breve história sobre o positivismo jurídico

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  • 8/3/2019 Breve histria sobre o positivismo jurdico

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    FACULDADES INTEGRADASANTNIO EUFRSIO DE TOLEDO

    FACULDADE DE DIREITO DE PRESIDENTE PRUDENTE

    DO JUSNATURALISMO AO JUSPOSITIVISMO:UMA BREVE HISTRIA DO PENSAMENTO JURDICO

    Rodrigo Duarte Gigante

    Presidente Prudente/SP2010

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    FACULDADES INTEGRADASANTNIO EUFRSIO DE TOLEDO

    FACULDADE DE DIREITO DE PRESIDENTE PRUDENTE

    DO JUSNATURALISMO AO JUSPOSITIVISMO:UMA BREVE HISTRIA DO PENSAMENTO JURDICO

    Rodrigo Duarte Gigante

    Monografia apresentada como requisito parcialde Concluso de Curso, para obteno do graude Bacharel em Direito, sob a orientao doProfessor Srgio Tibiri Amaral.

    Presidente Prudente/SP2010

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    DO JUSNATURALISMO AO JUSPOSITIVISMO:UMA BREVE HISTRIA DO PENSAMENTO JURDICO

    Monografia aprovada como requisito parcialpara obteno do Grau de Bacharel em Direito.

    Srgio Tibiri Amaral

    Cludio Jos Palma Sanches

    Sandro Marcos Godoy

    Presidente Prudente, 18 de outubro de 2010

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    O direito no uma simples idia, uma fora viva. Por

    isso a justia sustenta numa das mos a balana com que

    pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por

    meio da qual o defende. A espada sem a balana a fora

    bruta, a balana sem a espada, a impotncia do direito.

    Rudolf von Ihering

    Dedico este trabalho a todos aqueles que entendempela importncia e necessidade de se pensar o direito.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, encarecida e merecidamente,A todos os que, direta ou indiretamente, contriburam feitura deste trabalho.A todos os autores compulsados em minha pesquisa. Sem eles, este trabalho seria impossvel.Ao Professor Srgio, meu orientador, pela proposio de um franco dilogo, desde as nossasprimeiras conversas, pela confiana depositada neste projeto e pelo estmulo a pensar o direito. Selma, minha analista e parceira incondicional, por oferecer a base e a segurana necessriasao meu processo de crescimento, alm das racionais ponderaes e do carinhoso acolhimento. Fernanda Polycarpo, essa linda, que, mesmo distante, sempre se fez to presente, e ainda sefaz, presentificando-se em minha vida, e sempre e ainda mais, na forma mesmo de um presente.

    Ao meu irmo Alexandre, pela referncia, tantas vezes em minha vida, e pelo help final.Aos meus pais, pela minha criao e pelo auxlio, to necessrio, nesses ltimos anos.Aos meus colegas de classe preferidos: Cristiani, Leandro, Paulo e Renata, pelas estimulantesconversas acerca do direito e da vida, e tambm pela cumplicidade em todos os momentos.s Faculdades Integradas Antnio Eufrsio de Toledo, pela excelncia dos servios prestados.A todos os professores, sem exceo, que contriburam enormemente para a minha formao.Em especial, aos Professores Cludio e Sandro, por encaparem o projeto, dispondo de parcelade seus tempos, ao aceitarem meu convite para a composio da banca de avaliao.A todos os funcionrios, pela presteza, solicitude e simpatia no atendimento.Aos meus companheiros de futebol, pelos to necessrios momentos de descontrao.

    E, finalmente, e em resumo, a todos aqueles que viram o artista-filsofo-promissor, onde tantosoutros s puderam ver um msico-mercador-fracassado. Este trabalho uma minha resposta.

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    RESUMO

    Esta apreciao acadmica objetiva uma investigao histrica acerca do pensamento jurdico.Mediatamente, busca tambm uma contextualizao do Jusnaturalismo e do Juspositivismo,para efeitos crticos. A pesquisa foi exclusivamente bibliogrfica e o mtodo preponderante foio histrico, muito embora tambm outros se faam presente. que a histria foi utilizada comoum mero instrumento do pensar. Sob essa perspectiva, partiu-se da genrica conceituaoacerca das duas grandes correntes do pensamento jurdico supracitadas, confrontando-as. Emseguida, enveredou-se pela trilha do percurso histrico. J nesse intento, o trabalho foi divididode acordo com as eras histricas. E o que se observou que, no incio mesmo da civilizaogreco-romana, direito e religio eram somente uma e a mesma coisa. medida que se vaiavanando no curso da Idade Antiga, mormente pelo advento da Lei das XII Tbuas e a atuaodos filsofos gregos e dos pretores romanos, o direito se vai, cada vez mais, emancipando.

    Nesse sentido, o cristianismo acaba sendo marco essencial ao nascimento do direito, uma vezque pregava a diviso entre as coisas do cu e as da Terra. Tambm se destacou a diviso entredireito positivo e direito natural levada a termo pelos antigos. No perodo da Idade Mdia, porsua vez, ressaltou-se a importncia do Cdigo de Justiniano, em plena consolidao do DireitoRomano que lhe antecede, bem como em seu decisivo contributo ao direito atual. Alm disso,observou-se tambm a tentativa de sobreposio da Igreja ao Estado, conceitualmente calcadanas doutrinas filosfico-crists medievais (a Patrstica e a Escolstica), e alguns prenncios damodernidade (tais como a atuao dos Gibelinos, dos Glosadores e a instituio da MagnaCarta). J na Idade Moderna, percebe-se que o direito vai recuperando, e ainda intensificando, asua autonomia, devido ao desenvolvimento do antropocentrismo. Em consequncia, asdiscusses poltico-jurdicas passam a recair agora sobre as relaes entre governantes e

    governados, e no mais sobre as relaes entre Estado e Igreja. Esta vai aos poucos sendoafastada daquela discusso. Nesse intento colocaram-se as doutrinas jusnaturalistas e as suasconcepes de contrato social e de direito natural, que acabaram por instrumentalizar aRevoluo Francesa, inauguradora da Idade Contempornea. Nesse sentido, deu-se particularateno influncia do pensamento iluminista nas primeiras declaraes de direito. A partir deento, passa a reinar, quase que absolutamente, a doutrina do juspositivismo. Buscando acompreenso dessa passagem, foram analisadas as contribuies das correntes historicistas, aoposio que lhe fez o movimento codicista (em especial no tocante aprovao do Cdigo deNapoleo e infrutfera tentativa de codificao na Alemanha) e tambm a essencialcontribuio do utilitarismo ingls para o estabelecimento do juspositivismo. Findada, ento, aparte histrica deste trabalho, foram retomadas as conceituaes de jusnaturalismo e de

    juspositivismo, agora sob nova perspectiva, para efeitos crticos. Argumentou-se, pois, que ofundamento do direito jusnaturalista, em Deus, na natureza ou na razo, no se sustenta deforma alguma e diversos motivos foram apresentados. Por outro lado, argumentou-se tambmque os dogmas juspositivistas da onipotncia do legislador, da completude do ordenamento

    jurdico e da estrita aplicao lgico-sistemtica tambm no possuem mais razo de ser nosdias de hoje. Nesse sentido, conclui-se pela necessria incapacidade das duas correntes de dar oenfrentamento questo da fundamentao do direito. Ao mesmo tempo acena-se com novasvertentes do pensamento jurdico, que buscam suprir tais limitaes, seja pela via doaperfeioamento de uma delas, seja pela do parcial acolhimento de cada uma delas,mesclando-as, ou seja ainda pela via da sua dupla negao.

    Palavras-Chave: Filosofia do Direito. Histria do Direito. Jusnaturalismo. Juspositivismo.

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    ABSTRACT

    The purpose of this academic work is to accomplish a historical investigation of juridicalthinking. At the same time, it also seeks a contextualization of Jusnaturalism and Juspositivism,for critical analysis. The research accomplished was exclusively bibliographic and thepredominant method was historical, although other methods were also used. In the context,History was used as a mere instrument of thinking. From this perspective, this work startedfrom the generic conceptualization of the two great lines of juridical thinking above cited,confronting them. After that approach, a historical timeline was followed. With this in mind,the work was divided according to historical ages. It was observed that, at the beginning of thegreco-roman civilization, law and religion were intrinsically linked to each other. In the courseof Ancient Times, especially with the advent of the Law of XII Tables and the performance ofthe greek philosophers and roman praetors, the law, more and more, emancipated itself. In this

    sense, Christianity turns out to be the touchstone for the birth of law, once it preached thedivision between the things of heaven and earth. Furthermore, the division between positivelaw and natural law carried to term by ancient people was very important. During the MiddleAge, on the other hand, the importance of the Justinian Code was emphasized, in fullconsolidation of Roman Law which predates it, as well as its crucial contribution to modernlaw. Moreover, it was also observed the attempt of superposition of Church over the Estate,based on the medieval philosophical-Christian doctrines (the Patristic and the Scholasticism),and some harbingers of modernity (such as the performances of the Ghibellines, the Glossersand the institution of the Magna Carta). Once in the Modern Age, it was realized that law couldrecover itself, and even intensify its autonomy, due to the development of anthropocentrism.Consequently, the political and legal discussions occur now on the relations between governed

    and rulers, and no more between Estate and Church. This institution will slowly be removedfrom that discussion. With this intention, the jusnaturalist doctrines were developed, with theirconceptions of social contract and natural law, which contributed to the French Revolution,inaugurating the Contemporary Age. In this line, particular attention was given to the influenceof Enlightenment thinking in the first bills of rights. From then on, it will dominate, almostabsolutely, the doctrine of juspositivism. To understand this passage, the contributions ofhistoricist conceptions were analyzed, together with the opposition made by the codermovement (especially in relation to the sanction of the Napoleon Code and to the unsuccessfulattempt of codification in Germany) and also the essential contribution of EnglishUtilitarianism for the establishment of juspositivism. Once finished the historical part of thiswork, the conceptualizations of jusnaturalism and juspositivism were reviewed, now under thisnew perspective, for critical analysis. It was argued, therefore, that the foundation of

    jusnaturalist law, in God, in Nature or in reason, does not sustain itself in any way and severalreasons are presented. On the other hand, it is also argued that the juspositivists dogmas of theomnipotence of the legislator, of the completeness of the juridical order and of the strictlogic-systematic application of the law also do not make much sense today. In this direction, itwas concluded that the two lines of thinking are incapable of completely solving the problem ofthe foundation of law. At the same time, new directions of juridical thinking are presented, thatseek to overcome such limitations, either through the improvement of one of them, or throughthe partial acceptance of each, mixing them, or either through the negation of both.

    Keywords: Philosophy of Law. History of Law. Jusnaturalism. Juspositivism.

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    SUMRIO

    1 INTRODUO .................................................................................................................. 9

    2 O JUSNATURALISMO E O JUSPOSITIVISMO ....................................................... 15

    2.1 O Jusnaturalismo ............................................................................................................. 17

    2.2 O Juspositivismo ............................................................................................................. 18

    3 A IDADE ANTIGA .......................................................................................................... 19

    3.1 O Direito e a Religio ..................................................................................................... 193.2 A Lei das XII Tbuas e o Cdigo de Slon .................................................................... 21

    3.3 O Direito Natural na Filosofia dos Gregos ..................................................................... 23

    3.4 A Antgona de Sfocles .................................................................................................. 26

    3.5 O Direito, os Deuses e o Estado ...................................................................................... 28

    3.6 O Advento do Cristianismo ............................................................................................ 32

    3.7 OJus Civile eoJus Gentium .......................................................................................... 33

    4 A IDADE MDIA ............................................................................................................ 36

    4.1 O Cdigo de Justiniano ................................................................................................... 37

    4.2 A Patrstica e a Escolstica ............................................................................................. 40

    4.3 O Partido dos Guelfos e o Partido dos Gibelinos ........................................................... 42

    4.4 Os Glosadores e a Dogmtica Jurdica ........................................................................... 43

    4.5 A Magna Carta e os Direitos Fundamentais ................................................................... 44

    5 A IDADE MODERNA ..................................................................................................... 465.1 O Antropocentrismo Renascentista e o Direito .............................................................. 47

    5.2 O Renascimento e o Moderno Pensamento Cientfico ................................................... 50

    5.3 O Estado: Governantes e Governados ............................................................................ 52

    5.4 A Doutrina do Contrato Social ....................................................................................... 53

    5.5 A Moderna Concepo do Direito Natural em Grotius .................................................. 55

    5.6 O Contratualismo Absolutista de Hobbes ....................................................................... 58

    5.7 O Contratualismo Liberal de Locke ................................................................................ 60

    5.8 A Sntese de Puffendorf .................................................................................................. 62

    5.9 O Deus dos Modernos ..................................................................................................... 64

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    5.10 A exceo em Hume ..................................................................................................... 67

    5.11 O Advento do Iluminismo e a Contribuio de Vico ................................................... 69

    5.12 A Concretude Racionalista em Montesquieu ................................................................ 71

    5.13 Rousseau: o Contrato Social por Natureza ................................................................... 735.14 A Moderna Filosofia de Kant ....................................................................................... 77

    6 A IDADE CONTEMPORNEA .................................................................................... 80

    6.1 A Filosofia da Restaurao ............................................................................................. 83

    6.2 O Idealismo Subjetivo de Fichte e O Idealismo Objetivo de Schelling ......................... 85

    6.3 O Historicismo Filosfico de Hegel ............................................................................... 87

    6.4 O Historicismo Juspositivista de Hugo ........................................................................... 91

    6.5 O Embate entre o Historicismo Jurdico de Savigny e o Codicismo de Thibaut ............ 93

    6.6 O Cdigo de Napoleo e a Problemtica das Lacunas Legais ........................................ 99

    6.7 A Escola da Exegese Francesa e o Pandectismo Alemo ............................................. 103

    6.8 O Utilitarismo de Bentham ........................................................................................... 106

    6.9 A Sntese Juspositivista de Austin ................................................................................ 109

    6.10 O Nascimento do Juspositivismo ................................................................................ 113

    6.11 O Positivismo de Comte e as suas Influncias no Direito .......................................... 114

    6.12 Ainda o Juspositivismo ............................................................................................... 118

    7 PROPOSIES CRTICAS ........................................................................................ 120

    7.1 Crtica ao Jusnaturalismo .............................................................................................. 122

    7.2 Crtica ao Juspositivismo .............................................................................................. 129

    8 CONCLUSO ................................................................................................................ 136

    9 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 139

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    1 INTRODUO

    A discusso acerca dos fundamentos do direito encontra-se em pleno descrdito.

    Em uma sociedade eminentemente prtica e imediatista, no se quer perder tempo pensando.

    Assim, mesmo no mbito acadmico, casa por excelncia do pensamento, bastante comum

    que as pesquisas venham a privilegiar justamente esse vis prtico e de aplicao imediata.

    Mormente no campo do direito. Parte-se, pois, em regra, de uma premissa qualquer, escolhida

    um tanto a esmo, meio a gosto do fregus, e sobre isso no se discute mais. A roda precisa girar.

    Para frente que se anda, de costume se dizer. O intento nem sempre malvolo, verdade,pois, em muitas das vezes, o que se busca somente evitar a paralisia a que o pensamento de

    vagar pode concluir (ou no concluir). A luva no entra na mo, contudo, e essa crtica bem

    melhor endereada aos sonhos e s utopias. No se aplica no mbito de um pensamento que se

    prope seriedade e dedicao. Ademais, o inevitvel risco do erro encontra-se a espreita em

    todos os lugares. Revela-se tanto na prxis quanto na teoria. E no direito no diferente. Em

    sentido contrrio, no obstante, pouco se apercebe que tambm muitas vezes se est a bater

    insistentemente a cabea em uma parede demasiado dura, quando bem melhor seria aelaborao de um plano que pudesse de fato remov-la. Enxuga-se muito gelo, enfim, neste

    nosso mundo. Dessa forma, a aparncia de se estar fazendo algo j o suficiente para que se

    encoste a cabea no travesseiro, de noite, e para que se durma tranquilamente, apesar de tanto

    barulho. Assim , por consequncia desse todo dito, que tambm o mundo jurdico padece dos

    mesmos males, somente que de maneira mais especfica: fala-se muito do direito em si (leia-se

    leis) e da sua aplicao prtica, mas muito pouco sobre o que o fundamenta ou lhe d

    legitimidade (ou quaisquer outras questes que exijam tempo e paciente dedicao). E foijustamente pensando nisso que se empreendeu aqui esta busca histrica acerca do pensamento

    jurdico no decorrer dos sculos. O intento eminentemente o de contextualizar o pensamento

    jurdico. buscar o que foi pensado at agora sobre o direito, em busca de subsdios para o

    pensamento jurdico na atualidade. preciso pensar o pensamento, afinal. A reflexo sempre

    foi essencial evoluo humana, e no mbito do direito no diferente. preciso, pois, pensar

    o direito e pensar o pensamento jurdico. Isso porque a discusso essencial ao direito mesmo e

    de nada adianta discutir sobre o direito em si, se no se discute sobre o que propriamente o

    direito e, principalmente, o que o fundamenta, legitima. A tarefa rdua e, sim, muitas vezes

    inglria. Isso, contudo, no deve servir para efeitos de dissuaso dessa to necessria tarefa. E

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    nesse intento especulativo, vrias perguntas podem surgir. Em que se fundamenta o direito (se

    que se fundamenta em algo)? Porque so obedecidas (quando so) as regras de direito? Porque

    devem ser obedecidas (se que devem) as regras de direito? O que, na origem da civilizao,

    justificava o direito? O que passou a fundament-lo posteriormente e porque se deram tais

    mudanas? O direito carece de legitimidade? Se no, o que o legitima? Se sim, o que o

    legitimaria? possvel essa legitimao? Como que , enfim, de se pensar o direito? Existe

    uma forma para isso? Trata-se de um tema inesgotvel, mas que nem por isso deve padecer pela

    falta de enfrentamento. E claro que essas perguntas todas no sero respondidas neste breve

    trabalho de concluso de curso de um acadmico de direito. Talvez elas nem sejam de fato,

    algum dia, satisfatoriamente respondidas. Mas no caminhar em direo a elas que se acaba por

    mover o mundo. que muitas vezes, importa bastante mais o caminho que a prpria meta.

    Assim, buscando incentivar essa discusso, mesmo que de maneira limitada,

    sobre tema de tamanha importncia, que se enveredou por essa trilha do processo histrico do

    pensamento jurdico. Para tanto, utilizou-se do mtodo histrico, principalmente, mas no se

    furtando, contudo, ao enfrentamento das indagaes de outros cunhos, tais como o filosfico, o

    sociolgico ou o jurdico, que por acaso se tenham ofertado anlise. Tambm possvel dizer

    que o mtodo indutivo e o dedutivo so utilizados aqui. Isso porque parte-se da conceituao

    ampla e genrica de o que vm a ser o jusnaturalismo e o juspositivismo, os dois grandes polos

    do pensamento jurdico, para depois buscar a sua observao no mundo factual da vivncia

    histrica. Privilegia-se, nesse intento, o mtodo dedutivo. No obstante, aps essa incurso

    histrica, volta-se ao tema inicial, referente s duas correntes supracitadas, para efeito de

    observao crtica das mesmas. Assim, privilegia-se agora, o mtodo indutivo. Por fim, ao

    acenar com as tentativas de superao dessa contradio entre essas escolas do pensamento

    jurdico, utiliza-se tambm do mtodo dialtico, em tentativa de busca por uma sntese entre a

    tese jusnaturalista e a anttese juspositivista. Tampouco o mtodo comparativo fica de foradesta preleo, pois que as diversas correntes e pensamentos individuais sero, a todo o

    momento, colocadas lado a lado, buscando-se os seus pontos de contato e de contrariedade.

    que, hodiernamente, a pluralidade metodolgica uma realidade indeclinvel no mbito da

    pesquisa acadmica. Tambm no direito. Sobre isso, observa Miguel Reale (2009, p. 84):

    Hoje em dia, no tem sentido o debate entre indutivistas e dedutivistas, pois a nossa

    poca se caracteriza pelopluralismo metodolgico, no s porque induo e deduose completam, na tarefa cientfica, como tambm por se reconhecer que cada setor oucamada do real exige o seu prprio e adequado instrumento de pesquisa. No que serefere experincia do Direito o mesmo acontece.

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    No obstante, de se afirmar que o mtodo preponderante mesmo o histrico.

    Entende-se pelo acerto do pensamento de Comte (1978, p. 3) quando afirma que [...] uma

    concepo qualquer s pode ser bem conhecida por sua histria. Ou ainda que [...] no

    conhecemos completamente uma cincia se no conhecemos sua histria (COMTE, 1978, p.

    29). Isso tudo, em especial, no tocante [...] ao estudo dos fenmenos sociais, que trata do

    desenvolvimento geral da humanidade, em que a histria das cincias constitui a parte mais

    importante, embora at aqui a mais negligenciada (COMTE, 1978, p 29). Muito embora

    tambm seja necessrio ressalvar que no se trata aqui de uma histria qualquer, mas, sim, uma

    histria da filosofia do direito. Afinal, o prprio intento final dessa incurso tambm de cunho

    filosfico, conforme j se observou. No se est a propugnar aqui, contudo, uma filosofia da

    histria do direito, nos moldes hegelianos. que, para Hegel (1999-B, p. 16), [...] em geral a

    filosofia da histria nada mais significa do que a sua observao refletida, j que a histria

    possui um sentido racional, pois dotada de Esprito. O assunto, contudo, ser mais adiante

    retomado. Mas de se deixar claro, desde j, que no esse o intento. Em comentrio sobre o

    assunto, Bobbio (2004, p. 67), infirma que, hoje, a Filosofia da Histria considerada uma

    forma de saber tpica da cultura do sculo XIX, algo j superado. O que se busca, portanto,

    enfim, uma histria do pensamento jurdico, enquanto embasamento para proposies

    filosficas. A filosofia pertencente ao mbito da cultura, artifcio humano, e no se encontra

    presa a uma necessidade histrica. Entende-se que a histria no tem um curso necessrio ao

    qual se devem adequar os homens, mas, sim, que so os prprios homens que fazem esse

    curso, por meio das suas escolhas. A observao da histria, portanto, serve, no para

    buscar-lhe o sentido, mas, sim, como maneira de se averiguar como os homens a fizeram no

    passado. Se a histria no determina o pensamento jurdico, por outro lado, instrumento de

    grande valia ao exerccio da razo. nesse sentido que Bobbio (2004, p. 44) afirma que:

    O problema filosfico dos direitos do homem no pode ser dissociado do estudo dosproblemas histricos, sociais, econmicos, psicolgicos, inerentes sua realizao: oproblema dos fins no pode ser dissociado do problema dos meios. Isso significa queo filsofo j no est sozinho. O filsofo que se obstinar em permanecer s terminapor condenar a filosofia esterilidade.

    Estes os termos, pois, em que se coloca a presente apreciao acadmica. Emresumo, pode-se dizer que a histria foi utilizada enquanto instrumento da filosofia. O mesmo

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    se d com os demais mtodos utilizados. A pesquisa foi exclusivamente bibliogrfica e

    privilegiou as obras que versam sobre a insero histrica do pensamento jurdico e tambm

    aquelas que l foram produzidas, pelos pensadores e viventes de outrora. Seu objeto: toda e

    qualquer conceituao ou abordagem, seja ela analtica ou crtica, de cunho histrico,

    filosfico, social ou jurdico, e que trate do tema-alvo da presente pesquisa cientfica, que se

    descortina desde j, a saber, o direito enquanto pensamento. Assim, o objetivo imediato

    compreender melhor o que se entende, e se entendeu no curso da histria, por jusnaturalismo e

    juspositivismo, para efeitos de clareamento da discusso sobre o assunto. Tambm se busca

    especificar os pontos favorveis e contrrios das duas correntes, contribuindo dessa forma,

    ainda que modestamente, para a superao do impasse em que parece se colocar o pensamento

    jurdico na atualidade. De maneira mediata, acaba por propiciar tambm uma maior clareza depensamento acerca do direito, contribuindo assim tambm para a sua cotidiana aplicao.

    O caminho percorrido, buscando realizar o intento inicial desta preleo, foi

    assim. Primeiramente, procedeu-se a uma anlise sobre o que se entende por jusnaturalismo e

    por juspositivismo. Iniciou-se pela conceituao dessas duas grandes correntes doutrinrias, de

    maneira a confront-las, para, logo em seguida, estabelecer as suas individuais concepes.

    Num segundo momento, iniciou-se ento o percurso histrico. De pronto, abordou-se o perodo

    da Antiguidade, desde a fundao de Roma at o pleno estabelecimento do Jus Gentium.

    Durante esse caminho, foram abordados: 1) A estreita relao entre direito e religio no direito

    primitivo, bem como as caractersticas deste ltimo; 2) A vigncia da Lei das XII Tbuas e do

    Cdigo de Slon, bem como as alteraes sociais que as propiciaram e tambm as que essas leis

    engendraram; 3) A Filosofia Grega e as suas concepes acerca do direito, em especial o direito

    natural em Aristteles; 4) A Antgona de Sfocles e a sua problemtica acerca da diviso entre

    direito natural e direito positivo; 5) As relaes entre os deuses da natureza, o direito e o Estado,

    contrapondo a viso dos Esticos e de Epicuro concepo da Filosofia Grega Clssica; 6) Astransformaes sociais ocorridas em relao ao advento do cristianismo, em especial pela sua

    influncia nas questes de Estado e no prprio direito; e, por fim, 7) A evoluo interna do

    Direito Romano, privilegiando-se a passagem do sistema do jus civile para o dojus gentium.

    Dando continuidade a esta anlise de descortino histrico, enveredou-se pela senda medieval,

    desde os antecedentes da feitura do Cdigo de Justiniano at os primrdios do Renascimento

    europeu. Em meio a estes marcos, foram destacados: 1) A importncia, os antecedentes, a

    estrutura e os efeitos do Cdigo Justinianeu; 2) As doutrinas da filosofia crist, a Patrstica, emSanto Agostinho, e a Escolstica, em Santo Toms de Aquino, e as suas concepes acerca das

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    relaes entre Estado, Igreja e o direito; 3) A oposio poltica entre guelfos (pr-Igreja) e

    gibelinos (pr-Estado), atentando-se para a obra de Marslio de Pdua e a sua antecipao da

    doutrina do contrato social; 4) A atividade dos glosadores, por meio de sua exegese dos textos

    jurdicos romanos, em prenncio da dogmtica jurdica; e, finalmente, 5) Os antecedentes dos

    direito fundamentais, tendo por principal, dentre eles, a Magna Carta inglesa.

    J no perodo da Idade Moderna, engendrou-se em um arco de progresso do

    antropocentrismo eminentemente cientfico dos modernos, iniciando-se pelo Renascimento e

    terminando no Iluminismo. Durante esse percurso, foram abordados: 1) As relaes entre o

    nascente antropocentrismo dos modernos e as suas estreitas relaes com o direito; 2) Os

    aspectos gerais do movimento renascentista europeu, destacando-se as suas ntidas pretenses

    cientificistas; 3) O novo patamar das relaes e discusses acerca dos cidados e do Estado, e a

    ausncia da Igreja nessa nova realidade; 4) A moderna Doutrina do Contrato Social em suas

    caractersticas mais gerais e principais; 5) O pensamento de Hugo Grcio, em especial no

    tocante sua moderna concepo do direito natural; 6) O pensamento do primeiro grande

    contratualista, Thomas Hobbes, que o fundou em defesa do Estado Absolutista; 7) A

    fundamentao do contrato social no prprio indivduo, enquanto cidado, em John Locke,

    buscando a limitao do poder estatal; 8) O pensamento sistemtico de Puffendorf, e a sua

    caracterstica de sntese do moderno jusnaturalismo; 9) A relao entre Deus e os homens,

    segundo os filsofos modernos, em geral e no direito; 10) A figura de David Hume, e a

    incidncia de seu pensamento de exceo entre os filsofos modernos, e j em prenncio

    contemporaneidade; 11) As principais caractersticas do movimento iluminista, bem como as

    de Giambattista Vico, um seu expoente; 12) A concreo do direito no tempo e no espao

    estabelecida por Montesquieu e a sua doutrina poltica da tripartio dos poderes; 13) A

    profanao do estado de natureza pela sociedade civil em Rousseau, e a sua compensao por

    meio do contrato social fundado na vontade geral; e, por fim, 14) A filosofia de Kant, auge doIluminismo, mormente em suas investigaes acerca do conhecimento, da moral e do direito.

    Por fim, foi devidamente abordada a Idade Contempornea, que se inicia pelo

    advento da Revoluo Francesa e se protrai at os dias de hoje, especialmente no tocante s

    implicaes jurdicas de tal passagem. Nesse intento, destacou-se: 1) A tentativa de restaurao

    das antigas concepes, por meio da crtica aos ideais jusnaturalistas e prpria revoluo; 2) O

    evolucionismo da filosofia alem, por meio do desenvolvimento do Idealismo Alemo, em

    Johann Fichte (subjetivista) e em Friedrich Schelling (objetivista); 3) O pensamentoobjetivamente idealista, e eminentemente historicista, de Georg Hegel, e as suas implicaes no

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    campo do direito; 4) A contribuio de Gustav Hugo ao historicismo e ao juspositivismo; 5) O

    Historicismo Jurdico, sobretudo pelo contributo de Friedrich Savigny, e, em especial, no que

    se refere sua contenda contra o movimento codicista, representado por Anton Thibaut; 6) O

    processo de aprovao do Cdigo Napolenico, a sua vedao ao juzo de non liquet, e a

    consequente problemtica acerca das lacunas de lei; 7) O estabelecimento da legalista Escola da

    Exegese, na Frana, e da Escola Pandectista, na Alemanha, destacando-se as suas principais

    caractersticas; 8) A filosofia utilitarista de Jeremy Bentham, bem como o seu ideal codicista e

    a sua crtica common law na Inglaterra; 9) A fundao do positivismo jurdico, por meio da

    incidncia do sinttico pensamento de John Austin; 10) O nascimento do juspositivismo na

    Europa e, em especial, na Frana, na Alemanha e na Inglaterra; 11) O Positivismo de Auguste

    Comte, a criao da sua Fsica Social, bem como as suas influncias no campo do direito; e,finalmente, 12) Algumas ltimas consideraes acerca do juspositivismo.

    Finalmente, buscando concretizar aquele primeiro intento filosfico, foram

    efetivadas algumas proposies crticas s duas principais correntes do pensamento jurdico.

    Num primeiro momento, tomou-se as duas de maneira conjunta, buscando destacar-lhes os

    pontos de ligao e os de contrariedade. Ressaltou-se, nesse intento, que a ordem e a justia

    devem ser vistas como parte de um todo, que o prprio direito, e trabalhadas sempre de

    maneira conjunta e inter-relacionada. Argumentou-se tambm que tal aparente contradio

    entre esses dois conceitos (ordem e justia) deve-se justamente a uma ciso promovida tanto

    por jusnaturalistas quanto por juspositivistas no decorrer do processo histrico. Num segundo

    momento, passou-se ento a crtica individualizada do jusnaturalismo e as suas fundamentaes

    do direito em Deus, na natureza das coisas (e humana) e na razo natural. Nesse intento,

    buscou-se demonstrar a inconsistncia de tais fundamentos, no obstante a importncia que

    tiveram os jusnaturalistas no curso histrico do pensamento jurdico, em franco contributo sua

    evoluo. Logo em seguida, buscou-se o mesmo com relao ao juspositivismo, que, fundadoexclusivamente no texto de lei, tambm engendrou em excessos e inconsistncias. Se, por um

    lado, contribuiu para uma autonomia nunca antes vista com relao ao direito, por outro,

    acabou por deixar outros aspectos importantes para o lado de fora da porta. Por fim, concluiu-se

    pela predominncia do juspositivismo na sociedade atual, embora no de maneira pacfica. Isso

    porque aquela primeira viso mais estrita e radicalmente legalista possui ainda muita fora nos

    dias de hoje, o que no desejvel, necessitando de superao. Essa tentativa, contudo, no se

    deve dar por meio de um retorno ao passado jusnaturalista. Outros aspectos do juspositivismo,contudo, foram tomados como sendo ainda nascentes, devendo ser, portanto, estimulados.

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    2 O JUSNATURALISMO E O JUSPOSITIVISMO

    Parte-se da constatao inicial de que, grosso modo, duas grandes correntes de

    pensamento acerca do direito se destacam, tanto no percurso temporal histrico, quanto at os

    dias de hoje: o jusnaturalismo e o juspositivismo. Diversas outras correntes h, conforme se

    ver no curso desta apreciao acadmica, embora, todas elas, em maior ou menor grau, na

    parte ou no todo, acabam por se colocar num destes dois plos, mais amplos e genricos. Os

    jusnaturalistas sustentam a existncia de um direito natural, que seria a base e o fundamento do

    poder coercitivo do Estado, que, do contrrio, seria ilegtimo. Os juspositivistas entendem que odireito positivo, elaborado pelo Estado, na conformidade de seus procedimentos,

    auto-suficiente no tocante a sua legitimidade, sendo, de fato, o nico direito existente. No

    obstante a hodierna prevalncia do juspositivismo, e da resistente oposio que insiste em lhe

    fazer o jusnaturalismo, outras vertentes h, surgidas elas justamente no encalo do embate

    deflagrado entre essas duas proposies elementares. Basicamente de duas formas elas se

    apresentam: aquelas correntes de pensamento que buscam uma tentativa de conciliao entre

    jusnaturalismo e juspositivismo, e aquelas que, de um modo diferente, buscam justamente asuperao dessa dualidade. Estas ltimas enxergam tais posicionamentos, no mais das vezes,

    como sendo duas faces de um mesmo fenmeno. Nesse sentido, a incidncia em um de seus

    plos ocasionar, inevitavelmente, a reao do outro. No tocante essencial oposio entre

    essas duas correntes fundamentais, resume o professor Roberto Lyra Filho (2006, p. 28/29):

    Vimos que as duas palavras-chaves, definidoras do positivismo e do iurisnaturalismo,

    so, para o primeiro, ordem, e, para o segundo, Justia. Isto se esclarece bem nas duasproposies latinas que simbolizam o dilema (aparentemente insolvel) entre ambasas posies: iustum quia iussum (justo, porque ordenado), que define o positivismo,enquanto este no v maneira de inserir, na sua teoria do Direito, a crtica injustiadas normas, limitando-se ou a proclamar que estas contm toda justia possvel oudizer que oproblema da injustia no jurdico; e iussum quia iustum (ordenadoporque justo), que representa o iurisnaturalismo, para o qual as normas devemobedincia a algum padro superior, sob pena de no serem corretamente jurdicas.Este padro tende, por sua vez, a apresentar-se, j dissemos, como fixo, inaltervel esuperior a toda legislao, mesmo quando se fala num direito natural de contedovarivel. (original grifado)

    Tem-se tambm que, historicamente falando, o jusnaturalismo antecede o

    juspositivismo, visto que deita suas razes j no alvorecer da civilizao ocidental, em especial

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    no da civilizao greco-romana. A fundao de Roma, cujo incio se d no Sculo VIII a.C., por

    volta dos anos 750 a.C., ser tomada, portanto, como o marco inicial para os efeitos desta

    preleo. E justamente por causa dessa primeira incidncia do jusnaturalismo que ele ser

    primeiramente abordado. Isso porque se est a falar aqui de uma das maneiras possveis de se

    referir ao jusnaturalismo, ou seja, sendo o termo tomado em seu sentido mais amplo, lato.

    Estritamente, pode-se dizer que o termo referente a um perodo bastante mais restrito, a saber,

    o que permeia os sculos XVII e XVIII (BOBBIO, 2006, p. 20). Este espao cronolgico ser

    retomado, no seu tempo devido, no decorrer deste estudo. No , contudo, a esse perodo que se

    est referindo, mas, tambm, a todo o espao histrico que se lhe antecede, bem como algumas

    correntes que lhes so posteriores, ao se fazer o uso deste termo, cujo destrinar vem logo a

    seguir. O mesmo ocorre com o termo juspositivismo, tambm aqui tomado em sentido amplo,lato sensu, referindo-se s doutrinas que em geral entendem o ordenamento jurdico como algo

    que se legitima a si prprio, por si s, independentemente de um fundamento, qualquer seja ele,

    que se posicione alm do direito positivo. No se confunde, portanto, com aquele positivismo

    jurdico outro, mais especfico, tomado em seu sentido mais estrito, e que reinou no sculo XIX,

    de mos dadas ao positivismo de cunho filosfico e vis sociologizante preconizado por

    Augusto Conte. Tambm que, por outro lado, foi adotado justamente o termo juspositivismo

    para que no se confunda o objeto deste estudo, o positivismo estritamente jurdico, com opositivismo filosfico e a fsica social de Comte. que, a expresso positivismo jurdico [...]

    nada tem a ver com o positivismo filosfico [...] deriva da locuo direito positivo contraposta

    quela de direito natural (BOBBIO, 2006, p. 15) (original grifado). Ambos os termos,

    portanto, so aqui empregados em seu sentido mais genrico, amplo. Quando se quiser referir a

    algum dos termos de maneira mais especfica, isso ser textualmente destacado.

    Por fim, tambm de se ressaltar que, embora sejam conceitos estritamente

    ligados, e at mesmo imbricados, no h que se confundir o jusnaturalismo com o direitonatural e o juspositivismo com o direito positivo. que tanto o jusnaturalismo quanto o

    juspositivismo constituem-se, de fato, em meras tentativas de justificao e de entendimento

    acerca do direito. No so, todavia, o direito mesmo. Nessa senda, tem-se que, para o

    jusnaturalista, existem duas diferentes espcies de direito, a saber: o direito natural e o direito

    positivo. O jusnaturalismo , pois, dualista. E essa, justamente, a ideia prevalecente desde os

    primrdios da civilizao ocidental at a completa formao dos Estados de Direito,

    contemporaneamente institudos. E somente partir de ento, que se comea a desenhar umaideia contrria, e prevalecente desde ento, de que o direito natural, absoluta e simplesmente,

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    no existe. Ou, se existe, ao menos, no deve ser considerado enquanto direito vlido. O

    juspositivismo , portanto, monista. Pode-se dizer, resumidamente, que o jusnaturalista cr na

    existncia de um direito natural, mesmo que se classifique e justifique isso de diversas formas,

    conforme se ver. J de uma outra forma, o positivismo jurdico aquela doutrina segundo a

    qual no existe outro direito seno o positivo (BOBBIO, 2006, p. 26) (original grifado). Essas

    as caractersticas primeiras dessas duas grandes correntes do pensamento jurdico, sobre as

    quais, agora de maneira mais individualizada, sero tecidas mais algumas observaes.

    2.1 O Jusnaturalismo

    O jusnaturalismo uma concepo do direito, segundo a qual os seus

    fundamentos esto alm do ordenamento Estatal. Os jusnaturalistas entendem, em regra, que

    esse fundamento o prprio ideal de Justia, que seria satisfeito sempre que o direito positivo

    estivesse em conformidade com o direito natural. Este, por sua vez, origina-se, para os

    jusnaturalistas, a depender da corrente de pensamento, de Deus, da natureza das coisas ou da

    razo humana; ou, ainda, como ocorre no mais das vezes, de misturas variadas destes trs

    fundamentos. De qualquer forma, permanece um trao comum entre essas diversas concepes,

    qual seja: a crena de que o direito natural o fundamento ltimo do direito e que, justamente

    por isso, deve instruir o direito estatal, positivado, dando-lhe, pois, plena validade e

    legitimidade. O pensamento do jusnaturalista caminha nesse sentido porque espelha o

    entendimento de que: se algo decorre, como para ele se d, em relao ao direito natural, de

    Deus, da natureza das coisas ou da razo humana, esse algo uma verdade por si s. Ora, pensa

    ele, se se trata de um preceito divino, ento deve ser seguido. Ou, de outra forma, se essa a

    prpria natureza das coisas, ou do homem, como contrari-la? Ou, ainda, se a razo est a

    apontar determinado caminho, este o correto. No incomum at mesmo o pensamento, em

    espcie de unio de todos os argumentos, de que a razo leva necessariamente natureza das

    coisas, que, por sua vez, se conforma aos desgnios divinos, representando-o, j que este o seu

    construtor. Seguindo nessa trilha, tem-se que o direito positivo, se no estiver de acordo com

    algum destes preceitos, a depender da justificativa escolhida, ou ainda de uma outra que lhes

    equivalha, no ser de fato um direito verdadeiro, mas, sim, um direito errado, falso. No

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    obstante, contemporaneamente falando, mesmo aqueles que entendem pela sua real existncia,

    em regra, entendem tambm pela necessidade de aplicao do direito positivo que afronte o

    direito natural, em ateno necessria garantia da ordem e da segurana jurdica.

    2.2 O Juspositivismo

    J o juspositivismo (ou positivismo jurdico), por seu turno, uma concepo dedireito, que se contrape totalmente teoria jusnaturalista, negando-lhe, inclusive, no mais das

    vezes, a prpria existncia. Para o juspositivista, no existe qualquer outro direito que no

    aquele posto pelo Estado: o direito positivo. Em consequncia, tambm no existe nenhuma

    natureza a qual o direito se deva conformar. O direito , portanto, uma questo de escolha,

    decorre da vontade humana e da devida positivao dessa escolha. Assim, aquilo que estiver

    previsto no ordenamento jurdico estatal direito. O que no estiver no direito. No existe

    qualquer fundamento idealizado de justia a que se deva conformar o direito, pois ser justo

    exatamente aquilo que estiver juridicamente ordenado. Esse direito, ento, vlido e legtimo,

    somente por que decorre de sano estatal, pois o Estado possuidor do monoplio da

    produo legislativa. Trata-se de uma viso monista do direito, em contraposio viso

    dualista do jusnaturalismo, que entendia pela existncia de dois direitos: o positivo e o natural.

    Dentre as vrias correntes positivistas, algumas tendem mais a um estrito legalismo, sem

    qualquer observncia de outros aspectos, enquanto outros destacam caracteres historicistas

    (usos e costumes da sociedade), sociolgicos (fatos da natureza social e prevalncia do mtodo

    indutivo) ou psicologistas (interpretao dos juristas e/ou filsofos). No fim das contas,

    contudo, nenhum destes aspectos colocado acima da lei jamais. No mximo, aparecem

    enquanto fenmenos de colmatao de lacunas, para os que crem nessa existncia, ou de mera

    interpretao legal. Essas as caracterstica essenciais e gerais dessas duas grandes correntes,

    que sero, contudo, devidamente matizadas e contrastadas, na exata medida em que forem

    sendo desenvolvidas as suas devidas contextualizaes histricas.

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    3 A IDADE ANTIGA

    O objetivo desta busca historiogrfica no o de catalogar e enumerar as

    correntes filosficas do direito, que diversas so e inmeras peculiaridades possuem, cada uma

    delas. Desse modo, haveria um demasiado afastamento do tema proposto e perseguido nesta

    apreciao acadmica. Busca-se, sim, e to somente, um panorama das fundamentaes

    filosficas do direito no decorrer do processo histrico, visando detectar de que maneira elas

    acabam por interferir no conceito mesmo do que vem a ser entendido como direito e, em

    consequncia disso, na sua prpria aplicao. Trata-se de uma busca, portanto, pelo deslinde dopensamento jurdico no decorrer dos tempos. Entende-se pela correo do pensamento expresso

    por Tercio Sampaio Ferraz Jnior (1980, p. 18) quando afirma que um panorama da Histria

    da Cincia do Direito tem a virtude de nos mostrar como esta cincia, em diferentes pocas, se

    justificou teoricamente, e esse justamente o intuito. Para tanto, pina-se, maneira de um

    curador, os personagens que melhor venham a se adequar ao propsito deste trabalho, ou seja,

    os que melhor representem a linha progressiva do pensamento jurdico. Assim, buscar

    tambm o embasamento para a enunciao crtica, referentemente s duas grandes correntes depensamento jurdico supramencionadas, e que ser levada a termo no captulo sete deste breve

    estudo. Busca-se instrumentalizar, dessa forma, ainda que de maneira modesta, uma tentativa

    de superao da atual aparente contradio entre elas, esboada ao final deste estudo.

    3.1 O Direito e a Religio

    Na origem da civilizao ocidental, antes mesmo do apogeu da civilizao

    greco-romana, o direito era extremamente fusionado religio (COULANGES, 2005, p.

    206/213). Em verdade, fuso sequer o termo mais adequado, pois d a impresso de duas

    realidades distintas que se encontram unidas. Isso para ns, hoje, talvez seja verdade, mas, para

    os antigos, o direito e a religio eram to somente uma e a mesma coisa. De fato, [...] o direito

    antigo era a religio; a lei, um texto sagrado; e a justia, o conjunto de ritos. (COULANGES,

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    2005, p. 211). Trata-se de caracterstica essencial do direito primitivo e que permanece como tal

    durante toda a antiguidade greco-romana, muito embora isso se v amainando com o passar dos

    tempos, em especial pela aproximao da chamada era crist. De fato, o que ocorria ento que

    os rituais de adorao aos deuses manes (antepassados mortos, tidos como deuses e dessa forma

    adorados, tambm chamados lares, demnios ou heris), eram extremamente formalistas.

    Assim, exigiam, para a sua fiel realizao, o perfazimento de determinadas condutas

    especficas, as quais eram rigorosamente descritas e que deviam ser tambm rigidamente

    conduzidas. E as primeiras leis que existiram buscavam justamente garantir a perfeita exatido

    na execuo destes rituais. Eis o motivo por que os mesmos homens eram, ao mesmo tempo,

    pontfices e jurisconsultos: o direito e a religio se confundiam em uma s coisa

    (COULANGES, 2005, p. 207). Isso explica tambm o motivo do extremo formalismo quevigorou durante muito tempo ainda no direito romano e que, sob determinados aspectos, ainda

    que de maneira residual, persevera at os dias de hoje. Isso de tal forma, que, segundo os

    parmetros deste intenso formalismo do direito primitivo romano, se um contrato fosse

    corretamente celebrado, em sua essncia, mas erroneamente quanto a sua entoao ritualstica

    do preceito legal, o negcio no se havia de fato realizado. Era totalmente nulo.

    Noutro aspecto a ser ressaltado, tambm por causa dessa total confuso entre

    direito e religio que se supunha que tais leis eram verdadeiros desgnios divinos, e no

    propriamente dos legisladores. Assim, para os antigos, Slon, Licurgo, Minos e Numa

    puderam escrever as leis de suas cidades, mas no as fizeram (COULANGES, 2005, p. 207).

    As leis eram tomadas como j anteriormente existentes, sendo apenas reduzidas a termo pelos

    legisladores. Assim, o seu descumprimento era antes de tudo uma afronta aos prprios deuses e

    no aos homens demais. nesse sentido que Coulanges (2005, p. 209) destaca que no

    afirmao v a de Plato, de que obedecer s leis obedecer aos deuses. Essa ideia, inclusive,

    o que permite a Scrates, mesmo com a oportunidade da fuga, tomar a cicuta, submetendo-se,portanto, legislao, e, consequentemente, aos deuses mesmos. Esse teor sacro das leis

    continuou vigorando por muito tempo ainda e, mesmo na poca em que se passou a admitir

    que a vontade de um homem ou o sufrgio de um povo resultasse em lei, ainda era

    indispensvel consultar a religio, e que esta pelo menos o consentisse (COULANGES, 2005,

    p. 208/209). Ademais, essa sacralizao das leis as tornava imutveis e imprescritveis,

    chegando-se com frequncia ao ponto de conviverem regras contraditrias entre si, o que

    chegou a acontecer ainda, inclusive, com a Lei das XII Tbuas. Tampouco se pode dizer que ocdigo de Slon revogou o de Drcon, mas, sim, que a vigncia deste sobreviveu daquele. Por

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    fim, de se destacar tambm que, quanto forma, tem-se que as leis eram transmitidas, de

    incio, oralmente, em versos (carmina para os romanos) ou cnticos (nmoi para os gregos),

    sendo, em qualquer uma das formas, ritmicamente entoadas. Quando passaram a ser escritas, as

    foram primeiramente nos textos sagrados. A religio, portanto, como se v, a origem primeira

    do direito. Nesse sentido, elucidativa a preleo de Fustel de Coulanges (2005, p. 206):

    Entre gregos e romanos, assim como entre os hindus, desde o princpio a lei surgiunaturalmente como parte da religio. Os antigos cdigos das cidades reuniam umconjunto de ritos, de prescries litrgicas, de oraes e, ao mesmo tempo, dedisposies legislativas. As normas sobre direito de propriedade e de sucessoestavam dispersas entre as regras relativas aos sacrifcios, sepultura e ao culto dosantepassados.

    Contudo, o que se percebe, num engenho de anlise histrica deste perodo,

    que, aos poucos, o direito vai-se emancipando da religio. Alguns resqucios permanecem, mas

    a separao cada vez maior, provendo o direito, gradualmente, de uma dose bastante razovel

    de autonomia. dessa forma que ocorre j com a incidncia das chamadas legis regiae, que

    vigoraram em Roma, juntamente com os costumes (mores), em seu Perodo Rgio (que vai de

    sua fundao, presumida em 754 a.C. at a expulso dos reis, em 510 a.C.). que, muito

    embora seja possvel dizer, num sentido, que o direito sagrado (fas) est estreitamente ligado

    ao direito humano (ius) (VENOSA, 2007, p. 31) (original grifado), em outro, j existem essas

    duas categorias, diversas, de um mesmo e nico direito. Direito este que j no mais se encontra

    totalmente fusionado religio, como uma s coisa. Trata-se de um muito tmido primeiro

    passo, verdade, j que a estreita ligao entre eles ainda permanece. Isso porque, ainda aqui, a

    jurisprudncia [...] era monopolizada pelo colgio sacerdotal dos pontfices, que tinha o

    monoplio do ius e dofas (VENOSA, 2007, p. 31) (original grifado). No eram mais a mesma

    e nica coisa, pois, mas caminhavam ainda bem juntos, de maneira bastante simbitica.

    3.2 A Lei das XII Tbuas e o Cdigo de Slon

    A evoluo continua, no obstante, e de tal forma que, a partir de determinado

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    momento, em especial pelo crescimento e politizao da plebe romana, possvel dizer que,

    [...] o direito foi tornado pblico e conhecido por todos. No mais o canto sagrado e

    misterioso [...] que s os sacerdotes escreviam [...] O direito saiu dos rituais e dos livros dos

    sacerdotes, perdeu o seu mistrio religioso; lngua que todos podem ler e falar

    (COULANGES, 2005, p. 333). Isso acontece, muito embora a interpretao desse mesmo

    direito continuasse ainda vinculada ao colgio sacerdotal, e ainda a acontecer de maneira

    secreta (VENOSA, 2007, p. 44). Contudo, os homens j podem conhecer do direito e isso

    realmente uma grande mudana. A lei no est mais num livro sagrado. lei, no religio.

    Trata-se de um passo decisivo nesse processo de autonomizao do direito. Passo esse que foi

    dado, principalmente, pelo advento de duas leis em especial: A Lei das XII Tbuas (por volta de

    450 a.C.), em Roma, durante o seu Perodo Republicano (que vai da expulso dos reis, em 510a.C., at 27 a.C., com a fundao do principado de Augusto), e da Lei de Slon (594 a.C.), em

    Atenas. Por fim, tambm interessante constatar como essas Leis, mesmo que tenham sido o

    golpe de misericrdia no direito primitivo, ainda apresentam, em seus prprios textos, os

    supracitados resqucios daquele primeiro perodo de total fuso entre direito e religio. No

    entanto, consubstanciam-se em verdadeiros marcos na conquista pela autonomia do direito.

    Assim que a Lei das XII Tbuas, por exemplo, tinha uma de suas tbuas

    totalmente direcionada s previses relativas ao culto dos antepassados. Nela, a Tbua Dcima

    Do Direito Sacro, podia-se ler, verbi gratia, dentre outros mandamentos, este, que ditava:

    No devei polir a madeira que vai servir incinerao (MEIRA, 1961, p. 174); tambm este:

    Que o cadver seja vestido com trs roupas e o enterro se faa acompanhar de dez tocadores de

    instrumentos (MEIRA, 1961, p. 174); ou ainda este: Que no se lancem licores sobre a pira de

    incinerao nem sobre as cinzas do morto (MEIRA, 1961, p. 174). Ntidos resqucios, como se

    v, daquele primeiro direito-religio. Por outro lado, e tambm por fora dessa mesma lei, a

    emancipao do direito j comea a se prenunciar, e de maneira bastante clara. que, tambmali, via-se este outro mandamento, da Tbua Dcima Primeira, e que pregava, simplesmente:

    Que a ltima vontade do povo tenha fora de lei (MEIRA, 1961, p. 175). Tal dispositivo j

    denota uma conscincia bastante maior acerca da participao do homem e do povo nas

    questes polticas da cidade. A religio e os deuses ainda imperam, verdade, mas aqui que o

    homem comea a se reconhecer como sujeito criador de direito, mesmo que ainda timidamente.

    Um sincretismo muito prximo a este destacado na Lei romana ocorre tambm em Atenas, com

    o surgimento do Cdigo de Slon que como as doze tbuas, [...] afasta-se do direito antigo emmuitos pontos, embora em outros lhe permanea fiel (COULANGES, 2005, p. 339). Essa

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    legislao antiga havia sido consolidada por Drcon, formando as chamadas leis draconianas,

    [...] leis ditadas por uma religio implacvel, vendo em toda a falta uma ofensa divindade, e

    em toda a ofensa divindade um crime irremissvel (COULANGES, 2005, p. 338). O termo,

    no toa, virou sinnimo de severa crueldade. Assim, tambm o Cdigo de Slon um texto

    legal de transio e que propiciava uma maior publicidade ao direito. Eram consequncias,

    dentre outras coisas, de uma maior estruturao das cidades e bem como da ascenso e

    politizao da plebe, conforme j observado. Tambm contriburam para o seu aparecimento a

    perda de poder da famlia, mormente enquanto estrutura poltica, representadas pelos e

    submetidas aos seus respectivospater familiaes, juntamente com o declnio da religio do culto

    domstico. Trata-se, no fim das contas, em ambos os casos, da incipiente materializao de uma

    nova maneira de se ver o direito e as leis. Aos poucos, de maneira lenta e gradual, vai-seiniciando o desenho de uma nova concepo acerca do direito: a de que so os homens que

    fazem as leis. por isso que, a partir de ento, origina-se a concepo de que ele pode,

    inclusive, alter-las, j que as cria. Isso no se pratica ainda, pois tal noo ainda nascente,

    mas onde ela acabar por desembocar. Trata-se de um ponto essencial no repisado combate

    entre os adeptos do direito natural e os do direito positivo e ser por isso retomado mais adiante.

    que antes, na vigncia do direito primitivo, no se cogitava da distino entre direito natural e

    direito positivo, pois se entendia que a prescrio legal era algo que existia por si s, e no porcriao humana. Em consequncia, tinha-se que o desrespeito a tal prescrio era mesmo uma

    desonra aos deuses, e no aos homens demais. Agora, porm, comeam a se diversificar.

    3.3 O Direito Natural na Filosofia dos Gregos

    Se, por um lado, o direito vai-se desvencilhando da religio, e a partir da agora

    isso ocorre cada vez mais; por outro, permanece ainda muito viva na cabea do antigo a

    concepo de um direito divino, imutvel e universal, embora no mais estritamente dos deuses

    domsticos (pois agora outros deuses h, como mais adiante se v). Trata-se de um ideal ainda

    divino, mas que se coaduna perfeitamente com o ideal de justia dos gregos. Est-se falando do

    direito natural. Assim, pode-se dizer que essa justamente a sua origem. O direito, que

    anteriormente era mera prescrio religiosa, separa-se agora, pois, em direito natural, ligado

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    ideia de divindade, e direito positivo, ligado s contingncias da humanidade. Assim que, em

    Plato (427/347 a.C.), ainda se v, e em termos bastante claros, essa mais antiga ligao

    existente entre o direito e os deuses. desta forma, por exemplo, que se expressa o antigo

    filsofo no seguinte trecho, retirado de sua obraA Repblica (2007, p. 319):

    Se acreditarem em mim, crendo que a alma imortal e capaz de suportar todos osmales e todos os bens, seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos portodas as formas a justia com sabedoria, a fim de sermos caros a ns mesmos e aosdeuses, enquanto permanecermos aqui.

    Observa-se que Plato estabelece uma ligao estreita entre a justia e os deuses.

    No obstante, destaca que a prtica sbia da justia tem como finalidade, alm de sermos caros

    aos deuses, sermos caros tambm a ns mesmos. que com o florescimento da cultura grega, e

    o seu apogeu filosfico, que lhe rendeu a alcunha de bero da civilizao ocidental, a ideia de

    um direito divino por si s no mais se sustenta. Pensa-se agora com novas ideias, relativas elas

    natureza das coisas (muito explorada pelos pr-socrticos) e razo humana. Embora pouco

    reconhecidos, foram de extrema importncia nesse contexto de separao do direito primitivo

    em direito positivo e direito natural, os filsofos sofistas. Estes os primeiros a questionar a

    ligao entre o justo por natureza e o justo por lei (DEL VECCHIO, 2010, p. 16), ligao essa

    na qual no criam. Alegavam, inclusive, que, se isso fosse verdade, todas as leis seriam iguais

    (DEL VECCHIO, 2010, p. 16). Ademais, donos de uma retrica impecvel e cticos ao

    extremo, eles foram os principais adversrios de Scrates, contribuindo, dessa forma,

    decisivamente para o crescimento da filosofia como um todo (DEL VECCHIO, 2010, p. 16).

    Foi numa prtica de superao desse pensamento negativista acerca das leis, que Scrates pode

    encarar com dignidade a sua pena de morte, j que pregava que o bom cidado devia prestar

    total obedincia s leis, tanto s boas, quanto s ms (DEL VECCHIO, 2010, p. 18). Um poucomais adiante no curso da histria, j em Aristteles (384/322 a.C.), aparece, e agora com

    extrema nitidez, a distino conceitual entre: direito natural, ligado ideia de physis, [...]

    aquilo que por natureza [...] (BOBBIO, 2006, p. 15), em contraposio ao direito legal,

    atrelado ideia de thsis,[...] aquilo que por conveno ou posto pelos homens (BOBBIO,

    2006, p. 15). nesse sentido, acerca das diferenas j percebidas pelo filsofo antigo entre o

    direito natural e o direito positivo, que se destaca, juntamente com Norberto Bobbio (2006, p.

    16), o seguinte excerto da sua tica a Nicmaco (ARISTTELES, 2007-A, p. 117):

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    A justia poltica em parte natural e em parte legal. A parte natural aquela que tema mesma fora em todos os lugares e no existe por pensarem os homens deste oudaquele modo. A legal o que de incio pode ser determinado indiferentemente, masdeixa de s-lo depois que foi estabelecido.

    Assim, Aristteles diferencia um direito natural, que no pode ser alcanado

    pela vontade humana, existente por si s, e um direito positivo, que, a princpio indiferente,

    mas que, nele, uma vez tendo sido escolhida uma regra, esta deve ser seguida. Segundo o antigo

    filsofo, a regra que diz [...] que deve ser sacrificado um bode e no duas ovelhas [...]

    (2007-A, p. 117) acolhida por mera conveno, e no por natureza, mesmo que destaque a

    necessidade de seu seguimento. J as coisas relativas natureza, dentre as quais o direito (ou

    justia) natural, tambm segundo o exemplo do filsofo, tem-se que elas so tais que [...] emtoda parte tm a mesma fora (como o fogo que arde aqui e na Prsia) [...] (2007-A, p. 117).

    No obstante, Aristteles reconhece uma caracterstica de mutabilidade no prprio direito

    natural. Ainda fala em imutabilidade, quando leva em conta a tica dos deuses, mas, de maneira

    contrria, em mutabilidade, quando se fala pela tica humana. Por isso, conclama que para os

    deuses talvez no seja verdadeiro de modo algum, mas para ns existe algo que justo mesmo

    por natureza, embora seja mutvel (2007-A, p. 117/118). Persiste-se, portanto, na ideia de

    justia por natureza (direito natural), mesmo que mutante na realidade humana. Admite-se,contudo, certa antropomorfizao do ideal de justia, pois, apesar de possvel a sua

    imutabilidade no mbito divino, tida como mutvel no plano humano. Soa como introduo

    ideia de equidade, da qual Aristteles tratar um pouco mais adiante. Deve-se destacar ainda, e

    por fim, que, ainda aqui, tambm se fala em um direito natural originrio dos deuses, mesmo

    que mutante na realidade humana. Assim, mesmo aqui, no pensamento de Aristteles, muito

    embora se privilegie as caractersticas de natureza e razo como as principais do direito natural,

    persiste ainda o argumento divino. Ademais, destaca-se tambm que a prpria ideia de natureza

    no deixa de ser uma espcie de herana dos deuses, j que frequentemente se entende que so

    eles prprios os seus construtores e reitores. O filsofo finaliza, ainda e mais uma vez, com a

    ideia de separao entre direito natural e direito positivo, alvo principal deste destacamento de

    sua obra: De qualquer modo, existe uma justia por natureza e outra por conveno (2007-A,

    p. 118). Resumindo: direito que , e direito que se escolhe. Natureza e conveno. Direito

    natural e direito positivo, j devidamente delineados, em plena Idade Antiga.

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    3.4 A Antgona de Sfocles

    Endossando essa separao conceitual de direitos, existente, portanto, j na

    Antiguidade, embora, como visto, somente num segundo momento, aparece tambm a pea

    Antgona, de 444 a.C., tragdia escrita por Sfocles (496/406 a.C), em poca ainda anterior aos

    exemplos supracitados e que j possui claramente toda a temtica acerca do confronto entre

    direito natural e direito positivo. que Antgona, inconformada com a deciso do rei de Tebas,

    Creonte, de negar sepultamento ao seu irmo, Polinices, presta homenagens fnebres a este, em

    total contradita quele, por crer estar na posse de um seu direito natural de faz-lo. A penaimpingida pelos deuses para o descumprimento dessa lei divina, a saber, a obrigatoriedade de

    sepultamento e seus ritos, no momento e depois, seria a de que a alma ficaria eternamente a

    vagar. Isso porque a ausncia de terra sobre o corpo no a prenderia sua nova morada, a da

    segunda vida, e que jazia por sob a prpria terra. Assim, com o tempo, acabaria por se tornar

    uma alma perversa, cujo nico intento passaria a ser ento o de atormentar os viventes

    (COULANGES, 2005, p. 16). No se deve, portanto, olvidar da demasiada coincidncia: ela

    sustenta um direito natural, justamente naquele ponto onde nasceu o direito, atrelado liturgiafnebre. Exatamente assim ela se pronuncia, ao afirmar que, sim, ousa a desafiar o decreto de

    Creonte, ao mesmo tempo em que lhe explica os motivos (SFOCLES, 2008, p. 96):

    Sim, pois no foi deciso de Zeus; e a Justia, a deusa que habita com as divindadessubterrneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; tampouco acredito quetua proclamao tenha legitimidade para conferir a um mortal o poder de infringir asleis divinas, nunca escritas, porm irrevogveis; no existem a partir de ontem, ou dehoje; so eternas, sim! e ningum pode dizer desde quando vigoram!

    Observe-se tambm que a prpria Justia tomada por Antgona como uma

    deusa. Alm do mais, habitante do subterrneo, juntamente com os deuses manes. Fica aqui,

    portanto, bastante patente a ligao entre o direito natural, conforme proclamado por Antgona,

    e o direito primitivo, totalmente sacralizado. Antgona chama-lhe, inclusive, de direito divino.

    Alm do mais, afirma que esse mesmo direito divino no escrito (em oposio ao direito

    positivo, portanto), alm de eterno e irrevogvel. Trata-se de caractersticas tpicas do direito

    natural, conforme apregoado pelos seus mais variados cultores, desde Aristteles at a Idade

    Moderna. Segundo Bobbio (2006, p. 25), o direito positivo era o prevalecente na ocasio. Isso

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    porque Creonte, alm de optar pelo no sepultamento de Polinices, condena Antgona pena de

    morte, uma vez que ela foi a nica a desobedecer a sua ordem, fielmente obedecida por todos os

    demais. E isso bastante razovel, pois, conforme o j visto, o direito caminhou por essa poca

    num freqente processo de dissociao da religio e afirmao do seu carter poltico. Porm,

    de se observar que Antgona recusa-se obedincia, pois no cr que tal decreto seja justo. Isso

    mesmo sendo a nica a afirm-lo perante Creonte, e mesmo sendo penalizada de morte pelo seu

    ato, uma corajosa afronta ao decreto real. Isso tudo significa que a separao entre direito e

    religio no se deu ainda por completo e que, na cabea do antigo, ainda permanece bastante

    presente a ideia de ligao entre eles. Somente que, agora, j devidamente transmutada na

    ideia de direito natural. Ademais, posteriormente, embora no mais a tempo de salvar Antgona

    da morte, acaba o prprio Creonte prestando homenagens fnebres a Polinices, por temor sadvertncias de Tirsias. O que o convence, portanto, o prprio temor perante a ira dos

    deuses, seres que Tirsias, espcie de sacerdote-adivinho, sabe interpretar. Ademais, esse tipo

    de argumento foi tambm utilizado por Hmon, por Antgona e pelo Coro dos Ancios de

    Tebas. O prprio Creonte, embora agindo arbitrariamente, cria estar protegido pelos deuses ao

    dar a sua fatdica ordem. Por isso que, interpelado pelo Corifeu se no seria coisa dos deuses o

    misterioso rito fnebre prestado a Polinices (quando ainda no se sabia que era Antgona quem

    o tinha feito), responde-lhe da seguinte forma: Algum j viu deuses honrando criminosos?(SFOCLES, 2008, p. 91). Ou seja, ele prprio cria (ou pelo menos esperava isso) que os

    deuses estivessem ao seu lado nessa contenda. Ao final, porm, Creonte no escapa maldio

    dos deuses, nessa trgica e deificada histria de Sfocles. Assim que acabam por morrer, no

    somente Antgona, mas tambm a mulher de Creonte, Eurpedes, e o seu filho com ela, Hmon.

    Hmon acaba por se matar, porque no consegue suportar a dor advinda pela morte de sua

    ex-futura esposa, Antgona. J Eurpedes, mata-se pela dor da prpria morte de seu filho.

    Tambm o Coro de Ancios de Tebas, referindo-se indigna opo do homempelo mal, de um modo geral, e tambm contextualizada essa afirmao na atuao mais

    especfica de Creonte, roga o seguinte: Quando no governo, freqentemente se torna indigno,

    abjura as leis da natureza e as leis divinas a que jurou obedecer, e pratica o mal,

    audaciosamente! (SFOCLES, 2008, p. 93). O coro refere-se a leis naturais e divinas. Isso

    porque alm da necessidade do rito fnebre, eixo principal de onde decorre toda a trama, outras

    questes existem, no sentido de mobilizar Antgona em seu intuito de desobedincia. Assim,

    por exemplo, a questo da igualdade. Se Creonte presta homenagens a Etocles, porque no aPolinices, j que so irmos? Contudo, ressalta-se que, se Creonte negasse o sepultamento

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    tambm a Etocles, por acaso tambm no se lhe oporia Antgona? Afinal, essa situao

    imaginria aplacaria o ideal de igualdade, j que aos dois seria negado o sepultamento, mas no

    o de justia. Na verdade, seria mesmo uma dupla injustia, pela dupla inconformidade aos

    preceitos divinos. Imagina-se, portanto que, pelo contrrio, nessa situao, somente maiores

    motivos teria Antgona para se rebelar. Existe tambm ali, em anlise de um outro aspecto, a

    questo da democracia. Se todo o povo pensa diferentemente de Creonte, porque no ouvi-lo?

    Sobre tal, h que se destacar as advertncias de Hmon, seu filho e ento futuro esposo de

    Antgona, sobre a concordncia do povo com o ato de Antgona, no vendo nele quaisquer

    resqucios de um crime, sendo que [...] a cidade inteira lamenta o sacrifcio desta jovem [...]

    Por acaso no merece ela uma coroa de louros? eis o que todos dizem reservadamente

    (SFOCLES, 2008, p. 104). Esse foi o primeiro argumento, na tentativa de dissuadir Creontede sua deciso, ou seja, a ilegitimidade do no sepultamento porque em discordncia com o

    pensamento e a vontade dos cidados tebanos, que, por sua vez, gostariam de ver aplicado o

    direito divino. Este mesmo tipo de argumento j tambm havia sido utilizado por Antgona: O

    povo fala. Por mais que os tiranos sejam afeitos a um povo mudo, o povo sempre fala. Fala

    sussurrando, amedrontado, meia luz, mas fala (SFOCLES, 2008, p. 98). Embora se

    referisse ao povo inimigo, o povo de Argos, sustenta ainda mais a igualdade dizendo que em

    todo o caso, no importando o lado em que estavam, Hades exige que ambos os irmos recebamos mesmo ritos! (SFOCLES, 2008, p. 98). Assim, h que se concluir que se trata tambm de

    um argumento essencial essa questo da querncia do povo. Todavia, o que o povo quer, em

    ltima instncia, justamente a aplicao das leis divinas. Concordam com a opo de

    Antgona, de pleitear o rito fnebre a Polinices. Logo, deve-se concluir que, no fundo,

    substancialmente, o principal motor da reivindicao da protagonista mesmo o direito divino,

    extremamente ligado aos ritos fnebres da religio dos manes, e que se consubstancia, portanto,

    em essencial caracterstica desse primeiro e mais antigo direito natural conclamado.

    3.5 O Direito, os Deuses e o Estado

    Por isso que se entende que, em todas as situaes acima elencadas, do direito

    primitivo tragdia de Sfocles, passando pelas Leis da XII Tbuas e de Slon, por Plato e

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    Aristteles, existe um trao que lhes comum, a saber: a presena dos deuses, ora mais e ora

    menos, ligados prpria ideia de religio. Mesmo no discurso aristotlico, embora se esteja a

    falar em direito natural, embora seja bastante mais forte a desvinculao entre direito e religio

    a essa altura, embora tambm se privilegie o discurso pela razo humana e pela natureza das

    coisas, ainda assim, h ali muito do direito divino. Os deuses ficam a transparecer no fundo de

    tudo, enquanto fundamento de todas as coisas e como que pairando acima de todas elas. ,

    portanto, espcie de elo entre as concepes at aqui analisadas. Contudo, no demais

    observar que os deuses privilegiados nesse perodo ureo da civilizao greco-romana so

    aqueles ligados prpria ideia de natureza (deuses do tempo, dos mares, dos ventos) e no mais

    aqueles deuses manes, familiares, que eram os antepassados que haviam morrido e eram,

    somente por isso, adorados. So os deuses da natureza fsica, deuses do Olimpo, na Grcia, oudeuses do Capitlio, em Roma, mais conformes ao esprito reinante na poca. De fato, embora

    no se possa precisar, bem possvel que essa religio tenha sido to antiga quanto dos lares

    domsticos. Somente que, por suas caractersticas, demorou mais para se estabelecer. Fato

    que, a essa altura, esta religio era predominante e suplantava aquela (COULANGES, 2005, p.

    131/133). Basta observar que Antgona, nos trechos supracitados, refere-se a Zeus e a Hades.

    Este ltimo, alis, uma espcie de elo entre as duas religies j que deus da morte, o que o liga

    aos lares, e pertencente tambm ao Olimpo. De qualquer forma, a prevalncia destes deuses danatureza, s vem a corroborar o argumento de que, na cabea do antigo, se vo bastante unidos

    os deuses e a natureza. Assim tambm ocorre com o direito divino e o direito natural.

    Da mesma forma, para o antigo, tambm se ligavam por completo o indivduo e

    o Estado. que tambm este se encontrava em plena fuso com o direito e a religio no incio

    de nossa civilizao. E o at agora narrado processo de autonomizao do direito est em

    estreita ligao com o da autonomizao do prprio Estado. Logo, tambm da mesma forma, as

    concepes dos filsofos gregos acerca do Estado esto plenamente encharcadas do iderionaturista, sendo este, por sua vez, conforme j visto, impregnado dos desgnios divinos. Assim,

    Aristteles (2007-B, p. 56) ir afirmar, em sua Poltica, que, [...] a Cidade uma criao da

    natureza, e que o homem, por natureza, um animal poltico (isto , destinado a viver em

    sociedade) [...]. Entende at que o Estado anterior ao indivduo [...] uma vez que o todo

    necessariamente anterior parte (2007-B, p. 57). Assim, chega ao entendimento de que o

    Estado superior ao indivduo, sendo que este somente uma sua parte. Del Vecchio (2010, p.

    25) traduz o entendimento de Aristteles como se segue: Vale dizer: como no possvelconceber, por exemplo, uma mo viva separada do corpo, assim no pode o indivduo,

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    propriamente, pensar sem o Estado. O indivduo, portanto, no pertence a si prprio, mas

    Plis, ou seja, ao Estado. E tambm o direito se liga a isso tudo, uma vez que [...] a justia o

    liame entre os homens nas Cidades, pois a administrao da justia, a qual a determinao do

    que justo, o princpio da ordem na sociedade poltica (ARISTTELES, 2007-B, p. 57). o

    que permite, pois, essa unidade dos indivduos em sociedade, ligando-os.

    No entanto, j num momento mais recente, e em total contraposio ao acima

    afirmado, coloca-se o pensamento dos esticos, que, em total desprezo s leis e aos costumes,

    propunham uma plena autonomizao do indivduo em relao ao Estado, [...] retornando

    simplicidade primitiva do estado de natureza (DEL VECCHIO, 2010, p. 30). Observa-se,

    nesse sentido, que os esticos, que tiveram em Digenes o seu maior expoente, colocam as leis

    em separado, e at mesmo em oposio, ao estado de natureza. Para eles, o estado de natureza

    no o Estado. A natureza possui as suas prprias leis e o homem partcipe, por sua natureza,

    de uma lei que vale universalmente (DEL VECCHIO, 2010, p. 31). Assim, estes filsofos

    acabam por contribuir para o alargamento do fosso entre o direito natural e o direito positivo,

    em termos conceptivos. Nesse mesmo sentido de busca por uma dissociao entre Estado e

    indivduo, e tambm contribuintes, consequentemente, para uma maior dissociao entre

    direito natural e direito positivo, coloca-se tambm a escola epicuria. De fato, [...] para

    Epicuro, o direito apenas um pacto utilitrio, e o Estado efeito de um acordo que os homens

    poderiam romper toda vez que em tal unio no encontrassem a utilidade pela qual a

    concluram (DEL VECCHIO, 2010, p. 33). Ope-se por completo, portanto, ideia de

    natureza social do ser humano pregada por Aristteles. Estado, para a escola epicuria,

    conveno, artifcio. Trata-se de um distante prenncio, portanto, como j havia tambm se

    dado com os sofistas, da ideia de contrato social, muito explorada durante a Idade Moderna. A

    possibilidade de dissoluo do Estado tambm encontra ecos na moderna doutrina

    contratualista, mormente no pensamento de Locke. Ademais, de se destacar tambm aantecipao do pensamento eminentemente utilitarista de Bentham, mais adiante destacado.

    Apesar disso tudo, aquela velha religio dos manes continuava ainda na cabea

    dos antigos, tal a sua fora, continuando a aparecer nos textos jurdicos. Assim que Ccero

    (106/43 a.C.), num perodo j e ainda mais recente, embora ainda na Repblica Romana, em

    seu Tratado de leis (apud COULANGES, 2005, p. 206), prescrevia, dentre outras coisas: Que

    ningum se aproxime dos deuses com as mos impuras; que se cuide dos templos dos pais e

    da morada dos Lares domsticos;que os sacerdotes s empreguem nos banquetes fnebres asiguarias prescritas;que se preste aos deuses Manes o culto devido. No cria ele, contudo, em

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    tais prescries. A presena destes preceitos em sua obra deve-se ao fato de que ele pretendia

    ser fiel s codificaes anteriores, perodo onde a fuso era ainda uma realidade incontestvel.

    Eram, portanto, meros resqucios das antigas leis. No entanto, de se observar que, se Ccero se

    sentiu obrigado a essas previses, porque esses cultos ainda possuam alguma fora na Roma

    de ento, apesar da ento total prevalncia dos deuses da natureza. Mas, Ccero, romanista

    difusor da filosofia grega, da qual foi um estudioso, era j um adepto da naturalis ratio. Cria

    que o direito funda-se em opinio arbitrria, mas existe um justo natural, imutvel e

    necessrio, pelo testemunho inferido da prpria conscincia do homem (DEL VECCHIO,

    2010, p. 35). Nas suas prprias palavras, citadas por Del Vecchio (2010, p. 35/36):

    Na verdade, a reta razo uma lei conforme natureza, difusa em todos, constante,eterna... no exige quem a explique, ou um outro intrprete. Nem existe outra lei emRoma, outra em Atenas, outra agora, outra depois, mas uma s lei existir para todasas pessoas e em todo tempo, eterna, imutvel... quem no lhe obedecer foge de simesmo, e tendo desprezado a natureza do homem, sofrer por isso mesmo as maiorespenas, embora fuja de outros sofrimentos, que imagine.

    Trata-se de um clssico conceito de direito natural e em plena conformidade

    com as suas principais caractersticas, presentes elas em praticamente todas as conceituaes

    acerca do mesmo. Primeiramente, Ccero vaticina que a reta razo uma lei natural. Ou seja,

    est falando da razo natural, a razo que se origina da prpria natureza das coisas e, justamente

    por isso, o principal instrumento de captao de o que vem a ser essa prpria natureza das

    coisas. Isso de tal forma, com tal clareza e exatido, que sequer h necessidade de explicao ou

    interpretao das leis da natureza. E no se deve esquecer que a natureza, para o antigo, so

    tambm os deuses. Por fim, apregoa tambm a sua total imutabilidade, quer seja no tempo, quer

    seja no espao, em parcial contrariedade ao pensamento de Aristteles e em pleno acordo com a

    grande maioria das doutrinas dos demais jusnaturalistas. Entende pela natural existncia de um

    direito universal e imprescritvel, a ser captado pela via racional. o direito natural, mais uma

    vez delineado, agora pelo pensamento de Ccero, espcie de unio sinttica entre a produo

    jurdica romana e a tradio filosfica grega. Alm do mais, j nos limites do incio de nossa

    era, como que a sintetizar toda a conceituao acerca de um alegado direito originrio da

    natureza mesma das coisas e captado pela razo humana, a razo natural, a naturalis ratio.

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    3.6 O Advento do Cristianismo

    E o processo continua. Sempre continua. E medida que os homens se vo

    mudando, e tambm os seus deuses, assim tambm se vai o direito. E por isso que o direito,

    em conseqncia a toda uma mudana social, no poderia ficar inclume ao advento do

    cristianismo, incio de contagem dos anos na nossa civilizao e tambm marco decisivo na

    histria do direito. que a vitria do cristianismo o marco terminal da sociedade antiga.

    Com a nova religio se completa a transformao social que vimos comear seis ou sete sculos

    antes de seu advento (COULANGES, 2005, p. 412). E acontece que, se, por um lado, houveum renascimento do esprito religioso, por outro, no caso do cristianismo, isso no se deu em

    confuso com as instituies polticas, dentre elas o prprio direito. A nova religio, bastante

    influenciada pela metafsica dos filsofos gregos, em especial a de Plato e o seu mundo das

    idias, despregava-se por completo da terra, colocando-se parte das questes mundanas e, em

    consequncia, das questes polticas, do Estado. dizer, juntamente de Coulanges (2005, p.

    413), que o divino foi situado fora e acima da natureza visvel. Em verdade, a pregao crist

    no se buscava imiscuir nas coisas de Estado. que, conforme destacam Del Vecchio (2010, p.41) e Coulanges (2005, p. 416), Jesus Cristo pregava que as coisas do Estado, competiam to

    somente ao imperador. Deus seria o responsvel somente pelos assuntos da alma. A obedincia

    ao Estado e a obedincia a Deus, logo, passam a ser tomadas como coisas completamente

    distintas. No se confundem mais o Estado e a religio. Ademais, as questes polticas j

    andavam deveras amadurecidas para sofrerem maiores influncias religiosas. Assim que se

    pode concluir que somente aqui que se d por completo a separao entre direito e religio. E

    justamente esse o pensamento expresso, logo a seguir, por Fustel de Coulanges (2005, p. 417):

    O cristianismo a primeira religio que no pretendeu regular o direito; ocupou-sedos deveres dos homens, no de suas relaes de interesses. No vemos o cristianismocontrolar nem o direito de propriedade, nem a ordem de sucesso, nem as obrigaes,nem o processo. O cristianismo coloca-se fora do direito, como acima de tudo o quefosse puramente terreno. O direito tornou-se, pois, independente.

    Paralelamente, tambm o Imprio Romano evolui e, com ele, o prprio Direito

    Romano. Somente que agora o direito no mais se confunde com a religio. As regras se vo

    alterando, medida que Roma vai evoluindo e tambm medida que vai sofrendo influncias

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    dos povos que vo sendo conquistados pelo seu exrcito. Isso porque o Imprio Romano

    vigorou por mais de 12 sculos (j quase 13): desde a fundao da cidade, em aproximadamente

    754 a.C., at a morte do imperador Justiniano, em 565 d.C., passando por vrias fases. Existe

    tambm o entendimento, embora no prevalente, no sentido de que o perodo do Imprio

    Bizantino, que vai do mesmo ano de 565 d.C. at 1453 d.C., quando os turcos invadiram e

    tomaram Constantinopla, tambm se trata de um perodo do Imprio Romano. A mais

    difundida, no entanto, a de que ele se queda juntamente com o corpo de Justiniano. De

    qualquer forma, o nascimento de Jesus Cristo, e a consequente reviravolta proporcionada pelo

    cristianismo, acontece logo no incio da terceira fase do Imprio Romano, o assim chamado:

    Perodo do Principado, que vai de 27 a.C., quando, conforme j se viu, estabeleceu-se o

    principado de Augusto, at 284 d.C., com a chegada de Diocleciano ao poder. Segundo Venosa(2007, p. 41), desse perodo, por volta de 130 d. C., que os juristas que participaram da obra

    de Justiniano recolheram o maior cabedal de informaes. O Cdigo Justinianeu ser tratado

    logo mais adiante, no captulo dedicado Idade Mdia. tambm nesse Perodo do Principado

    que surgem as duas Escolas Clssicas do Direito Romano, a saber: a dos Proculeanos (fundada

    por Labeo, e que foi sucedido por Prcules) e a dos Sabinianos (fundada por Capito, que foi

    sucedido por Sabino). Como se v, um perodo bastante rico para o Direito Romano e, por

    consequncia, para o prprio direito em si. Sobre a evoluo do Direito Romano aps o adventoda Lei das XII Tbuas, necessrio que sejam tecidas mais algumas observaes.

    3.7 OJus Civile e oJus Gentium

    Segundo Silvio de Salvo Venosa (2007, p. 42), tambm conveniente

    distinguir uma evoluo interna no Direito Romano, dividindo-o em dois grandes quadrantes, o

    Ius civile ou direito quiritrio (Ius quiritum) eIus gentium, muito embora outros prefiram uma

    diviso trifsica. De qualquer forma, no Perodo do Principado, quando, como se viu, nasceu

    Jesus Crist