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ESCOLA MEOICO-CIRURGICA 00 PORTO BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE ALGUNS ASSUMPTOS IMPORTANTES DA PATHOLOGIA GEEAL DA PHTHISICA XDlSSERÏAÇlO INAUGURAL ajEBïpaasaœaao^ a s a <ovcbd9g^'cBas aam-o POR JOSÉ DE MELLO FERRARI PORTO IMPRENSA POPULAK DE MATTOS CARVALHO & VIEIRA PAIVA 67, Rua do Bomjardim, 67 1S74 / í j£f8 znt

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ESCOLA MEOICO-CIRURGICA 0 0 PORTO

BREVES CONSIDERAÇÕES

SOBRE ALGUNS ASSUMPTOS IMPORTANTES

DA

PATHOLOGIA GEEAL DA PHTHISICA

XDlSSERÏAÇlO INAUGURAL

ajEBïpaasaœaao^ a s a <ovcbd9g^'cBas aam-o

POR

JOSÉ DE MELLO F E R R A R I

PORTO IMPRENSA POPULAK DE MATTOS CARVALHO & VIEIRA PAIVA

67, Rua do Bomjardim, 67

1S74

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D I R E C T O R

0 ILL.m" E EXC.""> SNR.

CONSELHEIRO MANOEL MARIA DA COSTA LEITE

S E C R E T A R I O

O ILL."1" E EXC.mo SNR.

ANTONIO JOAQUIM DE MORAES CALDAS

CORPO CATHEDRATICO

L E N T E S P R O P R I E T Á R I O S OS IJ.I..1"0' E BXC.mos SNRS.

I.1 CADEinA—Anatomia descriptiva e geral João Pereira Dias Lebre.

2. s CADEIRA—Physiologia Dr. José Carlos Lopes Junior. 3." CADEIRA—Historia natural dos me­

dicamentos. Materia medica João Xaïrer d'Oliveira Barros. 4.a CADEIRA—Pathologia externa e The-

rapeutica exlerna Illidio Ayres Pereira do Valle. õ.3 GAREIRA—Medicina operatória Pedro Augusto Dias. 6." CADEIRA—Partos, moléstias das mu­

lheres de parto e dos recera-nasci-dos Eduardo Pereira Pimenta.

7.* CADEIRA—Pathologia interna. The-rapeutica interna. Historia medica. José d'Andrade Graroaxo.

8.a CADEIRA—Clinica medica , Antonio d'Oliveira Monteiro. 9.1 CAUBIRA—Clinica cirúrgica Agostinho Antonio do Souto.

10.a CAOEIRA—Anatomia pathologica José Joaquim da Silva Amado. H . a CADEIRA—Medicina legal. Hygiene

privada e publica. Toxicologia ge­ral Dr. José F. Ayres de Goovêa Osório.

Curso de pathologia geral Manoel Rodrigues da Silva Pinto.

L E N T E S J U B I L A D O S

I Dr. José Pereira Reis. Dr. Francisco Velloso da Cruz. Dr. Antonio Ferreira de Macedo Pinto.

! Antonio Bernardino d'Almeida. Luiz Pereira da Fonseca. Conselheiro Manoel M. da Costa Leite.

L E N T E S S U B S T I T U T O S

Secção medica ! ^ a n o e l Rodrigues da Silva Pinto. I Vaga.

Secção cirúrgica } Antonio Joaquim de Moraes Caldas.

L E N T E D E M O N S T R A D O R Secção cirúrgica Manoel de Jesns Antunes Lemos.

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A Escola nïo responde pelas doutrinas expendidas na dissertação e onuncia-das nas proposições.

(REGULAMENTO DA ESCOLA DE 23 DE ABBII DE 1840, ABTiao 155.°)

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AO MEU PRESIDENTE

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Por esta humilde offerta quero apenas signi­ficar a V. Exc.a a minha gratidão pelos benefí­cios de que lhe sou devedor, e a minha admira­ção pela rectidão do seu caracter.

Jò A*) GISWAIQ oraJwAÀ).

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I _

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INTRODUCÇÃO

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Nem sempre épermittido ao homem ter o goso da vida. A sensação de bem estar que aprecia­mos quando se executam inconsciente mas nor­malmente todos os actos próprios á nossa con­servação não é contínua. Se qualquer sêr vivo gosa constantemente d'esse bem estar, porque as funcções a que me referi nunca soffreram que­bra na sua normalidade, isso é a excepção; é so­bremaneira estranhavel que assim vejamos as cousas constituídas, porquanto racionalmente se entende que o contrario devia ter logar; mas ou seja condição intrínseca dos seres vivos, ou per­versão nos seus instinctos e intelligencia, ou in­fluencia das irregularidades dos phenomenos do nosso globo e mesmo dos astros, ou o resultado forçado de certas condições sociaes, ou emfim o destino ou o dedo dos fados, o que é certo, é que em regra ha n'um ponto ou muitos da vida

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- l o ­dos seres uma ou mais irregularidades funccio-naes que no meu entender sempre estão filiadas em lesões orgânicas, umas apreciáveis aos nossos sentidos, outras cuja existência é logicamente necessária e racionalmente demonstrada e que constituem as doenças.

Se não fossem estas anomalias o globo seria a realidade d'aquella descripção que a Biblia nos dá do Paraizo e a humanidade uma agglomera-ção de seres felizes. Este ideal de venturas pa­rece ter-se realisado no periodo em que os pri­meiros homens habitaram o nosso planeta. Nem isso deve admirar: guiados apenas pelos instin-ctos naturaes a procurar o inovei das suas ne­cessidades e não influenciados pelos milhões de circumstancias maléficas que hoje nos cercam e de que nós mesmos somos os verdadeiros crea-dores, os nossos ascendentes primitivos gosaram d'uma ininterrompida felicidade de que a Biblia nos falia e no que eu creio. A má direcção, po­rém, que o homem deu á sua intelligencia creou dia a dia circumstancias pouco favoráveis ao exer-cicio normal dos actos vitaes, a humanidade prin­cipiou a enfermar e a lembrar-se com pesar das infindas venturas de seus primeiros pães. Assim influenciado, o auctor da Biblia descreveu um Paraizo, reflexo do passado e imagem fiel da ver­dade.

As terríveis consequências dos desvarios in-stinctivos, intellectuaes, sociaes e outros, arras­tavam prestes a humanidade a um abysmo de uma profundidade infinita e se não fossem os ob­stáculos que, alguns entes sensatos oppozeram á

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marcha rápida, vertiginosa até, que o homem se­guia, talvez a nossa espécie estivesse extincta.

Apparece Moysés no meio d'um povo rude e consegue, com as suas práticas e ainda mais com os preceitos hygienicos que formulou e es­creveu, reprimir os vicios e as paixões que na epocha em que existiu dominavam d'uma ma­neira profunda os instinctos e a intelligencia do homem e que promettiam invalidal-o com a maxima rapidez. O homem principiou a olhar a doença como castigo que lhe vinha dos céos e a tornar-se supersticioso: o castigo que tive­ram Sodoma e Gromorrha abalaram-o profun­damente : ainda assim não tratou de collocar-se em condições favoráveis ao exercicio da vida, já pela ignorância em que vivia, já mesmo pela ve­locidade que tinha adquirido no caminho da des­graça; mas os génios que nào são privativos de certas e determinadas eras mas sim coevos de to­das as idades, são ainda assim mais frequentes nas epochas em que a sua necessidade é reco­nhecida. Assim, appareceu Christo, deslumbran­te pela sua intelligencia, sagacidade e perspicá­cia, o qual com a magnitude dos seus dotes con­seguiu não só formularíeis imperecedouras eque bem executadas seriam a felicidade da humani­dade, mas, o que mais foi ainda, fazer com que essas leis se executassem e portanto se aprecias­sem detida e maduramente os esplendidos fru-ctos do seu talento.'Christo teve forças, por meio do seu engenho, de suspender a humanidade por muitos séculos na perniciosa carreira que boje tenta recomeçar.

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A despeito da grande e incomprehensivel in­fluencia que a religião de Christo teve sobre a parte psychica e mais ainda sobre a material da humanidade, ainda assim os desvios d'esta teem sido de tal natureza que os soffrimentos e as doen­ças aífligem grandemente o homem, e, o que é mais ainda, a espécie definha a olhos vistos de século para século. Comparando a robustez e cor­pulência dos nossos primeiros reis com a força, vigor e estatura dos de hoje, encontramos enor­mes differenças: se n'aquelles encontramos orga-nisações fortíssimas, temperamentos sanguineus bem caracterisados, n'estes vemos organismos enfesados e o predominio do temperamento lym-phatico: os capacetes que hoje possuimos dos guerreiros das primeiras epochas da nossa dy-nastia são peso sufficiente para um infante de forças medianas ficar impossibilitado do manejo das armas.

Qual será a causa d'esté enfraquecimento das organisações? Não é fácil responder. Será que o augmento de população se tenha feito em maior escala do que o augmento de substancias alimen­tícias? Será por se terem despresado os exerci­dos corporaes, tão frequentes entre os romanos e os gregos, para attender apenas aos intelle-ctuaes? Será a accumulação nas grandes cidades d'envolta com a miséria, e, até mesmo, as péssi­mas condições hygienicas que na grande maio­ria das cidades do mundo existe actualmente e promette continuar? Será a syphilis, a escró­fula e outras doenças diathesicas que commu-nicando-se de familia para familia vão enfraque-

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cendo a espécie? Será a desmoralisação, o debo­che e os excessos de toda a ordem a causa de tão^medonhos effeitos?

É possível que todas as condições que acabo de apontar concorram para produzir o effeito; um exame minucioso e comparativo das circum-stancias de que nos rodeamos e que constituem o trato social, com aquellas que influiram no modo de viver dos nossos passados, torna mais que prováveis as minhas asserções.

Ora, se as doenças existem d'uma maneira in­contestável, é verdade que qualquer tem a von­tade de as debellar; o primeiro homem devia ter por certo esse desejo, e á falta de sciencia e es­pecialistas na materia, o instincto suppriu essas lacunas e fez de cada ente um medico para si no­meadamente, muitas vezes para o seu semelhante e até mesmo para indivíduos d'outra espécie. O homem, na primeira phase da sua existência no globo, arrancava instinctivamente o espinho que accidentalmente se lhe introduzia nas carnes; ta­pava, influenciado pela mesma causa, a abertura do vaso por onde se fazia uma hemorrhagia, pra­ticava emfim um sem numero d'actos instincti-vos tendentes á conservação individual: eis-aqui resumidamente como a medicina é tão antiga como a humanidade e como os seus primeiros alicerces foram evidentemente instinctivos. A me­dicina instinctiva tem-se conservado em todos os animaes irracionaes; no homem porém tem sido dilatada pela razão.

Pela reiterada observação, os homens reco­nheceram que as doenças que os atacavam eram

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muitas e variadas e que o seu estudo, para ser mais bem feito, devia ser confiado a individuos que d'outra cousa se não occupassent; d'esté mo­do as noções instinctivas espalhadas por todos os homens teem-se pouco e pouco concentrando n'essa classe de individuos, que toma a seu cargo fazer todos os estudos e investigações attinentes á cura das différentes moléstias. Estes conheci­mentos resentiram-se por largos séculos d'um grande obscurantismo e viveram desordenados até que appareceu um génio forte, que n'elles operou uma grande reforma benéfica. Eefiro-me a Hippocrates o qual não só coordenou e com­pilou tudo o que seus antecessores sabiam, mas até fez algumas innovações. E verdadeiramente d'esta epocha que data a autonomia da medicina como sciencia e com conhecimentos próprios. Apesar das theorias de Hippocrates serem falsas e as suas hypotheses absurdas, forçoso é confes­sar que foi elle quem lançou os alicerces á pa-thologia e á therapeutica que com importantes reformas são o que hoje aprendemos.

II

A medicina, occupando-se da cura das doen­ças, apenas abrange essencialmente a pathologia e a therapeutica, tendo, é verdade, muitos ramos de conhecimentos auxiliares como são a physica, a chimica, a historia natural, a anatomia, phy-siologia, etc., etc.

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Ora, pedir a um alumno de medicina uma dis­sertação como prova para o encerramento do seu curso é o mesmo que dizer-lhe que escreva so­bre um qualquer assumpto d'aquelles ramos dos conhecimentos humanos que mais directamente são da medicina, quaes são a pathologia e a the­rapeutica. Sendo isto assim, eu escolho o assum­pto na pathologia, não porque a therapeutica seja de somenos importância, mas porque aquella é por mim melhor conhecida, e portanto apre­cio melhor o seu valor; para eu optar por um qualquer dos assumptos de therapeutica era pre­ciso que, pelo menos, tivesse tanto estudo da prá­tica da medicina como tenho tido da sua parte theorica.

Resolvida esta primeira difficuldade ficam ainda muitas outras para resolver; a pathologia é geral e especial e esta estuda-se geralmente de­baixo de duas denominações: pathologia interna e externa.

Eis-aqui três secções realmente distinctas e igualmente importantes. Confesso francamente que não tenho muito fortes razões para escolher um de preferencia a outro qualquer assumpto: todos, segundo entendo, são importantes, o es­tudo que d'elles fiz foi approximadamente igual, e, vendo quão fracos são os meus recursos intel-lectuaes, forçoso é convir que grandes serão os embaraços que devo encontrar seja qual for o assumpto que eu escolha. Em summa, razões para escolher um de preferencia a outro não ha. Para cumprir, portanto, com os meus deveres é-me forçoso conceder á sorte a resolução da dif-

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- 16 -ficuldade ou patentear a minha sympathia por este ou por aquelle assumpto: sympathiso com os phthisicos e presentemente só este facto é o que me leva a escolher para thema do meu tra­balho final a terrível e mortífera doença a que chamamos phthisica. Com effeito, mais que qual­quer outra doença, a phthisica excita no mais su­bido grau a sympathia e compaixão dos parentes e amigos do paciente. Certas affecções occul-tam-se porque são objecto de desgosto; outras, pela impureza da sua origem, acarretam sobre si o estigma da vergonha: as perturbações da intel-ligencia, o naufrágio da razão humana inspiram-nos antes horror que sympathia; mas a phthi­sica não altera as feições, não affecta as faculda­des intellectuaes: pelo contrario, parece desen­volver as qualidades moraes do doente, exalta-lhe os sentimentos e as affeições, inspira, emfim, ás suas victimas uma tocante melancolia que ex­cita, o mais que é possível, a nossa ternura e pie­dade.

Além d'isto a edade em que a phthisica arre­bata as suas victimas concorre também para os pacientes attrahirem a nossa sympathia: com ef­feito, é dos 20 aos 30 annos que a phthisica faz mais estragos n'essa epocha preciosa da vida em que d'ella gosamos o que de mais caro nos offe-rece e em que o coração das victimas se abre ás mais santas e doces esperanças, mostrando já n'essa edade á sociedade o seu valor intellectual e artístico.

A morte d'um phthisico é différente d'outra qualquer morte; a expressão e a viveza dos olhos

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que mais pronunciada se torna nos últimos pe­ríodos da vida abalam profundamente o especta­dor. O phthisico á medida que perde vida, ga­nha esperança, amplifica o seu programma mun­dano, e mesmo quando a vida já lhe falta, tão inteiras se acham as suas feições, parece ainda fallar-nos dos seus arrojados planos. O passa­mento d'um phthisico é romântico, muitos lhe teem achado poesia.

Posso, segundo me parece, concluir que, se a phthisica não é uma doença invejável, excita em nós uma tal sympathia que fundamenta o meu modo de proceder.

III

A phthisica é uma das doenças que a sciencia menos tem podido penetrar; para d'isto nos con­vencermos basta 1er o que se sabe a seu respei­to, em qualquer livro de pathologia interna, para vermos as immensas lacunas que no seu estudo se encontram e quão pouco exactas são as asser­ções que por sua causa se tem formulado. To­davia, é fora de toda a duvida que a humani­dade tem muito a lucrar até com os mais pe­quenos progressos da sciencia n'este sentido; e apesar de convencido da provável improficui-dade do meu trabalho, ainda assim tento-o, tão arreigada tenho a crença de que todos os conhe­cimentos exactos que hoje possuimos tiveram a sua epocha d'obscurantismo, como presentemente

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a phthisica e foram objecto de milhares de infru-ctiferas tentativas.

Para a tentativa de Christovão Colombo ter bom êxito foram necessários muitos trabalhos baldados. Quando este grande capitão chegou a fazer a descoberta da índia já muitos seus com­patriotas e estrangeiros tinham empregado os maiores esforços e sem o menor resultado.

O homem, por indole, quer saber, descobrir e por fim dominar; para conseguir os seus fins em­prega diariamente innumeros esforços, muitas vezes sem resultado, dá, com frequência, passos em falso, até que, ou como resultado do seu tra­balho ou por casualidade chega ao fim que já de ha muito ambicionava.

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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE ALGUNS ASSUMPTOS IMPORTANTES

M

PATÏÏ0L0GIA GERAL DA PKFHISICA

i

A phthisica é, na epocha que atravessamos, o maior flagello da humanidade. O horror com que outr'ora se pensava no cholera-morbus, na pes­te, na febre amarella, na variola e muitas outras epidemias que com intervallos mais ou menos afastados assolavam povoações inteiras, desap-pareceu desde o momento em que se fez a con­frontação da mortalidade d'estas doenças com a da phthisica.

A propria variola, que antes da descoberta do immortal Jenner eliminava a decima quarta parte da humanidade, era mais benigna que a phthi­sica.

Não ha paiz, sexo, edade, classe que esteja ao abrigo d'esta terrivel doença; mais mortífera que qualquer doença epidemica, a phthisica não sus­pende um instante o seu oneroso tributo.

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O estudo d'esta moléstia é em pathologia de uma importância incalculável debaixo do triplo ponto de vista do numero e qualidade de suas victimas, da latitude illimitada da sua etiologia e da improficuidade dos meios de que dispomos no seu tratamento.

Ainda mais, as grandes e numerosas questões que theoricamente se ventilam a seu propósito e que especialmente dizem respeito á sua natu­reza, génese, sede no quadro nosologico, especi­ficidade, contagiosidade, curabilidade, etc., etc., são de tal magnitude, tem por tal forma attra-hido a attenção de todos e nomeadamente dos medicos, e feito produzir um tão grande numero de escriptos, que fazem com que em pathologia a

"phthisica occupe senão o primeiro pelo menos um distincto logar e que mesmo aos olhos da scien-cia se justifique (com grave risco da prudência e da modéstia) a escolha que fiz do assumpto. Não sendo possivel tratar de todas as questões concernentes á phthisica, já pelo pouquíssimo tempo de que disponho, já nomeadamente pelos meus fracos recursos intellectuaes, eis o motivo porque apenas faço breves considerações sobre alguns pontos importantes da pathologia geral da phthisica.

II

N'estes felizes tempos em que vivemos todos procuram com afan a modalidade material que nas organisações se acha identificada com a doen-

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ça; isto constitue um verdadeiro progresso. A epocha em que os espiritos se satisfaziam com uma tal ou qual perturbação do principio vital a propósito de saber qual a natureza e causa das doenças vai, com prazer o digo, bem longe.

Sendo certo que ha no quadro nosologico uma doença chamada phthisica é evidente que procu­rar nos différentes tecidos a sede e a causa de tão maléficas perturbações como são as d'esta doença é o primeiro passo a dar.

Antes porém de emittirmos a nossa opinião sobre tão importante questão, seja-nos permit-tido fazer algumas considerações relativas á phy-siologia pathologica da phthisica.

O que é que nos absorve a attenção quando observamos umphthisico? E o emmagrecimento, a diarrhea, o suor, a febre constante, etc., etc.; que quererão dizer todos estes syniptomas? Que­rem dizer, quanto a mim, que a doença de que estes individuos estão affectados é na sua essên­cia uma doença de nutrição: o emmagrecimento indica, pondo de parte a natureza da lesão nutri­tiva, uma apropriação minima dos elementos as­similáveis, e é lógico, nos casos em que o em­magrecimento é symptoma da phthisica, fazer depender este facto d'uma alteração intrínseca do systema encarregado de relacionar até ao ponto de identificar o nutriente com o nutrido. Ora, na questão de saber qual é o órgão ou sys­tema a quem a natureza confiou um tão impor­tante papel, a sciencia incumbe-se de por mim responder que é o tecido connectivo. Aquillo porém a que a sciencia, pelos seus mais dignos

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membros representada, não responde, é a razão porque nem sempre o emmagrecimento é sym-ptoma de phthisica ou, o que o mesmo quer dizer, porque é que não é verdade que phthisica e deficiência assimiladora sejam uma e a mesma cousa.

Se nem todos os pathologistas são concordes na resposta que dão a esta questão tão impor­tante e momentosa quão certo é que da sua ver­dadeira resolução resultava a solução d'uni grande numero de problemas que grandemente obscurecem o capitulo d'esta doença, nada deve admirar que eu me incline para qualquer das opiniões já emittidas pelos grandes mestres ou que mesmo apresente uma nova.

Eu já disse que achava lógico admittir que o subtractum material da phthisica era o tecido connectivo e passo a demonstral-o: O emmagre­cimento que não seja o symptoma da phthisica pôde depender de três circumstancias = dimi­nuição do elemento nutriente= diminuição do poder absorvente da ce l lu la te diminuição da energia functional do tecido connectivo. A cel-lula emmagrece já porque absorve menos já por­que lhe seja levado menos que absorver, ou isso dependa da pobreza do sangue ou da preguiça do tecido connectivo; d'aqui se infere que todo o individuo tem três meios (um voluntário e dois involuntários) de emmagrecer; ora, tendo eu dito que nem todo o individuo está phthisico quando está magro (o que destrinça estes factos dando-lhe individualidade propria) é forçoso concordar que para que um individuo magro se torne phthisico

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ou para que um phthisico se caractérise pelo em-magrecimento é indispensável admittir a existên­cia de um novo factor différente dos très que enu­merei, para podermos comprehender a indivi­dualidade da phthisica e explicar a razão por­que nem todos os magros são phthisieos.

Dizer qual é este factor é o que eu acho extre­mamente difficil mas resolúvel; e senão vejamos: Esse quid, que inquestionavelmente caractérisa a doença, que presentemente me occupa, não está no elemento nutriente porque as mais es-cropulosas analyses do sangue dos phthisieos nada n'elle encontraram de especial que desse a razão do facto; não está na cellula porque de três cousas, uma=ou a sua energia funccional está di­minuída (emmagrece até que morre) ou augmen-tada (augmenta de volume dentro de certos limites) ou pervertida e então podemos observar neopla­sias ou atrophias. No primeiro caso não ha phthi­sica porque o emmagrecimento de per si não ca­ractérisa esta doença; no segundo caso dá-se um estado quasi opposto á phthisica; no terceiro tam­bém não ha phthisica porque o elemento anató­mico que caractérisa esta doença não é uma neo­plasia homœomorpha dos tecidos e muito menos uma atrophia. Por exclusão de partes se vê que, o quid que eu procuro se deve encontrar no te­cido connectivo; ora, eliminando o augmento e a diminuição da sua energia funccional como o fizemos para a actividade da cellula fica-nos ape­nas para campo das nossas investigações a per­versão funccional d'esté tecido. N'esta compre-hendem-se as atrophias, as neoplasias (fibromas)

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e a proliferação rápida mas seguida de morte dos seus elementos próprios; ora, estando bem provado que o tubérculo é uma agglomeração de elementos connectivos atrophiados, aborta­dos e pyoides (Pidoux) como de facto está, eu sou levado, a dizer não só que a phthisica tem a sua sede no tecido connectivo, mas que o tu­bérculo é o elemento anatómico que a caracté­risa.

Phthisica e tuberculose são duas cousas inse­paráveis tanto quanto o são = vida e organisa-ção! Do exame d'uni único symptoma da phthi­sica se deduz, como acabamos de vêr, a resposta ao nosso quesito.

Nos primeiros tempos da existência d'esta doença n'uma organisação é difficil e a maior parte das vezes impossivel apreciar a modali­dade material que, no tecido connectivo, é a causa d'um tão frizante quadro symptomatico como é o da phthisica; n'um período avançado da moléstia, e isto em regra, vemos claramente essa lesão=o tubérculo.

Se é certo que todos os apparelhos da econo­mia, sobretudo os apparelhos da vida orgânica, concorrem mais ou menos para a nutrição, não é menos verdade que é o systema lymphatico o que mais directa e essencialmente contribue para o desempenho d'esta funcção. Este apparelho compõe-se de três partes: ganglios, vasos e te­cido conjunctive Este ultimo d'onde afferem to­dos os vasos lymphaticos está espalhado por toda a economia com uma profusão admirável, fa­zendo suppor a Wirchow que era a base de to-

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dos os tumores; com effeito, é este tecido que en-volve uma a uma as cellulas musculares forman-do-lhe o perimisium, que envolve as cellulas nervosas, que se encontra no interior dos ossos, dos nervos, dos vasos, de tudo, emfim, aonde ha uma circulação melhor ou peior. Assim devia ser porquanto é condição necessária a todo o órgão que vive=±=a nutrição.

JáBordeu e Bichat consideravam o tecido con­junctive como essencialmente reparador e por conseguinte como a origem de todos os tecidos novos, quer estes sejam reparadores, quer hetero-plasicos ou déstructures. Assim o faz hoje Wir-chow e eu assim o admitto.

Digo não só que o tubérculo se forma no te­cido conjunctivo, mas ainda queaquelle se forma á custa dos elementos próprios d'esté, que os sub­stitue por elementos atrophicos, abortados e pyoi-des , aniquilando toda a condição reparadora possivel e destruindo até o próprio tecido de toda a reparação.

O tubérculo não é symptoma de nenhum vi­cio pathologico especial nem de nenhuma dia-these; é essencial, primitivo e commum por­quanto elle não denuncia senão ruina ou a im­potência nutritiva e reparadora dos tecidos con-junctivos da economia viva.

É, segundo entendo, por este meio directo que se produz a phthisica: é uma perversão nutritiva cuja sede é o tecido conjunctivo. A phthisica é, no seu começo, permitta-se-me a comparação, uma dyspepsia do tecido essencialmente nutrien­te, mais tarde é uma tuberculose visivel.

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O suor dos phthisicos é a consequência phy-siologica da perversão nutritiva.

A diarrhea ê a manifestação da especial in­fluencia que a doença tem sobre os intestinos.

Dei a entender no curso da resolução do pri­meiro quesito da minha these que o tubérculo não é tumor; com effeito, o que é que caracté­risa um tumor? A sua independência, sua vida propria, sua faculdade d'accrescimo, seu poder de viver como um enxerto animal, sua nature­za, por assim dizer, parasitaria, possuir vasos nutritivos e ter um tecido próprio. Nada d'isto se encontra no tubérculo. O tecido connectivo está tão longe de nutrir o tubérculo, quão certo ê ser este formado á sua custa e de sua pro­pria substancia, substituindo-se pelos elementos d'aquelle outros que morrem ao nascer, como opus, mas sem reparação possivel, a menos que a proliferação mórbida se não suspenda.

III

A sciencia dá um passo real quando chega a conhecer a causa d'um phenomeno que lhe per­tence; ter conhecimento da causa d'essa causa chamo eu progredir. Um qualquer ramo dos nos­sos conhecimentos póde-se imaginar tanto mais adiantado quanto mais nos remontarmos na se­rie genealógica das causas. Ainda que a serie das causas fosse finita, que houvesse uma causa ul­tima, era provável que os homens nunca che-

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gassem a attingil-a attendendo á sua curtíssima intelligencia; mas suppondo que por um supremo esforço chegavam a esse ponto dourado, seriam em tal caso omniscientes, verdadeiros Deuses, capazes de analysai- e recompor o universo.

Infelizmente este resultado nunca se obterá, convicto o digo, já porque a serie de causas é infinita, já pelo pouco alcance humano; avanço mesmo que a parte que trata das causas em qualquer ramo dos nossos conhecimentos é a mais diíficil de tratar porque, se sabemos a cau­sa de um phenomeno, o que é raro, poucas ve­zes nos remontamos na serie: assim, se ufanos dizemos que um corpo cahe porque a terra o at-trahe, estacamos logo que nos perguntam por­que é que ella o attrahe; temos de responder vi­ciosamente que a terra attrahe porque attrahe, porque está organisada para attrahir.

Se nos perguntarem porque o cérebro pensa responderemos semelhantemente: pensa porque pensa, porque foi organisado para pensar, etc.

A etiologia da phthisica é um dos pontos mais obscuros da historia d'esta doença; apesar dos numerosos e louváveis esforços da classe medi­ca, é forçoso confessar que n'este ponto dos nos­sos conhecimentos possuímos mais asserções gra­tuitas que factos rigorosamente demonstrados.

Muitos pathologistas, attendendo a que os tu­bérculos constituem na phthisica uns dos pheno-menos mais importantes, julgaram dever avan­çar que eram estes a causa da doença.

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Estranha illusão! Em taes circumstancias era a phthisica uma

doença consecutiva á tuberculose, e era conse-guintemente necessário estudar estes dous esta­dos mórbidos em separado; todavia ê para no­tar que esta etiologia forçada d'alguns patholo-gistas não vencia difficuldades que existem, mas ainda creava algumas que, se não fora esta aber­ração de concepção, não existiriam. As difficul­dades que existem para desenvolver uma boa etiologia da phthisica subsistiam no mesmo grau para a tuberculose e ficava ainda por saber como denominar este estado anómalo da nutrição de cuja existência depende a do tubérculo.

Afora as desvantagens que uma tal etiologia tinha para o bom encadeamento dos phenome-nos, tinha ainda o defeito de perfilhar por força de circumstancias uma opinião systematica. Não sendo a phthisica uma perversão do tecido con­nective, essência do tubérculo como eu e mui­tos pathologistas admittimos, é forçoso confes­sar que não sabemos qual é o subtractum mate­rial da doença, e, a menos que não queiramos dizer que a phthisica é uma doença das glându­las sudoriferas, uma enterite ou emfim uma qual­quer cousa que dê conta apenas d'um sympto-ma importante da phthisica, é possivel que nos chegasse a vontade de dizer que a phthisica é uma affecção do principio vital...

A phthisica e a lesão que a caractérisa não se precedem nem se seguem. São como a vida e a organisação uma mesma cousa debaixo de dous aspectos.

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Graves pensa que o vicio escrofuloso é a causa dos tubérculos e identifica a phthisiea com o escrofulismo; não partilho esta opinião de Gra­ves; para mim a phthisiea e a escrofulose são duas doenças distinctas, consistindo a primeira n'uma perversão funccional do tecido connectivo e a segunda no exagero de funeção dos órgãos lymphaticos e nomeadamente dos ganglios. O exagero d'uma funeção traz sempre o augmento de volume do órgão que a desempenha e é por isso que n'esta ultima doença nós vemos cons­tantemente a tumefacção dos ganglios lympha­ticos; o excesso de funeção d'esté apparelho é realisado em detrimento de energia funccional dos outros, d'onde resulta a sua fraqueza d'elles. Este estado especial da organisação a que os pa­th ologistas chamam escrofulismo faz com'que todas as lesões que se dão nos tecidos offereçam um caracter atonico, que tenham uma marcha chronica que apesar de locaes é necessário em­pregar um tratamento geral reconstituinte. Nada d'isto deve admirar, basta attender a que estas organisações se acham pobres de forças porque tem pouco sangue e ainda aquelle que é desti­nado a qualquer órgão é n'elle muito diluido pela lympha em excesso de que todo o organismo está cheio, d'onde resulta que todas as lesões nos tecidos escrofulosos tomam o typo das in-flammações chronicas. Uma ferida proveniente d'uma causa traumatica que cicatrisaria em pou­cos dias n'uni individuo de temperamento san­guíneo, torna-se uma ulcera de mau caracter e de mau prognostico n'um escrofuloso ; eu já vi

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na perna d'um escrofuloso de quinze annos uma larga e profunda ulcera a qual com tão maus ca­racteres se apresentava que claramente indicava ou a desarticulação pelo joelho ou a amputação da coxa pelo terço inferior, o que se fez. Este individuo morreu alguns dias depois da opera­ção; se se não praticasse a operação a morte era inevitável. A autopsia mostrou-nos tms pulmões infesados mas não tuberculosos; este individuo morreu inquestionavelmente d'uma ulcera escro­fulosa.

Se me perguntarem a razão porque digo que a causa da morte foi a ulcera, responderei que foi porque a ulcera sendo a séde d'uma suppu-ração constante chegou a debilitar o organismo a ponto de não ser exequivel o funccionalismo dos órgãos.

Agora que temos bem presente este caso que acabo de descrever, imaginemos um outro bem semelhante e que apenas diffira d'esté na séde da lesão = é um escrofuloso que em virtude da acção irritante de qualquer corpo que tenha en­trado de mistura com o ar atmospherico tenha adquirido uma ferida pulmonar que com o tempo se converteu em ulcera; este individuo morreu após um longo padecimento thoracico = se me interrogassem a propósito de saber qual era a natureza da doença de que elle morreu, eu não hesitaria em dizer que era escrofulosa; se me per­guntassem se elle morreu phthisico afoutamente diria que não. Entretanto não succederia o mes­mo se fosse Graves quem respondesse: esse di­ria que a causa da morte não foi a escrofulose

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mas sim uma phthisica caseosa, e responderia assim pelo simples facto de partir do principio de que a phthisica é a escrofulose do pulmão, fi­cando ainda entendido que mesmo para Graves a causa da morte do primeiro individuo a que me referi foi sem duvida a escrofulose. Para Graves a phthisica e a escrofulose são uma e a mesma cousa, quanto á essência.

J á disse que não concordava com a opinião tão auctorisada do eminente professor de Bublin e para fundamentar este modo de proceder basta dizer: 1.° que ha factos bem averiguados de phthi­sica em indivíduos em quem não só não existe indicio algum de escrofulismo, n'elles, nos seus ascendentes e mesmo descendentes, mas até em quem se nota um temperamento sanguíneo ou sanguineo-nervoso; 2.° que se o tubérculo appa-rece frequentemente nos pulmões isso apenas de­pende da sua structura e vascularisação e das relações que tem quer com o exterior quer com o organismo; e que não é raro vêl-o no mesen­teric, nos intestinos, nas meningeas, nas muco­sas, na pelle, nos ossos, emfim em todos os te­cidos, tirando-se d'estes factos a conclusão de que (apesar de Graves dizer que a phthisica não é mais que a tuberculose do pulmão) se a phthi­sica é o mesmo que escrofulose ella é a escrofu­lose de todos os tecidos sendo então caracteri-sada pelo elemento anatómico « tubérculo », con-cluindo-se ainda que Graves errou a denomina­ção e chamou escrofulose áquillo que a maior parte dos pathologistas chamam phthisica; 3.° que sendo a phthisica uma doença que consiste

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n'uma perversão do funccionalismo do tecido connectivo, como já fiz vêr, diffère essencial­mente da escrofulose por isso que esta consiste na maior actividade do systema lymphatico e nomeadamente dos ganglios, facto este em que, todos os patliologistas concordam; 4.° que estes casos de morte que apparecem no meio do sym-dromo clinico da phthisica sem que comtudo existam tubérculos, mais logicamente se podem filiar em uma tuberculose que breve se paten­tearia aos nossos sentidos, do que em uma escro­fulose da qual não houve o menor indicio.

Em resumo, eu entendo que um individuo ercrofuloso pôde morrer d'uma ulcera escrofu­losa pulmonar sem que n'elle haja o menor ves­tígio de phthisica; que outro, com o mesmo vi­cio geral pôde morrer de phthisica, quer a tu­berculose seja pulmonar, mesenterica, hepática, meningea, etc.; que um escrofuloso pôde ter tu­bérculos em qualquer tecido e morrer d'uma ulcera' escrofulosa em qualquer região; que um individuo de qualquer temperamento pôde mor­rer phthisico sem que nos seus ascendentes, n'elle e nos seus descendentes, houvessem, ha­jam ou estejam para haver manifestações escro­fulosas; e penso ainda mais que um individuo pôde morrer no meio d'um quadro de sympto-mas que simule o da phthisica havendo apenas no pulmão lesões importantes consecutivas a cer­tas doenças d'esté órgão, mas lesões simplesmente locaes; a hepatisação de parte do pulmão, a schir-rose, a obliteração d'uma parte importante dos canaliculos aéreos pela coagulação de certos pro-

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duetos fibrinoides, etc., podem dar logar a al­guns dos symptomas da phthisica, levarem o in­dividuo ao tumulo, e com tudo nem sombra de phthisica ahi haver.

Vê-se pois que ha muitas doenças pulmonares de que o individuo pôde morrer, que simulam symptomaticamente a phthisica e que comtudo estão immensamente distantes d'ella. É, portanto, importantíssimo pensar maduramente n'estes fa­ctos, não assignar á phthisica uma tão grande frequência como o fez Graves e não a fazer car­regar com a culpa de mortes que ella não prati­cou. Para fazer da phthisica a doença mais mor­tífera que a pathologia descreve não ê preciso sommal-a com a escrofulose; ella de per si dá elementos mais que suficientes para um tal cre­dito.

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Os différentes tratados de pathologia e mesmo os compêndios didácticos dizem que a phthisica accusa um enfraquecimento geral, o que eu acho incontestável, e d'aqui pretendem remontar-se á causa julgando tel-a encontrado logo que acham causas que podem produzir o enfraquecimento, o que eu contesto, porquanto já a seu tempo de­monstrei que fraqueza geral e emmagrecimento não constituem a phthisica.

Todos sabem que existem milhares de indiví­duos em quem a nutrição está muito diminuída, os quaes se acham n'um grau extremo de debi­lidade e que comtudo se não tornam phthisicos, e que muitos no meio do mais bello estado exte-

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rior de nutrição, com uma forte constituição, sem herança, sem causa exterior de esgotamento e nas melhores condições hygienicas a adqui­rem!

Estes factos contradizem-se aos olhos d'aquel-les que fazem consistir a phthisica na fraqueza constitucional; mas como os factos nunca se po­dem contradizer forçoso é renunciar á explica­ção.

É, levados pelas mesmas ideas, que Brunett, Turnbul, Beau, Hughes Bennet, Rokitansky, Martin Paine e outros, teem feito das dyspepsias a causa quasi constante da phthisica, julgando mesmo que a relação entre estes dous factos é fácil de encontrar=má qualidade dos productos immediatos d'uma digestão alterada, como con­sequência necessária, hematose viciada, lympha organisavel ou blastema degradado, nutrição di-minuida, tubérculo = o que forçoso é ser falso porquanto na numerosa classe dos dyspepticos não ha, salvas as devidas proporções, mais phthi-sicos do que na classe dos que digerem bem, havendo até menos em vista de recentes estu­dos n'este sentido, e com que Grisolle, Jaccoud e vários digam que o mau alleitamento qualitativo ou quantitativo, a applicação intellectual pre­coce ou forçada, os trabalhos excessivos das fa­bricas nas grandes cidades, a insuficiência qua­litativa ou quantitativa da alimentação, as pre-nhezes muito approximadas o alleitamento muito prolongado, devem figurar com bom direito no capitulo etiológico da phthisica, o que penso não ser verdadeiro, primo, porque muitos individuos

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nas circumstancias supra­mencionadas se não tor­nam phthisicos, secundo porque de taes factos apenas se pôde concluir que a phthisica é mais frequente nos individuos inválidos, o que não é o mesmo que dizer que a fraqueza constitucio­nal é causa da phthisica.

*

E' quasi parte obrigada fallar­se das edades, sexos, raças, climas, altitude, etc., etc., a propó­sito da etiologia da phthisica; eu entendo que a phthisica pôde e deve ser modificada em cada um dos casos referidos, mas não penso que es­sas circumstancias sejam a causa d'ella; todavia, como acho conveniente apreciar uma tal influen­cia, sempre direi duas palavras a tal propósito.

Todas as edades estão sujeitas á phthisica; os tubérculos teem sido encontrados em pulmões de muitos individuos tanto na vida intra­uterina como na extra­uterina: todavia, podemos dizer que é rara antes da primeira dentição e que se torna um pouco mais frequente depois d'esse pé­riode Lombard diz que a maior frequência da phthisica na infância era dos 4 aos 5 annos, em quanto que Barthez e Rilliet affirmam a sua igual frequência em todo esse periodo; um pouco es­tacionária na puberdade torna­se mais mortífera aos 20 annos; o seu maximum de frequência se­ria aos 31 annos, segundo o Dr. Clarke.

Bayle suppunha que era dos 40 aos 50 annos que a phthisica era mais frequente, mas isto não é exacto.

A influencia dos sexos é pouco pronunciada.

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Laennec reconheceu que a phthisica era mais frequente na mulher que no homem, opinião mais tarde confirmada pelas numerosas estatísticas de MM. Louis e Benoiston.

Papavoine encontra o mesmo predomínio nas donzellas, porém, segundo M. M. Rilliet e Bar-thez, ella só se tornaria mais frequente n'estas ultimas, naepocha da puberdade, em quanto que na infância seria mais frequente no sexo mascu­lino.

A influencia do sexo varia para cada paiz; as­sim o Dr. Clarke reuniu documentos em que por algarismos se prova a maior frequência da phthisica nos homens de certos pontos da Eu­ropa e da America, como Génova, Berlim, Ham­burgo, Nápoles, Suécia, New-York, Rouen, etc., etc.

As diversas raças humanas são desigualmente affectadas pela phthisica; assim, nos paizes em que habitam negros e brancos, a phthisica é muito mais frequente nos primeiros que nos se­gundos; este facto parece-me antes depender das diversas condições hygienicas em que estes in-dividuos vivem, do que ser influencia das raças. A raça indiana é quasi exempta da phthisica; será isto devido á sua vida nómada, activa? É provável. Os descendentes d'aquelles que com tanta gloria conquistaram a índia são infeliz­mente dizimados pela phthisica.

A phthisica é de todos os climas; é apenas para notar que o sua frequência não é a mesma para todos os logares: quasi desconhecida no Norte da Noruega, nas ilhas de Feroé e na Irlanda, vê-se

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já na Suécia, sobretudo em Stockolmo, entrar nos óbitos em numero pouco inferior a V15, em quanto que em Berlim, Londres e Paris entra como V15 da mortalidade.

Os climas meridionaes, que alguém suppoz serem exemptes de phthisica, não o são; appa-rece com frequência no sul da França=Proven-ce, Marselha e Nice; em Italia=Grenova e Nápo­les; na Iberia=Lisboa e Madrid. Em Gibraltar, em Malta e nas ilhas Jonias-a sua frequência iguala a da Inglaterra. Encontramos a phthisica fazendo os seus estragos no Noi'te da Africa, nas índias orientaes, nas Antilhas Inglezas e Francezas e sobretudo no littoral do continente americano, tanto sobre o Atlântico, como sobre o Pacifico, como o provam as investigações de Clarke e Cromwell. Sigaud diz que a phthisica é tão mortífera no império do Brazil como na Europa.

Laennec sustentava que a phthisica era menos frequente nas praias que no interior dos conti­nentes. Rochard provou com numerosos docu­mentos a falsidade da opinião de Laennec: os ma­rinheiros que viajam para os portos do sul e do oeste, para as Antilhas e para as índias, pagam mais largo tributo á phthisica que os soldados.

A phthisica é tanto mais rara quanto mais ele­vados são os logares. Jaccoud, por observações repetidas durante quinze annos, chegou a con­cluir que, em igualdade de latitude e de longi­tude a phthisica era tanto mais rara quanto mais nos elevamos: a 4:000 pés d'altura o tubérculo é rarissimo, a 5:000 pés não existe.

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Falla-se muito, presentemente, no antagonismo que parece haver entre a phthisica e certas doen­ças, como a chlorose, a diathese urica e as fe­bres intermittentes.

Pidoux demonstra que a arthritis é a doença mais antagonista da phthisica; todos os outros pathologistas concedem o primeiro logar ás fe­bres palustres, e de todos o que mais estudos tem feito sobre este ponto 6 inquestionavelmente Bou­din. Este publicou no 33.° volume dos Annaes d'Hygiène uma importantíssima memoria sobre o antagonismo da phthisica e das febres inter­mittentes em que, depois de numerosas e largas considerações tira as seguintes conclusões: l.a, as localidades nas quaes a causa productora das febres intermittentes indemicas imprime ao ho­mem uma modificação profunda distinguem-se pela raridade relativa da phthisica e da febre ty-phoide; 2.a, as localidades nas quaes a febre ty­phoïde e a tuberculose fazem seus maiores estra­gos tornam-se notáveis pela raridade e pouca gravidade das febres intermittentes; 3.a, o des-secamento d'um solo pantanoso produzindo a ces­sação ou diminuição das doenças palustres pa­rece dispor o individuo a uma pathologia nova, na qual a phthisica, e segundo as localidades, a febre typhoide, se fazem particularmente notar; 4.a, depois de se ter demorado n'um paiz de ca­racter pantanoso, o homem apresenta contra a febre typhoide uma immunidade cujo grau e duração estão na razão directa e composta: 1.° da duração da demora anterior; 2.° da intensi­dade d'expressão que attingiram as febres palus-

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três debaixo cio duplo ponto de vista da forma e do typo; 5.° as condições de latitude e longi­tude geographica e de elevação, limitando a ma­nifestação das febres palustres, estabelecem um limite á influencia medicatriz do elemento pan­tanoso; 6.° emfim, certas condições de raça e talvez de sexo, diminuindo a impressionabilidade do organismo para as febres dos pântanos, mi­noram ao mesmo tempo a influencia medicatriz d'esta causa.

Estas idéas de Boudin, mal comprehendidas por alguns medicos, são. presentemente a ordem do dia, e a solução d'um problema de tal natu­reza interessa no mais subido grau a hygiene publica.

O problema é extremamente difficil e está se­riamente complicado: emquanto que as obser­vações de MM. Barth, Schoenlein, Hahn, Tri­be, Crozart e outros parecem estabelecer a jus­tiça das leis de antagonismo formuladas por Boudin, conclusões não menos significativas de Forget, de MM. Michel Levy, Gintrac, Vigou-roux, nos mostram que as atmospheras palus­tres estão longe de serem uma causa de immu-nidade.

Seja como for, certos factos apresentados por Boudin impõe-se sem replica; depois do desse-camento dos pântanos que circumdam Zurich, as febres palustres desappareceram e foram sub­stituídas pela phthisica. No Delta do Rheno as febres intermittentes são communs e raros os casos de tuberculose ; o mesmo se observa nos paizes arientos que circumdam Bruxellas.

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Se, portanto, não podemos erigir em leis ab­solutas as proposições de Boudin, é necessário comtudo admittir uma raridade relativa da phthi-sica nos paizes palustres. Parece-me que esta ra­ridade não é o resultado d'uni verdadeiro anta­gonismo. Perroud que, a meu ver, mui sabia­mente estudou a influencia dos paizes pantanosos faz notar que n'esses paizes a temperatura é mais uniforme, que a proporção d'ozone atruospherico é pouco elevada e que a disposição aos movi­mentos fluxionares é embaraçada pelo estado chloro-anemico.

*

Se a questão que a largos traços acabo de esboçar é d'uma importância reconhecidíssima, debaixo do ponto de vista hygienico, não é de somenos consideração a de saber se a phthisica é contagiosa.

Entre alguns dos medicos antigos existiu a desconfiança de que a phthisica era contagiosa; Morgagni, celebre anatómico, dissecou poucos cadáveres com o receio de contrahir o mal; Mor-thon, Biverius, Valsalva, Van Swieten, J. Franck partilharam a mesma opinião; ainda assim esta idea aceite por poucos, por ninguém foi discutida nem verbal nem litteralmente até dezembro de 1865, epocha em que Villemin apresentou á Academia de Medicina de Paris uma interessante memoria intitulada: « Causas e natureza da tu­berculose».

Nada mostra melhor quanto a idéa de conta­gio da phthisica era aceite pelos medicos anti-

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gos do que esta phrase: « Phthisicorwm cadavera fugi adolescens, fugio etiam senex ».

Modernamente, em 1873, Emale chega a acon­selhar que se não deve dar ama ás crianças tu­berculosas por temer que o contacto da saliva e mucosa bocal da criança dê logar ao desenvol­vimento da tuberculose na ama.

Desde o começo d'esté século, a idéa de con­tagio tem sido rejeitada pela maior parte dos medicos; ha até pathologistas, cujos nomes sem­pre ficarão ligados á historia d'esta doença, taes como Louis, C. J. B. Williams e Todd que nem n'elle fallaram.

Portal, Laennec, Watson e Cotton negam-o. Laennec, apesar de dizer que nunca viu a phthi-sica desenvolver-se por contagio, não affirma que este modo de transmissão não possa ter lo­gar; aconselha a maior prudência ás pessoas que vivem habitualmente com phthisicos, por quanto muitos factos provam que uma doença habitualmente não contagiosa o pôde ser em cer­tas e determinadas circumstancias.

Watson é mais affirmativo que Laennec e toma como prova o caracter diathesico d'esta doença: *A diathesis cannot be contagious.* Andral dá á opinião da contagiosidade da phthisica todo o peso da sua auctoridade, quando diz: «Tem-se sem duvida exagerado a facilidade do contagio da phthisica pulmonar. Todavia, será prudente negal-o absolutamente e em todos os casos? Quem poderia affirmai- com provas sufficientes, em apoio da sua opinião, que uma doença que se não pôde considerar puramente local e que á

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medida que avança apresenta a imagem d'uma espécie d'infecçao de toda a economia, não ê sus­ceptível de se transmittir, nos casos em que con­tactos muito approximados e contínuos expõe um individuo são a absorver os miasmas que se desenvolvem quer da mucosa pulmonar, quer da pelle dos doentes? Tudo o que eu posso dizer, sem pretender decidir em ultima instancia a questão, é que, no curso da minha prática, te­nho visto mais d'uma vez mulheres começarem a apresentar os primeiros symptomas d'uma phthi-sica pulmonar, pouco tempo depois que seu ma­rido, com quem ellas tinham dormido até ao ul­timo momento, tinha succumbido a esta doença! Uma tal questão será sempre mui difficil de re­solver em razão da grande frequência da phthi-sica: citar-se-hão sempre factos contrários áquel-les que acabo de apresentar e para estes últimos poder-se-ha diminuir facilmente o seu valor, di­zendo que as pessoas que se tornam phthisicas n'este caso tinham de se tornar. Mas pratica­mente estes factos teem talvez bastante impor­tância para que nos esforcemos em fazer tomar algumas precauções ás pessoas que teem rela­ções diárias com os phthisicos, sobretudo nos úl­timos tempos da doença».

M. Michel Levy admitte como certa a possi­bilidade de contrahir a phthisica por uma coha-bitação prolongada. M. Grueneau de Mussy par­tilha igualmente esta opinião.

Nas suas memorias M. Bruchon, M. Henry J. Bowditck, professor de clinica na universidade de Harvard, e M. Gruibout referem um grande

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numero d'observaçoes nas quaes a phthisiea pa­rece ter-se transmittido pelo facto d'uma longa cohabitação ajudada pelas más condições hygie-nicas.

Tessier, professor em Lyon diz-nos ter ob­servado na sua clientella dous casos de trans­missão da phthisiea entre marido e mulher, nos quaes lhe parece que o contagio desempenhou um evidente papel.

Resulta ainda dos factos citados nas memo­rias precedentes a observação de que a trans­missão da phthisiea é mais frequente do marido para a mulher do que da mulher para o marido. Muitos pathologistas pensam que este facto prova contra o contagio, pois que se a doença fosse contagiosa não devia haver um tal predominio de frequência; eu, porém, penso do mesmo modo que Glueneau de Mussy quando diz que em vir­tude da fecundação e do desenvolvimento no seio materno d'uni feto que leva comsigo o gérmen da tuberculose, espécie de inoculação lenta que dura 9 mezes, seria mesmo para estranhar que um tal facto se não observasse.

Pelo que deixo dito se vê que, se entre os me­dicos antigos havia suspeitas da contagiosidade da phthisiea outro tanto succède com os moder­nos, sendo ainda para notar que, a questão tem tomado, n'estes últimos tempos proporções co-lossaes.

Eu penso que a phthisiea é inoculavel, viru­lenta e que o seu contagio é possivel, posto que este facto raras vezes se realise.

Para plenamente nos convencermos da ino-

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culabilidade da phthisica basta 1er a descrípção das experiências de Villemin, de Roustan e mui­tos outros medicos experimentadores.

Eu não tenho escrúpulo, como alguns patho-logistas, de admittir como bem feitas as expe­riências a que me refiro; acho indiscutivel que todos os inoculadores se serviram de materia tuberculosa e que as lesões que ulteriormente encontraram eram tubérculos. Roustan para que n'este ponto não ficasse a menor duvida, apre­senta na sua these de doutorado estampas feitas pelo dr. Damaschino e que são a reproducção das suas preparações micrographicas.

Confrontando o resultado de todas as expe­riências, tendentes a provar a inoculabilidade da phthisica eu vejo que a resposta é, na grande maioria dos casos, affirmativa.

As questões que se resolvem á luz dos factos arreigam sempre crenças profundas: que a ma­teria tuberculosa é capaz, por inoculação, de pro­duzir no organismo lesões idênticas, é fora de toda a duvida.

Os anti-contagionistas vendo que uma tal de­monstração era um passo gigante para conseguir provar a virulência da doença, tiveram a feliz lembrança de dizer que as experiências não ha­viam sido feitas como deviam ser; mas, (tão clara era a luz dos factos!) tiveram de convencer-se com o tempo do contrario; e, roto este primeiro entrincheiramento, parapeitaram-se no modo de propagação do producto inoculado para provar a sua não virulência.

Quanto, a mim, porém, foram sufficientemente

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infelizes, porquanto, o estudo da propagação do tubérculo, depois da inoculação, é a melhor lição prática que se pôde dar das doenças virulentas.

Com effeito, em primeiro logar dizem que a materia tuberculosa é absorvida e levada pelos lymphaticos da região, podendo-se seguir passo a passo o trajecto que percorre; é este o primeiro facto que os anti-contagionistas apontam contra a virulência da doença, porque entendem que o período da incubação é ponto essencial ás doen­ças virulentas, ficando assim bem claro que, para que uma doença seja virulenta é necessário que tenha um periodo de propagação inacCessivel aos nossos sentidos!

A tuberculose não é uma doença virulenta pelo facto do producto tuberculoso seguir um cami­nho visivel e ao principio limitado, quando ex­perimentalmente com elle procuramos infectar o organismo!

Se assim pensássemos teríamos de negar á sy­philis, com grave e geral espanto da classe me­dia, a sua virulência; pois não é fora de duvida que o cancro molle pôde dar logar á infecção seguindo através os vasos lymphaticos d'uma maneira visivel e limitada? Não vemos clara­mente cordões lymphaticos do penis terminar por bubões, na virilha, da mesma natureza que o cancro? Não se admitte que a infecção é a con­sequência necessária do virus forçar a barreira que a inflammação do ganglio lhe oppoz e que só d'esté modo se pôde dar conta dos casos de não infecção apesar dos bubões?

Eu não posso deixar de responder pela affir-

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mativa a todas estas questões; é o que todos os os livros de pathologia respondem, é o que os meus mestres me ensinaram.

Pidoux encontra na quantidade de materia tu­berculosa que é preciso inocular um caracter contra a virulência; esta razão não colhe, pri­meiro porque não ha relação precisa entre a quantidade de productos inoculados e a quanti­dade de productos absorvidos; segundo, porque a virulência d'uma doença não se pôde aferir pela quantidade de productos que é preciso inocular: muito e pouco são expressões relativas, e se ape­sar d'isso me disserem que o que distingue, por exemplo a syphilis (doença virulenta) da tuber­culose é manifestarem-se os effeitos d'aquella pela inoculação d'uma quantidade de producto rela­tivamente menor, eu então pedirei que me di­gam o resultado obtido com a inoculação d'um producto syphilitico levado á centésima dinami-sação e o resultado obtido com a inoculação de producto tuberculoso na quantidade em que a syphilis é inoculada ordinariamente para dar re­sultado. Parece-me, no primeiro caso, a menos que não perfilhemos momentaneamente ou para sempre os dogmas homœopathas, que se não ob­tém resultado positivo, e que no segundo, visto que o pequeno producto é absorvido, se deve obter.

Suppondo mesmo que as tuberculoses obtidas por meio da inoculação apresentam alguma dif-ferença em relação com a maior ou menor quan­tidade de producto inoculado, isso não deve sur-prehender-nos, porque os casos de cancros mol-

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les seguidos de infecção geral podem-se filiar n'uma maior absorpção do principio virulento; se alguém quizer filiar este facto na différente receptibilidade orgânica, eu julgo-me no direito de pedir para a tuberculose a mesma concessão.

O enkystamento da materia tuberculosa não prova, quanto a mim contra a sua virulência; as doenças locaes syphiliticas, o cancro molle e o bubão são prova mais que suficiente a esta mi­nha asserção.

Abonam-se ainda mais os anticontagionistas com um outro argumento, e dizem que o agente inoculado em vez de ser um liquido é um pro-ducto solido. Ora, partindo eu do principio de que os pathologistas que aventam estas idéas es­tão ao facto do quanto sabemos a propósito de virus, dificilmente posso conceber o valor do ar­gumento, jamais se attentar que elles mesmos concordam que esses líquidos não teem caracte­res próprios e que apenas se tornam notáveis pe­los seus surprehendentes effeitos.

Virus não é um agente material e concreto; nenhum dos nossos sentidos percebeu até ao dia d'hoje a sensação d'um virus. Virus é um prin­cipio hypothetico que nós somos levados a ad-mittir para darmos uma explicação d'uma certa ordem de factos que frequentemente observa­mos.

Se esse principio pôde ir de mistura com um liquido orgânico qualquer porque não poderá ser transmittido por um corpo solido? E, quando este ultimo facto se demonstrasse, o que dificil­mente acontecerá, muito especialmente emquanto

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os virus não cahirem debaixo da apreciação dos nossos sentidos, não sabemos nós que os elemen­tos que n'este caso chamamos sólidos teem mais de 2/s de liquido? Claro que sim.

Ainda mesmo que estivesse demonstrado que o único vehiculo do virus é um liquido, não se concebe perfeitamente que em virtude d'uma va­riante thermometrica elle podia solidificar-se e prender em suas malhas o principio virulento? O liquido virulento syphilitico conservará a sua propriedade de transmittir a doença, embora seja inoculado debaixo do estado solido, porque um abaixamento de temperatura assim o trans­formou? E evidente que sim.

Relativamente ao modo de pensar de muitos pathologistas quando dizem que todos os virus tem um periodo de silencio, denominado incuba­ção, imagem propria para exprimir a inércia ap­parente do mal e ao mesmo tempo sua actividade occulta, seu despontar proximo e fatal, eu res­ponderei: 1.°, que acho muito provável que o modo de propagação dos virus seja através os lymphaticos e as veias, porquanto para que um virus seja absorvido é necessário pôl-o em rela­ções bastante directas com os vasos, e que indo os virus de mistura com os liquidos, e sendo es­tes absorvidos, aquelles devem ir para a torrente circulatória do mesmo modo que estes, propa-gando-se os virus d'uma maneira muito diversa d'aquella que muito boa gente imagina e que con­siste na impregnação gradual e successiva to-tius substantice; 2.°, que quem pretende tirar uma determinada conclusão do facto altamente lamen-

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tavel de nós não sabermos como se comporta o virus durante a incubação, cahe no absurdo ló­gico e no ridiculo scientifico.

Suppondo nós a inoculabilidade da phthi-sica bem demonstrada não deveremos admittir para esta doença outro modo de propagação senão a inoculação e o contagio? Certamente que não.

Eu penso que, se pôde existir uma tuberculose inoculada, existe também a espontânea e here­ditária.

Que se pôde racionalmente invocar contra o desenvolvimento espontâneo da tuberculisação? A especificidade! Mas não vemos nós as doen­ças mais especificas, o mormo e a raiva desen-volverem-se espontaneamente logo que se reali-sem certas condições de regimen e de meio? A virulência e a inoculabilidade! Mas é forçoso ad­mittir que as doenças mais virulentas e especi­ficas, que as affecções mais diathesicas tiveram um principio na espécie humana e que este prin­cipio teve logar debaixo de condições intrínse­cas ou extrínsecas tão pouco conhecidas como incontestáveis.

Ora, se a tuberculose teve origem espontânea uma vez, porque a não terá 10, 100, 1:000, 10:000 vezes?

Comprehende-se bem que só excepcionalmente é que a phthisica é transmittida por inoculação d'homem para homem.

Eu não quero prolongar por mais tempo esta discussão da inoculação e virulência da tuber­culose: é uma questão de facto que revela expe-

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riencia e não raciocínio e passo a estudar o con­tagio da phthisica.

Se os resultados positivos da inoculação não bastam, como se tem dito, para asseverar d'uma maneira absoluta o contagio da tuberculose, es­tabelecem pelo menos em favor d'esté modo de transmissão uma grande presumpção ; mostram que é possível.

Se a syphilis, em logar de affectar um órgão que tão repetidas vezes se põe em intimo conta­cto com uma superficie nas melhores condições d'absorpçao, como é a vagina e o collo uterino, ti­vesse a sua sede apenas nos pulmões, no mesen­teric, nas meningeas, nas mucosas, nos ossos, etc., etc., suscitaria as mesmas dificuldades que ora suscita a tuberculose a propósito de saber se é ou não contagiosa: e se o tubérculo tivesse como sede frequente o penis, elle propagar-se-hia do mesmo modo que hoje se propaga a syphilis.

A tuberculose é pois uma doença contagiosa pela mesma razão que a syphilis; se o contagio é rarissimo isso depende apenas da sede das le­sões; quando mesmo me queiram negar a diffi-cillima realisação das condições do contagio na vida extra-uterina, forçoso é admittil-o no mo­mento da fecundação, em que, em virtude do contacto do sperma d'um tuberculoso com o ovulo d'uma robusta mulher, sahe um individuo tuber­culoso. Eu, encontrando nos livros de patholo-gia até nos mais anticontagionistas muitos factos em que um individuo se torna tuberculoso pelo simples facto do pae o ser e apesar da mãe ser d'uma robustez invejável, e o que acontece com

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a tuberculose acontece com a syphilis, sou le­vado a admittir o contagio no acto da fecunda­ção ; nem outra cousa se pôde admittir ; o sper-iria, agente inoculador, substitue cabalmente a lanceta de Villemin; dos factos d'esta cathegoria ainda se tira outra conclusão favorável ao con­tagio da tuberculose; visto que o principio crea-dor da phthisica pôde ser transmittido pelo sper-ma, porque o não ha de ser pelo suor, pela sa­liva, pelos escarros, e especialmente pela inha-lação pulmonar?

Pidoux, admittindo que a phthisica ê uma dia-these, acha n'este caracter da doença uma prova contra o contagio. Este argumento acho-o bas­tante fraco para que não succumba desde o mo­mento que apontemos a syphilis, a qual, se exis­tem diatheses tem os seus caracteres d'ellas no mais alto grau e apesar d'isso possue a proprie­dade de ser contagiosa em tão elevada escala como poucas doenças.

A influencia dos modificadores geraes sobre o desenvolvimento da doença tem sido apresen­tada como qualidade opposta â das doenças con­tagiosas, o que eu acho, em primeiro logar, me­nos exacto, porque a acção dos modificadores geraes faz-se sentir em todas as doenças tanto contagiosas como não contagiosas, e em segundo logar, realisavel, porquanto o mormo e o typho, doenças contagiosas, o mais que é possivel, são ainda assim capazes de se desenvolver debaixo da influencia de condições exteriores.

Não devemos admirar que a phthisica seja uma doença contagiosa apesar d'uma tal quali-

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dade se não ter descoberto ha mais tempo. Que tempo estiveram deslocadas, fora da classe das doenças contagiosas, onde a sua collocação é in­questionável, o mormo, o cholera, e a febre ty-phoide? E sempre necessário o estudo, as expe­riências, e as discussões para que alcancemos uma maior ou menor parte da verdade.

Eu disse no principio d'esta resumidissima discussão sobre a contagiosidade da phthisica que o contagio poucas vezes dava conta do ap-parecimento da tuberculose; todavia, não quero que estas phrases sejam interpretadas, dizendo que o contagio é causa d'esta doença apenas em '/soo ou em í/iooo dos casos.

O contagio é a regra nas fecundações opera­das por individuos tuberculosos, caso a doença d'estes seja geral; ora, sabendo nós quão grande é o numero de individuos que são tuberculosos porque os pães o eram, facilmente avaliaremos que este modo de propagação da moléstia se não pôde dizer muito raro. Afora estes casos incon­testáveis de transmissão por contagio, quantos outros se operam por uma cohabitação prolon­gada, quer dependam da absorpção pela pelle e pelas mucosas dos liquidos orgânicos que tantas vezes ahi se encontram no momento em que o contacto dos dous individuos é mais intimo, quer mesmo pela absorpção pulmonar dos princípios de eliminação que reciprocamente os individuos expellem e inspiram?

Embora estes casos sejam controversos, en­volvem, ainda assim, um grande numero de prin­cípios práticos.

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Eu penso que muitos indivíduos se tornam phthisicos em consequência de respirarem por muito tempo a atmosphera viciada pela exhala-ção pulmonar d'um tuberculoso, especialmente nos últimos periodos da doença; e quem, racio­nalmente poderá deixar de admittir este modo de pensar, sendo certo que entre os productos ex-pellidos vem no estado gazozo parte dos líquidos formados nas ulceras dos tubérculos, e mais certo ainda que os productos tuberculosos, sendo ab­sorvidos e levados pelos lymphaticos, dão logar á formação de lesões em tudo idênticas áquellas que lhe deram origem?

As experiências de Villemin foram de grande alcance em pathologia e deram-lhe direito a que o colloquemos entre os grandes reformadores da phthisiologia.

Sendo a phthisica considerada pelos patholo-gistas como uma doença geral e entendendo-se por esta expressão todo o estado mórbido que modifica tanto a parte estática como a parte dy-namica dos elementos d'uma organisação, facil­mente se concebe a possibilidade de propagação d'uma tal doença, em virtude daintroducção n'um organismo são de principios cujo modo de viver se acha modificado por tal forma que merecem o nome de phthisicos. Assim, a propagação da phthisica pela absorpção do suor, se não é fácil, algumas vezes se deve realisar.

Muito me falta dizer ainda sobre a contagio-sidade da phthisica; como porém uma tal expo­sição me roubaria o espaço, que com direito per­tence a outros assumptos, cuja importância é por

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todos reconhecida, e cujo estudo não posso eli­minar sem deixar de corresponder á épigraphe do meu trabalho, eu julgo conveniente reservar-me para desenvolver o que falta no acto da defeza d'esta dissertação e passar a tratar d'outros pon­tos que, com toda a razão devem ser desenvol­vidos a propósito da pathologia geral da phthi-sica.

A phthisica será sempre uma doença geral ou poderá ser local como a syphilis e algumas ou­tras doenças e tornar-se mais tarde geral ou ainda ser debellada por um tratamento local enérgico em periodos que precedem a sua generalisação?

Eu penso que esta doença é um grande nu­mero de vezes local, limitada a todo ou a parte do pulmão e curavel já pelos esforços naturaes, já pela combinação d'estes com os meios hygie-nicos.

O processo empregado pela natureza na cura da tuberculose local é em regra a cretificação do tubérculo, o que se observa em um grande nu­mero de casos.

Segundo estatisticas de Boudet as concreções e as cicatrizes pulmonares encontram-se em 9/u dos individuos que morrem dos 15 aos 60 annos, observando-se raras vezes antes dos 15, e mais ainda antes dos 3. M. Guillot diz-nos ter encon­trado nos Vs, pelo menos, dos pulmões dos ve­lhos, vestígios incontestáveis d'uma affecção tu­berculosa antiga. Em 1:000 mulheres abertas por Beau, 157 tinham cicatrizes características no vértice dos pulmões.

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Na antiguidade muitos medicos tinham já mencionado as lesões pulmonares de que agora me occupo; assim, Aristóteles refere-se a cálcu­los que muitas vezes appareciam nos pulmões das victimas que eram offerecidas em sacrifício aos deuses. Skenk deixou uma extensa descri-pção d'estas matérias calcareas. Galeno, Alexan­dre de Tralles, Paulo de Egina, Fabricio de Hil-den, também observaram muitas concreções pul­monares. Morgagni e Boerhaave referem idên­ticas observações. Bayle observou tantas vezes as concreções pulmonares que descreveu uma nova espécie de phthisica a que deu o nome de calculosa e que occupa um logar na sua classifi­cação d'elle.

Muito modernamente Rogée, encarregado em 1838 do serviço interno d'uma das enfermarias de medicina da Salpetrière, procedendo a nume­rosas necropses, encontrou em 100 velhos, 51 casos de transformações calcareas.

O conhecimento que tenho dos factos que acabo de referir faz com que eu julgue que a tu­berculose local é uma doença frequentíssima e mais curavel do que outra qualquer.

Alguém objecta que as concreções não foram tubérculos; porém, vendo nós que a sua sede é a mesma que a d'estes e que quando coexistem tubérculos e concreções se vêem núcleos tuber­culosos no meio dos quaes encontramos materia cretácea isolada ou reunida pelo ponto mais cen­tral, pouca duvida nos pôde restar no espirito de que as concreções são apenas transformações dos tubérculos.

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- 56 -Talvez que me perguntem como se pôde com­

binar o apparecimento espontâneo da tubercu­lose no pulmão, a sua natureza virulenta, a sua não generalisação e a sua cura tão completa a ponto de mais tarde nada baver que indique a sua passada existência. Pelo que diz respeito ao seu apparecimento no pulmão d'um modo appa-rentemente espontâneo, eu reservo as devidas explicações para a ultima parte do meu traba­lho quando emittir a minha opinião relativa­mente á causa da tuberculose.

A sua virulência, não generalisação e cura dão-se effectivamente; se alguém julgar estes fa­ctos irreconciliáveis, eu citarei a syphilis para provar que entre elles não ha incompatibilidade: um cancro molle de que um individuo é porta­dor, (que enxertado n'outro dá logar á infecção, provando por este facto a sua virulência) pôde não se generalisar, do que ha immensos exem­plos, e ser curavel, do que diariamente vamos provas.

Eu bem sei que se pôde objectar que o can­cro em questão não é de natureza virulenta ou que sendo'0 deu logar á infecção : ainda assim, a sua inoculação n'outro individuo seguida, de generalisação, prova a sua natureza virulenta; a sua cura por um tratamento meramente local, a ausência de todos os symptomas que caractéri­sant a infecção syphilitica, o não apparecimento de manifestações secundarias, etc., etc., demons­tram a sua não generalisação.

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A phthisica reconhece muitas vezes por causa a herança; n'isto todos os pathologistas concor­dam; quanto á frequência d'esta causa ha, por agora, suas duvidas.

Que ella não é infallivel dizem-o os factos; que a sua influencia só se possa demonstrar em '/to dos individuos filhos de tuberculosos ou em V«, segundo pretende Piorry, acho-o muito possível, tanta é a importância que Louis *e Piorry mere­cem n'este como em muitos outros assumptos, e tão fácil é dar a explicação d'estes factos segundo as ideas que professo em phthisiologia.

Ignora-se se a frequência do lado do pae é maior que do lado da mãe e vice-versa ; no en­tanto, o que é fora de duvida é que, se os filhos teem algumas probabilidades de escapar á phthi­sica quando só um dos seus progenitores era af-fectado, quasi que podem despersuadir-se que terão uma longa vida quando a tuberculose existe em ambas as linhas. Todavia, mesmo n'este ul­timo caso a herança não é fatal, o que felizmente demonstram alguns exemplos.

Segundo as ideas que perfilho em phthisiolo­gia todos estes factos que a sciencia aponta são de facillima explicação: assim de dous individuos tuberculosos pôde nascer um ente não tubercu­loso, porquanto é possivel, ainda que rara, a coincidência de ambos terem phthisicas locaes, ou tendo a mãe uma phthisica local e o pae uma phthisica geral, não se dar a inoculação; d'uma mãe com uma phthisica geral, e d'um pae com uma phthisica quer local, quer geral, nasce ir­remediavelmente um ente tuberculoso, porque

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sendo geral a phthisica da mãe o ovulo acha-se tuberculoso desde antes da fecundação; d'uma mãe com uma tuberculose local e d'um pae com uma tuberculose geral pôde nascer um ente tu­berculoso ou não tuberculoso conforme a inocu­lação se deu ou não se deu.

Attendendo á frequência da phthisica local facilmente se achará a razão de eu dizer que as estatísticas de Louis e Piorry eram possiveis.

Os descendentes de tuberculosos adquirem probabilidades de escapar a esta terrivel affec-ção na razão directa da edade; quer isto dizer que a transmissão da phthisica por contagio do pae ao gérmen ou da mãe ao mesmo por conti­nuidade de tecido, manifesta n'este os seus effei-tos com mais facilidade aos dous que aos três annos, aos três que aos quatro, aos quatro que aos cinco e assim successivamente. Um indivi­duo filho de tuberculosos e que chega aos vinte e cinco annos sem signal nenhum de phthisica, tem mais a recear a tuberculose adquirida do que a hereditaria.

A phthisica será uma diathese? Não o sei. Existirão effectivamente diatheses? Ignoro-o. Que será uma diathese, caso lhe concedamos existên­cia? Eu pela minha parte não me acho com for­ças de responder ; tenho a franqueza de confes­sar que, apesar de ter lido bastante sobre tal as­sumpto ainda não alcancei o fim a que sempre tenho mirado.

Se me perguntarem o que Bouchut, Barthez,

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- 59 -Chauffard, Savignac e vários entendem pelo ter­mo, diathese eu não terei a menor duvida em res­ponder, caso a minha memoria me não seja infiel, noto simplesmente que a palavra é etymologica-mente mal empregada; se, porém, me pergunta­rem apenas o que se deve entender por diathese, eu responderei sem preâmbulos «não sei».

Não se altere, comtudo, este meu modo de vêr e não se diga que eu nego a existência ás diatheses; longe de mim tal idéa! Era atrevi­mento indesculpável ser dito por quem tão pouco engenho deve ao creador, por quem tão curta tem a sua carreira de estudo, que não existem diatheses quando os talentosos e estudiosos me­dicos lhe admittem existência.

O que é extremamente natural é que eu que sou principiante na materia não saiba o que é diathese, e nada admira que tenha a curiosidade e boa vontade de saber o que isso vem a ser; eis em ultima analyse as razões que me levam a fa­zer estas insignificantes considerações.

Eu, se por um lado confesso que não sei o que é diathese, também não posso deixar no ol­vido que me assiste o ardente desejo de ser o primeiro a sustentar a realidade das diatheses e a desenvolver um tal assumpto quando um afor­tunado estudo me tenha feito saber o que se deve entender por esse termo que a cada passo en­contramos nos livros de medicina.

Não se pense que eu trago para aqui esta questão para fazer espirito; sinto-me com forças de bem avaliar o ridículo que sobre mim cahi-ria se tal passo desse; outrosim, apenas faço esta

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advertência aos pessimistas interpretadores dos escriptos alheios; se trato d'um tal assumpto é apenas com o fim de resolver difficuldades que eu só não posso superar, com o fim de aprender o que não sei e vêr se de mim posso fazer um elemento de progresso para a sciencia.

Na epocha em que por obrigação decorei « ipsis verbis», as definições que de diathese dão Bou-chut, Savignac e outros nem uma difficuldade encontrei; foi-me até fácil decoral-as; não me ap-pareceram obstáculos em comprehendel-as por­que os não procurei.

Hoje que eu quero não só saber como os dif­férentes pathologistas definem diathese, mas com-prehender bem o que por esta expressão se deve entender, vejo-me rodeado de grandes embaraços.

N'esta conjunctura consultei os mestres, e de­pois de algum trabalho infructifero posso dizer sem grande exagero que o numero de definições différentes que de diathese se acha escripto nos compêndios clássicos é approximadamente igual ao numero dos pathologistas.

D'esté facto único, para mim de grande im­portância, inferi que diathese era apenas uma ficção, uma hypothèse polymorpha.

Não contente com a conclusão por me pare­cer que os pathologistas referem o termo dia­these a um estado real e não ficticio, consultei condiscípulos e contemporâneos, e com despra­zer o digo, tive de ficar após a segunda tentativa na berlinda da escuridão e da duvida.

Em vista de taes resultados resolvi tratar a questão «á racione».

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A palavra diathese, tomada no sentido ety-mologico exprime disposição, e é n'este sentido que Aristóteles a define na sua metaphysica. Na medicina era o estado do corpo tanto hygido como mórbido ; de modo que a saúde era uma diathese, um estado, uma disposição em que as funcções se exerciam regularmente, e a doença era um estado, uma diathese, uma disposição em virtude da qual as funcções se não executavam normalmente.

A palavra diathese figurava com tão bom di­reito na physiologia como na pathologia; e as­sim devia ser.

Com o tempo, porém, foi-se restringindo o termo diathese e presentemente seria um crime de lesa-sciencia estampal-o n'uru compendio de physiologia.

Em sentido figurado tem sido o termo diathese definido de mil maneiras. Dioscorides toma a diathese no sentido da lesão, e muitos outros me­dicos antigos a tomaram como synonyma de doença complicada. Bordeu confunde a diathese com a cachexia. Brown admitte apenas duas diatheses==a sthenica e a asthenica=. Para Jonh Frank a diathese representa as condições mór­bidas que dão ás doenças uma physionomia es­pecial.

Piorry confunde muitas vezes a diathese com a predisposição, e muitas outras a toma como um estado geral da economia que precede uma doença determinada, que para ella predispõe e que influe na sua marcha, duração e recahida.

Montpellier diz que diathese é uma aífecção

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do principio vital. Paris pretende que é uma al­teração humoral. Bouchut diz ser uma alteração do fermento seminal e mais tarde do sangue.

Difficil e árdua seria a tarefa se tivesse de di­zer, o que Chomel, Savignac, Castan, Baitmé Monneret, Requin, Hardy Behier e muitos Ou­tros entendem por diathese.

Não fazendo entrar em linha de conta as de­finições antigas e as systematicas exageradas, e avaliando apenas pelas mais modernas e sen­satas e por tudo o que tenho ottvido dizer aos mes­tres, eu direi que diathese ou é uma doença geral ou um estado tal que dá uma feição especial ao modo de manifestação clinico e anatomo-patho-logico d'uma doença, que lhe regula a marcha e a duração e que exige por qualquer modo que a doença se manifeste um tratamento sempre idêntico.

Ora, no primeiro caso quer-me parecer que o termo diathese se não pôde sustentar em medi­cina, porque além de etymologicamente mal ap-plicado, vem lançar a confusão na nosologia; pois se algumas doenças geraes tem nomes especiaes porque razão denominaremos as restantes com um termo cuja accepção ainda não está definida?

No segundo caso, que é o mais geralmente adoptado, tanto se deve chamar diathese a um es­tado mórbido como hygido, porque qualquer d'el­les é capaz de dar logar aos mesmos phenome-nos. Se além d'isto attendermos a que hoje se admitte que ha organismos doentes e não orga­nismos com doença, a que em physiologia se não pôde admittir uma saúde typo, mas unia saúde

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para cada individuo, a que não dous entes com­pletamente iguaes, a que tanto a saúde como a doença varia d'um para outro, tomando cara­cteres tão différentes quão différentes são os in­divíduos em questão, e finalmente a que tão es­pecial é uma ferida de causa traumatica n'um individuo syphilitico, como n'um individuo san­guíneo, quer pela duração e marcha, quer pelo tratamento e recaliidas, somos levados a admit-tir para cada sêr um estado de difficil definição, mas que o caractérisa physiologica e pathologi-camente.

Se isto é o que se deve entender por diathese, todos os indivíduos teem a sua diathese; não ha duas diatheses iguaes pela simples razão de hão haver dous indivíduos iguaes.

Em tal caso diathese é um termo tão gené­rico como vida e eu nunca o empregarei, porque em qualquer direcção que eu dirija o meu estudo no campo da medicina, eu parto tanto do prin­cipio de que o objecto das minhas investigações está vivo como que está diathesieo.

Se diathese não é isto, eu não sei então o que é; o mais que posso dizer, é que diathese é uma cousa que por muito varias e mesmo oppostas maneiras se tem definido, para em ultima analyse ser aquillo que a cada um (medico) apraz.

A maior parte dos pathologistas não se can-çam em dizer que a diathese é um estado mór­bido; comtudo o nosso contemporâneo Jaccoud põe-nos em grandes duvidas a tal propósito. Se­gundo a sua opinião d'elle, tudo o que enfraquece a organisação ê causa da phthisica; os individuos

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lymphaticos em quem o sangue ê relativamente menos, são naturalmente fracos e se elles não são capazes de se tornar tuberculosos por esse único facto, elles resistem muito menos ás cau­sas depauperantes: uma fraqueza geral entra­nhada n'um organismo constitue um estado dia-thesico «a phthisica». Attentemos bem n'este modo de vêr de Jaccoud: uma fraqueza geral é uma diathese, é a phthisica; um temperamento lymphatico exagerado, visto que coexiste sem­pre com uma fraqueza constitucional não é me­nos uma diathese.

Por outro lado Graves diz: o predominio do systema lymphatico dá o lymphatismo: o lym-phatismo em grau elevado é a diathese escrofu­losa; a phthisica é a escrófula do pulmão: con-seguintemente o temperamento lymphatico é uma diathese em miniatura. Ora, se o temperamento lymphatico é uma diathese porque dá engorgi-tamentos ganglionares, escrófulas e tubérculos, porque razão não diremos o mesmo do tempera­mento sanguíneo, pois que é origem d'inflamma-ções, congestões sanguineas, hemorrhagias, etc., etc?

E porque não diremos o mesmo de todos os outros temperamentos, e mesmo de cada indivi­duo em particular? Se ha uma diathese de fra­queza, também deve haver outra de força, outra nervosa, uma terceira biliosa, ainda a diathese de Pedro, a de Paulo, a de Sanches e a de Mar­tinho.

Quem chama diathese a uma fraqueza consti­tucional e quem faz consistir a phthisica n'uma

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debilidade orgânica, diz que a phthisica é uma diathese; assim o faz Jaccoud. Graves, porque defende as ideas que já patenteei não vacilla em fallar da phthisica como doença diathesica.

Alguns pathologistas mostrando ou explicita ou implicitamente que ignoram a natureza da doença, ainda assim concedem-lhe o caracter dia-thesico pelo facto de se transmittir por herança; para estes, eu apenas lembrarei que o tempera­mento sanguíneo também se transmitte por he­rança e muitas outras cousas.

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Largas vão já as considerações sobre a patho-logia geral da phthisica sem que eu tenha emit-tido a minha opinião com relação á sua causa.

Rejeitei a opinião d'aquelles que pretendem que a phthisica é effeito da tuberculose; não con­cordei com a auctorisadissima opinião de Gra­ves relativamente á identidade de natureza da escrofulose e da tuberculose; pareceu-me que os climas, edades, sexos e profissões modifica­vam o apparecimento ou a marcha da phthisi­ca, como modificam outra qualquer doença, mas que não eram a sua causa.

Demonstrei que a opinião sustentada por Hu­ghes Bennet, Beau, Turnbull, Rokitansky, Mar­tin Paine, Wirchow, Jaccoud, Grisolle, Brunett e mais um grande numero de pathologistas, de que as dyspepsias, o mau alleitamento qualitativo ou quantitativo, a applicação intellectual precoce ou forçada, os trabalhos excessivos, a insuffi-ciencia da alimentação, as prenhezes muito ap-

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proxhnadas, os alleitamentos muito prolongados ou muito frequentes, eram causa do emmagre-cimento, mas não da tuberculose.

Fiz vêr que Q contagio era apenas uma causa limitada da doença.

Concedi que a herança é bastantes vezes a causa da phthisica.

Apesar de tudo isto ainda não disse qual a causa de tão mortífera doença; nem é fácil dir zel-o. É este o ponto delicado do estudo d'esta doença; parece-me que se tem attribuido a phthi­sica a tudo menos áquillo de que ella é effeito; está talvez tudo dito menos a verdade.

Por infelicidade da humanidade nem eu nem ninguém sabe qual a causa da tuberculose ad­quirida.

Está, segundo penso, bem apreciada a in­fluencia que a maior parte das circumstancias que nos rodeiam teem sobre a tuberculose, mas o que me parece que ainda não está resolvido £, anal 6 a potencia ou causa, que ella, que só, pro­duza a phthisica.

Todos fazem as suas tentativas para decifrar este x, já tomando em consideração este ou aquelle facto, já raciocinando por esta ou por aquella forma, e eu não farei excepção a esta re­gra.

Para mim, um facto que deveras me faz im­pressão é a phthisica não existir d'uma certa al­tura para cima ; também acho bastante attendi-vel a frequência relativa da phthisica nas cida­des; n'estas, nas ruas mais mal ventdadas, e ainda aqui nas ca sag e salas aonde a atinosphera

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é menus normal. Vèjo igualmente que a porta por onde a phthisica é adquirida, é em regra ù pulmão.

A confrontação d'estes factos parece dizer-me que é na atmosphera qtie devo procurar a causa da phthisica; umá alteração do ar seja ellá qual fôr é sem dUvida á causa da tuberculose. Um individuo que come pouco mas que respira um ar puro, morre de fome ao cabo d'um período de tempo mais ou menos longo e que está depen­dente do gasto physiologico do individuo por um lado e por outro da quantidade de alimentos; um outro individuo, irmão d'esté no corpo e no espirito, tomando a mesma quantidade de ali­mentos, mas respirando uma atmosphera viciada moírérá phthisico.

É bom* termos sempre em vista esta idéa theo-rica que a causa dà phthisica entra na nossa or-ganisação de mistura com o ar que respirámos. Fugir das salas das prisões, dos hospitaes, dos grandes salões de baile, de todos os logarès em-fím onde não vejamos garantia a uma boa reno­vação d'ar para respirarmos, ê o melhor meio de evitar a phthisica.

Esse quid que entra de mistura com o ar de que natureza será? Não é fácil dizel-o. Penso, comtudo, attendendo ás leis de antagonismo que parecem existir entre as febres intermittentes e a phthisica, que um tal principio sendo destru-ctivel pelos miasmas palustres, deve ser de na­tureza orgânica. Eu creio igualmente que a in-troducçâo de pequenos corpos inorgânicos pôde ser a causa da phthisica; indo embaraçar a cir-

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culação n'um ponto fazem com que a atmosphera intersticial que presidia a uma boa nutrição se vicie e dê logar a productos orgânicos capazes de gerarem a phthisica.

Sendo a phthisica uma doença que qualquer individuo pôde alcançar porque a atmosphera em que vive se acha infectada, tem por certo o direito de ser denominada infecciosa e pelo fa­cto de, depois de constituida ser transmissivel por inoculação, como a variola, ella é contagiosa.

Conseguintemente, eu sou d'opiniao que a phthisica é uma doença infecto-contagiosa que reina endemicamente em todos os logares onde os individuos respiram um ar impuro.

Eu sei bem quão arrojada é esta minha opi­nião; como, porém, este ponto da pathologia está envolvido nas mais densas trevas sempre pare­cem arrojadas e temerárias quaesquer tentativas que se façam tendentes a derramar luz n'este assumpto.

As diversas opiniões que, pelos compêndios de pathologia, encontramos, envolvem em si tanta audácia e excentricidade como a minha.

Não saber é próprio do homem. Tentar é sempre louvável.

FIM

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PROPOSIÇÕES

1." Anatomia. As anomalias musculares são frequen­tes no homem, e correspondem quasi sempre a uma disposi­ção normal dos músculos nos animaes mais visinhos.

8." Physiologia. A nutrição dos ramos terminaes do nervo lingual está physiologicamente dependente da corda do tympano.

3." materia medica . Os sulfitos alcalinos teem, em grau mais subido que outro qualquer agente, propriedades anti­gangrenosas.

4L.' Pathologia geral. Nenhuma das definições dadas de diathese me parece satisfatória. ■

5.a Operações. 0 resultado d'uma operação depende

mais das condições individuaes e do ambiente do que do pro­cesso operatório.

6.a Patnologia interna. A analyse chimica da ou­

rina é um meio tão precioso para avaliar a febre como o pró­prio thermometro.

*.* Anatomia pathologica. A fibrina é um detrito regressivo dos tecidos que se consomem.

8.a Partos. Na applicação do forceps prefiro a intro­

ducção do ramo superior em primeiro logar. 9.

a Medicina legal . A combustão humana espontânea é uma fabula.

Approvada. Pode imprimir­se. 0 CONSELHEIRO DIRECTOR,

P. A. Dias. Costa Leite.