, oque raramente é possível em tradução poética. Passando para o nível imediatamentesuperior, vejamos se o conteúdo lexical do original está ao menos aproximadamentereconstruído na tradução, dando importância maior aos elementos mais centrais  —  substantivos e verbos —  depois examinando os adjetivos e advérbios, e analisando por fima estrutura sintática, a ordenação dos itens lexicais, etc. Nos três versos em questão, oselementos centrais seriam os nomes explosions, rocks, lichens,  shocks e os verbos  grow  e spreading . Em português, teríamos “explosões”, “pedras”, “líquens”, “concussões”,“crescem e engordam”. A taxa de corres pondência é bastante alta; apenas a tradução doverbo  spread   se afasta da literalidade. Com relação aos adjetivos, teríamos  still ,  gray  econcentric  traduzidos como “silenciosas”, “cinzentas” e “concêntricas”, uma

correspondência bem próxima à literalidade. Quanto à sintaxe, verificamos que a estruturado original sofreu uma mudança: se no original The still explosions on the rocks é o sujeitoe the lichens é aposto, no português houve uma inversão dessas posições. Por outro lado, aestrutura geral  —   sujeito, aposto, predicado  —   foi mantida. Há também uma diferençaentre começar o poema com as “explosões” e depois identificá-la como “líquens” e —  como está na tradução  —   primeiro mencionar os “líquens” para depois vê-los como“explosões”. Também a sintaxe de  grow by spreading   foi alterada para “crescem eengordam”. Quanto à pontuação, duas das vírgulas foram substituídas por travessões.

Podemos dizer, pois, que quanto ao aspecto semântico, nos três primeiros versos o grau decorrespondência é razoavelmente elevado. 

Por fim, vejamos a tradução do recurso semântico do original mais difícil dereproduzir no português: o acúmulo de palavras de origem latina, mais longas, de usomenos comum e pouco eufônicas, na segunda estrofe. Aqui, mais uma vez, seria impossível

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estabelecer uma correspondência de primeiro nível, pois o português é uma língua devocabulário predominantemente latino, em que não podemos contrastar palavras não-latinascom termos latinos. Saltando para o nível imediatamente superior, teríamos não mais ocontraste germânico-latino, e sim o que é implicado por ele: o contraste entre vocabuláriocotidiano e palavras restritas a um contexto mais formal. Seria esse, talvez, o nível mais

 baixo de generalidade possível na tradução do inglês para o português; o português nosoferece grandes possibilidades de contraste entre palavras restritas à fala coloquial e outrasque só aparecem em contextos formais. No entanto, não consegui encontrar uma soluçãoneste nível de generalidade. O nível seguinte seria talvez contrastar um subconjuntoqualquer do léxico com um outro subconjunto diferente. Mas também não foi neste nívelque encontrei uma solução. A tradução proposta para esta passagem se situa num nívelainda mais geral, o que considera apenas a categoria genérica de recurso utilizado: a classede recursos que atuam no nível lexical e não no fonético ou no sintático. Foi neste nível, bem geral, que tentei compensar o recurso não reproduzido com a utilização de doisdiscretos jogos de palavras: os efeitos de eco entre “dar”, “der” e “dá” (1o, 2o e 5o versos), eentre “tempo” e “contemporizador” (5o e 6o versos). Temos aqui, talvez, a perda mais sériaocorrida em toda a tradução do poema, na medida em que o nível de generalidade em quefoi feita a correspondência é muito alto. Podemos contabilizar também como perda o fatode um efeito conspícuo  —   a presença de palavras latinas muito pouco eufônicas  —   sersubstituído por algo bem mais sutil  —   efeitos de eco que talvez só sejam percebidos porleitores atentos. Podemos esquematizar essa discussão na tabela abaixo:

efeito lexical: termos germânicos vs. termoslatinos

 __________

efeito lexical: vocabulário cotidiano vs.vocabulário mais rebuscado

efeito lexical: item do português coloquial vs.item do português formal

efeito lexical: contraste entre dois subconjuntosdo léxico

efeito lexical: contraste entre dois subconjuntosdo léxico

efeito lexical efeito lexical: jogo de palavras

Tentemos resumir o que foi visto aqui.Ao avaliar uma tradução, temos que, em primeiro lugar, determinar quais os

elementos formais e semânticos do original. Ao comparar cada um deles com suacontraparte na tradução, precisamos utilizar os conceitos antitéticos de “correspondência” e

“perda”; quanto maior a corr espondência entre um elemento do original e sua contrapartena tradução, menor terá sido a perda. Definimos esses conceitos a partir de uma visão deníveis de correspondência: quanto maior a correspondência ponto a ponto entre oscomponentes de um dado elemento do original e os componentes de sua contraparte natradução, menor terá sido a perda. Porém, antes que possamos avaliar o grau de perda, é

 preciso levar em conta alguns fatores adicionais:(1) Até que ponto o item em questão é relevante no original? No caso analisadoaqui, vimos que a estrutura métrica do original apresenta regularidades, mas não chega a serrigorosa. Concluímos que a contagem estrita de pés ou sílabas não seria relevante aqui, eque seria suficiente trabalhar com os elementos “verso longo” e “verso curto”. 

(2) Até que ponto é possível o grau máximo de correspondência? Quando nãohouver na língua-meta elementos correspondentes aos itens trabalhados no original, aexigência de correspondência terá que ser afrouxada. Foi o que se deu aqui com o contraste

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estabelecido no original entre vocabulário latino e vocabulário germânico.(3) Até que ponto uma correspondência exata seria de fato desejável? Pode haver

casos em que seja necessário utilizar uma correspondência funcional e não formal. Este ponto, que me parece muito importante, não foi discutido aqui. Para um exemplo, remeto oleitor à referência bibliográfica da nota 1 do presente trabalho.

O método proposto é ainda um esboço, em que muitos detalhes ainda precisam serelaborados. Mas creio que temos aqui um caminho promissor no sentido de chegar a umaavaliação menos subjetivista das traduções poéticas, que trabalhe com dados mais objetivose permita quantificar os juízos de valor expressos através de conceitos como“correspondência” e “perda”. 

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Referências 

BISHOP, Elizabeth (1991). The complete poems: 1927-1979. Nova York, Farrar, Strausand Giroux.

 __________. (2001). O iceberg imaginário e outros poemas. Seleção, tradução e estudo

crítico de Paulo Henriques Britto. São Paulo, Companhia das Letras.BRITTO, Paulo H. (2000). “Uma forma humilde”. Jornal de Resenhas, no 60, Folha de São

 Paulo, 11 de março.

CAVALCANTI PROENÇA, M. (1955)  Ritmo e poesia. Rio de Janeiro, OrganizaçãoSimões.

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APÊNDICE

/ / \ /The still explosions on the rocks,

/ /

the lichens, grow/ / / / by spreading gray, concentric shocks.

/ /They have arranged

/ / / / /to meet the rings around the moon, although

/ / \ / /within our memories they have not changed.

/ / \ /And since the heavens will attend

/ /as long on us,

/ /you’ve been, dear friend, 

/ \ / \ precipitate and pragmatical;

/ / /

and look what happens. For Time is/ / / \nothing if not amenable.

/ / / /The shooting stars in your black hair

/ /in bright formation

/ /are flocking where,

/ /so straight, so soon?

/ \ / / / / —  Come, let me wash it in this big tin basin,

/ / \ / battered and shiny like the moon.

a

b

a

c

b

c

d

e

d

 f

e

 f

 g

h

 g

i

h

i

4

82

4482

45

105

10

4

82

42

44

93

848

4

82

52

4

246

114

8

L

C

L

C

L

L

L

C

C

L

L

L

L

C

C

C

L

L

s , Z, z

z, g, r

s, g, k, r

r

m, r, ð

ð, m, r

 p, t

t

n

 b

 b, f

f

s

l, S, b

 b, S, l

 precipitate, pragmatical 

amenable

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7/25/2019 Britto - Para Uma Avaliacao Mais Objetiva

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/ \ / /Os líquens —  silenciosas explosões

 / / /

nas pedras —  crescem e engordam, 

/ \ / \ /concêntricas, cinzentas concussões.

/ / /Têm um encontro marcado

 / / / /

com os halos ao redor da lua, embora   

/ / / / /até o momento nada tenha mudado.   

\ / \ / /

E como o céu há de nos dar guarida \ / / /

enquanto isso não se der,/ / /

você há de convir, amiga,\ / /

que se precipitou;/ / / /

e eis no que dá. Porque o Tempo é,     

/ / \ /mais que tudo, contemporizador.

/ / / / / No teu cabelo negro brilham estrelas

 / \ /

cadentes, arredias./ / /

Para onde irão elas\ / /

tão cedo, resolutas?/ \ / / /

 —  Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia   

/ / \ /amassada e brilhante como a lua.

   

a

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