breve história da crítica da literatura latina

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189 Breve história da crítica da Literatura Latina P AULO MARTInS Universidade de São Paulo/IAC Brasil RESUMO Este artigo apresenta um panorama da crítica literária aplicada à poesia lati- na da Antiguidade. Principia pelas leituras biográficas do século dezenove e primeira metade do vinte e passa a discutir a alteração radical que se seguiu, a partir de Allen (1950) que, com base na arquitetura poética que permeia esses poemas, os via como construções ficcionais absolutas. Entretanto, após o radicalismo dessa crítica anti- biografista, uma terceira possibilidade está sendo estudada atualmente: se o poeta dá seu próprio nome ou utiliza o nome de personagens historicamente identificáveis, isto deve ser considerado como um elemento extra ao iocus poético – ele, o poeta, está intencionalmente tornando as fronteiras entre a res ficta e a verdade histórica indistintas. Assim, a parte final do artigo discutirá as implicações dessa nova visão sobre os gêneros poéticos e historiográficos. P ALAvRAS-CHAvE Literatura Latina; crítica; poesia; res ficta; res historica. Discutimos hoje os limites da representação: verdade e verossimi- lhança. O que aconteceu e aquilo que poderia acontecer, logo tratamos da fronteira do histórico com poético. A apropriação de informações biográ- ficas – identidades poéticas – por uma disciplina historiográfica foi abso- lutamente corrente no século 19 e exemplos abundam. A partir de certa analogia com a Historiografia Antiga, lia-se poesia como se história fosse. Estamos, assim, diante de questões concernentes à identidade poética e à ficção histórica, ou mesmo, à identidade histórica e à ficção poética. A lição aristotélica do capítulo 9 1 da Poética, em algum momento do final do século 18, foi posta de lado e emergiu, das excelências teóricas e doutrinais do século do mal e do mal do século, novo gênero textual irrea- lizável e irrealizado, pois que jamais composto, logo, jamais preceptivado: a “poesia-história” ou “história-poesia”, em que se pesem aqui obras como Carmen Belli Poenici ( Canção da Guerra Púnica ) de Ênio, que explora as Guerras Púnicas como tema poético, ou a Farsália de Lucano, que põe Email: [email protected] 1 ARISTóTELES, Poética, tradução de Eudoro de Souza, São Paulo, Abril, 1973, p. 451-452 (Poetica 1451a-1452a). Classica (Brasil) 21.2, 189-204, 2008

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    Breve histria da crtica da Literatura Latina

    PAULO MARTInSUniversidade de So Paulo/IAC

    Brasil

    RESUMO . Este artigo apresenta um panorama da crtica literria aplicada poesia lati-na da Antiguidade. Principia pelas leituras biogrficas do sculo dezenove e primeira metade do vinte e passa a discutir a alterao radical que se seguiu, a partir de Allen (1950) que, com base na arquitetura potica que permeia esses poemas, os via como construes ficcionais absolutas. Entretanto, aps o radicalismo dessa crtica anti-biografista, uma terceira possibilidade est sendo estudada atualmente: se o poeta d seu prprio nome ou utiliza o nome de personagens historicamente identificveis, isto deve ser considerado como um elemento extra ao iocus potico ele, o poeta, est intencionalmente tornando as fronteiras entre a res ficta e a verdade histrica indistintas. Assim, a parte final do artigo discutir as implicaes dessa nova viso sobre os gneros poticos e historiogrficos. PALAvRAS-CHAvE . Literatura Latina; crtica; poesia; res ficta; res historica.

    Discutimos hoje os limites da representao: verdade e verossimi-lhana. O que aconteceu e aquilo que poderia acontecer, logo tratamos da fronteira do histrico com potico. A apropriao de informaes biogr-ficas identidades poticas por uma disciplina historiogrfica foi abso-lutamente corrente no sculo 19 e exemplos abundam. A partir de certa analogia com a Historiografia Antiga, lia-se poesia como se histria fosse. Estamos, assim, diante de questes concernentes identidade potica e fico histrica, ou mesmo, identidade histrica e fico potica.

    A lio aristotlica do captulo 9 1 da Potica, em algum momento do final do sculo 18, foi posta de lado e emergiu, das excelncias tericas e doutrinais do sculo do mal e do mal do sculo, novo gnero textual irrea-lizvel e irrealizado, pois que jamais composto, logo, jamais preceptivado: a poesia-histria ou histria-poesia, em que se pesem aqui obras como Carmen Belli Poenici (Cano da Guerra Pnica) de nio, que explora as Guerras Pnicas como tema potico, ou a Farslia de Lucano, que pe

    Email: [email protected] ARISTTELES, Potica, traduo de Eudoro de Souza, So Paulo, Abril, 1973, p. 451-452 (Poetica 1451a-1452a).

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    em relevo a guerra-civil romana no final da Repblica, afinal ambos os poetas convertem os eventos histricos em matria potico-letrada. Mas isso podemos discutir em outra hora e lugar.

    Nossa questo central, isto , a da poesia como material biogrfico-histrico, por exemplo, na Crtica Literria Brasileira, foi devidamente trabalhada e resolvida por Joo Adolfo Hansen em 19882, em sua tese de doutorado, quando mostrou com propriedade mpar os equvocos produ-zidos no sculo 19 sobre a figura/imagem histrica identidade histrica de Gregrio de Matos e Guerra, construda a partir da leitura de sua obra potica e de sua biografia acadmica elaborada pelo Licenciado Ma-nuel Pereira Rabelo da Academia dos Esquecidos3.

    Essa mesma ideia implica outra de igual importncia, sob a rubrica epistemolgica da Teoria da Literatura e dos Estudos Clssicos: qual di-menso metodolgica deve ter a Crtica Literria das histrias da litera-tura? Como categorizarmos textos e autores sem que um juzo de valor exponha, traga luz claro equvoco? Essas questes, longe de ser um problema especfico das literaturas, ditas clssicas, muita vez, assolam e solapam, sem medo de errar, todas as literaturas. Entretanto, trataremos das clssicas de modo geral e da Latina e Grega especificamente. E, atu-almente, algumas respostas j foram dadas.

    Comecemos relembrando os limites entre a Histria e a Poesia na viso aristotlica. No mesmo captulo 9 da Potica, o filsofo dizia que se fossem postos em versos os escritos de Herdoto, nem por isso dei-xariam de ser histria e poesia no seriam. Esse dado determina se-gundo pensamos fronteira bem clara entre gneros letrados. Destarte, fins diferenciados so determinantes genricos. O fato de possuir uma forma versificada, ao contrrio, no determinante do gnero potico e, por sua vez, poderia existir como corolrio desse raciocnio uma hist-ria metrificada. Talvez apontasse aqui Aristteles, avant la lettre, para mescla genrica, expediente potico e retrico, que durante o perodo helenstico foi largamente utilizado: a 4. Tal imbricao ou va-riedade genrica est na base daquela poesia didtica disseminada no re-ferido perodo, alm de ser moeda corrente no perodo tardo-republicano e proto-imperial romanos.

    2 Tese apresentada ao PPGLB do DLCV/FFLCH/USP: J.A. HAnSEn, A stira e o engenho. Gregrio de Matos e a Bahia do sculo XVII, So Paulo, Cia das Letras, 1989 e 2 edio, 2004. Editora da UNICAMP e Ateli Editorial.3 HAnSEn, p. 13-69.4 LSJ, 1977, p. 1429, 3: In literary style, music, etc., variety, intricacy, ornamentation.

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    A despeito, entretanto, da classificao de gnero potico ou retrico, a leitura de personae poticas ou histricas em chave biogrfica absoluta provocou por muito tempo desconforto da crtica que passa a questionar essa leitura na dcada de 1950. A posio peremptria dos historiadores da Literatura Latina sofre assim certo refluxo. Esse posicionamento re-gistrava no rara vez: o poeta sofre, o poeta est apaixonado, Lsbia traiu Catulo, Cntia deseja os bens de Proprcio, Corina est dando ouvidos s lenas, etc. Assim, os sistemticos juzos equivocados acerca do prprio fazer historiogrfico literrio, sobre o qual se projetam aspec-tos positivistas e deterministas, esto absolutamente deslocados de seu tempo e equivocados nos seus ditames.

    Vejamos o que diz o professor italiano Ettore Paratore5 sobre Catulo:

    A vida de Catulo enche-se e esgota-se num nico grande aconteci-mento: o seu amor por Lsbia.6

    Ou ainda:

    A vida de Catulo, o primeiro poeta de amor da latinidade, ao mesmo tempo a mais romntica, a mais exemplar entre as muitas vidas amoro-sas iluminadas pela poesia: a tornar mais perfeito este carter, sups-se tambm, e no hiptese arriscada, que morreu de mal sutil, que, de resto, era talvez um mal de famlia, dado que seu irmo carssimo mor-rera em idade jovem, ainda antes dele, durante uma viagem Troade.7

    Esses dois pequeninos excertos de Paratore, apesar de apartados de seu contexto e, mesmo assim, plenos de sentido dentro de sua bem construda argumentao, apontam caractersticas coadunadas com nossa proposta inicial de que h, na historiografia da Literatura Latina, vcio de origem, que efetua, produz leitura inadequada e ineficiente de obras an-tigas, porquanto transfere caractersticas prprias do vivido para aquelas que so apenas fices ou representaes; logo, as entende como verda-deiras, as imagens, e no simplesmente verossmeis.

    Assim, Catulo desnudado por Ettore Paratore. A bem da verdade, ele realiza a leitura do poeta vivido, restringindo-o ao seu amor, como se o poeta lhe confidenciasse algo. Em seguida produz seu juzo de valor ao

    5 Ettore Paratore (1907-2000), reconhecido latinista italiano, considerado um dos maiores estudiosos de literatura latina no ps-guerra. Lecionou nas Universidades de Torino e na La Sapienza de Roma.6 E. PARATORE, Histria da Literatura Latina, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1983, p. 323.7 Ibid., p. 324.

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    propor que a vida do poeta a mais romntica e iluminada pelo amor de toda a latinidade. Podemos crer no conhecimento do professor, sob o ponto de vista das Letras Latinas, mas seu conhecimento de toda a latinidade causou e causa estranheza num momento no final dos anos 70, alm de inferncias perigosas que passam por um mal de famlia, que pode sugerir dados pouco importantes ou informaes nem sempre cientficas.

    Podemos acrescentar outra leitura de outro professor igualmente importante, Ernst Bickel8:

    As diferenas sociolgicas e ideolgicas entre o homem neotrico e o ciceroniano frente lrica subjetiva se traduzem num contraste histrico-literrio. A lrica subjetiva e sentimental deveu ser antip-tica aos personagens romanos formados no ideal do uir bonus pelo fato de que podia transparecer que as alteraes psquicas produzidas pela emoo lrica implicavam uma renncia dignidade e afirma-o da prpria personalidade.9

    Nesse segundo exemplo, o professor Bickel registra sua profunda devoo a certa cincia social, poltica, antropolgica e psicolgica. H que notar que, em seu pensamento cientificista, a poesia lrica entre os romanos poderia produzir efeito tico naquele que a escrevia ou lia. Sim-plificando, Bickel sugere que a poesia de Catulo ou a poesia neotrica de forma mais ampla podia afetar a formao da personalidade, contra-riando, por seu teor ou motivo, as regras estabelecidas pelo mos maiorum romano. Afinal a emoo subjetiva que a constri implica renncia dignitas romana.

    Curiosamente, as tendncias ao biografismo e s categorias psicol-gicas e romnticas mantm-se vivas ainda nos anos 60, 70 e 80 no Brasil, a despeito do contrafluxo que ocorre em pases centrais. C no trpico, obras continuam a ser publicadas com mesmo tom. Dois bons exemplos so: o curiosssimo temas Clssicos de Ada Costa10 (1978) e o enciclopdico A Literatura de Roma de G.D. Leoni11 (1971). Desse ltimo:

    8 Ernst Johann Friedrich Bickel (1876-1961) fillogo alemo, profesor da Universidade de Bonn desde 1921 at sua morte.9 E.J. BICKEL, Historia de la Literatura Romana, traduo de Jos M. Diz-Regaon Lpez. Madrid, Gredos, 1982, p.164.10 Ada Costa licenciou-se em Letras Clssicas pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP, onde trabalhou por muitos anos atuando nas reas de Literatura Latina e Didtica do Portugus. A. COSTA, temas Clssicos, So Paulo, Cultrix, 1978.11 Professor da PUC Sedes Sapientiae.

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    Chamamos literatura latina ao conjunto de manifestaes espirituais, dignas de serem lembradas pela sua notvel importncia []12

    O maior dos poetas novos C. Valrio Catulo [] Os fatos mais importantes de sua vida os que refletiram na sua obra so, na maior parte, determinados pelo amor a Lsbia, mulher to bela quanto corrupta []13

    Mas, fora do Brasil, a partir do texto inaugural de Archibald W. Allen14 sobre a sinceridade dos poetas elegacos romanos15, mesmo que ainda estivesse l em estado incipiente, encontramos o obverso do bio-grafismo, fundado, como vimos, em critrios tcnicos anacrnicos, tendo em vista o objeto literrio antigo, devido s projees e inferncias im-pressionistas que brotavam da leitura romntica e psicolgica de emritos latinistas.

    Allen comprova que certos termos que a tradio romntica aplicou aos poetas elegacos romanos como referncias explcitas s suas biogra-fias no passavam de termos norteadores do fazer potico e, logo, afeitos utilidade do poeta como enunciador. Verdadeiramente, o autor rel os poetas latinos observando a concepo de que seus poemas esto a ser-vio da prpria poesia, e no a servio de uma autobiografia potica. Rev, revisita Catulo do poema 16, que diz que ao poeta pio convm ser casto ele mesmo e no sua poesia; para essa no h lei, tampouco pudor.

    Diz nessa chave o professor de yale:

    The terms tersus, elegans, lascivus, and durus, which Quintilian16 used in describing the elegists, are all technical terms of stylistic criticism. The qualities which he found most admirable in Tibullus were his formal perfection and his sureness of taste. These are qualities which we should expect to be admired by Quintilian, who said of the rhetori-cal style which most persuasively reveals the character of the orator: proprie, iucunde, credibiliter dicere sat est.17 It is evident that in such a style it is not the peculiar character of a unique individual that is revealed, but rather a general type of character to which the speaker conforms or seems to conform. If we look beyond Quintilian we find that these are not simply the criteria adopted by a teacher of rhetoric.

    12 G.D. LEOnI, A Literatura de Roma, So Paulo, Nobel, 1971, p. 7.13 Ibid., p. 4314 Professor de Classics na yale University.15 A. ALLEn, Sincerity and the Roman Elegists, Classical Philology 45 (3), 1950.16 QUInT. 10.1.93 (nota referida por Allen, anteriormente).17 QUInT. 6.2.19 (nota do autor).

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    Poets also used such terms of stylistic identification when they wished to characterize in a single word the essential quality of another poet.18

    J nos 70, o livro de Francis Cairns introduz novos problemas a esse, digamos, contrafluxo, pois inclui, como possibilidade de leitura da poesia grega e romana antigas, a doutrina da retrica epidtica de Me-nandro o rtor, desnaturalizando essa poesia e retirando toda carga de subjetivismo nela impressa pelo j famigerado biografismo do sculo 19. O pressuposto terico de Cairns ir em certa medida permear a crtica contempornea de Letras Clssicas, qual seja: o repertrio letrado da Antiguidade Greco-romana pode e deve ser lido em acordo com duas linhas preceptivas que, no prprio Mundo Clssico, andavam juntas, uma vez que Retrica e Potica eram alvos dos ensinamentos de uma mesma escola, a de Retrica, e, dessa maneira, oradores e poetas comungavam os mesmos exerccios: os progymnasmata gregos ou os praeexercitamina romanos. Assim, a associao entre Retrica e Potica para a leitura de textos em prosa ou em poesia so autorizados pela Antiguidade e exa-tamente isso que fez Cairns.

    Vejamos um exemplo de Cairns (1972) ao final de seu primeiro cap-tulo In medias res, aps fazer minuciosas anlises de dois propemptika 19, um de Proprcio e outro de Tecrito de Siracusa:

    As has been illustrated, generic analysis can illuminate the logic and thought processes of classical writers, by showing what connections of thought were built into the formulae behind particular writings, and can also solve major traditional problems. But important as these two functions are, they are not the most important role of generic studies. The theory which underlies this book is that the whole of classical poetry is written in accordance with the sets of rules of the various genres, rules which can be discovered by a study of the sur-viving literature itself and of the ancient rhetorical handbooks deal-ing with this subject. If this theory is correct, then generic studies are essential to any rational literary criticism of the conceptual side of ancient poetry.20

    Tal critrio proposto por Cairns retira do repertrio do crtico a de-limitao de categorias, conceitos e pressupostos e os transfere para o re-

    18 ALLEn, p. 145.19 Propemptikon: adeus a um viajante que parte.20 F. CAIRnS, Generic Composition in Greek and Roman Poetry, Edimburg, Edimburg University Press, p. 31.

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    pertrio do autor, auctor/autoridade, mais precisamente a copia rerum et sententiarum, assentada em species, em genera que delimitam a produo potico-retrica e repropem formas de leituras convenientes (decorosas21) ao texto observado de acordo com categorias prprias sua inveno.

    Sob o ponto de vista dos estudos das Letras Clssicas, na esteira antibiografista, os anos 80 oferecem uma grande sntese dessa discusso: o importante texto de Paul Veyne22 a respeito da elegia ertica romana, publicado no Brasil em 198523.

    Aqui, essa tendncia antibiografista assume contornos significativos, tanto que grande parte da produo da crtica de Letras Clssicas que realizada a partir do final dos 80 vem toda ela impregnada desse tom com maior ou menor intensidade. Penso em Paulo Srgio de Vasconcellos do IEL/UNICAMP em sua dissertao de Mestrado24 Verdade Potica e Rea-lidade Biogrfica no Romance Amoroso de Catulo, em 1990; Francisco Achcar25 em 1992 com Lrica e Lugar Comum: Alguns temas de Horcio e sua Presena em Portugus; Joo Angelo Oliva Neto26 com o Livro de Catulo em 1993; o meu trabalho em 1996, thos, Verossimilhana e Fides no Discurso Elegaco de Sexto Proprcio 27 e o de Marcos Martinho dos Santos28, As Epstolas de Horcio e a confeco de uma ars dictaminis : o opus, em 1997.

    Diz Oliva Neto (1996):

    Ento pode-se falar de Lsbia, criptnimo de Cldia, irm de Cldio Pulcro. A tradio afirma que com ela Catulo manteve relaes, pe-rigosas, uma vez que ela acusou de tentativa de envenenamento seu amante Clio Rufo, defendido por Ccero []. O problema no crer se Catulo teria amado Cldia, mas vincular essa possvel experincia

    21 H que se pensar que retoricamente isso uma virtude.22 Professor Titular da Ctedra de Histria Romana no Collge de France, Paris.23 P. vEynE, A elegia ertica romana. o amor, a poesia e o ocidente, traduo de Milton Meira do Nascimento e Maria das Graas de Souza Nascimento, So Paulo, Brasiliense, 1985. 24 P.S. vASCOnCELLOS, Dissertao de Mestrado apresentada ao PPGLC/FFCHH/USP, con-vertida em Livro: P.S. vASCOnCELLOS, o Cancioneiro de Lsbia. So Paulo: Hucitec, 1991.25 F. ACHCAR, Tese de Doutorado apresentada ao PPGLC/FFLCH/USP em 1991, conver-tida em Livro em 1992. F. ACHCAR, Lrica e lugar comum: alguns temas de Horcio e sua presena em portugus, So Paulo, Edusp.26 J.A. OLIvA nETO, Dissertao de Mestrado apresentada ao PPGLC/FFLCH/USP em 1993, convertida em livro em 1996. J.A. OLIvA nETO, o Livro de Catulo, So Paulo, Edusp, 1996.27 P. MARTInS. Dissertao de Mestrado apresentada em 1996, convertida em Livro em 2009. P. MARTInS, Elegia romana: construo e efeito, So Paulo, Humanitas, 2009.28 MARCOS MARTInHO DOS SAnTOS, Dissertao de Mestrado ainda infelizmente indita para o mercado editorial. As Epstolas de Horcio e a confeco de uma ars dictaminis: o opus.

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    ao termo potico Lsbia e deslocar o interesse do fato literrio, que certo, para um fato histrico, que incerto.29

    Essa crtica, entre diversos caminhos, pode ser orientada e calcada na compreenso de personae poticas que so desnaturalizadas a partir da observao da sua construo retrico-potica e, portanto, sistem-tica. Diramos l nos anos 90 que essas personagens seriam identidades poticas, assim determinadas a partir de um thos bem construdo, veros-smil, portanto, sobre as quais incidiriam uma fides, uma credibilidade, observada pela prpria audincia ou leitores.

    Eu mesmo em 1996 propus:

    Para restringir a ao dessa crtica, propus uma leitura do Monobiblos de Proprcio sob o ponto de vista da doutrina dos , referenciada pelos textos aristotlicos e, posteriormente, avaliada por Quintiliano na Institutio oratoria. Nesse sentido, a observao do de uma persona lrica de suma importncia para avaliao do sistema ret-rico potico que emana dos textos, ou seja, a observao desse con-ceito determina o eixo da construo potica das Elegias de Proprcio, excluindo-se toda e qualquer possibilidade do acaso isso no um lance de dados ou de um carter aleatrio do processo compositivo de matiz romntico. O entendimento desse conceito, construdo a partir das aes das personae nos mesmos moldes que ocorre na tragdia, autoriza a com-preenso da fantasia, entendida como processo anmico de suspenso temporria do pensamento que permite que os enunciados sejam de-terminados como falsos ou verdadeiros pela recepo. Assim, a falta de ateno em relao s , levadas a termo pelos textos propercianos, indica a possibilidade de apenas relacion-las com o verdadeiro, com o biogrfico, obliterando-se a outra possibilidade, do falso, da fictio.30

    Assim, importantssimo salientar que o mecanismo de leitura, di-gamos, romntico, que atribui s personae poticas verdade biogrfica, pode tambm atribuir in limine verdade biogrfica s personae histricas dos textos historiogrficos da Antiguidade. Esquecem os leitores que a poesia e a histria tm a mesma copia rerum et sententiarum para sua precisa e apta realizao. Dessa forma, a res ficta no privilgio da pro-duo letrada daquilo que poderia ser; pode, sim, ser caracterstica do

    29 OLIvA nETO, o Livro de Catulo, p. 36-830 MARTInS, Elegia romana, p. 154

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    texto historiogrfico ou daquilo que foi. O Anbal de Tito Lvio to potico quanto seu Remo ou Rmulo. Aquiles de Homero no mais fic-tcio do que a Semprnia de Salstio. O Nero de Suetnio no figurado to diversamente sob o aspecto das convenes potico-retricas do que o Cludio de Sneca. O Augusto de Horcio no diverge do de Suetnio. Isso ocorre, lgico, mantendo-se as distines genricas que impem tratamento diferenciado matria, sob todos os aspectos da composio.

    Essa hiptese sustenta-se basicamente na dupla origem da Retrica como disciplina. De um lado, o argumento de probabilidade; de outro, os loci communes. A construo do verossmil e a organizao dos lugares comuns esto no cerne do discurso (em seu sentido lato) bem realizado, aquele que ensina, deleita e convence. Se os the que so construdos no discurso esto em conformidade com o decoro interno, isso significa que so mais que verossmeis, isto , tendem verdade. Logo, a conformidade de argumentos e os agentes internos do discurso, antes de tudo, passam pelo crivo da probabilidade.

    Da mesma maneira, se os lugares utilizados pelo discurso esto em conformidade com costume (como disse Plato31: , isto , todo o thos existe de acordo com um costume) e, portanto, so facilmente reconhecveis pela maioria da recepo, pode-se dizer que o nvel de credibilidade, de fides aumenta. Agora, se associarmos essas duas questes de origem, temos que impossvel determinar se estamos diante da verdade, ou simplesmente diante do verossmil bem construdo em acordo com os lugares que a recepo apta capaz de reconhecer.

    Tomando como ponto de partida quatro autoridades poticas, veja-mos como podemos delinear a questo-problema. Tanto Catulo quanto Tibulo, Proprcio e Ovdio, ao construir suas elegias, partem da cons-tituio mltipla dos the, queremos dizer, assumem como modelo um sistema que se repete exausto. Qual seja: delineiam as trs pessoas do discurso: o ego, o tu e o ille (eu, tu e ele). E em tal construo subjaz, pois, o que semanticamente isso significa: o ego, o enunciador ou sujeito da enunciao potica; o tu, o enunciatrio ou interlocutor desse sujeito; o ille, o enunciado ou a enunciao potica que pode ter como referencial tanto uma persona potica, quanto um assunto, um tema, uma res. Indo mais alm, ao se observar a obra dessas autoridades poticas, pode-se dizer que o sistema construdo prev ou um tu feminino, que dado o gnero elegaco, segundo Veyne32, seria uma mulher do demi-monde,

    31 PLATO Leis 7.793c.32 vEynE, A elegia ertica, p. 10.

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    ou um tu masculino, que pode ser um amigo a que o ego aconselha em matria amorosa ou um inimigo a que o mesmo ego invectiva. A despeito de no estarmos diante do iambo de Horcio, penso aqui no epodo 15: Nox erat et in caelo fulgebat luna inter sidera minora (Era noite e no cu fulgia lua entre astros menores).

    Por outro lado, o ille construdo tambm se desdobra, ora podendo ser illa, que deixaria de ser a interlocutora do ego e passaria a ser o seu assunto, ora podendo ser um illud, que colocaria no cerne da elegia o caso amoroso, ou o prprio amor, como ocorre em Proprcio 2.12: quicumque ille fuit puerum qui pinxit amorem (Quem quer que seja aquele que pintou o amor menino), ora podendo ser o mesmo homem amigo ou inimigo do ego, agora como assunto e no mais como interlocutor.

    Esse mesmo sistema tambm pode criar, digamos, uariationes al-terando a dico do poema em meio ao seu desenvolvimento. Pensamos, por exemplo, na elegia 76 de Catulo: Siqua recordanti benefacta priora uoluptas (Se ao homem que recorda os feitos bons de outrora). Nela, Catulo enunciado num vocativo no verso 5: Multa parata manent in longa aetate, Catulle (Muita coisa preparada permanece na longa idade), portanto marcado como um tu que, entretanto, a partir do verso 17 passa a ser ego: o di, si uestrum est misereri, aut si quibus unquam ( deuses, se de vs ter pena ou se j algum).

    Essa arquitetura compositiva dos the elegacos pe por terra a dou-trina biografista dos scholars do 19 e de seus epgonos no sculo 20. No h como a natureza produzir algo to sistemtico, to bem esquadrinhado e to absolutamente universal, identidades to absolutamente bem cons-titudas como universais imutveis. Jamais poderamos supor que isso fosse algo que foi por ser assim bvio, mais fcil seria imaginar que es-tamos diante daquilo que poderia ser. Essa engenharia potica, to bem acabada, dessa forma, instaura uma ditadura, a saber: a do verossmil, j que desconsidera a existncia do verdadeiro histrico, fundado em uma questo igualmente retrica, que so as provas, sejam as artificiais, sejam as inartificiais. Contrape a verdade fictio, res ficta. Quando dizemos ditadura do verossmil, pensamos em uma reao radical ao biografismo em que se perde a dimenso de possibilidade de existncia da verdade.

    Esse jogo das pessoas construdo no interior da elegia em certa me-dida instaura um iocus, um ludus, uma brincadeira, diria Veyne nos 80:

    A vida dos homens repousa sobre sua crena na Verdade, a verdadeira, a nica, mas, na realidade, praticamos inconscientemente princpios de verdade que so diversos, incompatveis, mas que parecem analgicos: todas essas medidas de verdade, to diferentes, para ns constituem

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    apenas uma. Passamos, sem mesmo sentir, o deslocamento, das re-ceitas tcnicas s verdades de princpios, aos desejos, s fices, s verdades de consenso geral ou aos dogmas. As verdades de outrora, as antigas unidades de medida, parecem-nos tambm anlogas s nossas, o que permite a compreenso histrica. A natureza plural e analgica da verdade funda igualmente a esttica: abrimos um livro, e um tapete mgico nos transporta adormecidos para a verdade de Balzac ou a de Alice; quando abrimos os olhos pensamos que estamos sempre no mesmo mundo. Tudo nos parece plausvel, nada nos perturba e entra-mos no mundo do maravilhoso como se fosse a verdade: a irrealidade nunca mata o efeito; tudo passa por mimese, como vimos.33

    Contudo, retornando nossa questo inicial, podemos ainda acen-tuar uma preocupao pontual importante: a associao do ego elegaco figura histrica dos poetas e s respectivas amadas, fictiones. Se o poeta constri ego elegaco autodenominando-se, o efeito de sentido pretendido o da verdade, mais do que a simples verossimilhana. Assim, acaso seria possvel inferir que h algo de verdadeiro na simples identidade po-tica ou o que se faz do ponto de vista potico o estabelecimento de um simulacrum em que a persona histrica fictio programtica?

    A identidade dos poetas vale como verdade? fico? Ambos? Ca-tullus34 e Lesbia podem indicar certo grau de verdade ou apenas os poetas os desejam s verossmeis? Essas mesmas indagaes valem para: Pro-pertius35 e Cynthia, para tibulus36 e Delia e para ouidius Naso37 e Corina.

    Quando os poetas realizam essa operao, poderamos associar es-sas personalizaes poticas ou identidades poticas s personae/figurae histricas? Quanto a personagens histricas, como o Anbal de Tito Lvio ou o Catilina e a Semprnia de Salstio, em que medida existe nesses casos uma identidade histrica ou em que medida so meras res fictae? Podemos ir alm, se pensarmos nas odes cvicas de Horcio, por exemplo, em que, por um timo de segundo, o histrico toma o lugar do potico, ou mesmo no Virglio da Eneida, em que o mesmo procedimento ocorre. Pensamos aqui na ode 4.15 de Horcio:

    33 vEynE, A elegia ertica, p. 26.34 Dezoito poemas: 6; 7; 8; 10; 11; 13; 14; 38; 44; 46; 51; 52; 56; 58; 68; 72; 76; 79; 82. 35 Oito elegias: 2.18; 2.14; 2.24; 2.34; 3.3; 3.10; 4.1; 4.7.36 Trs elegias: 1.3; 1.9; 3.19.37 Por ser, entre os elegacos, o poeta mais copioso, no singularizo cada uma das 47 ve-zes em que ele se autonomeia, mas aponto o nmero em cada uma das obras elegacas de Ovdio: nos Amores so trs vezes; na Ars Amatoria, duas; nos Remedia Amoris, duas; nos Fasti, uma; nas tristia, 11 vezes e, nas Ex Ponto, 28. Vale dizer que, assim como Ccero era conhecido por Marco Tlio, Ovdio era Naso.

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    Phoebus uolentem proelia me loqui uictas et urbes increpuit lyra, ne parua tyrrhenum per aequor uela darem. tua, Caesar, aetas

    fruges et agris rettulit uberes et signa nostro restituit Ioui derepta Parthorum superbis postibus []

    Desejando cantar as lidas e as vencidas cidades, Febo tocou-me com a lira para que parvas velas no desse ao Mar Tirreno. Tua era, Csar,

    restituiu frutos fartos aos campos, restabeleceu ao nosso Jove insgnias tomadas de soberbos portais dos partas.38

    Alm da prpria forma e da elocuo extremamente bem construda, atenta a todas as virtudes da elocuo (uirtutes elocutionis), Horcio pe em relevo a figura/persona histrica de Augusto (Caesar) fora do gnero em que deveria ser retratado: a Histria. Recompe, assim, sua imagem liricamente. Entretanto, mesmo esse vis ou matiz lrico no essencial-mente puro, j que aponta para ndices de outro gnero potico, marcado pelo desejo de cantar proelia et uictas urbes (guerras e cidades vencidas), cones caractersticos da pica.

    Pode-se notar que, ento, dentro do discurso potico romano, os g-neros poticos esto a servio de um fim alheio mera fruio, antes, se desejam registros amplificados de certa figurao que, ao mesmo tempo em que possui identidade potica, pode tambm possuir identidade his-trica. Mais do que isso, essa persona lrica matizada historicamente ou historicamente identificvel recebe duas cargas referenciais de nveis distintos: uma cujo produtor o prprio poeta, outra cujo responsvel o leitor ou ouvinte, referendando-se, dessa maneira, a recepo apta do discurso e atribuindo-lhe funo ativa na prpria constituio potica e histrica, j que a avaliao que se faz do objeto descrito depende no s do auctor/autor, como tambm do sujeito da fruio. Alm disso, podemos dizer que o objeto descrito na poesia e na histria sofre uma

    38 Traduo nossa.

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    hipercarga referencial e semntica, plena de referentes do mundo do leitor que, portanto, o sobrecarrega, o amplifica, o faz vazar prpria intencionalidade do escritor, enfim, como que se emancipando, potica e historicamente.

    Ao pensarmos no lrico nesse sentido, podemos dizer que o gnero se distingue justamente por essa incluso de referenciais do leitor/ouvinte que imprimem a esse material potico carter pessoal, vinculado ao co-tidiano. Estamos, portanto, prximos dessa poesia no pelo tom confes-sional como j quiseram alguns na academia , mas pela nossa prpria presena no objeto letrado. Outro elemento interessante nessa prtica li-terria a verificao do tempo potico que nasce da pontua lidade ou exiguidade da referncia identidade histrico-potica. O fato de o poema nos apresentar a figura historicamente referenciada limitadora do tempo e do espao poticos, logo eles se nos apresentam no aqui (hic) e no agora (nunc). Esse tempo no o da aetas, termo cognato do advrbio grego (sempre) que indica a ideia de eternidade, e sim o tempo fracionado, limitado, enfim, humano e, portanto, lrico: o tempus, palavra cognata de cujo significado cortar, limitar.

    Assim, a generalizao potica aristotlica tambm deve ser pen-sada e pesada como incluso do ouvinte ou do leitor na prpria poesia sob o prisma da insero de seus referenciais no poema. Ao Augusto de Horcio somar-se-ia o do leitor da ode 4.15 com toda a sorte de ilaes e construes atinentes ao seu prprio universo de leitor. Nesse sentido, o Catulo de Catulo, o Proprcio de Proprcio ou o Augusto de Horcio e a Semprnia de Salstio, por exemplo, podem representar o mesmo me-canismo compositivo, apesar de tambm apontarem para Histria e para Poesia que so gneros, no mais das vezes, dspares.

    A essa viso pode-se somar Conte (1994) j em 1987, em sua ho-nestssima Histria da Literatura Latina quando prope que, embora tenhamos desconfiana das leituras biografistas dos elegacos latinos, como Proprcio, justamente pela replicao de moldes sistemticos, in-discutvel o sinal distintivo da elegia romana: a subjetividade biogrfica cuja origem estaria na elegia mitolgica de Antmaco, Filetas e Herme-nianax, que associavam as aventuras de heris mticos s experincias pessoais do poeta. Diz ainda Conte que a elegia latina desenvolver isso, entretanto, mantendo aspectos gerais e objetivos que generalizam a histria pessoal em uma viso mais ampla39.

    39 G.B. COnTE, Latin Literature: a History. Translated by Joseph B. Solodow and Glenn W. Most, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1994, p. 322-323.

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    Para radicalizarmos essas questes, devemos pensar a decodificao dos textos antigos histricos a partir da disciplina reguladora dos discur-sos: a Retrica. Essa hiptese defendida por Hyden White em trpicos do Discurso (1994):

    A distino mais antiga entre fico e histria, na qual a fico con-cebida como representao do imaginvel e a histria como a repre-sentao do verdadeiro, deve dar lugar ao reconhecimento de que s podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imagi-nvel. Assim concebidas, as narrativas histricas so estruturas com-plexas em que se imagina que um mundo da experincia existe pelo menos de dois modos, um dos quais codificado como real e outro se revela como ilusrio no decorrer da narrativa. Trata-se, obviamente, de uma fico do historiador a suposio de que os vrios estados de coisas que ele constitui na forma de comeo, meio e fim de um curso do desenvolvimento sejam todos verdadeiros ou reais e que ele sim-plesmente registrou o que aconteceu na transio da fase inaugural para a fase final. Porm tanto o estado inicial de coisas quanto o final so inevitavelmente construes poticas e, como tais, dependentes da mortalidade da linguagem figurativa utilizada para lhes dar o aspecto de coerncia. Isto implica que toda narrativa no simplesmente um registro do que aconteceu na transio de um estado de coisas para outro, mas uma redescrio progressiva de conjuntos de eventos de maneira a desmantelar uma estrutura codificada num modo verbal no comeo, a fim de justificar uma recodificao dele num outro modo no final. Nisto consiste o ponto mdio de todas as narrativas.40

    Hoje nos parece que a Histria j em certa medida reage ao imp-rio do verossmil. O trabalho de Carlo Ginzburg, Relaes de Fora, no ensaio Sobre Aristteles e a histria mais uma vez aponta para a exis-tncia do verdadeiro.

    Vejamos:No seu ensaio [Arnaldo Momigliano] A retrica da histria e a his-tria da retrica, publicado em 1981, Momigliano reagiu vigorosa-mente contra a tentativa de Hayden White, Peter Munz e outros es-tudiosos de considerar os historiadores, da mesma forma que todos os outros, como retricos que podem ser caracterizados por seu tipo de discurso. Temo as consequncias da historiografia escreveu Momigliano, porque ele [White] eliminou a busca da verdade como

    40 H. wHITE, trpicos do Discurso, traduo de Alpio Correia de Franca Neto, So Paulo, Edusp, 1994, p.115.

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    tarefa fundamental do historiador. Os acontecimentos que se segui-ram no cenrio intelectual provam que os temores de Momigliano eram justificados. Assim como ele, tambm eu sustento que encontrar a verdade ainda o objetivo fundamental de quem quer se dedicar pesquisa, inclusive os historiadores. Mas a concluso de Momigliano mais convincente do que a argumentao sobre a qual se baseia.41

    Assim, Ginzburg d sua contribuio contra a ditadura do veros-smil, sem, contudo, neg-lo, ou dar razo ao biografismo. Apresenta a tese de Momigliano42, esse sim mais radical, matizando-a, principalmente naquilo que diz respeito a uma ironia acerca do fascnio produzido pela retrica. Entretanto, como essa discusso que relativa historiografia nos afeta, a ns, das Letras Clssicas? Apesar de no ser objetivo das Letras a observao da verdade, certo que muitas vezes nos deparamos com essa questo em nome de uma crtica literria sria e comprometida com o rigor conceitual, j que, como vimos, essa mesma crtica trabalha no s com poesia, em que existe a possibilidade da res historica, como da Histria, em que h a possibilidade da res ficta.

    Por fim, estamos certos de que hoje estamos diante do ponto de con-vergncia que compreende haver um nvel de verossimilhana que tende verdade e que depende essencialmente das habilidades tcnicas de auc-toritates fundadas no ingenium de construir seu discurso de acordo com expectativas constitutivas da construo do discurso, seja ele potico, seja ele histrico.

    A Crtica de Literatura Clssica hoje parece apontar para a Histria na mesma medida em que a prpria Histria de hoje no pode viver sem essa mesma Crtica Literria. Resgata-se, portanto, certa dependncia epistemolgica no mesmo grau em que, na Grcia e na Roma antigas, t-nhamos a inter-relao entre gneros letrados, todos cobertos pela rubrica de uma doutrina potico-retrico-gramatical, de onde no escapavam nem Histria, nem a Poesia, tampouco o verossmil ou o verdadeiro.

    41 C. GInzBURG, Relaes de Fora, traduo de Jnatas Batista Neto, So Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 48.42 Arnaldo Dante Momigliano (1908-1987), professor das Universidades de Turin, Oxford, Chicago, do London College e da Scuola Normale Superiore di Pisa.

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    TITLE . A brief history of Latin Literatures criticism.ABSTRACT . This paper presents an overview of Ancient Latin Poetrys criticism. It begins with the biographical readings of the nineteenth and first half of the twentieth centuries and proceeds to discuss the radical change in interpretation that followed, starting with Allen (1950) who, based on the poetic architecture that permeates such poems, viewed them as absolute fictional constructions. However, after the radical-ism of the anti-biographical criticism, a third possibility is now being studied: if the poet gives his own name or uses the names of historically identifiable characters, this must be considered as an extra element to the poetic iocus he, the poet, is in-tentionally blurring the boundaries between res ficta and historical truth. Thus, the last part of the paper will discuss the implications of this new outlook on the poetic and historiographic genres.KEywORDS . Latin Literature; criticism; poetry; res ficta, res historica.