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ANTROPOlógicas Nº 9 ‘Porto ‘UFP ‘2005 227 CIGANOS, «TENDEIROS» E «SENHORES»: FRONTEIRAS IDENTITÁRIAS 1 Ana Brinca Assistente de Investigação CEMME (Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas) | (FCSH – UNL) hmveb85@ hotmail.com Resumo Este artigo aborda algumas questões centrais do «ser cigano» em contextos rela- cionais inter e intra-étnicos. Argumentaremos, por um lado, que se trata de uma identida- de que parece assentar sobretudo numa dicotomização (Barth, 1969) entre um “Nós” 1 O presente artigo resulta da investigação que conduzi entre 2000 e 2004 enquanto bolseira de doutoramento da FCT junto de uma vintena de famílias ciganas (as quais perfazem um total de 60 indivíduos de ambos os sexos e idades compreendidas entre os 8 e os 75 anos) à data residentes num bairro social do distrito de Setúbal, no qual (quase todas) tinham sido realojadas pela Câmara Municipal local. Tratam-se, todas elas, de famílias oriundas do Alentejo. Alguns dos protagonistas têm familiares ascendentes que migraram para os distritos de Lisboa e de Setúbal durante as décadas de 50 e 60; outros acompanharam a migração dos pais entre os anos 70 e 80; especialmente as mulheres mais jovens (com idades compreendidas entre os 25 e os 35 anos), e já casadas, chega- ram ao distrito de Setúbal logo após terem casado onde os respectivos cônjuges pos- suíam já familiares ascendentes ou colaterais. Descendem uns de famílias ciganas que já se tinham fixado numa aldeia, vila ou cidade alentejana, numa «casa própria», num «casão» emprestado ou numa «barraquita de madeira»; outros são filhos e/ou netos de ciganos nómadas tendo eles próprios praticado o nomadismo até terem migrado para dos distritos em causa. O negócio e/ou a tosquia de «bestas» constituía a actividade exercida pelos avós e pelos pais de todos eles (complementada, por vezes, pela «venda de pequenos artigos dentro de uma alcofa» levada a cabo pelas esposas); alguns dos inter- locutores, antes de dedicarem-se à venda ambulante de roupa, actividade que exercem actualmente, praticaram o negócio ou a tosquia de «animais». Para além da origem geo- gráfica, da mesma actividade económica, do facto de residirem no mesmo bairro há alguns anos, as famílias ciganas em questão ainda têm em comum um ou outro parente ascendente. Fazem ainda parte da nossa unidade social de análise mais de uma vintena de não ciganos que vivem ou trabalham no/à volta do bairro onde residem quase todos os entrevistados ciganos. São eles «tendeiros», os quais vivem no mesmo bairro, e «senhores» entre os quais se encontram moradores do mesmo bairro, e professores e comerciantes que exercem na área as respectivas actividades.

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  • ANTROPOlgicas N 9 Porto UFP 2005

    227

    CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS1

    Ana Brinca Assistente de Investigao

    CEMME (Centro de Estudos de Migraes e Minorias tnicas) | (FCSH UNL) hmveb85@ hotmail.com

    Resumo

    Este artigo aborda algumas questes centrais do ser cigano em contextos rela-cionais inter e intra-tnicos. Argumentaremos, por um lado, que se trata de uma identida-de que parece assentar sobretudo numa dicotomizao (Barth, 1969) entre um Ns

    1 O presente artigo resulta da investigao que conduzi entre 2000 e 2004 enquanto bolseira de doutoramento da FCT junto de uma vintena de famlias ciganas (as quais perfazem um total de 60 indivduos de ambos os sexos e idades compreendidas entre os 8 e os 75 anos) data residentes num bairro social do distrito de Setbal, no qual (quase todas) tinham sido realojadas pela Cmara Municipal local. Tratam-se, todas elas, de famlias oriundas do Alentejo. Alguns dos protagonistas tm familiares ascendentes que migraram para os distritos de Lisboa e de Setbal durante as dcadas de 50 e 60; outros acompanharam a migrao dos pais entre os anos 70 e 80; especialmente as mulheres mais jovens (com idades compreendidas entre os 25 e os 35 anos), e j casadas, chega-ram ao distrito de Setbal logo aps terem casado onde os respectivos cnjuges pos-suam j familiares ascendentes ou colaterais. Descendem uns de famlias ciganas que j se tinham fixado numa aldeia, vila ou cidade alentejana, numa casa prpria, num caso emprestado ou numa barraquita de madeira; outros so filhos e/ou netos de ciganos nmadas tendo eles prprios praticado o nomadismo at terem migrado para dos distritos em causa. O negcio e/ou a tosquia de bestas constitua a actividade exercida pelos avs e pelos pais de todos eles (complementada, por vezes, pela venda de pequenos artigos dentro de uma alcofa levada a cabo pelas esposas); alguns dos inter-locutores, antes de dedicarem-se venda ambulante de roupa, actividade que exercem actualmente, praticaram o negcio ou a tosquia de animais. Para alm da origem geo-grfica, da mesma actividade econmica, do facto de residirem no mesmo bairro h alguns anos, as famlias ciganas em questo ainda tm em comum um ou outro parente ascendente. Fazem ainda parte da nossa unidade social de anlise mais de uma vintena de no ciganos que vivem ou trabalham no/ volta do bairro onde residem quase todos os entrevistados ciganos. So eles tendeiros, os quais vivem no mesmo bairro, e senhores entre os quais se encontram moradores do mesmo bairro, e professores e comerciantes que exercem na rea as respectivas actividades.

    Ana Brinca

    228 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    (Ns, os ciganos) e os Outros (os no ciganos, ou, no caso estudado, os tendeiros e os senhores) e no tanto no que por vezes aparece descrito como cultura cigana (concebida como um conjunto de traos culturais inerentes prpria pertena tnica cigana e adquiridos aquando do nascimento de um indivduo). Por outro lado, mostrare-mos que a dimenso identidade subjacente ao termo cigano no garante por si s a criao de um Ns no-fragmentrio, solidrio e singular. A expresso Temos cinco dedos nas mos e nenhum igual (sublinhada pela larga maioria dos nossos interlocuto-res) evidencia a percepo de outros no seio do prprio grupo tnico cigano. justa-mente por isso que urge proceder des-homogeneizao da categoria tnica cigano (Bastos e Bastos, 2005).

    Abstract

    This article talks about some main questions about being gipsy in inter and intra ethnic relation contexts. Well argue that on the one hand it is an identity that seems to lay on a dichotomization (Barth, 1969) between an us (us, the gypsies) and the others (the non gypsies or in the studied case, the tendeiros2 and the gentlemen) and not as much as on what sometimes its described as gipsy culture (conceived as a group of cultural traits inherent to the very own gipsy ethnic belonging and acquired when an individual is born). On the other hand well show that the underlying identity of the word gipsy doesnt guarantee by itself the creation of a non fragmentary, supportive and unique us. The expression We have five fingers in each hand and they are all different (used by the majority of our interviewees) shows the perception about the others among the very own gipsy ethnic group. This is exactly why it urges to do the de-homogenization of the gipsy ethnic group (Bastos e Bastos, 2005).

    2 N.T. The studied individuals have different definitions for Tendeiros. Some consider them individuals born from the union between a gipsy and a non gipsy or people with traditions (cultural, professional, etc.) similar to the gypsies. They all agree that Tendeiros are sellers just like gypsies.

  • ANTROPOlgicas N 9 Porto UFP 2005

    227

    CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS1

    Ana Brinca Assistente de Investigao

    CEMME (Centro de Estudos de Migraes e Minorias tnicas) | (FCSH UNL) hmveb85@ hotmail.com

    Resumo

    Este artigo aborda algumas questes centrais do ser cigano em contextos rela-cionais inter e intra-tnicos. Argumentaremos, por um lado, que se trata de uma identida-de que parece assentar sobretudo numa dicotomizao (Barth, 1969) entre um Ns

    1 O presente artigo resulta da investigao que conduzi entre 2000 e 2004 enquanto bolseira de doutoramento da FCT junto de uma vintena de famlias ciganas (as quais perfazem um total de 60 indivduos de ambos os sexos e idades compreendidas entre os 8 e os 75 anos) data residentes num bairro social do distrito de Setbal, no qual (quase todas) tinham sido realojadas pela Cmara Municipal local. Tratam-se, todas elas, de famlias oriundas do Alentejo. Alguns dos protagonistas tm familiares ascendentes que migraram para os distritos de Lisboa e de Setbal durante as dcadas de 50 e 60; outros acompanharam a migrao dos pais entre os anos 70 e 80; especialmente as mulheres mais jovens (com idades compreendidas entre os 25 e os 35 anos), e j casadas, chega-ram ao distrito de Setbal logo aps terem casado onde os respectivos cnjuges pos-suam j familiares ascendentes ou colaterais. Descendem uns de famlias ciganas que j se tinham fixado numa aldeia, vila ou cidade alentejana, numa casa prpria, num caso emprestado ou numa barraquita de madeira; outros so filhos e/ou netos de ciganos nmadas tendo eles prprios praticado o nomadismo at terem migrado para dos distritos em causa. O negcio e/ou a tosquia de bestas constitua a actividade exercida pelos avs e pelos pais de todos eles (complementada, por vezes, pela venda de pequenos artigos dentro de uma alcofa levada a cabo pelas esposas); alguns dos inter-locutores, antes de dedicarem-se venda ambulante de roupa, actividade que exercem actualmente, praticaram o negcio ou a tosquia de animais. Para alm da origem geo-grfica, da mesma actividade econmica, do facto de residirem no mesmo bairro h alguns anos, as famlias ciganas em questo ainda tm em comum um ou outro parente ascendente. Fazem ainda parte da nossa unidade social de anlise mais de uma vintena de no ciganos que vivem ou trabalham no/ volta do bairro onde residem quase todos os entrevistados ciganos. So eles tendeiros, os quais vivem no mesmo bairro, e senhores entre os quais se encontram moradores do mesmo bairro, e professores e comerciantes que exercem na rea as respectivas actividades.

    Ana Brinca

    228 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    (Ns, os ciganos) e os Outros (os no ciganos, ou, no caso estudado, os tendeiros e os senhores) e no tanto no que por vezes aparece descrito como cultura cigana (concebida como um conjunto de traos culturais inerentes prpria pertena tnica cigana e adquiridos aquando do nascimento de um indivduo). Por outro lado, mostrare-mos que a dimenso identidade subjacente ao termo cigano no garante por si s a criao de um Ns no-fragmentrio, solidrio e singular. A expresso Temos cinco dedos nas mos e nenhum igual (sublinhada pela larga maioria dos nossos interlocuto-res) evidencia a percepo de outros no seio do prprio grupo tnico cigano. justa-mente por isso que urge proceder des-homogeneizao da categoria tnica cigano (Bastos e Bastos, 2005).

    Abstract

    This article talks about some main questions about being gipsy in inter and intra ethnic relation contexts. Well argue that on the one hand it is an identity that seems to lay on a dichotomization (Barth, 1969) between an us (us, the gypsies) and the others (the non gypsies or in the studied case, the tendeiros2 and the gentlemen) and not as much as on what sometimes its described as gipsy culture (conceived as a group of cultural traits inherent to the very own gipsy ethnic belonging and acquired when an individual is born). On the other hand well show that the underlying identity of the word gipsy doesnt guarantee by itself the creation of a non fragmentary, supportive and unique us. The expression We have five fingers in each hand and they are all different (used by the majority of our interviewees) shows the perception about the others among the very own gipsy ethnic group. This is exactly why it urges to do the de-homogenization of the gipsy ethnic group (Bastos e Bastos, 2005).

    2 N.T. The studied individuals have different definitions for Tendeiros. Some consider them individuals born from the union between a gipsy and a non gipsy or people with traditions (cultural, professional, etc.) similar to the gypsies. They all agree that Tendeiros are sellers just like gypsies.

  • CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS

    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 229

    Um jogo cigano!? O jogo do mata. (...) A gente joga s aqui, entre a gente. (...) Na escola no. s mesmo aqui. (...) S a gente. Os tendeiros3 no jogam com a gente, nem os senhores.4 s ciganos.

    (M., 11anos, in Dirio de Campo, 06-02-02).

    Primeiro lana-se 10 escudos e tiram-se as cartas; volta-se a lanar outros 10 escudos. Aquele que tiver os pares maiores (ou seja, os reis e os ases) ganha o dinheiro que est na mesa. A gente chama Bingo explicou-nos um rapaz de 10 anos

    (in Dirio de Campo, 06-02-02).

    Introduo

    O Jogo do mata e o Bingo5 foram-nos dados a conhecer por alguns dos ciganos que temos vindo a estudar como jogos ciganos, contribuindo para a definio o facto de se tratarem de jogos exclusiva-mente entretidos no bairro onde residem e nos quais entram apenas familiares ou co-tnicos; a excepo o jogo do Bingo, no qual, por vezes, participam dois vizinhos no ciganos aos quais chamam tendei-ros.6 Em si mesmos, os jogos figuram algumas dinmicas da identida-de tnica cigana. Antes de mais, a identidade cigana constitui um pro-cesso relacional que pressupe duas (ou mais) partes (os ciganos e os no ciganos, os ciganos contra ciganos), as quais pem em jogo, por 3 Os sujeitos estudados no definem todos eles da mesma forma o termo tendeiro. Dizem uns que se tratam de indivduos que nasceram da unio entre um(a) cigano(a) e um(a) no cigana(o); dizem outros que so sujeitos com tradies (culturais, profissionais, etc.) semelhantes s dos ciganos; dizem todos eles que se tratam de pessoas que, tal como os ciganos, andam nas vendas, o que nem sem corresponde realidade da categoria social em causa. 4 Atravs do termo senhores, os ciganos com quem falmos pretendem classificar os no ciganos. Trata-se, portanto, de uma palavra que tem um significado equivalente ao termo roman gadj. 5 Pelo que nos foi dado observar durante a nossa estadia em campo, o jogo do mata exclusivamente jogado entre crianas, crianas estas de ambos os sexos, ao passo que o Bingo igualmente jogado pelos homens adultos, entre si, ou seja, parte dos grupos formados pelos mais novos. 6 Ainda que os homens ciganos nomeassem por tendeiros os dois no ciganos que com eles costumavam jogar ao Bingo, a verdade que no o eram o facto de no serem ciganos e de viverem num meio maioritariamente cigano e tendeiro e de esporadicamente exercerem a venda ambulante levava-os a possurem tal designao entre os ciganos.

    Ana Brinca

    230 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    meio de estratgias identitrias,7 distintos componentes (culturais, sociais, simblicos) familiares e/ou pessoais tendo em vista a obteno de vitrias identitrias (Kastersztein, 1990), entre elas, a sua prpria reproduo.

    Neste artigo vamos ento debruarmo-nos sobre aquele que pare-ce ser o processo central envolvido na reproduo do ser cigano: a criao e a manuteno de fronteiras identitrias. O ser cigano parece apelar e/ou fundamentar-se frequentemente na afirmao, exibi-o e defesa (mais ou menos agressiva) de fronteiras (sociais, culturais ou simblicas) inter e intra-tnicas, as quais, so, porm, mais ou menos slidas ou fluidas consoante as situaes de interaco, a identidade tnica dos outros jogadores (quem so, como vem e como tratam os ciganos), os interesses e as finalidades identitrias (Kastersztein, 1990) das partes envolvidas e os contextos socio-econmicos, polticos e ideolgicos do jogo. Partimos, por isso, da abordagem de Fredrik Barth sobre a identidade tnica, a qual, ao tom-la como uma caracte-rstica da organizao social e no como uma expresso da cultura, salienta a fronteira e os seus modos de rotulamento e de relaciona-mento em vez dos aspectos culturais que ela encerra (1969).8 Aqueles jogos, dados como ciganos, isto , como signos culturais dos ciga-nos, so igualmente encontrados entre os no ciganos um pouco por todo o lado. Centrarmos a nossa ateno justamente no modo como os sujeitos estudados os convertem em ciganos (jogando-os no bairro 7 Criados os seus contornos na dcada de 70 do sculo XX por Pierre Tap, o conceito de estratgia identitria foi entretanto descrito como des procdures mises en oeuvre (de faon consciente ou inconsciente) para un acteur (individuel ou colectif) pour atteindre une, ou des finalits (definis explicitement ou se situant au niveau de linconscient), procdures labores en fonction de la situation de interaction, cest--fonction des diffrents dterminations (socio-historiques, culturelles, psychologiques) de cette situation (Lipiansky, Taboada-Leonetti, Vasquez, 1990:24). 8 Fredrik Barth tem sido o cientista talvez mais responsvel pela substituio das abor-dagens estticas por outras mais interaccionistas no que diz respeito etnicidade (Eloe 1980 citado por Vermeulen & Govers, 2003:11). A sua concepo dinmica da identidade tnica ope-se a uma outra, a qual enfatiza os atributos originais e permanentes e que habitualmente conhecida por primordialismo (Shils, 1957; Geertz 1963; Eller e Cough-lan, 1993). De acordo com Barth, a etnicidade constitui uma forma de organizao social caracterizada pela ascrio e auto-ascrio, sendo que neste mbito destaca jus-tamente o conceito de fronteira, o qual fundamental na criao de identidades. A identificao pressupe, simultaneamente, a diferenciao e o que emerge naquela a vontade de marcar o limite entre o Ns e o Eles, mantendo assim uma fronteira (1969).

  • CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS

    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 229

    Um jogo cigano!? O jogo do mata. (...) A gente joga s aqui, entre a gente. (...) Na escola no. s mesmo aqui. (...) S a gente. Os tendeiros3 no jogam com a gente, nem os senhores.4 s ciganos.

    (M., 11anos, in Dirio de Campo, 06-02-02).

    Primeiro lana-se 10 escudos e tiram-se as cartas; volta-se a lanar outros 10 escudos. Aquele que tiver os pares maiores (ou seja, os reis e os ases) ganha o dinheiro que est na mesa. A gente chama Bingo explicou-nos um rapaz de 10 anos

    (in Dirio de Campo, 06-02-02).

    Introduo

    O Jogo do mata e o Bingo5 foram-nos dados a conhecer por alguns dos ciganos que temos vindo a estudar como jogos ciganos, contribuindo para a definio o facto de se tratarem de jogos exclusiva-mente entretidos no bairro onde residem e nos quais entram apenas familiares ou co-tnicos; a excepo o jogo do Bingo, no qual, por vezes, participam dois vizinhos no ciganos aos quais chamam tendei-ros.6 Em si mesmos, os jogos figuram algumas dinmicas da identida-de tnica cigana. Antes de mais, a identidade cigana constitui um pro-cesso relacional que pressupe duas (ou mais) partes (os ciganos e os no ciganos, os ciganos contra ciganos), as quais pem em jogo, por 3 Os sujeitos estudados no definem todos eles da mesma forma o termo tendeiro. Dizem uns que se tratam de indivduos que nasceram da unio entre um(a) cigano(a) e um(a) no cigana(o); dizem outros que so sujeitos com tradies (culturais, profissionais, etc.) semelhantes s dos ciganos; dizem todos eles que se tratam de pessoas que, tal como os ciganos, andam nas vendas, o que nem sem corresponde realidade da categoria social em causa. 4 Atravs do termo senhores, os ciganos com quem falmos pretendem classificar os no ciganos. Trata-se, portanto, de uma palavra que tem um significado equivalente ao termo roman gadj. 5 Pelo que nos foi dado observar durante a nossa estadia em campo, o jogo do mata exclusivamente jogado entre crianas, crianas estas de ambos os sexos, ao passo que o Bingo igualmente jogado pelos homens adultos, entre si, ou seja, parte dos grupos formados pelos mais novos. 6 Ainda que os homens ciganos nomeassem por tendeiros os dois no ciganos que com eles costumavam jogar ao Bingo, a verdade que no o eram o facto de no serem ciganos e de viverem num meio maioritariamente cigano e tendeiro e de esporadicamente exercerem a venda ambulante levava-os a possurem tal designao entre os ciganos.

    Ana Brinca

    230 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    meio de estratgias identitrias,7 distintos componentes (culturais, sociais, simblicos) familiares e/ou pessoais tendo em vista a obteno de vitrias identitrias (Kastersztein, 1990), entre elas, a sua prpria reproduo.

    Neste artigo vamos ento debruarmo-nos sobre aquele que pare-ce ser o processo central envolvido na reproduo do ser cigano: a criao e a manuteno de fronteiras identitrias. O ser cigano parece apelar e/ou fundamentar-se frequentemente na afirmao, exibi-o e defesa (mais ou menos agressiva) de fronteiras (sociais, culturais ou simblicas) inter e intra-tnicas, as quais, so, porm, mais ou menos slidas ou fluidas consoante as situaes de interaco, a identidade tnica dos outros jogadores (quem so, como vem e como tratam os ciganos), os interesses e as finalidades identitrias (Kastersztein, 1990) das partes envolvidas e os contextos socio-econmicos, polticos e ideolgicos do jogo. Partimos, por isso, da abordagem de Fredrik Barth sobre a identidade tnica, a qual, ao tom-la como uma caracte-rstica da organizao social e no como uma expresso da cultura, salienta a fronteira e os seus modos de rotulamento e de relaciona-mento em vez dos aspectos culturais que ela encerra (1969).8 Aqueles jogos, dados como ciganos, isto , como signos culturais dos ciga-nos, so igualmente encontrados entre os no ciganos um pouco por todo o lado. Centrarmos a nossa ateno justamente no modo como os sujeitos estudados os convertem em ciganos (jogando-os no bairro 7 Criados os seus contornos na dcada de 70 do sculo XX por Pierre Tap, o conceito de estratgia identitria foi entretanto descrito como des procdures mises en oeuvre (de faon consciente ou inconsciente) para un acteur (individuel ou colectif) pour atteindre une, ou des finalits (definis explicitement ou se situant au niveau de linconscient), procdures labores en fonction de la situation de interaction, cest--fonction des diffrents dterminations (socio-historiques, culturelles, psychologiques) de cette situation (Lipiansky, Taboada-Leonetti, Vasquez, 1990:24). 8 Fredrik Barth tem sido o cientista talvez mais responsvel pela substituio das abor-dagens estticas por outras mais interaccionistas no que diz respeito etnicidade (Eloe 1980 citado por Vermeulen & Govers, 2003:11). A sua concepo dinmica da identidade tnica ope-se a uma outra, a qual enfatiza os atributos originais e permanentes e que habitualmente conhecida por primordialismo (Shils, 1957; Geertz 1963; Eller e Cough-lan, 1993). De acordo com Barth, a etnicidade constitui uma forma de organizao social caracterizada pela ascrio e auto-ascrio, sendo que neste mbito destaca jus-tamente o conceito de fronteira, o qual fundamental na criao de identidades. A identificao pressupe, simultaneamente, a diferenciao e o que emerge naquela a vontade de marcar o limite entre o Ns e o Eles, mantendo assim uma fronteira (1969).

  • CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS

    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 231

    onde residem, o qual apesar de ser partilhado com senhores e ten-deiros tambm por eles considerado cigano, apenas entre si e com a excluso dos no ciganos) e assim criam uma fronteira pare-ce-nos o mais interessante de ser analisado. Referir alguns dos proces-sos que esto envolvidos na sua considerao de quem (no) ciga-no e o que (no) (ser)cigano e como marcam as distines tnicas em causa, o nosso objectivo central.

    De molde a afastarmo-nos de uma anlise circunscrita retrica do Ns e do Outro (Vermeulen & Govers, 2003)9 e do encastelamento dos protagonistas na categoria geral ciganos e contribuirmos para a sua des-homogeneizao (social, cultural ou identitria), faremos uma breve referncia manuteno de fronteiras no seio do prprio grupo, as quais, contribuem, em parte, para a criao de identidades familia-res/pessoais. O grupo tnico ou uma famlia cigana, longe de ser (sobretudo) um espao de unio dos seus membros, assume-se igualmente como um espao de fronteiras internas cujas partes em jogo ensaiam entre si oposies, competies ou conflitos. Nem todos jogam o mesmo jogo e, quando o fazem, tentam faz-lo de maneira diferente tendo em vista alguns ganhos identitrios (como, por exemplo, o de serem diferenciados ou serem vistos e sentirem-se eles prprios como os melhores), dinmica esta que, em certa medida, est repre-sentada no Bingo, mesmo que em certas circunstncias (sociais, econmicas, etc.) se unam uns aos outros.

    9 As relaes tnicas e a construo de fronteiras na maioria das sociedades plurais no incidem sobre estrangeiros, mas sim sobre outros adjacentes e familiares. Envolvem co-residentes em sistemas sociais abrangentes, remetendo mais frequentemente para ques-tes como: de que forma ns nos diferenciamos deles, em vez de para uma viso unilateral e hegemnica do outro (Vermeulen e Govers, 2003:22).

    Ana Brinca

    232 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    1. Ciganos versus no ciganos: pertenas, incorporaes e exclu-ses e modos de jogar a identidade tnica

    1.1. Ser cigano no ser tendeiro nem senhor

    A gente j nasce ciganos. A gente j nasce nesse ambiente. O meu pai cigano, a minha me cigana, significa que um cigano o caso nasa de pai cigano e me cigana. Porm, se um dos progenito-res no for cigano, j no se bem-bem cigano, -se misturado. Quanto ao que um cigano, uns confessam no saber responder questo:

    Muito sei eu c o que um cigano (H., 68 anos), Desculpe, mas a no a posso ajudar porque no sei (M., 42 anos), Olhe, eu sou cigano e nem lhe sei dizer o que um cigano. (...) Pronto, a mim puseram-me cigano e agora? Eu no lhe sei dizer o significado de um cigano (H., 44 anos);

    outros contestam que o nome que define a sua condio tnica uma criao dos senhores para nomearem aqueles que se dedicavam actividade comercial em feiras e mercados: Puseram gente ciganos por a gente vender na praa. Ah, um cigano! (H., 44 anos). Em qualquer uma das respostas, a identidade cigana parece basear-se mais numa relao com os outros do que num antepassado comum, numa origem ou num atributo. O termo cigano ganha face, orientao e espessura quando relacionado com outras categorias tnicas, espe-cialmente aquelas que os prprios ciganos identificam no meio social circundante e em relao s quais procuram (identificar-se e/ou) dife-renciar-se. No caso presente, so elas os tendeiros e os senhores, sendo que os ltimos so por eles dicotomizados entre os que so sim-plesmente designados por senhores (e que parecem ser os de pele branca) e os que so chamados de pretos. E esta forma de olharem e interpretarem o universo social em redor e nele se balizarem, expe, por sua vez, fronteiras no entendimento e no relacionamento inter e intra-tnico.

    Relativamente aos tendeiros, os sujeitos estudados dizem que eles so senhores meio aciganados sem serem ciganos. Uns justi-

  • CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS

    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 231

    onde residem, o qual apesar de ser partilhado com senhores e ten-deiros tambm por eles considerado cigano, apenas entre si e com a excluso dos no ciganos) e assim criam uma fronteira pare-ce-nos o mais interessante de ser analisado. Referir alguns dos proces-sos que esto envolvidos na sua considerao de quem (no) ciga-no e o que (no) (ser)cigano e como marcam as distines tnicas em causa, o nosso objectivo central.

    De molde a afastarmo-nos de uma anlise circunscrita retrica do Ns e do Outro (Vermeulen & Govers, 2003)9 e do encastelamento dos protagonistas na categoria geral ciganos e contribuirmos para a sua des-homogeneizao (social, cultural ou identitria), faremos uma breve referncia manuteno de fronteiras no seio do prprio grupo, as quais, contribuem, em parte, para a criao de identidades familia-res/pessoais. O grupo tnico ou uma famlia cigana, longe de ser (sobretudo) um espao de unio dos seus membros, assume-se igualmente como um espao de fronteiras internas cujas partes em jogo ensaiam entre si oposies, competies ou conflitos. Nem todos jogam o mesmo jogo e, quando o fazem, tentam faz-lo de maneira diferente tendo em vista alguns ganhos identitrios (como, por exemplo, o de serem diferenciados ou serem vistos e sentirem-se eles prprios como os melhores), dinmica esta que, em certa medida, est repre-sentada no Bingo, mesmo que em certas circunstncias (sociais, econmicas, etc.) se unam uns aos outros.

    9 As relaes tnicas e a construo de fronteiras na maioria das sociedades plurais no incidem sobre estrangeiros, mas sim sobre outros adjacentes e familiares. Envolvem co-residentes em sistemas sociais abrangentes, remetendo mais frequentemente para ques-tes como: de que forma ns nos diferenciamos deles, em vez de para uma viso unilateral e hegemnica do outro (Vermeulen e Govers, 2003:22).

    Ana Brinca

    232 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    1. Ciganos versus no ciganos: pertenas, incorporaes e exclu-ses e modos de jogar a identidade tnica

    1.1. Ser cigano no ser tendeiro nem senhor

    A gente j nasce ciganos. A gente j nasce nesse ambiente. O meu pai cigano, a minha me cigana, significa que um cigano o caso nasa de pai cigano e me cigana. Porm, se um dos progenito-res no for cigano, j no se bem-bem cigano, -se misturado. Quanto ao que um cigano, uns confessam no saber responder questo:

    Muito sei eu c o que um cigano (H., 68 anos), Desculpe, mas a no a posso ajudar porque no sei (M., 42 anos), Olhe, eu sou cigano e nem lhe sei dizer o que um cigano. (...) Pronto, a mim puseram-me cigano e agora? Eu no lhe sei dizer o significado de um cigano (H., 44 anos);

    outros contestam que o nome que define a sua condio tnica uma criao dos senhores para nomearem aqueles que se dedicavam actividade comercial em feiras e mercados: Puseram gente ciganos por a gente vender na praa. Ah, um cigano! (H., 44 anos). Em qualquer uma das respostas, a identidade cigana parece basear-se mais numa relao com os outros do que num antepassado comum, numa origem ou num atributo. O termo cigano ganha face, orientao e espessura quando relacionado com outras categorias tnicas, espe-cialmente aquelas que os prprios ciganos identificam no meio social circundante e em relao s quais procuram (identificar-se e/ou) dife-renciar-se. No caso presente, so elas os tendeiros e os senhores, sendo que os ltimos so por eles dicotomizados entre os que so sim-plesmente designados por senhores (e que parecem ser os de pele branca) e os que so chamados de pretos. E esta forma de olharem e interpretarem o universo social em redor e nele se balizarem, expe, por sua vez, fronteiras no entendimento e no relacionamento inter e intra-tnico.

    Relativamente aos tendeiros, os sujeitos estudados dizem que eles so senhores meio aciganados sem serem ciganos. Uns justi-

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    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 233

    ficam a ideia a partir do estilo de vida tendeiro (que gira algumas vezes em torno da venda ambulante) e que dizem ser idntico ao dos ciganos:10

    Esse meio senhor, meio aciganado. Esses j andam mais pelos campos. Esses tambm viveram com as bestas, nos campos; antes de terem os carros viveram com os burros, com as bestas, com rodas, com os carrinhos, com as carroas. Viveram mesmo como o cigano. O tendeiro vivia mesmo como o cigano. (H, 68 anos).

    Os tendeiros constituem uma categoria tnica situada pelos inter-locutores entre eles e os senhores e tida como algo hbrida (um meio atravessado) uma vez que possuem conhecimento do e/ou semelhanas vrias com o modo de vida e com certos costumes (como o vesturio, a actividade econmica, a lngua, etc.) dos ciganos (logo a seguir aos prprios ciganos da famlia, do bairro e da rede de conheci-mentos), mas no so ciganos. E talvez seja justamente por isso que os ciganos estudados os querem simultaneamente diferentes e fora do seu espao residencial:

    O tendeiro? Vem de uma parte que no cigana. mais pouco ou menos da sua parte, no toda. Meio atravessado. Porque voc se falar roman ao p de um tendeiro, ele, calhando, no entende, no percebe. Mas se falar ao p de um cigano, ele j entende. (H., 44 anos)

    Por sua vez, os tendeiros queixam-se que os senhores esto sempre a confundi-los com os ciganos, designando-os e tratando-os como se tal fossem o que lhes provoca revolta e vontade de responder mal.

    Mas no que toca aos pretos outra justificao no h para a sua categorizao enquanto tal que no seja a de serem simplesmente iguais a si prprios -pretos. Trata-se de uma categoria tnica que encerra nela todos os sujeitos de origem africana qualquer que seja o seu pas de origem:

    10 H mesmo alguns entrevistados que opinam que, originalmente, os tendeiros eram vendedores ambulantes enquanto os ciganos negociavam em bestas e que s quan-do essa actividade econmica comeou a enfraquecer que os ciganos passaram a dedicar-se venda ambulante. (Brinca, no prelo).

    Ana Brinca

    234 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    Preto preto ou E o preto preto e calhardo. (...) (calhardo) uma palavra que a gente tem uns para os outros. (E que quer dizer) Preto. (...) se a gente for chamar preto zangam-se. (...) se a gente for chamar preto, h uns que gostam, h outros que no querem. (...) aquele preto que parece bronze. Negro. (...) Aquilo j vem de gerao, j vem dos bisavs e depois a av, depois a bisav, depois isso j vem da antiguidade. (...) no mal feito, o que que cheiram mal. (H., 68 anos)

    Estabelecendo uma comparao identitria com os senhores, os nossos interlocutores do sexo masculino dizem de si mesmos e dos ciganos em geral que possuem pouco dinheiro mas so desenrasca-dos ou que so pobres, malcheirosos ou piolhosos, mas espertos. Quanto s mulheres, dizem de si e das ciganas em geral que sabem olhar pelos filhos e no os entregam ao cuidado de outros e portam-se ao contrrio das senhoras as quais andam aos 9 e aos 10, vo com todos para a cama, so umas desonradas (M., 50 anos). E dos ciga-nos em geral, sejam homens ou mulheres, dizem elas que, contraria-mente aos senhores, no espancam crianas. Antes de mais, estas so afirmaes que se enquadram numa estratgia identitria que parece ser comum a ciganos de outros pases (como, por exemplo os da Hungria) a de converterem em central ou superior a posio (social, econmica e politicamente) marginal que (quase sempre) ocu-pam entre a populao maioritria (Stewart, 1997:232, 234). Gay y Blasco, por exemplo, salienta que os Gitanos de Madrid por si estu-dados afirmam uma distino e uma superioridade em relao aos payos (os no ciganos) reinventando-se a si mesmos como os nicos e verdadeiros espanhis honrados (1999:14). Mas dos senho-res, alguns dos nossos interlocutores parecem ter incorporado elemen-tos da sua maneira de ser e de estar, os quais lhes conferem evolu-o ou civilizao em oposio ao atrasamento, ao ser malteso ou ao ser rafeiro de alguns outros ciganos. Com efeito, alguns deles nem sempre representam os senhores como outros. E essa transfigurao dos senhores em prximos do ponto de vista social e identitrio constitui justamente uma estratgia por eles mobili-zada para se diferenciarem (a si prprios e/ou famlia) dos outros ciganos e, assim, auto-atriburem-se no s distino (social e cultural) (Bourdieu, 1979) mas tambm prestgio e superioridade identitria.

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    ficam a ideia a partir do estilo de vida tendeiro (que gira algumas vezes em torno da venda ambulante) e que dizem ser idntico ao dos ciganos:10

    Esse meio senhor, meio aciganado. Esses j andam mais pelos campos. Esses tambm viveram com as bestas, nos campos; antes de terem os carros viveram com os burros, com as bestas, com rodas, com os carrinhos, com as carroas. Viveram mesmo como o cigano. O tendeiro vivia mesmo como o cigano. (H, 68 anos).

    Os tendeiros constituem uma categoria tnica situada pelos inter-locutores entre eles e os senhores e tida como algo hbrida (um meio atravessado) uma vez que possuem conhecimento do e/ou semelhanas vrias com o modo de vida e com certos costumes (como o vesturio, a actividade econmica, a lngua, etc.) dos ciganos (logo a seguir aos prprios ciganos da famlia, do bairro e da rede de conheci-mentos), mas no so ciganos. E talvez seja justamente por isso que os ciganos estudados os querem simultaneamente diferentes e fora do seu espao residencial:

    O tendeiro? Vem de uma parte que no cigana. mais pouco ou menos da sua parte, no toda. Meio atravessado. Porque voc se falar roman ao p de um tendeiro, ele, calhando, no entende, no percebe. Mas se falar ao p de um cigano, ele j entende. (H., 44 anos)

    Por sua vez, os tendeiros queixam-se que os senhores esto sempre a confundi-los com os ciganos, designando-os e tratando-os como se tal fossem o que lhes provoca revolta e vontade de responder mal.

    Mas no que toca aos pretos outra justificao no h para a sua categorizao enquanto tal que no seja a de serem simplesmente iguais a si prprios -pretos. Trata-se de uma categoria tnica que encerra nela todos os sujeitos de origem africana qualquer que seja o seu pas de origem:

    10 H mesmo alguns entrevistados que opinam que, originalmente, os tendeiros eram vendedores ambulantes enquanto os ciganos negociavam em bestas e que s quan-do essa actividade econmica comeou a enfraquecer que os ciganos passaram a dedicar-se venda ambulante. (Brinca, no prelo).

    Ana Brinca

    234 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    Preto preto ou E o preto preto e calhardo. (...) (calhardo) uma palavra que a gente tem uns para os outros. (E que quer dizer) Preto. (...) se a gente for chamar preto zangam-se. (...) se a gente for chamar preto, h uns que gostam, h outros que no querem. (...) aquele preto que parece bronze. Negro. (...) Aquilo j vem de gerao, j vem dos bisavs e depois a av, depois a bisav, depois isso j vem da antiguidade. (...) no mal feito, o que que cheiram mal. (H., 68 anos)

    Estabelecendo uma comparao identitria com os senhores, os nossos interlocutores do sexo masculino dizem de si mesmos e dos ciganos em geral que possuem pouco dinheiro mas so desenrasca-dos ou que so pobres, malcheirosos ou piolhosos, mas espertos. Quanto s mulheres, dizem de si e das ciganas em geral que sabem olhar pelos filhos e no os entregam ao cuidado de outros e portam-se ao contrrio das senhoras as quais andam aos 9 e aos 10, vo com todos para a cama, so umas desonradas (M., 50 anos). E dos ciga-nos em geral, sejam homens ou mulheres, dizem elas que, contraria-mente aos senhores, no espancam crianas. Antes de mais, estas so afirmaes que se enquadram numa estratgia identitria que parece ser comum a ciganos de outros pases (como, por exemplo os da Hungria) a de converterem em central ou superior a posio (social, econmica e politicamente) marginal que (quase sempre) ocu-pam entre a populao maioritria (Stewart, 1997:232, 234). Gay y Blasco, por exemplo, salienta que os Gitanos de Madrid por si estu-dados afirmam uma distino e uma superioridade em relao aos payos (os no ciganos) reinventando-se a si mesmos como os nicos e verdadeiros espanhis honrados (1999:14). Mas dos senho-res, alguns dos nossos interlocutores parecem ter incorporado elemen-tos da sua maneira de ser e de estar, os quais lhes conferem evolu-o ou civilizao em oposio ao atrasamento, ao ser malteso ou ao ser rafeiro de alguns outros ciganos. Com efeito, alguns deles nem sempre representam os senhores como outros. E essa transfigurao dos senhores em prximos do ponto de vista social e identitrio constitui justamente uma estratgia por eles mobili-zada para se diferenciarem (a si prprios e/ou famlia) dos outros ciganos e, assim, auto-atriburem-se no s distino (social e cultural) (Bourdieu, 1979) mas tambm prestgio e superioridade identitria.

  • CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS

    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 235

    Saber falar ou saber estar, isto , ter maneiras, promover o asseio, no brigar, saber cozinhar ou saber costurar so traos atribudos aos senhores e que foram incorporados por alguns (dos) nossos protagonistas a partir de uma convivncia prolongada, consti-tuindo mais-valias identitrias (Bastos e Bastos, 2002) que os distin-guem dos outros ciganos.

    A incorporao de alguns traos culturais dos senhores no se estende a todos eles e existem, de facto, regras que parecem regular essas mesmas incorporaes, bem como as convivncias sociais inter-tnicas. Mesmo nos casos de uma convivialidade familiarista (Bastos e Bastos, 2002) intensa com senhores que passa pela frequncia da casa uns dos outros, os ciganos evidenciam uma obedincia a certos interditos que regem as situaes de contacto das mulheres entre si (por exemplo, ter cuidado com as companhias pois podem manchar a imagem de uma rapariga solteira) e entre elas e os homens. Isto signifi-ca que, enquanto ciganos, devem orientar-se por certos valores, os quais sugerem constrangimentos inter-tnicos; e, neste quadro relacio-nal, as dicotomizaes entre os sexos emergem na orientao e na organizao a dar aos relacionamentos em causa; as raparigas ciganas solteiras so aconselhadas a no (ou impedidas de) interagirem com os outros, de molde a protegerem-se das falas (isto , da censura) dos co-tnicos; os rapazes, contudo, no se deparam com confrangi-mentos dessa natureza:

    (...) a gente tinha que se cuidar. No princpio, quando eu era pequenina, a minha me no ligava. Mas quando comecei a ser mulherzinha, (dizia:) No vais para alm porque fica mal. Porque depois as pessoas pensam que tu s... Se vais para um lugar, tens que ver com quem vais. Porque h companhias que se pode andar e outras no se podem. E, pronto, dava-me vrios conselhos. J eu era casada e ela sempre foi amiga de me dar conselhos. Uma me sempre d, faz o melhor, o normal. (M., 42 anos)

    Os rapazes vo para onde eles quiserem. O cuidado dos rapazes s no se meterem em drogas. Hoje em dia, o que os pais... o problema maior que existe quando eles andam com companhias que levam para os maus caminhos da droga. Mas de resto no. (M., 42 anos)

    Ana Brinca

    236 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    Contudo, nalgumas famlias, os mais velhos exercem uma forte presso sobre os membros mais novos (de ambos os sexos) para que cumpram as restries (da tradio) relativas exogamia matrimo-nial. A existncia de sociabilidades inter-tnicas, de relaes de vizi-nhana e de amizade com senhores, da ideia de si prprios ou dos familiares anteriores como sujeitos abertos ou no racistas so facetas que quase nunca supem a abertura ou a desobstruo de fronteiras tnicas. A (tentativa de) evitao de que as geraes mais novas celebrem laos de casamento com no ciganos constitui uma estratgia identitria defensiva escrupulosamente accionada pelas geraes ascendentes que tm em vista justamente a manuteno des-sas fronteiras, de molde a impedir a corroso da dimenso identidade subjacente ao termo cigano; neste cenrio, o casamento cigana (ou seja, o que realizado entre ciganos e de acordo com a tradio) -nos frequentemente verbalizado como uma marca cultural cigana por intermdio da qual fixam a sua oposio identitria em relao aos tendeiros e aos senhores. No entanto, vrios dos jovens ciganos com quem falmos, alguns dos quais casados, manifestam-se a favor da cessao dessa tradio em nome de uma vontade identitria pessoal pois so cada vez mais os casos de ciganos que gostam de raparigas no ciganas:

    O meu pai racista mesmo. (...). (Mais racista) (...) porque ainda no tm ningum casado assim com raas diferentes, nem filhos nem filhas, por enquanto, porque os homens que elas pedem de pequeninos, pronto, prometem de pequeninos (...) no contrariam famlia. (...) eu sou racista tambm. Sou racista numa maneira e no racista por outra. Porque essa tradio devia de acabar. (...) Porque h ciganos que gostam de raparigas sem serem ciganas. (...) O meu pai no gosta, no quer fugir raa. (M., 26 anos)

    Para alm do casamento, sair noite ou fumar, tal como in-meras senhoras fazem, so prticas reprovadas e excludas do seu dia-a-dia pelas mulheres ciganas.

    Mas os senhores no so s aqueles que so admirados por alguns ciganos e que lhes servem de modelo de referncia em ques-tes de educao, limpeza, saber-fazer. So tambm aqueles que a maior parte dos interlocutores ciganos desejam ter por vizinhos e isso

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    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 235

    Saber falar ou saber estar, isto , ter maneiras, promover o asseio, no brigar, saber cozinhar ou saber costurar so traos atribudos aos senhores e que foram incorporados por alguns (dos) nossos protagonistas a partir de uma convivncia prolongada, consti-tuindo mais-valias identitrias (Bastos e Bastos, 2002) que os distin-guem dos outros ciganos.

    A incorporao de alguns traos culturais dos senhores no se estende a todos eles e existem, de facto, regras que parecem regular essas mesmas incorporaes, bem como as convivncias sociais inter-tnicas. Mesmo nos casos de uma convivialidade familiarista (Bastos e Bastos, 2002) intensa com senhores que passa pela frequncia da casa uns dos outros, os ciganos evidenciam uma obedincia a certos interditos que regem as situaes de contacto das mulheres entre si (por exemplo, ter cuidado com as companhias pois podem manchar a imagem de uma rapariga solteira) e entre elas e os homens. Isto signifi-ca que, enquanto ciganos, devem orientar-se por certos valores, os quais sugerem constrangimentos inter-tnicos; e, neste quadro relacio-nal, as dicotomizaes entre os sexos emergem na orientao e na organizao a dar aos relacionamentos em causa; as raparigas ciganas solteiras so aconselhadas a no (ou impedidas de) interagirem com os outros, de molde a protegerem-se das falas (isto , da censura) dos co-tnicos; os rapazes, contudo, no se deparam com confrangi-mentos dessa natureza:

    (...) a gente tinha que se cuidar. No princpio, quando eu era pequenina, a minha me no ligava. Mas quando comecei a ser mulherzinha, (dizia:) No vais para alm porque fica mal. Porque depois as pessoas pensam que tu s... Se vais para um lugar, tens que ver com quem vais. Porque h companhias que se pode andar e outras no se podem. E, pronto, dava-me vrios conselhos. J eu era casada e ela sempre foi amiga de me dar conselhos. Uma me sempre d, faz o melhor, o normal. (M., 42 anos)

    Os rapazes vo para onde eles quiserem. O cuidado dos rapazes s no se meterem em drogas. Hoje em dia, o que os pais... o problema maior que existe quando eles andam com companhias que levam para os maus caminhos da droga. Mas de resto no. (M., 42 anos)

    Ana Brinca

    236 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    Contudo, nalgumas famlias, os mais velhos exercem uma forte presso sobre os membros mais novos (de ambos os sexos) para que cumpram as restries (da tradio) relativas exogamia matrimo-nial. A existncia de sociabilidades inter-tnicas, de relaes de vizi-nhana e de amizade com senhores, da ideia de si prprios ou dos familiares anteriores como sujeitos abertos ou no racistas so facetas que quase nunca supem a abertura ou a desobstruo de fronteiras tnicas. A (tentativa de) evitao de que as geraes mais novas celebrem laos de casamento com no ciganos constitui uma estratgia identitria defensiva escrupulosamente accionada pelas geraes ascendentes que tm em vista justamente a manuteno des-sas fronteiras, de molde a impedir a corroso da dimenso identidade subjacente ao termo cigano; neste cenrio, o casamento cigana (ou seja, o que realizado entre ciganos e de acordo com a tradio) -nos frequentemente verbalizado como uma marca cultural cigana por intermdio da qual fixam a sua oposio identitria em relao aos tendeiros e aos senhores. No entanto, vrios dos jovens ciganos com quem falmos, alguns dos quais casados, manifestam-se a favor da cessao dessa tradio em nome de uma vontade identitria pessoal pois so cada vez mais os casos de ciganos que gostam de raparigas no ciganas:

    O meu pai racista mesmo. (...). (Mais racista) (...) porque ainda no tm ningum casado assim com raas diferentes, nem filhos nem filhas, por enquanto, porque os homens que elas pedem de pequeninos, pronto, prometem de pequeninos (...) no contrariam famlia. (...) eu sou racista tambm. Sou racista numa maneira e no racista por outra. Porque essa tradio devia de acabar. (...) Porque h ciganos que gostam de raparigas sem serem ciganas. (...) O meu pai no gosta, no quer fugir raa. (M., 26 anos)

    Para alm do casamento, sair noite ou fumar, tal como in-meras senhoras fazem, so prticas reprovadas e excludas do seu dia-a-dia pelas mulheres ciganas.

    Mas os senhores no so s aqueles que so admirados por alguns ciganos e que lhes servem de modelo de referncia em ques-tes de educao, limpeza, saber-fazer. So tambm aqueles que a maior parte dos interlocutores ciganos desejam ter por vizinhos e isso

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    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 237

    porque, contrariamente aos vizinhos que so ciganos, nunca arran-jam problemas. Eis o que uma entrevistada diz a esse respeito:

    No gosto deste ambiente. (...) H umas pessoas que esto bem, outros querem mal. No me dou bem com eles. Quer dizer, eu no me dou bem com eles, eu at me dou bem com eles. No fao mal a ningum, ainda no discuti com ningum, no tive guerreias com ningum. (Preferia morar num stio) Sozinha. (...) No gostava de estar acompanhada assim com muita gente; gostava de estar assim sozinha, numa casa sozinha, que pudesse fazer as minhas coisas vontade e tivesse... Que a gente fosse a um lado e deixasse os nossos filhos em casa e que ningum se metesse com eles. E que a gente fosse nossa vidazinha e, pronto, que ningum nos chateasse a entrar ou a sair. E a minha vida assim era outra. E se eu tivesse sozinha numa casa, sem ser esta casa, o meu marido tirava-se do ambiente do que ele . Porque isto d-lhe raiva a ele. (...) Pois, que no tivesse ningum que o chateasse. (...) Quer dizer, ele no gosta dessa gente (dos ciganos). (...) faz confuso cabea, h muito sarrabulho e h pessoas... H o bom e o ruim, so comechosos e eu no gostava de morar ao p de gente assim. Gostava de morar assim. Esta casa, se eu estivesse sozinha, com vizinhas que no eram ciganas, eu prefiro melhor que nem a raa cigana ao p de mim. No porque a raa cigana faa mal a ningum, no !? Mas, prontos, h o bom e h o ruim. Pronto, gostava de viver mais sozinha. (M., 34 anos)

    No que toca aos tendeiros, porm, os quais lhes esto social e culturalmente prximos, os mesmos interlocutores procuram posicionar- -se numa relao de assimetria identitria colocando-os numa posio de simples imitadores dos ciganos. E se incorporam no seu dia-a-dia certos elementos que atribuem aos senhores, o inverso no por eles bem visto e aceite. Com efeito, alguns senhores, bem como os tendeiros em geral, so por eles acusados de imitarem os ciganos.

    No me dou muito com os tendeiros. (...) Querem imitar os ciganos, est a ver? (...) Querem ser ciganos como a gente, prontos. Eles querem, prontos, querem ter a nossa tradio, cigano mesmo. No conseguem, fazem as coisas mal e um gajo no gosta. (...) Prontos, quererem falar assim como a gente, est a ver? a fala, a nossa fala. (...) Querem imitar mesmo a gente. E a gente no gosta muito dos tendeiros. (H., 17 anos)

    Ana Brinca

    238 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    Dizem ainda outros interlocutores ciganos que o corte de cabelo, os adornos e o vesturio, bem como a dana so coisas dos ciganos copiadas pelos tendeiros e pelos senhores. E, neste contexto, basta verem um homem trajado com chapu, cala vincada ou sapato bicudinho ou ento uma mulher com o cabelo, os brincos ou a saia comprida para afirmarem que esto trajados cigana. Ai, j mais que a gente! (M., 26 anos), escarnece uma das interlocutoras ao ver passar uma senhora vestida cigana, dando voz a uma estra-tgia de defesa identitria daquilo que consideram ser especificidades ciganas. Esta estratgia ainda reforada pela afirmao de que os senhores jamais conseguiro passar por ciganos, sobretudo na frente de um cigano o andar e a maneira de falar, explica a mesma mulher, denunciam imediatamente a sua identidade senhora.

    Para alm de tudo isso, o ser cigano apoia-se em identificaes valorizadas pela famlia e/ou pelos co-tnicos em geral, as quais so simultaneamente desidentificaes e/ou oposies em relao aos (ou ao que os) outros (deles imaginam). Segundo os protagonistas, faz parte do ser cigano o gosto por terem a sua prpria famlia, a mulher e as filhas bem vestidas (dizem os homens) ou a casa, o marido e os filhos limpos (dizem as mulheres) o respeito pelos velhos e por se divertirem, comer e danar, andar nas vendas, casar entre a gente e maneira cigana e, ainda, viver de uma certa maneira, isto , congregados a maior parte das vezes contra a sua prpria vontade em bairros sociais perifricos e junto de no ciganos que aos seus olhos ocupam os ltimos lugares da escala social: Isto aqui o que no presta da vossa raa (H., 44 anos). excepo do casamento cigana, em que que esses outros traos por eles salientados como caractersticos do ser cigano marcam uma fronteira tnica entre eles e os outros e organizam uma identidade diferenciada, podemos perguntar. Ora, o que parece mant-la justamente o facto de afirmarem e experenciarem esses traos como se ciganos fossem na realidade introduzindo um aspecto novo, modificando um outro, opon-do outros aos que identificam entre os senhores e assim delimita-rem o ser cigano, isto , a sua diferena em relao aos senhores e aos tendeiros. Sejam quais forem os signos culturais por eles movimentados e exibidos, o que est em causa justamente a sua

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    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 237

    porque, contrariamente aos vizinhos que so ciganos, nunca arran-jam problemas. Eis o que uma entrevistada diz a esse respeito:

    No gosto deste ambiente. (...) H umas pessoas que esto bem, outros querem mal. No me dou bem com eles. Quer dizer, eu no me dou bem com eles, eu at me dou bem com eles. No fao mal a ningum, ainda no discuti com ningum, no tive guerreias com ningum. (Preferia morar num stio) Sozinha. (...) No gostava de estar acompanhada assim com muita gente; gostava de estar assim sozinha, numa casa sozinha, que pudesse fazer as minhas coisas vontade e tivesse... Que a gente fosse a um lado e deixasse os nossos filhos em casa e que ningum se metesse com eles. E que a gente fosse nossa vidazinha e, pronto, que ningum nos chateasse a entrar ou a sair. E a minha vida assim era outra. E se eu tivesse sozinha numa casa, sem ser esta casa, o meu marido tirava-se do ambiente do que ele . Porque isto d-lhe raiva a ele. (...) Pois, que no tivesse ningum que o chateasse. (...) Quer dizer, ele no gosta dessa gente (dos ciganos). (...) faz confuso cabea, h muito sarrabulho e h pessoas... H o bom e o ruim, so comechosos e eu no gostava de morar ao p de gente assim. Gostava de morar assim. Esta casa, se eu estivesse sozinha, com vizinhas que no eram ciganas, eu prefiro melhor que nem a raa cigana ao p de mim. No porque a raa cigana faa mal a ningum, no !? Mas, prontos, h o bom e h o ruim. Pronto, gostava de viver mais sozinha. (M., 34 anos)

    No que toca aos tendeiros, porm, os quais lhes esto social e culturalmente prximos, os mesmos interlocutores procuram posicionar- -se numa relao de assimetria identitria colocando-os numa posio de simples imitadores dos ciganos. E se incorporam no seu dia-a-dia certos elementos que atribuem aos senhores, o inverso no por eles bem visto e aceite. Com efeito, alguns senhores, bem como os tendeiros em geral, so por eles acusados de imitarem os ciganos.

    No me dou muito com os tendeiros. (...) Querem imitar os ciganos, est a ver? (...) Querem ser ciganos como a gente, prontos. Eles querem, prontos, querem ter a nossa tradio, cigano mesmo. No conseguem, fazem as coisas mal e um gajo no gosta. (...) Prontos, quererem falar assim como a gente, est a ver? a fala, a nossa fala. (...) Querem imitar mesmo a gente. E a gente no gosta muito dos tendeiros. (H., 17 anos)

    Ana Brinca

    238 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    Dizem ainda outros interlocutores ciganos que o corte de cabelo, os adornos e o vesturio, bem como a dana so coisas dos ciganos copiadas pelos tendeiros e pelos senhores. E, neste contexto, basta verem um homem trajado com chapu, cala vincada ou sapato bicudinho ou ento uma mulher com o cabelo, os brincos ou a saia comprida para afirmarem que esto trajados cigana. Ai, j mais que a gente! (M., 26 anos), escarnece uma das interlocutoras ao ver passar uma senhora vestida cigana, dando voz a uma estra-tgia de defesa identitria daquilo que consideram ser especificidades ciganas. Esta estratgia ainda reforada pela afirmao de que os senhores jamais conseguiro passar por ciganos, sobretudo na frente de um cigano o andar e a maneira de falar, explica a mesma mulher, denunciam imediatamente a sua identidade senhora.

    Para alm de tudo isso, o ser cigano apoia-se em identificaes valorizadas pela famlia e/ou pelos co-tnicos em geral, as quais so simultaneamente desidentificaes e/ou oposies em relao aos (ou ao que os) outros (deles imaginam). Segundo os protagonistas, faz parte do ser cigano o gosto por terem a sua prpria famlia, a mulher e as filhas bem vestidas (dizem os homens) ou a casa, o marido e os filhos limpos (dizem as mulheres) o respeito pelos velhos e por se divertirem, comer e danar, andar nas vendas, casar entre a gente e maneira cigana e, ainda, viver de uma certa maneira, isto , congregados a maior parte das vezes contra a sua prpria vontade em bairros sociais perifricos e junto de no ciganos que aos seus olhos ocupam os ltimos lugares da escala social: Isto aqui o que no presta da vossa raa (H., 44 anos). excepo do casamento cigana, em que que esses outros traos por eles salientados como caractersticos do ser cigano marcam uma fronteira tnica entre eles e os outros e organizam uma identidade diferenciada, podemos perguntar. Ora, o que parece mant-la justamente o facto de afirmarem e experenciarem esses traos como se ciganos fossem na realidade introduzindo um aspecto novo, modificando um outro, opon-do outros aos que identificam entre os senhores e assim delimita-rem o ser cigano, isto , a sua diferena em relao aos senhores e aos tendeiros. Sejam quais forem os signos culturais por eles movimentados e exibidos, o que est em causa justamente a sua

  • CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS

    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 239

    movimentao e exibio em oposio aos senhores e aos tendei-ros. Ser cigano tudo isso e no ser senhor nem tendeiro.

    1.2. Somos portugueses igual a vocs s que ciganos

    O ser portugus, ou seja, a ligao nacionalidade portuguesa, parece emergir nos relatos por ns recolhidos junto de ciganos como o organizador de uma identidade assemelhada aos (partilhada com os) outros portugueses. As seguintes asseres identitrias exemplificam-no:

    O cigano portugus! (H, 68 anos), Olhe, escute, o cigano e o portugus, porque foi o nome que puseram ao cigano. Porque o cigano portugus (H., 44 anos), Eu sou portuguesa de raa cigana (M., 42 anos), Os ciganos so portugueses! (H., 44 anos).

    Afirmaes destas, juntamente com outras baseadas, desta feita, na igualdade (A gente somos iguais a vocs) ou nos direitos comuns aos indivduos da mesma nacionalidade (Temos os mesmos direitos que vocs) e as quais querem dizer Nada nos podem tirar que no seja nosso por direito, fazem parte de uma estratgia de indiferencia-o identitria em relao populao maioritria no que toca nacio-nalidade; estratgia que conduzida em circunstncias particulares (nomeadamente quando esto em jogo interesses materiais, econmi-cos, profissionais) e ainda que no subentenda a incluso do Somos portugueses igual a vocs num Ns, os portugueses. Trata-se de uma estratgia que aparece anexada a uma outra, mais ampla, de sobrevivncia, que tem apenas em vista a obteno de regalias mate-riais (e sociais) concedidas pelo Estado (em que o Rendimento Mnimo Garantido um exemplo) e/ou pela Cmara Municipal local (como seja a atribuio de uma casa, a obteno de uma licena destinada ao exerccio da venda nos mercados e praas do Concelho, etc.). A afir-mao seguinte de um dos nossos interlocutores evidencia-o:

    Eu votei! Olhe, para lhe dizer a verdade, at votei 2 vezes. Votei aqui e votei (...). Sou muito amigo do presidente da Cmara de l e ento tinha que ir l pr-lhe o meu voto. (H., 62 anos)

    Ana Brinca

    240 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    Os enunciados relativos ao ser portugus inscrevem-se, ainda, numa estratgia identitria que passa pela negao das hetero-repre-sentaes que os no ciganos deles fazem, quando os classificam de gente que no sabe donde veio ou gente sem terra (ditas por entrevistados de origem africana) ou um povo que tem a sua origem na ndia (ideia essencialmente emitida sobretudo por linguistas ou cientistas sociais).11 s primeiras respondem os protagonistas ciganos que so portugueses pois contrariamente a muitos pretos que para a andam, a gente nascemos em Portugal e tudo o que nasce em Portugal portugus. Quanto origem indiana, recusam-na, dizen-do que se de facto fosse verdadeira os mais velhos teriam procurado transmiti-la e isso no aconteceu. A sua origem bem como a mem-ria de acontecimentos e vivncias familiares (ou grupais) passadas algo com o qual no se preocupam12 e muito menos em transmiti-lo aos mais novos. Influenciados ou no pelas hetero-representaes identit-rias acerca dos ciganos que os identificam com uma origem situada no Egipto, e/ou pela estratgia histrica mobilizada pelos seus antepas-sados os quais diziam-se gente oriunda do Egipto ou peregrinos a caminho de Santiago de Compostela a fim de recolherem esmolas junto da populao maioritria (Coelho, 1992 [1879]; Nunes, 1996 [1981]), alguns dos homens assinalaram o Egipto como o ponto de partida dos ciganos dispersos pelo mundo; uma identificao geogrfica nega-da, contudo, por algumas mulheres as quais consideram tratar-se de mentiras contadas sobre os ciganos.

    11 Entre os sculos XIX e XX, autores vrios (linguistas, em particular) estavam tentados em provar as origens ciganas, especialmente a sua localizao na ndia (Sampson, 1926; Brown, 1928, etc.). Mais recentemente, o argumento dominante o de que os diversos grupos ciganos dispersos pelo mundo (Lovara, Kalderash, Manouches, Gitanos, etc.) so um povo nico originrio da ndia (Gay y Blasco, 1999:4). Esta ideia , no entanto, rejeitada por Judith Okely, a qual sugere que os ciganos eram gente autctone, tornada intrusa aquando da derrocada da sociedade feudal (Fonseca, 2003:386). 12 Gay y Blasco identifica entre os Gitanos de Madrid por si estudados uma postura identitria para com o tempo passado e a sua memria que nos parece ser semelhante a essa: diz ela que eles no manifestava muito interesse em relao ao passado, s rara-mente falavam nele, mostrando-se algo incomodados quando ela tentava introduzir esse tema nas conversas. Quase sempre lhe sugeriam que mudasse de assunto de estudo. Contrariamente a outros grupos tnicos minoritrios, os Gitanos no se socorrem de um passado histrico ou mtico para explicarem a sua forma de vida ou a relao com a memria dominante (1999:13).

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    movimentao e exibio em oposio aos senhores e aos tendei-ros. Ser cigano tudo isso e no ser senhor nem tendeiro.

    1.2. Somos portugueses igual a vocs s que ciganos

    O ser portugus, ou seja, a ligao nacionalidade portuguesa, parece emergir nos relatos por ns recolhidos junto de ciganos como o organizador de uma identidade assemelhada aos (partilhada com os) outros portugueses. As seguintes asseres identitrias exemplificam-no:

    O cigano portugus! (H, 68 anos), Olhe, escute, o cigano e o portugus, porque foi o nome que puseram ao cigano. Porque o cigano portugus (H., 44 anos), Eu sou portuguesa de raa cigana (M., 42 anos), Os ciganos so portugueses! (H., 44 anos).

    Afirmaes destas, juntamente com outras baseadas, desta feita, na igualdade (A gente somos iguais a vocs) ou nos direitos comuns aos indivduos da mesma nacionalidade (Temos os mesmos direitos que vocs) e as quais querem dizer Nada nos podem tirar que no seja nosso por direito, fazem parte de uma estratgia de indiferencia-o identitria em relao populao maioritria no que toca nacio-nalidade; estratgia que conduzida em circunstncias particulares (nomeadamente quando esto em jogo interesses materiais, econmi-cos, profissionais) e ainda que no subentenda a incluso do Somos portugueses igual a vocs num Ns, os portugueses. Trata-se de uma estratgia que aparece anexada a uma outra, mais ampla, de sobrevivncia, que tem apenas em vista a obteno de regalias mate-riais (e sociais) concedidas pelo Estado (em que o Rendimento Mnimo Garantido um exemplo) e/ou pela Cmara Municipal local (como seja a atribuio de uma casa, a obteno de uma licena destinada ao exerccio da venda nos mercados e praas do Concelho, etc.). A afir-mao seguinte de um dos nossos interlocutores evidencia-o:

    Eu votei! Olhe, para lhe dizer a verdade, at votei 2 vezes. Votei aqui e votei (...). Sou muito amigo do presidente da Cmara de l e ento tinha que ir l pr-lhe o meu voto. (H., 62 anos)

    Ana Brinca

    240 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    Os enunciados relativos ao ser portugus inscrevem-se, ainda, numa estratgia identitria que passa pela negao das hetero-repre-sentaes que os no ciganos deles fazem, quando os classificam de gente que no sabe donde veio ou gente sem terra (ditas por entrevistados de origem africana) ou um povo que tem a sua origem na ndia (ideia essencialmente emitida sobretudo por linguistas ou cientistas sociais).11 s primeiras respondem os protagonistas ciganos que so portugueses pois contrariamente a muitos pretos que para a andam, a gente nascemos em Portugal e tudo o que nasce em Portugal portugus. Quanto origem indiana, recusam-na, dizen-do que se de facto fosse verdadeira os mais velhos teriam procurado transmiti-la e isso no aconteceu. A sua origem bem como a mem-ria de acontecimentos e vivncias familiares (ou grupais) passadas algo com o qual no se preocupam12 e muito menos em transmiti-lo aos mais novos. Influenciados ou no pelas hetero-representaes identit-rias acerca dos ciganos que os identificam com uma origem situada no Egipto, e/ou pela estratgia histrica mobilizada pelos seus antepas-sados os quais diziam-se gente oriunda do Egipto ou peregrinos a caminho de Santiago de Compostela a fim de recolherem esmolas junto da populao maioritria (Coelho, 1992 [1879]; Nunes, 1996 [1981]), alguns dos homens assinalaram o Egipto como o ponto de partida dos ciganos dispersos pelo mundo; uma identificao geogrfica nega-da, contudo, por algumas mulheres as quais consideram tratar-se de mentiras contadas sobre os ciganos.

    11 Entre os sculos XIX e XX, autores vrios (linguistas, em particular) estavam tentados em provar as origens ciganas, especialmente a sua localizao na ndia (Sampson, 1926; Brown, 1928, etc.). Mais recentemente, o argumento dominante o de que os diversos grupos ciganos dispersos pelo mundo (Lovara, Kalderash, Manouches, Gitanos, etc.) so um povo nico originrio da ndia (Gay y Blasco, 1999:4). Esta ideia , no entanto, rejeitada por Judith Okely, a qual sugere que os ciganos eram gente autctone, tornada intrusa aquando da derrocada da sociedade feudal (Fonseca, 2003:386). 12 Gay y Blasco identifica entre os Gitanos de Madrid por si estudados uma postura identitria para com o tempo passado e a sua memria que nos parece ser semelhante a essa: diz ela que eles no manifestava muito interesse em relao ao passado, s rara-mente falavam nele, mostrando-se algo incomodados quando ela tentava introduzir esse tema nas conversas. Quase sempre lhe sugeriam que mudasse de assunto de estudo. Contrariamente a outros grupos tnicos minoritrios, os Gitanos no se socorrem de um passado histrico ou mtico para explicarem a sua forma de vida ou a relao com a memria dominante (1999:13).

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    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 241

    1.3. Interaces e interdependncias entre ciganos, tendeiros e senhores

    A manuteno das dicotomizaes entre ciganos e no ciganos e a forma como os ciganos se vem a si e aos outros organizam as suas interaces inter-tnicas, mostrando que h formas de jogar (ou de tornar manifestas) as pertenas e as excluses identitrias. A organiza-o do dia-a-dia entre os outros assenta na manuteno das suas diferenas sociais e culturais. A larga maioria dos protagonistas decide- -se geralmente pela exibio (ostensiva) da identificao cigana atravs de certos comportamentos como, por exemplo, reunirem-se diariamente volta de uma fogueira feita num terreno pblico situado em frente do bairro onde residem; lavarem a roupa, os capachos e as carpetes no passeio pblico que atravessa o bairro; ouvirem msica cigana num volume demasiado elevado, quer quando esto em casa, quer quando vo conduzindo a carrinha; brigarem na rua; evitarem interagir com no ciganos, etc. Comportamentos identitrios que constituem objecto de reprovao por parte dos outros (os senhores e os tendeiros), os quais consideram que aos ciganos falta civismo e civilizao para viverem entre os no ciganos; sublinhe-se que quando tecem este tipo de comentrios, os emissores no ciganos no estabelecem uma diferenciao intra-identitria cigana, ou seja, no tm em conta que entre os ciganos h quem no participe nas reunies volta do lume, evite conflituosidades inter ou intra-familiares, aposte na convivncia com senhores salientando at o facto de seguir letra aquilo que pensa que deve ser feito quando se deixou o campo e se vive na cidade num bairro com muita gente.

    As fronteiras so igualmente movidas do exterior contra os ciganos. Uma parte significativa dos nossos interlocutores salienta que a identi-dade cigana constrange ou barra as interaces inter-tnicas. No foram raras as vezes que, num passado recente (por eles situado antes do 25 de Abril de 1974), estivesse na origem da falta de trabalho, de entrarem numa loja e sem serem rigorosamente vigiados pelo propriet-rio que quase sempre achava que o iam roubar, do sentimento de medo que domina(va) no ciganos e que os impede de empregarem, atenderem, interagirem com ciganos. Com efeito, contrapondo-se a

    Ana Brinca

    242 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    uma viso familialista das relaes inter-tnicas (Bastos e Bastos, 2002) entre ciganos e senhores no Alentejo de outros tempos defen-dida por alguns dos interlocutores que a nasceram e viveram, outros, em particular ex-nmadas, maximizam os eventos traumticos das inte-races com os senhores (principalmente com a Guarda, antes do 25 de Abril de 1974, a qual velava para que s estivessem acampados num stio entre 24 e 72 horas, e com os lavradores de ontem e de hoje) acusando-os de gerarem um sentimento de medo entre os ciganos, de praticarem o racismo e a discriminao, de serem egostas a pontos de no os empregarem nas actividades agrcolas sazonais.

    A Guarda no nos deixava acampar. E ns, quando ouvamos um barulho, por exemplo, de um carro que pensvamos que era um jipe, BUUU, fuga-mos. Levantvamo-nos das nossas camas e amos embora descalos. (...) Ns sem fazermos nada, no nos deixavam estar sossegados. Por vezes, eram eles, a prpria Guarda, para se rirem, para judiarem (...). Sentiam-se bem fazendo o mal. (...) Era a Guarda que no nos deixava sossegados. E o medo era esse. (H., 51 anos)

    (...) aqui h 3 dcadas, 4 dcadas mais ou menos, a nica forma de se puderem governar era o campo, era o gado. No havia outra forma de se governarem. (...) E o cigano, como no lhe davam trabalho, e ainda hoje no lhe do quanto mais aqui h 4 dcadas atrs, muito menos (ainda). Prontos, no do porque so ciganos e ento eles, por qualquer coisa, tm receio do no cigano. (H., 51 anos)

    (...) ainda hoje existe muito racismo no Alentejo porque o homem Alenteja-no pouco gosta do cigano. H racismo e alm de haver racismo h precon-ceito pelos ciganos, olham os ciganos com discriminao. Prontos, esto discriminados na parte do Alentejo porque no se do muito com eles. (...) eles pensavam que o cigano era ladro, que o cigano roubava, que o ciga-no fazia trinta por uma linha. Mas no, o cigano no era essa pessoa (...). (H., 51 anos)

    Mas h situaes interactivas marcadas pela complementaridade ou pela interdependncia entre uns e outros, particularmente entre ciganos e senhores. Segundo a verso cigana dessas situaes, os ciganos oferecem aos no ciganos bens e servios a preos mais bara-tos que os senhores fazem; para alm disso, os senhores apren-

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    1.3. Interaces e interdependncias entre ciganos, tendeiros e senhores

    A manuteno das dicotomizaes entre ciganos e no ciganos e a forma como os ciganos se vem a si e aos outros organizam as suas interaces inter-tnicas, mostrando que h formas de jogar (ou de tornar manifestas) as pertenas e as excluses identitrias. A organiza-o do dia-a-dia entre os outros assenta na manuteno das suas diferenas sociais e culturais. A larga maioria dos protagonistas decide- -se geralmente pela exibio (ostensiva) da identificao cigana atravs de certos comportamentos como, por exemplo, reunirem-se diariamente volta de uma fogueira feita num terreno pblico situado em frente do bairro onde residem; lavarem a roupa, os capachos e as carpetes no passeio pblico que atravessa o bairro; ouvirem msica cigana num volume demasiado elevado, quer quando esto em casa, quer quando vo conduzindo a carrinha; brigarem na rua; evitarem interagir com no ciganos, etc. Comportamentos identitrios que constituem objecto de reprovao por parte dos outros (os senhores e os tendeiros), os quais consideram que aos ciganos falta civismo e civilizao para viverem entre os no ciganos; sublinhe-se que quando tecem este tipo de comentrios, os emissores no ciganos no estabelecem uma diferenciao intra-identitria cigana, ou seja, no tm em conta que entre os ciganos h quem no participe nas reunies volta do lume, evite conflituosidades inter ou intra-familiares, aposte na convivncia com senhores salientando at o facto de seguir letra aquilo que pensa que deve ser feito quando se deixou o campo e se vive na cidade num bairro com muita gente.

    As fronteiras so igualmente movidas do exterior contra os ciganos. Uma parte significativa dos nossos interlocutores salienta que a identi-dade cigana constrange ou barra as interaces inter-tnicas. No foram raras as vezes que, num passado recente (por eles situado antes do 25 de Abril de 1974), estivesse na origem da falta de trabalho, de entrarem numa loja e sem serem rigorosamente vigiados pelo propriet-rio que quase sempre achava que o iam roubar, do sentimento de medo que domina(va) no ciganos e que os impede de empregarem, atenderem, interagirem com ciganos. Com efeito, contrapondo-se a

    Ana Brinca

    242 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    uma viso familialista das relaes inter-tnicas (Bastos e Bastos, 2002) entre ciganos e senhores no Alentejo de outros tempos defen-dida por alguns dos interlocutores que a nasceram e viveram, outros, em particular ex-nmadas, maximizam os eventos traumticos das inte-races com os senhores (principalmente com a Guarda, antes do 25 de Abril de 1974, a qual velava para que s estivessem acampados num stio entre 24 e 72 horas, e com os lavradores de ontem e de hoje) acusando-os de gerarem um sentimento de medo entre os ciganos, de praticarem o racismo e a discriminao, de serem egostas a pontos de no os empregarem nas actividades agrcolas sazonais.

    A Guarda no nos deixava acampar. E ns, quando ouvamos um barulho, por exemplo, de um carro que pensvamos que era um jipe, BUUU, fuga-mos. Levantvamo-nos das nossas camas e amos embora descalos. (...) Ns sem fazermos nada, no nos deixavam estar sossegados. Por vezes, eram eles, a prpria Guarda, para se rirem, para judiarem (...). Sentiam-se bem fazendo o mal. (...) Era a Guarda que no nos deixava sossegados. E o medo era esse. (H., 51 anos)

    (...) aqui h 3 dcadas, 4 dcadas mais ou menos, a nica forma de se puderem governar era o campo, era o gado. No havia outra forma de se governarem. (...) E o cigano, como no lhe davam trabalho, e ainda hoje no lhe do quanto mais aqui h 4 dcadas atrs, muito menos (ainda). Prontos, no do porque so ciganos e ento eles, por qualquer coisa, tm receio do no cigano. (H., 51 anos)

    (...) ainda hoje existe muito racismo no Alentejo porque o homem Alenteja-no pouco gosta do cigano. H racismo e alm de haver racismo h precon-ceito pelos ciganos, olham os ciganos com discriminao. Prontos, esto discriminados na parte do Alentejo porque no se do muito com eles. (...) eles pensavam que o cigano era ladro, que o cigano roubava, que o ciga-no fazia trinta por uma linha. Mas no, o cigano no era essa pessoa (...). (H., 51 anos)

    Mas h situaes interactivas marcadas pela complementaridade ou pela interdependncia entre uns e outros, particularmente entre ciganos e senhores. Segundo a verso cigana dessas situaes, os ciganos oferecem aos no ciganos bens e servios a preos mais bara-tos que os senhores fazem; para alm disso, os senhores apren-

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    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 243

    dem com os ciganos a saber vender e a criar negcios em espaos amplos e fechados. Por sua vez, os ciganos socorrem-se dos senho-res para resolverem problemas relacionados com a sobrevivncia di-ria,13 a doena ou o azar. Os senhores so procurados pela sua capacidade de curar uma doena espiritual (como o caso da pos-sesso de um indivduo por almas de pessoas falecidas) e, nalguns casos, tambm fsica, ou de resolver questes atribudas pelos ciganos ao azar, ajudando-os a recuperar o bem-estar identitrio ou mera-mente socio-econmico; do mesmo modo que so procurados pelo motivo inverso, isto , para provocarem mal-estar a algum que se quer ver doente, com azar ou com a vida a no andar para a frente. Dito do outro modo, os senhores so intermedirios das vitrias identit-rias obtidas sobre as almas, a inveja e o mau-olhado dos outros (ciganos), de recurso para vencerem as situaes de fragilidade ou perigo identitrio (as quais parecem emergir do interior do prprio grupo como consequncia de invejas ou de rivalidades que subjazem s sociabilidades intra ou inter-familiares).

    Uma vivncia conjunta com ciganos, senhores e tendeiros est na origem de diferentes estratgias de relacionamento inter-tnico levadas a cabo pelos protagonistas. Com efeito, alguns deles optam por marcarem uma certa distncia em relao aos co-tnicos, e isto na medida do possvel uma vez que as portas dos apartamentos dos ciga-nos esto sempre abertas e a rua serve de prolongamento da casa durante o dia, (as mulheres) convivendo (ainda que sem estreiteza de laos) com vizinhas de porta senhoras, valorizando uma vida casei-ra e, por isso, menos exposta ao olhar e s falas da vizinhana cigana, (os homens) dando um passeio para fora do bairro, frequentan-do um caf cujos clientes so senhores, etc. Na margem oposta esto os protagonistas que preferem os relacionamentos exclusivamen-te intra-tnicos. entre si que passam as tardes, (as mulheres) conver-sando ao sol, (os homens) jogando ao Bingo ou conversando junto 13 Segundo os testemunhos de vida recolhidos junto dos nossos interlocutores mais velhos, eles e outros ciganos que viviam e/ou percorriam o Alentejo antes do 25 de Abril de 1974, os quais eram pobres tinham por hbito pedir comida, roupa, aloja-mento ou trabalho (nas actividades agrcolas sazonais como a apanha da azeitona ou do tomate, a monda ou a vindima) e ofereciam a venda de um artigozinho junto dos lavradores, ao que estes geralmente respondiam positivamente s solicitaes e/ou ofer-tas que lhes eram feitas.

    Ana Brinca

    244 ANTROPOlgicas, N 9, 2005

    das carrinhas, e isto apesar de com alguma frequncia o convvio desembocar em brigas familiares (quase sempre) levando ao afasta-mento (temporrio ou definitivo) de um ou outro membro da famlia.

    Uns e outros conversam (ocasionalmente) com tendeiros para saberem novidades e comerceiam com eles e com os pretos. Por vezes sucede um mal-estar entre ciganos e tendeiros decorrente de uma briga em que os protagonistas so sempre as mulheres. Na verda-de, ainda que as interaces se circunscrevam compra e venda de artigos, troca de informaes a respeito de algum ou de algum acon-tecimento que marca o dia-a-dia do bairro, os roubos de bicicletas e/ou outros objectos entre crianas ciganas e tendeiras ou a notcia de que uma tendeira tem por amante um cigano casado (o que tem sucedido algumas vezes), conduzem a violentas trocas de palavras entre ciganas e tendeiras. O que nos levou a pensar que justamente a proximidade fsica, cultural e social dos tendeiros em relao aos ciganos que agrava a vulnerabilidade identitria dos ltimos levando-os a reagir negativamente presena daqueles.

    No que toca aos pretos, se ocorrem discusses ou escaramuas, elas parecem circunscrever-se s crianas que frequentam a mesma escola, as quais tm por habito trocar palavras ofensivas relacionadas com a identidade tnica de cada um. Fora isso, o sentimento de medo dos ciganos em relao aos pretos, a fealdade (ou o mau cheiro que atribuem aos ltimos) parecem impedir um envolvimento entre ambas as partes, mesmo que seja custa de tenses vrias. Paralelamente, as interaces com alguns senhores podem igual-mente ser palco de tensionalidades de natureza vria; no ocorrem entre os conhecidos ou amigos, mas com os elementos da popula-o local que discordaram do realojamento dos ciganos na rea.

    2. Ciganos versus Ciganos: categorizaes e limites intra-tnicos

    O saber falar e o saber estar, decalcados da maneira de ser dos senhores da qual falvamos atrs, so geralmente referenciados por alguns dos protagonistas como traos culturais especficos dos ciganos civilizados e, por conseguinte, de si prprios, sendo atravs deles que marcam a sua diferena em relao aos ciganos que excluem

  • CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS

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    dem com os ciganos a saber vender e a criar negcios em espaos amplos e fechados. Por sua vez, os ciganos socorrem-se dos senho-res para resolverem problemas relacionados com a sobrevivncia di-ria,13 a doena ou o azar. Os senhores so procurados pela sua capacidade de curar uma doena espiritual (como o caso da pos-sesso de um indivduo por almas de pessoas falecidas) e, nalguns casos, tambm fsica, ou de resolver questes atribudas pelos ciganos ao azar, ajudando-os a recuperar o bem-estar identitrio ou mera-mente socio-econmico; do mesmo modo que so procurados pelo motivo inverso, isto , para provocarem mal-estar a algum que se quer ver doente, com azar ou com a vida a no andar para a frente. Dito do outro modo, os senhores so intermedirios das vitrias identit-rias obtidas sobre as almas, a inveja e o mau-olhado dos outros (ciganos), de recurso para vencerem as situaes de fragilidade ou perigo identitrio (as quais parecem emergir do interior do prprio grupo como consequncia de invejas ou de rivalidades que subjazem s sociabilidades intra ou inter-familiares).

    Uma vivncia conjunta com ciganos, senhores e tendeiros est na origem de diferentes estratgias de relacionamento inter-tnico levadas a cabo pelos protagonistas. Com efeito, alguns deles optam por marcarem uma certa distncia em relao aos co-tnicos, e isto na medida do possvel uma vez que as portas dos apartamentos dos ciga-nos esto sempre abertas e a rua serve de prolongamento da casa durante o dia, (as mulheres) convivendo (ainda que sem estreiteza de laos) com vizinhas de porta senhoras, valorizando uma vida casei-ra e, por isso, menos exposta ao olhar e s falas da vizinhana cigana, (os homens) dando um passeio para fora do bairro, frequentan-do um caf cujos clientes so senhores, etc. Na margem oposta esto os protagonistas que preferem os relacionamentos exclusivamen-te intra-tnicos. entre si que passam as tardes, (as mulheres) conver-sando ao sol, (os homens) jogando ao Bingo ou conversando junto 13 Segundo os testemunhos de vida recolhidos junto dos nossos interlocutores mais velhos, eles e outros ciganos que viviam e/ou percorriam o Alentejo antes do 25 de Abril de 1974, os quais eram pobres tinham por hbito pedir comida, roupa, aloja-mento ou trabalho (nas actividades agrcolas sazonais como a apanha da azeitona ou do tomate, a monda ou a vindima) e ofereciam a venda de um artigozinho junto dos lavradores, ao que estes geralmente respondiam positivamente s solicitaes e/ou ofer-tas que lhes eram feitas.

    Ana Brinca

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    das carrinhas, e isto apesar de com alguma frequncia o convvio desembocar em brigas familiares (quase sempre) levando ao afasta-mento (temporrio ou definitivo) de um ou outro membro da famlia.

    Uns e outros conversam (ocasionalmente) com tendeiros para saberem novidades e comerceiam com eles e com os pretos. Por vezes sucede um mal-estar entre ciganos e tendeiros decorrente de uma briga em que os protagonistas so sempre as mulheres. Na verda-de, ainda que as interaces se circunscrevam compra e venda de artigos, troca de informaes a respeito de algum ou de algum acon-tecimento que marca o dia-a-dia do bairro, os roubos de bicicletas e/ou outros objectos entre crianas ciganas e tendeiras ou a notcia de que uma tendeira tem por amante um cigano casado (o que tem sucedido algumas vezes), conduzem a violentas trocas de palavras entre ciganas e tendeiras. O que nos levou a pensar que justamente a proximidade fsica, cultural e social dos tendeiros em relao aos ciganos que agrava a vulnerabilidade identitria dos ltimos levando-os a reagir negativamente presena daqueles.

    No que toca aos pretos, se ocorrem discusses ou escaramuas, elas parecem circunscrever-se s crianas que frequentam a mesma escola, as quais tm por habito trocar palavras ofensivas relacionadas com a identidade tnica de cada um. Fora isso, o sentimento de medo dos ciganos em relao aos pretos, a fealdade (ou o mau cheiro que atribuem aos ltimos) parecem impedir um envolvimento entre ambas as partes, mesmo que seja custa de tenses vrias. Paralelamente, as interaces com alguns senhores podem igual-mente ser palco de tensionalidades de natureza vria; no ocorrem entre os conhecidos ou amigos, mas com os elementos da popula-o local que discordaram do realojamento dos ciganos na rea.

    2. Ciganos versus Ciganos: categorizaes e limites intra-tnicos

    O saber falar e o saber estar, decalcados da maneira de ser dos senhores da qual falvamos atrs, so geralmente referenciados por alguns dos protagonistas como traos culturais especficos dos ciganos civilizados e, por conseguinte, de si prprios, sendo atravs deles que marcam a sua diferena em relao aos ciganos que excluem

  • CIGANOS, TENDEIROS E SENHORES: FRONTEIRAS IDENTITRIAS

    ANTROPOlgicas, N 9, 2005 245

    dessa categoria. A diferenciao intra-identitria nunca relativizada pela maior parte dos entrevistados despontando frequentemente nos seus relatos identitrias, ou chegando mesmo a domin-los, comparati-vamente diferenciao em relao aos senhores.

    (...) todos temos 5 dedos e nenhuns so iguais. Uns so mais sujos, outros so mais limpos, outros so mais, pronto, tm outra maneira, tm uma maneira diferente. (...) H uns que tm mais dinheiro, h uns (que) so mais limpos, h outros que so mais porcos, h outros que a malta cigana no lhes d ateno... Porque so sujos. E alguns so maus. Tm m ndole, tm m ndole, tm uma condio m. E h aquele cigano bom, que tem todo o valor, a gente lida com a pessoa. (H., 44 anos)

    O que parece ser uma estratgia identitria comum aos ciganos em geral e no s aos que foram por ns estudados. Gay y Blasco, por exemplo, salienta a objectivao da fragmentao e das diferenas entre si prprios como uma das tentaes dos ciganos de Madrid; no se preocupam com a construo de uma comunidade unida e harmoniosa, apesar de terem um sentido de si prprios como povo ao colocarem-se parte dos no ciganos (1999: 3).

    Antes de mais, a necessidade de se diferenciarem dos outros ciga-nos pode ser entendida como uma estratgia de des-homogeneizao da categoria tnica ciganos (Bastos e Bastos, 2005), tal como habi-tualmente manipulada pelos senhores, os quais no procedem sua diferenciao social, cultural e identitria.

    O modo e a frequncia com que se relacionam com os senhores e o estilo de vida resultante da influncia exercida por aqueles consti-tuem critrios usados por alguns dos protagonistas para caracterizarem a sua diferena relativamente aos outros ciganos com os quais, no entanto, partilham os critrios de apreciao postos em prtica pelos no ciganos. Fomos ns como vocs dizem alguns dos entrevista-dos, especialmente mulheres que cresceram no seio de uma vizinhana inteiramente senhora e com a qual entretinham laos afectivos estrei-tos, dando assim visibilidade a aspectos vrios do seu modo de vida que identificam com os senhores; entre esses aspectos, destaque por elas dado ao facto de terem (crescido em) casa prpria, isto , fixa, vivido s com senhores e sem outros ciganos por perto) e acamparem s no Vero e, no mximo, por 3 ou 4 dias. A mesma

    Ana Brinca

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    expresso por as mesmas mulheres usada para se diferenciarem dos ciganos que andavam pelo mundo, sem casa e lugar certo para ficarem, sujos e ranhosos e dos quais tinham medo e fugiam habituadas estavam a uma convivncia que girava em torno dos vizi-nhos senhores. Aquele critrio est ainda na origem de uma outra dicotomizao intra-cigana maioritariamente empreendida pelos homens adultos: a que tem lugar entre ciganos fechados ou enraizados (por eles identificados como os que ainda negoceiam em animais no Alentejo) e os ciganos que manifestam uma maior abertura em rela-o aos senhores e mudana (de certas tradies como por exem-plo a dos contrrios) e com os quais se identificam. O investimento destes ciganos nas interaces inter-tnicas parece resultar de uma ligao familiar anterior com os outros, com uma ecologia social e identitria envolvente senhora mas no racista e que sempre sou-be diferenci-los. Conta um dos entrevistados que senhores amigos lhe diziam que a sua aparncia e uma maneira de se relacionar com os no ciganos que nada tinha a ver com a dos outros ciganos:

    (...) porque eu passava por um stio e a mim ningum me tomava por ciga-no. Eu s vezes dizia que era cigano e elas (no ciganas) no acredita-vam. Eu dizia que era cigano, que eu tenho prazer de ser cigano, e haviam muitas raparigas e muitos rapazes que no acreditavam. No, tu tens uma maneira muito diferente e conversas com a gente e ests de um hbito, tens uma situao que muitos colegas teus... Tu