bretas - as empadas do confeiteiro

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Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pág.7 N ão é de hoje que os arquivos de processos criminais atraem a atenção dos pesquisadores da história do Brasil. A preocupação lati- na com o registro dos autos motivou a produção de documentos preciosos para buscar tanto a identidade dos indivídu- os envolvidos como suas falas, freqüentemente alcançando grupos soci- ais que deixaram pouquíssimos registros de outros tipos. Fazer a revisão historiográfica destes estudos tomaria um espaço alentado, além do que me propo- nho aqui. Importa apenas marcar que após o uso inovador deste tipo de acer- vo por Maria Sílvia de Carvalho Franco, ainda nos anos 1960, a análise de pro- cessos criminais permaneceu pouco ex- plorada até o final da década de 1970, quando passou a ser muito utilizada, sob o impacto da história social inglesa e de Foucault. Estas análises tornar-se-iam mais e mais comuns, na medida em que chegavam ao Brasil trabalhos de Robert Darnton, Carlo Ginzburg e Natalie Z. Davis, baseados em fontes semelhantes. O grande volume de trabalhos então pro- duzido tinha como ponto de partida metodológico a discussão sobre as pos- sibilidades de conhecimento histórico a partir dos processos; se seria possível ali encontrar “a voz” de grupos excluídos, ou apenas mais um discurso do poder, com o qual só seria possível fazer uma história do poder judiciário. É possível que esta discussão tenha fi- cado para trás, mas a riqueza e a diver- As Empadas do Confeiteiro Imaginário A pesquisa nos arquivos da justiça criminal e a história da violência no Rio de Janeiro Marcos Luiz Bretas Marcos Luiz Bretas Marcos Luiz Bretas Marcos Luiz Bretas Marcos Luiz Bretas Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Bretas - As empadas do Confeiteiro

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Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pg.7R V O R V ONo de hoje que os arquivosde processos criminais atraema ateno dos pesquisadoresda histria do Brasil. A preocupao lati-nacomoregistrodosautosmotivouaproduo de documentos preciosos parabuscartantoaidentidadedosindivdu-osenvol vi doscomosuasf al as,freqentemente alcanando grupos soci-ais que deixaram pouqussimos registrosdeoutrosti pos.Fazerarevi sohistoriogrficadestesestudostomariaumespaoalentado,almdoquemepropo-nhoaqui.Importaapenasmarcarqueaps o uso inovador deste tipo de acer-vo por Maria Slvia de Carvalho Franco,aindanosanos1960,aanlisedepro-cessos criminais permaneceu pouco ex-ploradaatofinaldadcadade1970,quando passou a ser muito utilizada, sobo impacto da histria social inglesa e deFoucault.Estasanlisestornar-se-iammais e mais comuns, na medida em quechegavam ao Brasil trabalhos de RobertDarnton,CarloGinzburgeNatalieZ.Davis, baseados em fontes semelhantes.O grande volume de trabalhos ento pro-duzi doti nhacomopontodeparti dametodolgico a discusso sobre as pos-sibilidades de conhecimento histrico apartir dos processos; se seria possvel aliencontraravozdegruposexcludos,ouapenasmaisumdiscursodopoder,com o qual s seria possvel fazer umahistria do poder judicirio.possvelqueestadiscussotenhafi-cado para trs, mas a riqueza e a diver-As Empadas doConfeiteiro ImaginrioA pesquisa nos arquivos da justiacriminal e a histria da violnciano Rio de JaneiroMarcosLuizBretas MarcosLuizBretas MarcosLuizBretas MarcosLuizBretas MarcosLuizBretasProfessor do Departamento de Histriada Universidade Federal do Rio de Janeiropg.8, jan/jun 2002A C Esidade encontradas nestas fontes me levaaretomarestasquestes,propondoamultiplicidade de mtodos e temas queos arquivos criminais podem oferecer eoquetalvezsejaopontocrucialonmero de questes ainda por resolver.Neste sentido, uma proposio curiosa,masfundamental,queariquezadosdocumentos foi utilizada para questesas mais diversas, deixando de lado seuaspecto mais bvio, que a histria docrime e da violncia no Brasil, sem men-cionar a histria da justia. Como testedesta proposio, tentarei discutir nestetrabalhoseosprocessoscriminaisper-mitem pensar o Rio de Janeiro do inciodo sculo XX como uma cidade violenta.Seguindoesteenfoque,pretendoapre-sentar provavelmente com muita sim-patiaalgumasdasregrasdoqueseconstitui como a histria social brasilei-ra recente. Um bom exemplo destas re-gras,queinfelizmentejquebreiees-pero no seja tarde para remediar, queum trabalho comme il faut comea comuma boa histria. Fosse um folhetim, aprximapartedestaintroduoseriaintitulada: Onde se explica o ttulo des-te trabalho.DonaJulietaCordeiroDiaschegouemcasapassandomuitomal.Otrajetodebonde entre o largo de So Francisco esuacasa,naruaSantaLusa,foimuitopenoso,entrevmitosemal-estar,pre-cisandomesmodaajudagenerosadaprofessora Elisa Brando, que ia tambmno mesmo carro para sua casa rua 24deMai o.DonaJul i eta,aosquarentaanos, era viva, e foi recebida pressuro-samente por seus filhos Herclia, de 23anos,Alice,devinteeAlbertode18queprovidenciaramavindadodoutorJlioCsarSuzanoBrando,moradornas vizinhanas. O mdico diagnosticouum envenenamento alimentar e inquiriudona Julieta, que informou ter se alimen-tado apenas com po e caf antes de irparaacidade,ondecomeuempadasepastis de camaro na confeitaria do lar-go de So Francisco 32, canto da rua dosAndradas.Asuspeitadeenvenenamen-to foi comunicada 16 Delegacia de Po-lcia, que abriu inqurito. A situao eratogravequedoisdiasdepoisdonaJulieta veio a falecer.As investigaes dirigiram-se para a con-feitaria,suspeitadetervendidoosca-mares fatais. O delegado ouviu no diaseguinte os responsveis. Primeiro falouo senhor Jos Joaquim Ferreira, um por-tugusde68anos,scioegerentedaconfeitaria. Ele negou qualquer possibi-lidadedeproblemacomasempadasepastis;nodiaanteriorhaviamservidomais de mil pessoas, tendo vendido an-tesdas9horasdanoitetodasastrsmil e duzentas empadinhas e pastis decamaro produzidos. Os produtos eramfrescos, os camares adquiridos no mer-cado e rejeitados quando de m aparn-cia. A cozinha tinha bom equipamento eoestabelecimentogozavadebomcon-ceito, tendo entre seus fregueses o almi-rante Pinheiro Guedes e o doutor Guilher-Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pg.9R V O R V Ome do Vale, mdico de higiene. Conhe-cia mesmo dona Julieta, freguesa cons-tante, ainda que no se lembrasse de t-lavistonodiaanterior.Depoisdelefa-louoconfeiteiroJosImaginrio,umportugus de 27 anos, casado, moradornaruaPaulaMatos174,chefedacozi-nha. Este tambm negou a responsabili-dadedoestabelecimento.Afarinhavi-nhaensacadadoMoinhoFluminenseeos patres fiscalizavam os produtos, re-jeitando os camares que no achassembons.Elefezquestoderessaltarquehavia colocado pessoalmente dois cama-res em cada empadinha.ComofalecimentodedonaJulietafoipedidaaautpsia,epassou-sealgumtempoantesdafamliaeomdicose-rem ouvidos. Nada de novo surgiu; parans, talvez valha saber que dona Julietamorava com o filho Alberto, funcionriopblico, habitando na casa ao lado suafilha Herclia, com o marido e sua irm,suger i ndoumt i podeest r ut ur aresidencial familiar que pode ser carac-terstico desse perodo. Quando chegouo resultado da autpsia, vinte dias apsa morte da vtima, ficou constatada umahemorragia do cerebelo e nenhum sinaldeenvenenamento.Desapontamentopara meus leitores mais sanguinolentos,o delegado pediu e obteve o arquivamen-to do inqurito, pois no havia crime.AtragdiadedonaJulieta,diretodosarquivosdaoitavapretoria,notemamenor utilidade para a histria do crimeno Rio de Janeiro. Mas onde mais conhe-cer o funcionamento das confeitarias docentro, numa poca quando as empadastinhamdoiscamares!IssosenoforlorotadoImaginrio,afinalcostumementirparaapolcia...Umaafirmaobsicadosestudossobrepolciaqueboa parte da atividade policial cotidianano envolve qualquer tipo de ocorrnciacriminal. Investigaes e esforos so di-rigidosparaaapuraodefatosquepodem ter explicaes triviais, mas quedurante a investigao permitem ou exi-gem olhar para a vida das pessoas e suasrelaes. Tambm os padres de habita-opodemserobjetodeinvestigaonos arquivos criminais. Assim como donaJulieta, morando ao lado de suas filhas,muitas portas de diferentes grupos so-ciais se abrem aos inquritos policiais,por circunstncias mais ou menos fortui-tas. Do ponto de vista das camadas maisaltas, podemos visitar a casa do despa-chantegeraldaalfndega,BentoLusRibeiro Neto, brasileiro, casado, 38 anos,residentenavilaAlmeida,noCaminhodoAude.Eramseishorasdamanhquando comeava o dia de sua cozinhei-ra.AportuguesaFranciscaPereiradaSilva, solteira de 39 anos e 1 metro e 48centmetros autpsias produzem infor-maes prprias tentava acender o fogocomlcoolquandoagarrafaexplodiuateando fogo s suas vestes. A criadagemdepe em peso. Contam a mesma hist-riaaparentementepoucohaviaparacontar o jardineiro Leonardo, casado,portugus,trintaanos,sabendoler;acopeiraearrumadeiraMariaEugniapg.10, jan/jun 2002A C ESilveira,cariocade28anos,solteiraeanalfabeta;alavadeiraeengomadeiraMaria Cndida de Morais, portuguesa de25anos,solteiraeanalfabetaeaama-seca Maria Leopoldina das Virgens, vi-va sergipana de 26 anos, analfabeta. Cin-co pessoas constituam a equipagem dodespachante Bento, inclusive uma ama,oqueindicaaexistnciadecrianas,masafamlianestecasoficaafastadado caso. Mulheres e crianas da elite nodeviamserenvolvidasemmatriapoli-ci al .1Soquatromulheres,todassemcompanheiro no registro civil, e um ho-memcasado.Estadiferenaparecefa-zer parte das exigncias garantidoras darespeitabilidade do lar, que poderia serperturbada por homens solteiros ou mu-lherescasadas.Maisqueisso,ojardi-neiro alfabetizado enquanto as mulhe-ressotodasanalfabetas,ilustrandomais um padro de desigualdade de g-nero. Por fim, o mapa das origens cons-titui o Rio da poca: trs portugueses bonstrabalhadores,respeitveis;umacarioca e a viva sergipana como vi-va mais experimentada no trato com ascrianas (teria filhos?).Mais humilde era a residncia de ManuelGomesdaSilva,umportugusde28anos, solteiro, que morava e tinha arma-zmnaruaLeopoldo.Chamadodoar-mazmsuacasa,deondesaafuma-a, levou consigo outro negociante pro-vavelmenteumscioeocaixeiro,eencontroumortaacozinheiraAnacletade Jesus, preta, viva, de idade estima-da em 115 anos. Talvez cansada da vidae de dar conta sozinha do servio doms-tico,ateoufogosvestes.Quantonoteria visto esta possvel remanescente dosculo XVIII!2Nas moradias populares as mulheres noescapavamdaaopolicial.Vejamosduascasasdecmodos:nadaruadoBispo 126 a polcia teve de arrombar ocmodoondef oi encont radamort aPraxedes da Conceio. Segundo a arren-datriadacasa,aportuguesaDelfinaCunha,vivadequarentaanos,faziaquatromesesquePraxedesviviadefa-vornoporoestepersonagemclssi-co da explorao, o locador de cmodos,podiasedaraoluxodealgumacarida-de. Com mais ou menos setenta anos edoente, a velha parda3 era estimada portodos, como confirmam os depoimentosdos moradores Marcos Guimares, cari-oca, quarenta anos, casado, cozinheiro,analfabeto; Canuta da Silva, fluminense,29 anos, casada, domstica, sabendo ler,e Adolfo Ferreira da Silva, carioca de 59anos, casado, sabendo ler, sargento re-formado dos bombeiros.4 Situao seme-lhante da morte do qumico industrialalemo Jlio Heimann, solteiro de qua-rentaanospresumveis.Haviaapenaspoucos dias que ele tinha alugado a salada frente e um cmodo de Jos Ribeiro,portugus, 36 anos, casado, mestre-de-obraseencarregadodacasadecmo-dos da rua Leopoldo 54. Seu vizinho nacasa, o caixeiro Augusto Jos Fernandes,portugus de 33 anos, casado, sentiu oAcervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pg.11R V O R V Omaucheironoquartoechamouapol-cia,quearromboueencontrouocad-ver. Depemt ambmasmoradorasRoslia Carneiro, de 35 anos, e AdelaideVazPereiradetrinta,duasportuguesascasadasedomsticasquemoravamnacasa.5Residnciascoletivasdepessoasmaispobresaindaguardavampresenteafiguradaesposaquepermanecianolar,foradomercadodetrabalho.Aquiso os maridos que pouco aparecem.Pelasmosdosdelegadosdepolciapossvel penetrar em residncias, bares,locais de trabalho e inventariar a popu-lao que por ali passava ou parte dela.So ocorrncias de carter no criminal,ondeasdvidasdohistoriadorsobreamanipulao de informaes podem sersignificativamentemenores.Estemate-rial parece indicar a existncia ainda deinmeros elementos a serem exploradosnos acervos da justia criminal; mas ain-da continua de p a questo sobre o usodas fontes para a histria do crime, quetentaremos discutir a partir da possibili-dadedesepensarasociedadecariocacomo violenta no incio do sculo XX.Aprimeiraquestoqueprecisaseren-frentada definir o que vamos compre-endercomoviolncianestetrabalho.Esta questo no simples, permitindodiferentes respostas que encaminhariamapesquisaemdireesasmaisdiver-sas.Asoluomaissimplesconside-rar como violncia a ao fsica volun-tria de indivduos sobre outros causan-do dor. Esta definio apresenta a indis-cutvel vantagem de permitir a constru-o de indicadores mais objetivos parasuaquantificao.Aindaassimalgunsproblemas subsistem, especialmente noquedizrespeitolegitimidadesocial-mente conferida a certos usos da violn-cia fsica. Algum uso da fora em prti-casesportivas,naeducaoinfantilouna ao estatal aceito e no deixa re-gistros. absolutamente legtimo consi-derarviolentaumasociedadepelafor-ma de educao de suas crianas pelospais, mas os indicadores desta violnciaso, em geral, impressionistas. Ficamos,por t ant o, r est r i t osvi ol nci ainterpessoal passvel de criminalizao,ainda que esta tambm, freqentemente,escape das malhas da lei.Estabelecendo um conceito limitado deviolncia,torna-sepossvelcomearaconstruir comparaes. Definir a violn-ci adeumapocael ugarsi gni f i caclassific-la em relao a outras pocasouregies.DizerqueoRiodeJaneiroeraumacidadeviolentaquerdizer,emprimeirolugar,queosnveisdevioln-ciaerammaioresqueosanterioresouposteriores, ou que era uma cidade maisviolenta que outras da mesma poca, es-colhidas para a comparao. Aqui os cri-triosdeescolhapodemserdiversos,massempredifceisdejustificar:cida-desbrasileiras,cidadeslatino-america-nas,cidadesmediterrneas,capitais...Via de regra o que se v a comparaocomosdadosdisponveis(nosdiasdehoje,porexemplo,ssefalaemNovapg.12, jan/jun 2002A C EIorque), ainda que as diferentes formasde coleta tornem arriscada qualquer con-cluso.A variao temporal parece ser um ele-mento importante a ser levado em con-ta.Acriminologiacontemporneatemaceitado algumas variaes como carac-tersticas da construo das sociedadesocidentais modernas: em primeiro lugarhaveria um declnio marcado da violn-ciadesdeofimdaIdadeMdiaataprimeira metade do sculo XX acentu-adonosculoXIXparadepoiscome-ar um movimento ascendente nos lti-mos cinqenta anos. Em segundo lugar,parece haver um correspondente aumen-to de crimes contra a propriedade, quevo suplantando os crimes contra a pes-soa,namedidaemqueseconsolidaasociedade capitalista.Estavariaonalongadurao,aindaque aceita, no parece fazer muito sen-tidodiantedaexperinciacolonialeescravista brasileira, sem falar do car-ter meramente indicativo dessa tendn-cia, diante da inexistncia de dados mi-nimamenteconfiveisparaanlisesdelongo prazo. Olhando para frente, ao con-trrio,omovimentopareceapresentaralguma lgica, que permite a construoimaginria de um passado melhor: com-parado com o que viria depois, o Rio deJaneiro belle poque no pode ser con-siderado violento.6Dentrodessecontextoacorrelaoen-trecrimescontraapessoaoucontraapropriedadetemmaiorsignificado.Po-deria ser um bom indicador da penetra-o de relaes sociais de tipo modernoou capitalista no Brasil. Por outro lado,comoosdadosapr esent adosporHolloway para o Rio de Janeiro do scu-lo XIX, quando confrontados com as es-tatsticasdoinciodosculoXX,pare-cemindicarummovimentoinversoaoeuropeu, com os crimes contra a pessoapassando a suplantar os crimes contra apropriedade,torna-senecessrioapre-sentar hipteses explicativas desta dife-rena. Uma primeira possibilidade acei-tar a anlise clssica de Maria Slvia deCar val hoFr anco, queconsi der aoescravi smobrasi l ei rodoscul oXIXcomo j dotado do esprito do capitalis-mo, voltado para o lucro, possvel de serobtido tanto no mercado como no furto.MasdadosdeoutrasregiesdoBrasil,apresentados por Maria Helena Machadoe Maria Cristina Wissenbach, por exem-plo, no correspondem ao que Hollowayencontrou no Rio de Janeiro. Desta for-ma, a situao do Rio de Janeiro pareceser especfica, mesmo no quadro do Bra-sil do sculo XIX nesse sentido se po-deria imaginar que s esta cidade j pe-netrara no mundo capitalista.7Com isso j chamamos a ateno para aimportncia da comparao com outrascidades do mesmo perodo, ainda que arealidade urbana brasileira da virada dosculo fosse extremamente limitada, e opapeldoRiodeJaneiromuitodistintodo de outros ncleos urbanos menores.8As comparaes mais facilmente realiz-Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pg.13R V O R V Oveis so com cidades europias ou dosEstados Unidos, onde as estatsticas soabundantes, mas o poder explicativo dascomparaes mais limitado. Alm de pro-cessos sociais bastante diversos, come-aasemostrarnecessriaaqualifica-o dos graus de violncia de que se estfalando.Mesmodefinindoviolnciacomo um fenmeno relacionado com ouso da fora fsica, esta ainda pode serutilizadaemgrausbastantediversos,desde as brigas de rua sem o uso de ar-mas, at o homicdio. O grau mais alto certamente o que atrai maior ateno eproduz mais e qui melhores com-paraes.Almdisso,comocomumapontar-se para o nmero de ocorrnci-as criminais que escapam aos registrosoficiais,onmerodehomicdiosumdos que mais se aproxima das cifras re-ais provavelmente muito poucos homi-cdiospassamdesapercebidos,exceto,talvez, em tempo de guerra. Assim, atra-vsdataxadehomicdios,seriaposs-vel afirmar que o Rio de Janeiro do in-cio do sculo era uma cidade muito me-nosviolentaqueoRiodeJaneirodehoje, e que, entre as cidades da poca,mantinha taxas j bem mais elevadas doque as grandes capitais do mundo, ain-da que se mantivesse num padro com-pat vel comacul turamedi terrnea,encontrvel em Roma ou Buenos Aires.As chamadas sociedades mediterrneas,onde a honra teria um papel fundamen-talnaorganizaosocial,teriamavio-lncia como uma forma legtima e neces-sriaderesoluodeconflitos.Destetipo de cultura fariam parte os italianos,portugueseseespanhisquecompu-nham o grosso da imigrao que viria aconstituir a sociedade brasileira urbanado incio do sculo XX. Aceitando-se estecomponente de identificao cultural desociedadesmaisafeitasaousodavio-lncia,torna-senecessriobuscarfor-mas de avaliar a violncia cotidiana, nonecessariamentedeconseqnciasfa-tai s.9Certamente,asociedadecariocado incio do sculo XX apresenta um ele-vado nvel estatstico de pequenos con-flitos, configurado no imenso registro deofensas fsicas leves (artigo 303 do C-digoPenalde1890).Pordcaquelapalha iniciava-se uma briga, que poderiase travar a tapa, com objetos atirados o que houvesse disponvel de imediato,vassoura ou aucareiro , ou quem sabemesmonafacaoutiro,quandoalgumdano mais grave poderia resultar. Outrascidadesbrasileirasdomesmoperodono hesitavam em diagnosticar sua vio-lnciapelapresenadestesimigrantesdesordeiros,comoSoPauloouBeloHori zonte.10OcasodoRiodeJaneiroeraumpoucomaiscomplicado;nossoimigranteeraprincipalmenteoportugus,menos identificado pela violncia, maismisturado no cenrio social da cidade, eavaliado talvez de forma positiva dianteda massa de homens pobres de cor oriun-dosdaescravido,deondeviriamosmais perigosos desordeiros e capoeiras.Mesmo assim, para os dirigentes polici-aisdoperodo,apresenadeimigran-pg.14, jan/jun 2002A C Eteseraconsideradacomoumdosprin-cipais fatores explicativos para as ocor-rnciascriminaiscomquesedefronta-vam.Convmdestacarqueaquicomeamosaintroduzirumnovotipodeproblemanadi scusso, peai mpor t ant enahistoriografiacontempornea.Quandopensamos se o Rio de Janeiro do inciodo sculo seria uma sociedade violenta,estamosnosreferindoaumconceitonossodeviolnciaouapadrespro-duzidospelohistoriadorouestamosdiscutindo dentro das categorias do pe-rodo, se os cariocas de ento pensavamviver numa cidade violenta? Mesmo semhierarquiz-los, preciso reconhecer quese tratam de dois problemas diferentes.A idia de sociedade mediterrnea podeser proposta como modelo explicativo deanlise ou ser reconhecida nas explica-es produzidas pelos contemporneos,como faziam os dirigentes policiais. En-quantoboapartedahistoriografiacor-rente se preocupa com a criminalizaoe o controle dos negros, o discurso utili-zadonoperodopareceapontarparaumapreocupaomuitomaiorcomomau imigrante, que estaria contaminan-do a pacfica e ordeira sociedade brasi-leira.Doisgrandesquadrosexplicativospro-venientes da rea da cultura parecem sedefrontar: de um lado a tradio ordeirado povo brasileiro, tornando irrelevantesou exgenas as manifestaes de violn-cia. De outro a presena de um sanguequente,latino,quefariadeumacertaformadeviolnciaparteintegrantedaculturaouformalegtimaderesoluode conflitos. Pelo primeiro a violncia setorna invisvel, pelo segundo normal. Es-tas explicaes, quase que contraditri-as, parecem fazer parte do senso comumpara serem utilizadas quando se faz ne-cessrio explicar ou pedir comportamen-tos em situaes de conflito. Na ordemdodiscursoconstri-seaidiadequeo brasileiro coletivamente pacfico povo ordeiro nas manifestaes polticasei ndi vi dual mentevi ol entonasuadomesticidaderesultadodosanguequente e da latinidade.Esteenfoquegeraltornaimprodutivaadiscussodeconjunturasespecficas,como a do incio do sculo. A violnciaseria um atributo constante no qual pe-quenas variaes ocorreriam pela entra-dadosgruposestranhosproduzindoti-pos de desordem pouco caractersticas.Se este tipo de abordagem pode satisfa-zer a certos grupos nas cincias sociais,ele certamente no responde a questescolocadas pela histria. Ao contrrio, aproduo e o vigor destas grandes teori-asquedeveserobjetodeestudo.Ahonra como motivo de violncia pode serbastanteimportante,especialmentenoquadrodasrelaesfamiliaresemmu-dana no final do sculo XIX,11 mas nodeveser t omadacomovar i velexplicativa para todo a presena da vio-lncia na cultura carioca ou brasileira.12Talvez o elemento central a ser guarda-Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pg.15R V O R V Ododestedebatequeoscontempor-neos tinham explicaes articuladas so-breaviolnciaemsuasociedade.Issopodeparecerbvioprimeiravistaeobjetodeumaextensabibliografiaso-bre o discurso jurdico ou mdico do in-cio do sculo. Mas existe sempre o pro-blema,freqentementeignoradopelahistoriografia brasileira, de tomar a dis-cusso interna de um grupo profissionalcomomdicosouadvogadoscomoexpresso de questes sociais significa-t i vas.13Almdisso,estasexplicaesnem sempre do conta dos efeitos prti-cos destes discursos, isto , de at queponto as preocupaes e explicaes daviolncia presente na sociedade serviamde orientao para aes individuais deautoproteo ou para a definio de po-lticas pblicas.Aformulaodepolticaspblicasdeconteno da violncia no incio do s-culo XX tem sido extensamente estuda-da,sendoconsideradaumadasprinci-pais matrizes de orientao do novo es-tado republicano. Para conter a pobrezaurbana este estado teria optado por umapoltica de represso constante utilizan-doporsuavezdeviolncia,destavezoficial, ainda que nem sempre legal queatingia desde os sem-trabalho at os tra-balhadoresquetentavamseorganizar.Relatrios de ministros da justia e che-fesdepolciaoferecemabundanteevi-dncia destas preocupaes e do esfor-odosgestoresdoestadoemproduzirordem na capital da repblica. Meus tra-balhos sobre a polcia tm tentado mos-trar que o estado era mais complexo doque isso, e que a transformao em aopolticadosdiscursosoficiaisenfrenta-va dificuldades de monta. Dentro dos di-ferentes escales do estado coexistiamdiagnsticos diversos dos motivos e for-mas da violncia carioca motivados porexpectativas diversas e que acarretavamcontradiesnasaescontraadesor-dem; os problemas percebidos nos gabi-netes no eram necessariamente os mes-mos que incomodavam os operadores napontadosistema.Damesmaforma,aesproduzidasnopoliciamentocoti-dianocomoasinmerasprisesporvadiagem podiam resultar num nme-ro mnimo de condenaes pela justia,insensvel mecnica policial.14As aes pblicas indicam uma percep-o da existncia de um grau significati-vodeviolncianasociedade.Emalgu-ma medida isto deve ser encarado comdesconfiana; aparelhos pblicos de se-guranaprecisamsempreapontarparaaviolnciadasociedadeatmesmocomo forma de justificar sua existnciaeasverbasdestinadassuamanuten-o.15Aindaassim,ainquietaodaselitesnofinaldosculoXIXerareal,mesmo que seus motivos talvez no fos-sem. As transformaes sociais do scu-lo haviam produzido uma massa de po-bres urbanos que participou ativamentededistrbioserevolues,ampliandoemmuitoomedomultidourbanaeincentivando o desenvolvimento de umpg.16, jan/jun 2002A C Econhecimento cientfico dos comporta-mentos individuais ou coletivos que con-firmavaplenamenteostemores.ORiodeJaneironoescapavadasagitaespopulares ao menos desde a revolta dovintm em 1880 e as elites governantese intelectuais estavam bem aparelhadascom as teorias de Lombroso ou Le Bonpara interpret-las. O aparato terico eu-ropeu,emsuaaplicaobrasileira,en-contrava nos elementos estranhos do queseria a sociedade brasileira estrangei-ros ou negros as razes da desordem.Aomesmotempodeslocavasuaspreo-cupaes dos eventos criminais mais fre-qentes para aqueles que de alguma for-ma poderiam afetar os membros da boasociedade:nohaviagrandepreocupa-o com a pequena violncia, mas comas chamadas contravenes da vadiageme do jogo ou com a prostituio, onde osistemaprodutivoouasboasfamliaspoderiam ser atingidos.Oselementosdapontadosistema,ospoliciais que conviviam com o dia-a-diada populao, buscavam estabelecer umsistema de convivncia possvel com osdirigentes que os empregavam e com osgrupos sociais onde trabalhavam e, maisque isso, viviam. De seu ponto de vista,questes como prostituio ou jogo nodeviamserlevadastoasrio,sendoparte de um cotidiano classificado pelomenos como um mal necessrio. Os pe-quenosconflitos,poroutrolado,leva-vam sempre reclamantes s delegacias,perturbandoosossegodospoliciais.Almdisso,eramimportantesocasiesonde estes pequenos funcionrios pbli-cos podiam demonstrar o seu poder, dis-tribuindo justia, protegendo amigos, ecriandoteiasderelaessociaisnasquaisteriamalgumainfluncia,aindaquebastantelimitadaeraolugardaconstruo e afirmao das pequenas au-toridades locais. A situao no era mui-to diferente nos pequenos crimes contraapropriedade:investigarouno,colo-car presso sobre suspeitos ou no, eramdecisesqueenvolviamospadresderelacionamentoestabelecidosentreospoliciais e queixosos, o trnsito de auto-ridadepblicaepoder.16Masestepa-dro de ao no era definido por umapercepo clara da gravidade do proble-ma social; os policiais normalmente de-senvolvem uma viso bastante pessimis-ta da realidade, por conviver permanen-temente com as misrias humanas, quepodeataparecersobaformadeumdiscurso de agravamento dos problemas,mas que parece ser um componente de-rivado de sua posio na sociedade.No so muitos os casos de policiais quedeixaram registrada fora dos livros deocorrncia das delegacias sua percep-o sobre o problema do crime e da vio-lncia na cidade. Por isso, parece extre-mamentevaliosoolivroOsladresnoRio, do delegado Vicente Reis. Seu sub-ttulojdelicioso:Suacrnica,suasoperaes, sua gria, sua polinomia, seusvulgos,seusretratos,gravurasdescriti-vas, episdios e tudo o mais concernenteAcervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pg.17R V O R V Ovidaeobradosrapinantesqueinfes-tam a cidade do Rio de Janeiro, com ra-mificaes por So Paulo e Minas: estu-doseobservaesminuciosas,1898-1903.17OjovemVicenteReisiniciouumacarreiracomodelegadodepolciaeescritornoRiodeJaneiro,antesdetransferir-se para o Amazonas, onde par-ticipou por longo tempo da vida pblica.Neste livro ele utiliza sua experincia eo depoimento de um escroque, o doutorCornlio, para descrever as prticas doscriminosos cariocas. Seu diagnstico ini-cialtpicodopensamentopolicial:oRio,aocontrriodaEuropa,seriaumacidade muito pacfica, pois os ricos noostentamsuariquezaeospobresnopassam necessidade, pois h fartura detrabalho:Aopulncia,companheirainseparveldos milionrios e das pompas que as ri-quezas lhes do, raramente se desco-bre na capital federal.Em geral a gente apatacada, entre ns,economiza para gozar no exterior, ondese desforra dos tristes dias de um pas-sado cheio de amarguras provenientesde um labor incessante, compensando-oscomadelciaquedespertamosnovos climas, os ares estranhos, cos-tumes e usos diversos.Acresce que no Rio de Janeiro ningumsofreastorturasdafome,oquenose d na Itlia, em Londres, em Paris.Nesta abenoada terra onde, graas aDeus,oquedizrespeitoagnerodeconsumo,notocantealimentao,estaoalcancedetodasasbolsas,deixadecomerquemnoquer,por-quanto o infeliz nunca bate em vo portadosemelhante.Obrasileiro,em geral, generoso.Demais, entre ns, o trabalho no es-casseia. Toda a gente encontra ocupa-oeoservi ot emsemprepagacompensadora.18Mesmo neste cenrio paradisaco, o po-licial alerta para os perigos. Como as leisso frgeis e a polcia mal preparada, agatunagem desterrada da Europa estse estabelecendo por aqui, o crime vemaumentando,eatingeamilonmerodos rapinantes conhecidos na cidade.Seaviolnciacomoproblemaeraper-cebida ou apontada com freqncia poraqueles que deveriam enfrent-la comofuno pblica, a questo se torna mui-to mais complexa quando tentamos ava-liar a percepo dos habitantes da cida-de. Assim como tentamos indicar a difi-culdade de tratar o Estado como uma to-talidade, o mesmo ocorre com o conjun-todapopulao.Recortesdeclasse,opovo, camadas populares, a opinio p-blica,diversascategoriasourecortespodem ser propostos, sem satisfazer ple-namente como configurao de diferen-tes grupos que compartilhavam o espa-our bano. Pr obl emamet odol gi cocrucial e que s pode ser resolvido poropes artificiais. Uma das formas maiscomuns utilizar a imprensa, repositriomelhorestruturadodeumaimprovvel em todos os sentidos opinio pbli-pg.18, jan/jun 2002A C Eca.Atravsdosdiversosjornais,revis-tas, ou utilizando alguns cronistas recor-rentes no incio do sculo Machado deAssis, Joo do Rio, Lima Barreto e OlavoBilac entre os mais citados, mas h umainfinidadedeoutrospossvelcons-truirdiferentesvisesdoproblemadaviolncia carioca. Seria extenso demaistentaranalisarcadacronistaeseudis-cursosobreaviolnciaouqualqueroutro tema. Para nossos objetivos bastadeixarclaroquesetratamdeposiesbastantedistintas,assimcomopodemter os jornais. A expanso da imprensadirianoinciodosculoXXmotivouumadiversificaodeestratgiasparaconquistaropblico,entreasquaisoapelo a narrativas e crimes foi das maisempregadas.Discutiraviolnciatendocomo fonte o Jornal do Comrcio, o Cor-reio da Manh,ou A Noite pode levar aresultadosbastantediversos.Atentati-va mais consistente de analisar o trata-mento jornalstico dos problemas urba-nos foi feita por Eduardo Silva.19 A par-tir de uma coluna do Jornal do Brasil quebuscadarvozaseupblico,Eduardoconstataquepreocupaescomavio-lncia na cidade estavam entre as maisfreqentemente apresentadas no jornal,mas que incidiam principalmente sobreo comportamento das foras pblicas desegurana.QuandoEduardomencionaque viver no Rio era muito perigoso na-queles dias, 20 o problema principal eraaarbitrariedadedepoliciaiseoutrosagentes.Mesmoassim,Eduardosugere parafraseando Georges Lefebvre que acidade vivia sob um grande medo, quenodevesertomadocomomerama-nifestaohistricadesetoresmdi-os cercados por uma realidade de ex-trema iniqidade social. As classes po-pularestambmsevemameaadaspelas hordas de desocupados e desva-lidosqueperambulampelasruasdacapital...21Nesteponto,aevidnciadaimprensapareceserbastantelimitada.Asrecla-maesdefatoexistiam,masdifcilprecisarquemreclamavae,principal-mente,quemnoreclamavaequaleraoobjetodasreclamaes.Ficasemprepara a imaginao do leitor o que acon-tecia quando algum estava se queixan-do que maltas de menores desocupadoscometiam toda a sorte de desatinos, [...],no bulevar 28 de Setembro.22 O desati-no de uns podia ser a alegria de outros...Oespaourbanocariocaviviaemrpi-dat r ansf or mao, ondevi sesconflitivassobreaordemurbanaeramexpressas nessas opinies publicadas naimprensa, que procuravam mobilizar su-porte do Estado e de seus agentes repres-sivos. As manifestaes na imprensa in-dicamquesetoresnodiretamenteen-volvidos na gesto do Estado tinham al-guma preocupao com o ajuste de umcdigo coletivo de ordem urbana. O queparece um pouco mais difcil de ser veri-ficadoatquepontoestapercepodadesordeminfluasobreocomporta-mento cotidiano.ParaavanarumpouconestaquestoAcervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pg.19R V O R V Oserconvenienteintroduziraquestodas vtimas e dos crimes que sofrem. No recente a demonstrao pelos estudosde crime que o cidado comum a vti-ma da maior parte dos crimes. No Rio deJaneiro no parece ter sido diferente, eoshabitantesdacidadeeramexpostos de vez em quando a atentados con-trasuaintegridadefsicaouproprieda-de.Masoperfilquepareceemergirdoestudo destes casos sugere exatamenteque no havia uma grande preocupaocomaprpriasegurana.Dopontodevistadopblico,podemosconsiderarqueumparefetivodaviolnciaomedo, e a adoo de medidas para evi-tar ser alcanado pelos problemas. cla-roquetaismedidasdevemvariarpelacapacidadedosgruposemseprotegerouporsuadisposioemcorrerriscosem troca do usufruto da vida na cidade,variando, portanto, com o poder aquisi-tivo, a idade ou o sexo dos agentes. Ain-da assim, podemos apontar para uma sig-nificativatranqilidadenavidacariocado1900.Operfildoscrimescontraapropriedade parece indicar a prevalnciadebatedoresdecarteirasoudefurtosde quintais e residncias atravs de por-tas deixadas abertas uma grande cida-de que ainda podia se dar ao luxo de sepreocupar com ladres de galinhas.No existe qualquer levantamento maisdetalhadodoscrimescontraaproprie-dadenoperodo.Oquepodemosdes-crevervemdaleituraderegistrosdeocorrnciapolicial,dasnotciasdejor-nal, ou ento, mais uma vez, recorrendoaotrabalhododelegadoVicenteReis.Suatipologiadoscriminososextensae variada:Entre os ladres destacam-se:1 - Os que matam para roubar.2 - Os que agarram a vtima pela gar-ganta.3 - Os que assaltam no mar.4 - Os que narcotizam.5 - Os que fazem banhos de mar.6 - Os saltadores de janela.7 - Osquedestroemosobstculossua passagem, por meio de instru-mentosparataisfinscriminososapropriados...8 - Osquevi si t amgal i nhei r os,coradouros e casas vazias.Entre os gatunos h os que trabalhamcom dois dedos e os que se valem daboa f alheia.Quanto aos primeiros notam-se:1 - Os que furtam objetos de bolso.2 - Os que se aproveitam dos descui-dos,dodesmazelodequalquerpessoa.3 - Osquefurtamamostrasexpostas porta de casas comerciais e, naimpossibilidade de se entregarema esse meio de rapinagem, saquei-amospobresinfelizesque,porqualquer causa, bebedeira ou ata-que,soencontradoscadosnasruas e praas pblicas.4 - Os que furtam animais.23A lista se inicia com criminosos perigo-pg.20, jan/jun 2002A C Esos,masumaleituramaiscuidadosadestes grupos permite que percebamosque sua classificao feita por crimesisolados. Os nove nomes listados entreos que matam para roubar so indivdu-ospresosporcrimesquetiveramalgu-marepercussonacidade,incluindooclebreFerreiradasDegoladas,acusa-dodemataraprostitutaClaraMery,aMadameHolofote,numprocessoqueEvaristodeMoraisconsideroubastanteirregular,eemqueseucmpliceAnt-nioRiachuelo,foiabsolvido.24Amaio-riadenomescitadossededicaaospe-quenos crimes, batendo carteiras ou en-trandoemcasaalheia,atchegarnosque furtam em galinheiros tipos comoo Bico Doce, o Galo, o Manuel Peru ou oJoo Galinha. A prpria descrio do de-legado demonstra a prevalncia dos pe-quenos crimes.Aviolnciafsica,porsuavez,ocorriaem espaos e situaes comuns, onde afreqncia pblica era diversificada e sevitadaporgruposdaelitequepreferi-am ler sobre ela, em Joo do Rio. Partedesta violncia era encarada como natu-ralnestassituaesemesmonecess-ria como reao a violaes de cdigosinformaisdeconduta.Testemunhasepoliciaispareciamcompreenderasmotivaesdelutaseconflitos,aindaque promotores e delegados os atribus-semamotivosfteis.Nomundodadi-verso, o lcool podia fazer crescer pe-quenasdisputaseosconflitospodiamserexagerados.Masissonolevavaopblico a desistir de seus prazeres, sen-doocombateaoconsumodebebidasrestrito a alguns poucos doutrinadores,tantonocampoprogressistacomonoconservador.25Ainda no existem pesquisas sobre bri-gas ou pequenas agresses. Se for pos-svel nos basear nos trabalhos dedicadosacrimesdemorte,feitosporSidneiChalhoub e Carlos Antnio Costa Ribei-ro, podemos perceber como os eventosviolentos esto diretamente ligados his-triadosenvolvidosesuateiaderela-es.26Nestecontexto,osacontecimen-tos violentos eram, em certas circunstn-cias,compreendidoseatlegitimados,mesmoquandopraticadospelostraba-lhadores policiais. A incompreenso e aatribuiodomotivoftilvinhadecima, do discurso dos setores moraliza-dores da elite.27 Tal violncia, mais umavez, no parece ser ameaadora, pois eraoriginriadumaviolaoderegrasquedeveriam ser conhecidas. Podia, assim,ser condenada, mas no afetava as con-dies de existncia.O Rio de Janeiro do incio do sculo XXconvivia,portanto,comumaviolnciaque poderia parecer pequena para ns,cem anos depois, ou enorme para os decinqentaanosantes.Grandetambmpara um londrino, ou quem sabe normalparaumromano.Podiaassustarobur-gus, que gritava pela ao policial, ouser admirada en passant por aqueles quebrevemente pensavam: Teve o que me-receu.... Poucos mudavam seu ritmo deAcervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 7-22, jan/jun 2002 - pg.21R V O R V Ovida por causa dela. Continuariam a co-merosdoiscamaresdasempadinhasdo nosso confeiteiro pelo menos aque-les com entrada nas confeitarias chiquesN O T A S1. Arquivo Nacional. Processo T8.3238, 24 set. 1909 (8a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).2. Arquivo Nacional. Processo T8.3260, 15 jun. 1909 (8a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).3. Aquificabemclaraamisturadoregistrocotidianocomascategoriaspoliciais.Ondemaisencontrar pardos? Fique claro que emprego o ter mo numa concesso narrativa.4. Arquivo Nacional. Processo T8.3250, 22 out. 1909 (8a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).5. Arquivo Nacional. Processo T8.3263, 11 fev. 1909 (8a Pretoria Criminal do Rio de Janeiro).6. Aqui j se percebe que o problema no pode ser abordado apenas pelo aspecto quantitativo.Voltaremos questo da reconstruo positiva do passado mais frente.7. Esta comparao ainda muito precria e se baseia em dados apresentados por Thomas H.Holloway, Policing Rio de Janeiro: repression and resistance in a 19th century city, Stanford,StanfordUniversityPress,1993;MariaHelenaP.T.Machado,Crimeeescravido:trabalho,lutaeresistncianaslavouraspaulistas,1830-1888,SoPaulo,Brasiliense,1987eMariaCristinaCortezWissenbach, Sonhosafricanos,vivnciasladinas:escravoseforrosemSoPaulo, 1850-1880, So Paulo, Hucitec, 1998.8. Para um trabalho comparativo do gnero sugerido, na Amrica Latina, ver Lyman L. Johnson,ChangingarrestpatternsinthreeArgentinecities:BuenosAires,SantaFe,andTucuman,1900-1930,emLymanL.Johnson, Theproblemoforderinchangingsocieties:essaysoncrime and policing in Argentina and Uruguay, Albuquerque, University of New Mexico Press,pp. 117-148.9. A literatura antropolgica sobre sociedades mediterrneas e honra bastante extensa. Qual-querestudodevepartirdeJulianPitt-RiversedacoletneadeJ.G.Peristiany,Honorandshame: the values of Mediterranean society, Chicago, University of Chicago Press, 1966. VertambmotrabalhodesntesedeFrankHendersonStewart,Honor,Chicago,UniversityofChicago Press, 1994 e a utilizao destes conceitos para o Rio de Janeiro feita por SueannCaulfield, Em defesa da honra:moralidade, modernidade e nao no Rio de Janeiro, 1918-1940, Campinas, Editora da Unicamp, 2000.10.ParaSoPauloverBorisFausto,Crimeecotidiano:acriminalidadeemSoPaulo,1880-1924, So Paulo, Brasiliense, 1984, e Maria Inez Machado Borges Pinto, Cotidiano e sobrevi-vncia: a vida do trabalhador pobre na cidade de So Paulo, 1890-1914, So Paulo, EDUSP,1994.SobreBeloHorizonteverLucianaTeixeiradeAndrade,Ordempblicaedesviantessociais em Belo Horizonte, 1897-1930, dissertao de mestrado em sociologia, UniversidadeFederal de Minas Gerais, 1987.11.No deve ser por acaso que a violncia nas relaes de gnero tem ocupado lugar de desta-que entre as preocupaes historiogrficas sobre crimes no incio do sculo XX.12.Mesmoassim,parece-mequeasindicaesdotextoclssicodeMariaSlviadeCarvalhoFranco sobre a legitimidade da presena e do exerccio da violncia no mundo dos homenspobres no Brasil tm sido muito pouco explorado. Este o caso de um trabalho onde algumasdeficincias extremamente visveis tm obscurecido seus mritos e insights ainda profunda-mente atuais.13.Este problema j foi bastante apontado na literatura de matriz foucauldiana. Ver as crticas deeachorarseusmortos,quemesmosemviolnciaparticipavamdatragdiada condio humana. E sobre eles, o his-toriador faz seu ofcio.pg.22, jan/jun 2002A C EEdmundo Campos Coelho, As profisses imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Riode Janeiro, 1822-1930, Rio de Janeiro, Record, 1999 e Jos Leopoldo Ferreira Antunes, Me-dicina, leis e moral: pensamento mdico e comportamento no Brasil, 1870-1930, So Paulo,UNESP, 1999.14.Muito se fala na represso a vadiagem no Rio de Janeiro, mas ainda preciso levantar muitosdados.UmbompontodepartidaMarceloBadarMattos,Vadios,jogadores,mendigosebbados na cidade do Rio de Janeiro do incio do sculo, dissertao de mestrado, Universi-dade Federal Fluminense, 1991. Para se ter uma idia da importncia e do volume dos pro-cessosdevadiagem,umbrevelevantamentodassentenasdojuizda3aPretoriaCriminalentre 8 de outubro e 12 de novembro de 1916 contabiliza 101 processos, sendo que setentacontra vadiagem, que resultaram em 37 absolvies e 33 condenaes. Neste caso, o nme-ro de condenaes mais significativo do que o encontrado por Badar, mas difcil avanarqualquer interpretao.15.Damesmaforma,precisamapresentarbonsresultadossobpenadeperderpoder.umacontradio caracterstica dos sistemas policiais e que pode ser muito importante na produ-oeanlisedeestatsticascriminais.VerointeressantetrabalhodeHowardTaylor,Thepolitics of the rising crime statistics of England and Wales, 1914-1960 em Crime, histoire &societs, v.2, n. 1, 1998, pp. 5-28.16.OtemamaisbemdesenvolvidoemmeulivroOrdemnacidade:oexercciocotidianodaautoridade policial no Rio de Janeiro, 1907-1930, Rio de Janeiro, Rocco, 1997.17.Vicente Reis, Os ladres no Rio, Rio de Janeiro, Laemmert, 1903.18.Idem, pp. 2-3.19.Eduardo Silva, As queixas do povo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.20.Op. cit., p. 106.21.Idem, p. 119.22.Idem, p. 122.23.Vicente Reis, op. cit., pp. 24-25.24.Evaristo de Morais, Memrias de um rbula criminalista, Rio de Janeiro, Briguiet, 1989, pp.115-121.25.A propaganda anti-alcolica, por oposio, adotava um tom dramtico. Ver Hermeto Lima, Oalcoolismo no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914 e Evaristo de Morais,Ensaios de patologia social: vagabundagem, alcoolismo, prostituio, lenocnio, Rio de Janei-ro, Leite Ribeiro, 1921.26.Sidnei Chalhoub, Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeirodabellepoque,RiodeJaneiro,Brasiliense,1986eCarlosAntnioCostaRibeiro,Corecriminalidade:estudoeanlisedajustianoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,EditoraUFRJ,1995.27.Uma discusso que no vou travar aqui diz respeito a como outros setores da elite considera-vamnormaiscertasmanifestaesdeviolncianapobreza,carregandonadescriodostipos brutos que vivem neste universo, dos quais no se poderia esperar outro tipo de atitude.A B S T R A C TTheaimofthisarticleistodiscussifthecriminalprocessesallowtothinkthecityofRiodeJaneiroasaviolentcityinthebeginningsofthetwentiethcentury.Theauthorpointsouttheidentityoftheindividualsinvolvedinthosevariedcircumstancesofviolenceandexposesthemultiplicity of methods and themes that the criminal archives may offer to the researchers of therecent history of Brazil.