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enfoque: pontos de vista:

Qual a questo? LIVRO DIDTICO: um (quase) manual de usurio Marisa Lajolo (Unicamp)

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O que pensam outros especialistas? LIVRO DIDTICO: do ritual de passagem ultrapassagem Ezequiel Theodoro da Silva (Unicamp) NO COMEO, A LEITURA Regina Zilberman (PUC-RS) SOBRE LIVROS DIDTICOS: quatro pontos Nilson Jos Machado (USP) ALM DAS PGINAS DO LIVRO DIDTICO Mary Julia Martins Dietzsch (USP) COMO TORNAR PEDAGGICO O LIVRO DIDTICO DE CINCIAS? Maurcio Mogilnik (Colgio Equipe-SP) EXERCCIOS DE COMPREENSO OU COPIAO NOS MANUAIS DE ENSINO DA LNGUA Luiz Antnio Marcuschi (UFPe) LIVRO DIDTICO DE MATEMTICA: uso ou abuso? Luiz R. Dante (Unesp/Rio Claro-SP)

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Em Aberto, Braslia, ano 16, n.69, jan./mar. 1996

ISSN 0104-1037

MEMRIA DE MANUAIS DE HISTRIA Raymundo B. Campos (Colgio Equipe-SP) TECENDO REDES E LANANDO-AS AO MAR: o livro didtico de Geografia e o processo de leitura e escrita Raul Borges Guimares (Unesp/Presidente Prudente-SP) PROJETO GRFICO, ILUSTRAO E LEITURA DA IMAGEM NO LIVRO DIDTICO Lus Camargo LEITURA E ESCRITA NA ESCOLA: algumas propostas Maria Thereza Fraga Rocco (USP) O TAMANDU E AS FORMIGAS Pedro Bandeira

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bibliografia:

LIVRO DIDTICO E QUALIDADE DE ENSINO

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ENFOQUE: Qual a questo?LIVRO DIDTICO: um (quase) manual de usurio Marisa Lajolo* Entre esses elementos mais essenciais destacam-se os livros. Para Paulo Freire, mestre que ensinou minha gerao de educadores a ler a leitura e a escola. A escola um lugar especial. Tambm especial o material escolar, que se pode definir como o conjunto de objetos envolvidos nas atividades-fim da escola. Tudo aquilo que ajuda a aprendizagem que cumpre escola patrocinarcomputadores, livros, cadernos, vdeo, canetas, mapas, lpis de cor, televiso, giz e lousa, entre outras coisas material escolar. Na maior parte das escolas brasileiras, alguns desses itens so mais freqentes do que outros. Entre os mais raros, incluem-se, provavelmente, computadores e aparelhos de vdeo. Dentre os mais comuns, giz e lousa. Ao conjunto acima se poderiam acrescentar tantos objetos quanto os sugeridos pelos recursos materiais, competncia e imaginao de educadores e de escolas: colees de pedras, retalhos de tecido, jornais, revistas, tintas, pincis, cola, tesoura, vasos de plantas, bichos secos, impressoras, mimegrafo. Mas, qualquer que seja o conjunto de coisas que constitui o material escolar, alguns Geralmente, livros no-didticos dispensam seus leitores de qualquer gesto que ultrapasse a leitura individual, o que, alis, no pouco, se se entender leitura no sentido amplo de produo e alterao de significados, de envolvimento afetivo, de experincia esttica. O manual de instalao de um aparelho, por exemplo, produz significados, na medida em que, a partir da leitura dele, seu leitor aprende a instalar um videocassete, distinguindo plo positivo de plo negativo e ambos do fio de terra, ligando cabos diferentes a diferentes chaves, e assim por diante. Um livro de receitas, por sua vez, ao sugerir que o leitor cozinhe abbora com feijo, produz significados para os leitores que jamais cozinharam ou viram cozinhar aquele vegetal alaranjado de casca dura e cheio de sementes; mas tambm altera significados para aqueles leitores que, at lerem a receita, s sabiam que se utilizava abbora como ingrediente de doce e que s tinham comido feijo cozido com lingia. J os versos de Manuel Bandeira em que se l Vou-me embora pra Pasrgada L sou amigo do rei Terei a mulher que quero Na cama que escolherei elementos so mais essenciais do que outros, porque influem mais diretamente na aprendizagem.

* Professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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podem, simultaneamente, produzir e alterar significados. Seus leitores aprendem, numa sociologia fantstica, que Pasrgada vive em regime monrquico, ou deduzem que Pasrgada deve ser o nome de um lugar, j que est escrito com letra maiscula e complementa o verbo ir. Mas os versos ensinam tambm que ser amigo do rei talvez tenha um significado diferente de ser amigo da ona, multiplicando, assim, os significados possveis da expresso "ser amigo de". O texto de Bandeira, entretanto, alm de produzir e alterar significados, pode tambm patrocinar envolvimento afetivo e experincia esttica, como seria o caso, por exemplo, de um leitor que, a partir da leitura dos quatro versos acima, se fosse colocando no lugar do eu que diz "vou-me embora...", fosse reparando na musicalidade das frases ou ainda fosse atentando para a sensualidade dos versos finais. Por isso textos como este de Bandeira so considerados poesia. Os livros didticos, tambm, podem patrocinar todas estas modalidades de leitura que os livros no-didticos proporcionam, muito embora parea pouco provvel que um livro de Cincias provoque envolvimento esttico, ou que um livro de poesia fornea informaes cientficas..., mas preciso no esquecer que, no reino das linguagens e dos livros (e at mesmo no reino dos Livros didticos!) tudo possvel: estudos sobre a vegetao original de certas regies da terra recorreram a quadros e a tapearias antigas para conhecimento da aparncia de certas plantas... Em sociedades como a brasileira, livros didticos e no-didticos so centrais na produo, circulao e apropriao de conhecimentos,

sobretudo dos conhecimentos por cuja difuso a escola responsvel. Dentre a variedade de livros existentes, todos podem ter e efetivamente tm papel importante na escola. Didtico, ento, o livro que vai ser utilizado em aulas e cursos, que provavelmente foi escrito, editado, vendido e comprado, tendo em vista essa utilizao escolar e sistemtica. Sua importncia aumenta ainda mais em pases como o Brasil, onde uma precarssima situao educacional faz com que ele acabe determinando contedos e condicionando estratgias de ensino, marcando, pois, de forma decisiva, o que se ensina e como se ensina o que se ensina. Como sugere o adjetivo didtico, que qualifica e define um certo tipo de obra, o livro didtico instrumento especfico e importantssimo de ensino e de aprendizagem formal. Muito embora no seja o nico material de que professores e alunos vo valer-se no processo de ensino e aprendizagem, ele pode ser decisivo para a qualidade do aprendizado resultante das atividades escolares. Por desfrutar de uma tal importncia na escola brasileira, o livro didtico precisa estai- includo nas polticas educacionais com que o poder pblico cumpre sua parte na garantia de educao de qualidade para todos. Pela mesma razo, a escolha e a utilizao dele precisam ser fundamentadas na competncia dos professores que, junto com os alunos, vo fazer dele (livro) instrumento de aprendizagem. Assim, para ser considerado didtico, um livro precisa ser usado, de forma sistemtica, no ensino-aprendizagem de um determinado objeto do conhecimento humano, geralmente j consolidado como disciplina escolar. Alm disso, o livro didtico caracteriza-se ainda

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por ser passvel de uso na situao especfica da escola, isto , de aprendizado coletivo e orientado por um professor. Por tais razes, o livro didtico dirige-se, simultaneamente, a dois leitores: o professor e o aluno. Esta sua dupla destinao manifesta-se, por exemplo, no fato corrente de que certos exemplares do livro didtico so chamados de livro do professor. Por dever de ofcio, o professor torna-se uma espcie de leitor privilegiado da obra didtica, j que a partir dele que o livro didtico chega s mos dos alunos. Da que o livro do professor precisa ser mais do que um exemplar que se distingue dos outros por conter a resoluo dos exerccios propostos. O livro do professor precisa interagir com seu leitor-professor no como a mercadoria dialoga com seus consumidores, mas como dialogam aliados na construo de um objetivo comum: ambos, professores e livros didticos, so parceiros em um processo de ensino muito especial, cujo beneficirio final o aluno. Esse dilogo entre livro didtico e professor s se instaura de forma conveniente quando o livro do professor se transforma no espao onde o autor pe as cartas na mesa, explicitando suas concepes de educao, as teorias que fundamentam a disciplina de que se ocupa seu livro. Ou seja, quando, no livro do professor, o autor franquear a seus leitoresprofessores os bastidores de seu livro, mostrando as cartas com que faz seu jogo: os pressupostos tericos que assume e segue relativamente tanto matria de que trata o livro quanto a questes de educao e aprendizagem.

Em sua forma mais comum, livros didticos contm textos informativos (sobre Cincias, sobre Gramtica, sobre Geografia...) aos quais se seguem exerccios e atividades. A expectativa do livro didtico que, a partir dos textos informativos, das ilustraes, diagramas e tabelas, seja possvel a resoluo dos exerccios e atividades cuja realizao deve favorecer a aprendizagem . Neste fim de dcada, vivemos todos, do Plo Norte ao Plo Sul da Terra, um processo aparentemente irreversvel de globalizao, cifrado nas mais diferentes linguagens. A escola precisa ter a capacidade de interagir com todas elas, fazendo-se palco do grande dilogo de linguagens e de cdigos que, porque existem na sociedade, precisam estar presentes na escola, sendo o livro didtico um bom portador para elas. Todos os componentes do livro didtico devem estar em funo da aprendizagem que ele patrocina. Como um livro no se constitui apenas de linguagem verbal, preciso que todas as linguagens de que ele se vale sejam igualmente eficientes. O que significa que a impresso do livro deve ser ntida, a encadernao resistente, e que suas ilustraes, diagramas e tabelas devem refinar, matizar e requintar o significado dos contedos e atitudes que essas linguagens ilustram, diagramam e tabelam. Num livro didtico, tudo precisa estar em funo da situao coletiva da sala de aula, para com ele se aprenderem contedos, valores e atitudes especficos, sendo que se espera que a aprendizagem no se processe apenas pela leitura das informaes que o livro fornece, mas tambm pela realizao das atividades que ele sugere.

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Assim, a qualidade dos contedos do livro didtico informaes e atitudes precisa ser levada em conta nos processos de escolha e adoo do mesmo, bem como, posteriormente, no estabelecimento das formas de sua leitura e uso. Se atravs do livro didtico o aluno vai aprender, preciso que os significados com que o livro lida sejam adequados ao tipo de aprendizagem com que a escola se compromete. Os significados que, em torno do livro didtico, o aluno vai construir ou alterar, precisam, por um lado, corresponder aos padres de conhecimento da sociedade em nome da qual a escola estabelece seu projeto de educao. Por outro, os significados que o livro veicula podem tambm questionar o conhecimento at ento aceito como legtimo. O essencial que, em qualquer dos casos, as informaes endossadas ou sua contestao, sejam fundamentadas; como a escola no desvinculada de seu contexto social, tanto os padres de conhecimento quanto os de sua contestao e reformulao, precisam satisfazer as expectativas da clientela escolar (isto , dos alunos, das famlias de alunos, e da comunidade da qual vm os alunos) e, simultaneamente, as diretrizes do sistema educacional. s a partir do conhecimento que j tm do mundo em que vivem, que os alunos podero construir os conhecimentos nos quais livro didtico e escola devem inici-los. Alunos, por exemplo, que acreditam que o leite azeda porque o saci cuspiu nele, dificilmente mudaro de opinio pela mera leitura de um texto que os informe sobre contaminao do leite como fruto da falta de higiene.

No caso, preciso partir do saci e chegar aos bacilos.... e essa passagem s o professor pode fazer, e o que ele precisa fazer de mais importante. No processo de seleo do livro didtico e ao longo de sua presena na sala de aula, preciso planejar seu uso em relao aos contedos e comportamentos com que ele trabalha. s a partir disso que se pode descobrir a melhor forma de estabelecer o necessrio dilogo entre o que diz o livro e o que pensam os alunos. Pois s na interao entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento avana. Assim, um livro didtico no pode conter informaes incorretas, porque estas levariam seus usurios a operarem com significados inadequados para a vida que vivem. Um livro no pode, por exemplo, ensinar que 2 + 2 = 3, que o Brasil se divide em 16 estados, nem grafar casa com z; tampouco pode afirmar que a Inconfidncia Mineira pretendia a Abolio da Escravatura ou ainda que as cegonhas trazem as crianas. Um livro didtico no pode veicular nenhuma dessas informaes, porque nenhuma delas corresponde a significados aceitveis na esfera da vida social para a qual os alunos se preparam na escola. Da mesma forma, um livro didtico no pode construir seus significados a partir de valores indesejveis. No pode, por exemplo, endossar discriminao contra certos grupos sociais, nem propor a lei do mais forte como estratgia para solucionar diferenas. Em hiptese alguma um livro didtico pode endossar, nem mesmo de maneira indireta, comportamentos inspirados em tais valores ou

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aplaudir atitudes que os reforcem ou incentivem, porque tais comportamentos e valores no fazem (e nem devem fazer) parte do alicerce tico da sociedade brasileira. Mas se o livro didtico no pode e no deve conter informaes erradas nem subscrever determinados valores e comportamentos, muitas vezes informaes erradas e valores perniciosos insinuam-se de forma menos ou mais velada em alguns livros didticos usados em diferentes escolas brasileiras. Certos livros didticos, algumas vezes, contm afirmaes que de uma perspectiva tica ou de uma perspectiva cientfica no so verdadeiras. No entanto, por diferentes razes, compreensveis mas no justificveis, tais livros e suas incorrees, com ou sem a aval dos professores, esto nas salas de aula, nas mos dos alunos e talvez em suas cabeas. A impossibilidade de algumas vezes abandonar um livro ruim exige um esforo extra do professor para evitar ou (pelo menos) atenuar as conseqncias danosas de um instrumento pedaggico que, mais grave do que no favorecer a aprendizagem, deseduca seus leitores. Entre outros fatores, o bom livro didtico diferencia-se do livro didtico ruim pelo tipo de dilogo que estabelece com o professor, durante o planejamento do curso. No obstante, o livro didtico bom, adequado e correto, tambm pressuponha que o professor personifique o uso que dele faz na sala de aula, o livro didtico ruim exige que o professor interfira de forma sistemtica nos contedos e atividades propostos e considerados inadequados.

Minimizar os danos do mau livro comea pela atividade que precisa preceder o uso de qualquer livro didtico, bom ou ruim, voluntariamente escolhido ou autoritariamente imposto: leitura integral e atenta do livro, de capa a capa, da folha de rosto at a ltima pgina. Esta tarefa pode ser mais interessante e produtiva se feita coletivamente, pelo conjunto de professores (da escola, da delegacia ou superviso, da regio...) em cujas classes o livro ser adotado. Essa leitura preparatria o momento de planejar estratgias que favoream o estabelecimento de relaes entre o que est no livro didtico e a vida dos alunos, de decidir sobre as atividades que vo patrocinar a passagem do significado do mundo no qual vivem os alunos, para os significados de vida presentes no livro didtico. Ela pede lpis na mo para assinalar as passagens do livro que, ou por serem fundamentais, ou por conterem informaes que o professor sabe que esto incorretas, devem ser trabalhadas com muita ateno. Trabalhar em classe com um livro inadequado exige excepcional firmeza. Sero vrios os momentos e as situaes em que o professor precisar dizer classe que o livro merece ressalvas, que o que o livro diz no est certo. A segurana com que o professor vai dizer aos alunos que, ao contrrio do que se l no livro didtico, casa se grafa com s e no come , ou que o presidente da Repblica em maro de 1964 no era Jnio Quadros, mas Joo Goulart, d o tom da discusso com os alunos dos limites da infalibilidade dos saberes. Professores e alunos, nesta situao, vivem coletivamente uma experincia que ensina que nem todos os livros esto sempre certos sobre tudo, que em vrias situaes preciso ir alm do que diz o livro, e que na

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situao de sala de aula o professor o mais qualificado para referendar ou no o que est nos livros. Nem sempre, no entanto, os aspectos negativos dos livros didticos so to visivelmente equivocados como escrever passarinho com ou afirmar que a Repblica foi proclamada em 1822... Muitas vezes, o livro didtico inadequado pela irrelevncia do que diz, pela monotonia dos exerccios que prope, pela falta de sentido das atividades que sugere. Nesta situao, cabe ao professor substituir exerccios e atividades, ou simplesmente apontar a irrelevncia do tpico. Substituio e comentrio sero educativos, na medida que estaro fazendo o aluno participar, de forma consciente, de uma situao de leitura crtica e ativa de um texto. Substituio, alterao e complementao de exerccios e atividades propostos pelo livro didtico adotado em classe no ocorrem apenas a propsito de livros didticos insatisfatrios. O melhor dos livros didticos no pode competir com o professor: ele, mais do que qualquer livro, sabe quais os aspectos do conhecimento falam mais de perto a seus alunos, que modalidades de exerccio e que tipos de atividade respondem mais fundo em sua classe. A histria do livro didtico e da escola brasileira mostra que nem sempre a relao do professor com o livro didtico esta desejvel relao de competncia e autonomia. A histria sugere que a precariedade das condies de exerccio do magistrio, para boa parte do professorado, responsvel direta por vrios dos desacertos que circundam questes relativas ao livro didtico na escola brasileira.

Um magistrio despreparado e mal remunerado no tem as condies mnimas essenciais para escolha e uso crticos do livro didtico, o que acaba fazendo circular, nas mos e cabeas de professores e de alunos, livros que informam mal, que veiculam comportamentos, valores e contedos inadequados. Isto ocorre porque se vivem hoje, extremamente potencializadas, as conseqncias desastrosas dos desacertos que pontilham a histria da educao brasileira. A aguda conscincia desta crise, somada vontade poltica de melhorar a situao e s recentes medidas descentralizadoras e de valorizao salarial do magistrio, so, no entanto, sinais positivos que apontam que a situao, embora ainda mais freqente do que seria desejvel, comea a encontrar encaminhamentos promissores. A soluo definitiva passa, obrigatoriamente, por uma poltica educacional que invista atravs de medidas concretas na valorizao da educao, o que se traduz na qualificao profissional do educador (salrio, inclusive e sobretudo), problema no qual se inscrevem as faces mais desalentadoras da relao entre livro didtico e qualidade de ensino. O caso que no h livro que seja prova de professor: o pior livro pode ficar bom na sala de um bom professor e o melhor livro desanda na sala de um mau professor. Pois o melhor livro, repita-se mais uma vez, apenas um livro, instrumento auxiliar da aprendizagem. Nenhum livro didtico, por melhor que seja, pode ser utilizado sem adaptaes. Como todo e qualquer livro, o didtico tambm propicia diferentes leituras para diferentes leitores, e em funo

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da liderana que tem na utilizao coletiva do livro didtico que o professor precisa preparar com cuidado os modos de utilizao dele, isto , as atividades escolares atravs das quais um livro didtico vai se fazer presente no curso em que foi adotado. Essa necessidade de planejamento acrescenta-se necessidade de criao e desenvolvimento de mecanismos de avaliao dos livros didticos disponveis no mercado. Este processo de avaliao, da qual educadores de diferentes graus do ensino precisam participar em nmero cada vez maior, desempenha funo pedaggica e tem efeitos multiplicadores para todas as instncias envolvidas com o livro didtico, principalmente seus usurios (alunos e professores) e seus produtores (escritores e editores). Implantado por oportuna iniciativa ministerial em 1996, o processo de avaliao do livro didtico pode vir a ser progressivamente assumido por outras e variadas instncias: associaes profissionais do magistrio, rgos que congregam pais de alunos e diferentes sociedades cientficas, entre outras, podem, articuladamente, com o tempo e com vantagens, assumir a tarefa, que tambm precisa contar com a participao intensa da universidade e das instituies de pesquisa. Este estabelecimento e consolidao de uma tradio crtica do livro didtico precisa ser acompanhado da descentralizao do processo de escolha, ampliando-se cada vez mais o peso da escola e da voz do professor de sala de aula. Tal descentralizao precisa, obviamente, articular-se qualificao do professor, a uma circulao ampla dos resultados de anlise crtica do livro didtico

e, sobretudo, consolidao da bem-vinda descentralizao de verbas para a educao, inaugurada em 1996. Com a descentralizao do processo de escolha pode-se, inclusive, esperar substancial transformao no livro didtico: a partir de uma clientela mais exigente, ele com certeza ser melhor e poder tornar-se menos monoltico. O modelo hoje vigente pode coexistir com outros, multiplicados pelo recurso aos diferentes mdias que favorecem linguagens to sofisticadas quanto a escrita. Pode-se pensar, por exemplo, em materiais didticos compostos a partir de mdulos independentes, dentre os quais o livro seja apenas um elemento, dialogando com vdeos, bancos de dados, imagens, bibliografias on line etc. Uma tal estrutura permitir usos mais interativos do livro, montado, por assim dizer, a partir de necessidades especficas de certas classes e turmas, favorecendo mais a teoria ou mais os exerccios, menos uma linguagem ou mais uma outra, decises estas que abrem um grande espao para a interlocuo que o professor estabelece com o material escolar de que se vale. Indiretamente, tais medidas vo qualificar a relao do professor com o livro e, conseqentemente, a dos alunos com os professores, os livros e a escola. Escolha e uso de livro didtico precisam resultar do exerccio consciente da liberdade do professor no planejamento cuidadoso das atividades escolares, o que reforar a posio de sujeito do professor em todas as prticas que constituem sua tarefa docente, em cujo dia-adia ele reescreve o livro didtico, reafirmando-se, neste gesto, sujeito de sua prtica pedaggica e um quase co-autor do livro.

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PONTOS PE VISTA: O que pensam outros especialistas?LIVRO DIDTICO: do ritual de passagem ultrapassagem Ezequiel Theodoro da Silva* apresenta-o com um livro nas mos, dando a entender que o ensino, o livro e o conhecimento so elementos inseparveis, indicotomizveis. E aprender, dentro das fronteiras do contexto escolar, significa atender s liturgias dos livros, dentre as quais se destaca aquela do livro "didtico": comprar na livraria no incio de cada ano letivo, usar ao ritmo do professor, fazer as lies, chegar metade ou aos trs quartos dos contedos ah inscritos e dizer amm, pois assim mesmo (e somente assim) que se aprende. Costumo esclarecer que perda crescente da dignidade do professor brasileiro contrape-se o lucro indiscutvel e estrondoso das editoras de livros didticos. Essa histria comea a ser assim no incio da dcada de 70: a ideologia tecnicista sedimentou a crena de que os "bons" didticos, os mdulos certinhos, os alphas e as betas, as receitas curtas e bem ilustradas, os manuais Disney etc... seriam capazes por si sde assumir a responsabilidade docente que os professores passavam a cumprir cada vez menos. Quer dizer: expropriao das condies de trabalho no mbito do magistrio correspondeu um aumento gigantesco nas esferas da produo, da venda ou distribuio e do consumo de livros e manuais didticos pelo Pas. Costumo ainda mostrar que esse apego cego ou inocente a livros didticos pode significar uma perda crescente de autonomia por parte dos professores. A intermediao desses livros, na forma de costume, dependncia e/ou "vcio", caracteriza-se como um fator mais importante do que o prprio dilogo pedaggico, que ou deveria ser a base da existncia da escola. Resulta desse lamentvel fenmeno uma inverso ou confuso de papis nos processos de ensino-aprendizagem, isto , ao invs de interagir com o professor, tendo como horizonte a (re)produo do conhecimento, os alunos, por imposio de circunstncias, processam redundantemente as

fina fora dos costumesAntes de adotar um livro didtico, pergunte criticamente se no vais ser um professor aptico!

Costumo dizer que, para uma boa parcela dos professores brasileiros, o livro didtico se apresenta como uma insubstituvel muleta. Na sua falta ou ausncia, no se caminha cognitivamente na medida em que no h substncia para ensinar. Coxos por formao e/ou mutilados pelo ingrato dia-a-dia do magistrio, resta a esses professores engolir e reproduzir a idia de que sem a adoo do livro didtico no h como orientar a aprendizagem. Muletadas e muleteiros se misturam no processo... Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Costumo lembrar que o livro didtico uma tradio to forte dentro da educao brasileira que o seu acolhimento independe da vontade e da deciso dos professores. Sustentam essa tradio o olhar saudosista dos pais, a organizao escolar como um todo, o marketing das editoras e o prprio imaginrio que orienta as decises pedaggicas do educador. No toa que a imagem estilizada do professor

* Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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lies inscritas no livro didtico adotado. Dentro desse circuito, onde esse tipo de livro prepondera mais que o professor e reina absoluto, o ensino vira sinnimo de "seleo/adoo" dos disponveis no mercado; a aprendizagem, de consumo semestral ou anual do livro indicado, sem direito reclamao no Procon...

viva fora da formaDe um lado, o aluno sorumbtico. De outro, maquiavelicamente, as doses de desnimo do livro didtico.

e nem vez, mero repassador e/ou cobrador de lies; a perenizao das carncias de infra-estrutura pedaggica (bibliotecas, salasambiente, bancos de textos e informaes, laboratrios etc.) nas escolas; a mecanizao da mente e a passividade diante de atividades de estudo, considerando que as lies geralmente obedecem a um modelo padro de estrutura, etc. bvio, portanto, que a liturgia do livro didtico no eleva e nem enleva os seus participantes, pelo contrrio, parece alimentar um crculo vicioso, de cujo centro vem sendo irradiada h um bom tempo a sofrvel qualidade da escola e do ensino brasileiros. Vale ressaltar que essa forma (o livro didtico) muito ruim nas suas caractersticas de produo. "quadrada": obedece ao mesmo padro o seu feitio estrutural. extremamente "rasa" no intuito de acomodar informaes aligeiradas e no muito fiel s fontes primeiras. "pegajosa" e "fria", congelando as possibilidades de movimento no mbito do ensino-aprendizagem. "espalhafatosa": os fatos do conhecimento se diluem nos adornos do produto para efeito de convencimento dos consumidores. "descartvel" e "perecvel", considerando os meios modernos de circulao do conhecimento.

O vigor do livro didtico advm da anemia cognitiva do professor. Enquanto este perde peso e importncia no processo de ensino, aquele ganha proeminncia e atinge a esfera da imprescindibilidade. De meio (que deveria ser), o livro didtico passa a ser visto e usado como um fim em si mesmo. A perversidade dessa lgica atinge vrias esferas, principalmente por alar o livro didtico condio de ponto de partida e ponto de chegada de todo conhecimento trabalhado em sala de aula. Uma forma impostae no uma forma possvel qual os estudantes tm de se encaixar. E essa forma, parasitria e paralizante, vai alimentando e cristalizando um conjunto de rotinas altamente prejudiciais ao processo educacional do professorado e do alunado. Quais so essas rotinas? Entre muitas, vale a pena ressaltar: a reproduo da dependncia ao recorte arbitrrio dos contedos contidos nos livros; a socializao de um tipo de aula onde o professor, por no ter voz

Cobrando fora para fugir da forcaDo sistema nervoso simptico faz parte, sutilmente, a sujeio ao livro didtico.

As determinaes que levam o professor dependncia do livro didtico esto diretamente relacionadas questo da identidade e dignidade do magistrio.

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O magistrio, enquanto trabalho e profisso, vem sendo desfigurado e desvalorizado ininterruptamente. A escravido ao livro didtico faz parte de um conjunto maior de fatores que empobrecem as condies para a produo de um ensino de qualidade. A qualidade, enquanto inteno e meta, pensada no ngulo dos investimentos em quinquilharias. Esquiva-se, quase sempre, de uma proposta concreta, honesta e duradoura no ser do professor, no salrio digno e na qualificao profissional continuada. Continuada a esperana, j um tanto abalada pelos efeitos da desiluso constante, de que o mestre, com preparo e autoridade para tal, encontre foras para agir historicamente sobre os determinantes do seu trabalho. O trabalho docente exige uma incurso prvia do professor nas fontes do conhecimento de modo a proporcionar um roteiro sntese a ser reelaborada pelo grupo de estudantes. Pobre daquele mestre que acredita em um livro nico ou, bem pior, que adota livro didtico s! S a reinsero do professor na condio de sujeito insubstituvel do ato de ensinar poder varrer a barbrie pedaggica das escolas, higienizando os ambientes e pondo para fora dali os badulaques que, por fora das circunstncias e dos costumes, insistem em permanecer na categoria dos didticos. Didticos so livros destinados a informar, orientar e instruir o processo de aprendizagem. Livros didticos no educam!

Forando a vista para entrar no tempo loucura do professor errtico querer sempre, insistentemente, fazer aula s com didtico.

No Brasil, como as recomendaes e as providncias sempre ficam "para a prxima administrao", as solues j nascem velhas, ultrapassadas ou esclerosadas. Na rea educacional, essa verdade cabe como uma luva; na rea do livro didtico, essa regra mais do que verdade. De fato, a impresso que se tem que o bombardeio de crticas ao livro didtico j foi feito por todos os lados, do seu nascimento nas editoras, passando pelos recortes do contedo, pelas ilustraes e exerccios at chegar ao uso alienado por professores e alunos. Apesar dos pesares e das alfinetadas no "boneco", esse instrumento ainda reina absoluto no campo educacional, em regime de palhaada reiterada de ano para ano (inclusive com o eterno atraso na sua distribuio s escolas). Olhando um pouco mais atentamente para os fenmenos comunicacionais deste final de sculo e tentando perceber criticamente os efeitos da revoluo eletrnica no cotidiano da vida, convm perguntar se o livro didtico j no um objeto ultrapassado. D para cocar a cabea e hesitar em uma resposta, quando a tecnologia vem conseguindo prensar um nico CD-Rom cerca de 200.000 pginas de texto impresso. A ordem pedaggica estabelecida pelo livro didtico ser superada em pouco tempo pelas conquistas tecnolgicas da telemtica. De

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fato, se idealmente funo do livro didtico veicular, para efeito de pesquisa e estudo, uma parcela do conhecimento, os atuais suportes de base digital (bancos de dados, hipertextos, CD-Roms, video-disks etc.) permitem parcelas bem mais abrangentes e diversificadas sobre quaisquer temas cientficos, abrindo caminho para a explorao interativa e multifacetada pelo usurio. A abordagem construtivista do conhecimento, a montagem do currculo em ao e o imperativo contemporneo do "aprender a aprender" parecem tambm demonstrar a crescente obsolescncia dos livros didticos. De fato, tais tendncias afetam a organizao escolar e, mais especificamente, a estruturao do processo de ensino-aprendizagem, impondo uma ampliao das fontes e referncias do conhecimento junto a docentes e discentes. Ampliao essa que est muito alm das possibilidades de qualquer livro didtico ou at mesmo de um conjunto deles. sabido que as novas tcnicas de comunicao no eliminam as precedentes; porm, em termos de potencial para estudo e aprendizagem, as atuais redes computadorizadas de informao, por permitirem a interatividade e a permuta, vo desbancar os livros didticos como os principais recursos de apoio ao professor. Da a literacia do computador, os equipamentos computadorizados, os bancos de dados e as redes se colocarem como exigncias do agora para todas as escolas brasileiras. O retardamento da sua implantao e a demora na sua propagao podem significar a continuidade de um ensino sem substncia, defasado no tempo, fechado e absoluto. Podero dizer que esta proposta nada mais do que um exerccio de futurologia, que at a chegada dos computadores na escola os livros didticos so imprescindveis, que o Pas pobre, etc... Ora, o Brasil

est a pedir, h muito tempo, uma escola hodierna, que forme trabalhadores para os desafios da modernidade, que atenda aos quesitos da empregabilidade e da globalizao da economia. Outrossim, chegada a hora de demonstrar uma ousadia h muito esperada, qual seja a de romper com linhas de investimentos que no deram certo: caso os livros didticos brasileiros fossem mesmo eficientes, o Brasil seria o melhor pas do mundo em termos de educao e escola. Procurei, neste ensaio, refletir sobre vrios aspectos que esto relacionados produo, circulao e ao consumo de livros didticos na sociedade brasileira. A natureza polmica e espinhosa do assunto levou-me adoo de um estilo no-acadmico, sem citaes ou referncias de apoio para sustentar as minhas afirmaes. A argumentao por mim privilegiada seguiu a linha da experincia docente (27 anos de magistrio em todos os nveis de ensino, da 1a srie do l grau ao 4a ano da universidade) e das agruras vividas, sendo (ou tentando ser) professor "de verdade" dentro de escolas pblicas marcadas por privaes crescentes. No incio desta reflexo, afirmei que a grande maioria dos nossos professores necessita da muleta "livro didtico" para poder oferecer algum tipo de conhecimento aos seus alunos. Entretanto, com esta imagem eu no quis, de maneira nenhuma, atribuir culpa ao professor. O mal necessrio resulta de um conjunto de determinantes negativos na esfera do trabalho docente, dentre os quais a mania do livro didtico. hora de jogar a muleta fora! hora de caminhar sobre as prprias pernas, com autonomia e deciso! Observando a paisagem social do presente, defendi a insero na escola das novas tecnologias de comunicao como alternativas

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aos livros didticos. Isto se e somente se essas novas tecnologias no vierem a reproduzir ou copiar os mesmos padres da organizao e os mesmos protocolos de utilizao dos atuais

livros didticos. Do contrrio, estar para sempre decretada a morte das capacidades de anlise, avaliao e criatividade dos professores e estudantes brasileiros.

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NO COMEO, A LEITURA Regina Zilberman*

padres morais e estudavam os contedos de disciplinas curriculares, como geografia, cronologia, histria de Portugal e histria natural. A imposio paulatina desse novo pblico pode ser percebida em outros pontos. A Notcia do catlogo de livros, de 1811, anuncia o estoque de Manuel Antnio da Silva, que vendia livros destinados ao ensino de Retrica e Gramtica: Alfabeto para instruo da mocidade; Arte potica de Horcio, por Cndido Lusitano; Coleo de cartas para meninos; Compndio de retrica; Elementos de sintaxe; Gramtica latina; Gramtica portuguesa; Instruo da retrica; Instruo literria; Retrica de Gilbert e Retrica de Quintiliano (Silva, MA.,1811). O catlogo de obras que se vendem na loja de Paulo Martim oferece Leituras juvenis e morais, voltado provavelmente formao dos jovens(Catlogo, 1822). Ofertas como essas aparentemente no bastavam, ainda que, por essa poca e mesmo depois da independncia, a escolarizao das crianas no fosse obrigatria, nem o ensino disseminado entre a populao. Mesmo assim, o mercado parecia insatisfatoriamente provido, razo por que, durante o sculo XIX, proliferaram queixas, denunciando o estado deficitrio da educao da infncia e a ausncia de livros didticos apropriados. Gonalves Dias, por exemplo, aps sua visita s provncias do Nordeste, revela ao Imperador, em 1862, que: Um dos defeitos a falta de compndios: no interior porque os no h, nas capitais porque no h escolha, ou foi mal feita; porque a escola no suprida, e os pais relutam em dar os livros exigidos, ou repugnam aos mestres os admitidos pelas autoridades (Moacyr, 1939).

Um dos primeiros livros didticos a circular no Brasil deve ter sido o Tesouro dos meninos, obra traduzida do francs por Mateus Jos da Rocha (Silva, 1808-1821)1. Na mesma linha, a Impresso Rgia publicou Leitura para meninos, "coleo de histrias morais relativas aos defeitos ordinrios s idades tenras e um dilogo sobre a geografia, cronologia, histria de Portugal e histria natural"(Cabral, 1881). A primeira edio data de 1818, sendo organizador do livro Jos Saturnino da Costa Pereira. Alfredo do Vale Cabral registra reedies de Leitura para meninos em 18212, 1822 e 1824, fato raro, pois a Impresso Rgia dificilmente reimprimia obras de seu catlogo. A novidade talvez se deva circunstncia de que Leitura para meninos encontrou seu pblico entre as crianas que aprendiam a ler, assimilavam

* Professora da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) 'Em 1836, o livro foi reeditado pela Tipografia Pillet Ain. Composto originalmente por Pedro Blanchard, chamou-se nesse ano Tesouro dos meninos: obra clssica dividida em trs partes: moral, virtude, civilidade, "vertida em portugus e oferecida mocidade estudiosa, por Mateus Jos da Rocha" (Ramos, 1972). 2A edio de 1821 apresenta ligeira diferena no ttulo: denomina-se Leituras para os meninos, "contendo um silabrio completo, uma coleo de agradveis historietas prprias primeira idade e um dilogo sobre a geografia, cronologia, histria de Portugual e histria natural ao alcance dos neninos".

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A obrigatoriedade da educao fica estabelecida depois de 1870, com a reforma do ensino proposta pelo Imperador. A Repblica confirma a medida, e a nova situao provoca uma exploso no mercado, com reflexos da produo. As obras didticas passam a ocupar considervel fatia do comrcio de livros, podendo-se registrar sumariamente, como evidncias da mudana, os principais ttulos publicados entre 1890 e 1910: Liuro de leitura (1892), de Felisberto de Carvalho; Aprendei a lngua verncula (1893), de Jlio Silva; Exerccio de estilo e redao, Gramtica (1894), de Felisberto de Carvalho; Antologia nacional, de Carlos de Laet e Fausto Barreto; Livro de leitura (1895), Seleta de autores modernos, Exerccios de lngua portuguesa (1896), de Felisberto de Carvalho; Livro de exerccio, de Joo Ribeiro; Primeiras leituras, de Arnaldo Barreto; Leituras infantis (1 a 3), de Francisco Viana; Leituras morais e instrutivas (1908), de Joo Kopke; Livro de leitura (1909), de Arnaldo Barreto e Ramon Puiggari; Atravs do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim; Livro de leitura (1910), de Arnaldo Barreto e Ramon Puiggari; Livro de composio, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim; Livro de leitura (1911), de Ramon Puiggari e Arnaldo Barreto. Os "livros de leitura" so majoritrios, acompanhados pelas "seletas" ou "antologias", que coletam o melhor da literatura em lngua portuguesa, aqueles destinados s sries iniciais, essas, aos ltimos anos da escola. Entre os dois pontos, transcorre a vida escolar do estudante brasileiro nos primeiros anos da Repblica. Pode-se, pois, rastrear as concepes vigentes de leitura e ensino de literatura, examinando as idias contidas nesse material didtico, bem como na reao registrada pelos leitores, alunos que aprenderam a ler com eles e expressaram os efeitos do processo pedaggico.

Ablio Csar Borges foi o mais clebre autor de livros didticos do perodo imperial. Graas a O Ateneu, escrito por Raul Pompia, em 1888, mesclam-se as duas figuras, a do pedagogo e a do prprio Imperador, sintetizadas na personagem Aristarco Argolo de Ramos, o diretor da escola onde estuda Srgio, o protagonista da obra. Seus livros comearam a ser produzidos na dcada de 60, quando ainda lecionava na Bahia, mas sua influncia estendeu-se at o final do sculo, ultrapassando o ano em que Pompia lanou seu romance: em 1890, a nova edio do Terceiro livro de leitura aparece com adaptaes nova situao poltica do Pas3 . Na Introduo primeira edio do Terceiro livro de leitura, Ablio expe sua concepo de leitura: Em minha opinio, nos primeiros tempos da escola, no devem os meninos aprender seno a leitura, que lhes j no pequena dificuldade, para ser ainda acrescentada com outra igual ou maior, qual a da escrita, que s devero comear a aprender depois que souberem ler e jamais antes dos seis, ou mesmo dos sete anos de idade.

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Escreve Ablio no prlogo da edio de 1890: "Tendo-se esgotada a sexagsima quarta edio deste livro, justamente quando foi proclamada a Repblica dos Estados Unidos do Brasil, tratei logo de reform-lo para a presente edio, pondo-o em harmonia com a nova organizao social e tornando-o ao mesmo tempo mais interessante e mais apropriado ao ensino da gerao que desponta e, portanto, mais til". As demais citaes provm dessa edio; os grifos so do autor.

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Colocada no comeo da aprendizagem escolar, a leitura matria da primeira lio do livro dirigido aos "caros meninos" e dedicado s "regras para se ler bem": Agora que com algum embarao podeis j ler palavras, proposies e at pginas inteiras, pelo que fostes julgados dignos de passar a este livro, necessrio saberdes quais os preceitos da boa leitura, a fim de, praticando-os, merecerdes a qualificao de bons leitores. A "boa leitura" e "ler bem" consistem em ler em voz alta: A boa leitura, meus amiguinhos, no consiste em ser feita de carreira, sem atender o leitor ao sentido daquilo que vai lendo, unindo, muitas vezes, palavras que devem ser lidas separadamente e separando outras, que convm ditas juntamente. Para fazer boa leitura, deve o leitor ler com moderao, mudando o tom da voz e dando as pausas convenientes, segundo requerem o objeto da leitura e os diferentes sinais da pontuao... A exposio prossegue, enfatizando a natureza oral da leitura e atribuindo aos modos de dizer o texto as diferenas entre os gneros literrios: O tom da voz e a expresso de quem l devem ser conformes com o assunto da leitura; de tal sorte que, ouvindo-se ler, ainda distncia de se no poderem distinguir as palavras, conhea-se pela s modulao da voz, se versa a leitura sobre assunto alegre ou triste, se exprime coragem ou receio, se

repreenso, louvor.

Tambm da leitura da prosa difere muito a da poesia; porquanto, alm das regras que acabo de dar-vos, deve-se fazer no fim de cada verso uma pequena pausa; e, alm disto, o tom da voz toma uma expresso caracterstica, de sorte que conhece logo o ouvinte ser verso e no prosa o que se est lendo. Finalmente, meus meninos, tanto na leitura da prosa quanto na do verso, essencial que sejam as palavras pronunciadas com muita clareza, elevando-se, abaixando-se, apressando-se, moderando-se, adoando-se em uma palavra, afinando-se a voz, conforme pedir o sentido do que se l. Mas o melhor meio para se aprender a ler bem ouvir atentamente a leitura do mestre, ou de qualquer bom leitor, e repeti-la, procurando imit-los. A leitura em voz alta, com o fito de melhor dizer o texto, qualidade apreendida por imitao de "bons leitores", tambm estimulada em Vrios estilos, coletnea de Arnaldo de Oliveira Barreto (19--), que abre com a crnica de Maria Amlia Vaz de Carvalho sobre O Saber ler: realmente espantoso que, havendo professores para todas as cincias e para todas as artes, (...) ningum se lembrasse ainda de instituir um curso para os discpulos aprenderem a ler bem e a falar bem.

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Para ler bem, para dar a cor, o relevo, a vida obra do escritor; para ter na voz e na expresso a nota pattica, o chiste, a vibrao irnica, maliciosa, indignada; a doura, a comoo, a tristeza, a alegria, o riso e as lgrimas preciso compreender, preciso sentir, preciso ser artista! Isto no somente um dom espontneo; isto o resultado de uma educao aprimorada e cuidadosa. Nem todos a podem ter, talvez; mas muitos dos que podiam no a tm, e por isso no hesitamos em recomend-la como um dos elementos importantes de uma boa educao. A crnica da portuguesa Maria Amlia Vaz de Carvalho inicia uma seleta que se destina a estudantes de sries avanadas, no mais aos meninos com quem dialogava Ablio Csar Borges. A leitura a que ela se refere significa, nesse momento, passagem para a literatura. Talvez por essa razo abra uma coletnea que exibe "vrios estilos" exemplificados, conforme a seleo de Arnaldo de Oliveira Barreto4 , por "As trs formigas", "A mata", "A rvore" e "O culto da forma", de Alberto de Oliveira; "Firmo, o vaqueiro", de Coelho Neto; "O sertanejo", de Euclides da Cunha; "O evangelho

das selvas", de Fagundes Varela; "Y-Juca-Pirania", de Gonalves Dias; "A justa", "Ceclia e Peri" e Sonhos d 'ouro, de Jos de Alencar; "A mosca azul", "A agulha e a linha" e Brs Cubas, de Machado de Assis; "Pelo Brasil", " O caador de esmeraldas" e "Dom Quixote", de Olavo Bilac; "A natureza", de Raimundo Correia; "Ultima corrida de touros em Salvaterra", de Rebelo da Silva; "As procelrias", de Tefilo Dias; "Fugindo do cativeiro" e "O pequenino morto", de Vicente de Carvalho, entre outros. A srie de livros didticos de Joo Kopke, produzida no incio do sculo, exemplifica tambm esse pensamento, segundo o qual se comea pelo livro de leitura, encarregado de ajudar a memorizar a linguagem oral elevada, e desemboca-se no conhecimento da literatura, representada por textos modelares de escritores brasileiros. No Primeiro livro de leituras morais e instrutivas, escreve o professor: Assim, tambm, de outro lado, o livro de leitura que, no plano de ensino do autor, a base de ao o tronco, em que se enxertam todos os outros exerccios destinados ao manejo correto, pronto e eficaz da lngua , o centro, enfim, de integrao, em torno do qual, como de um ncleo, se vem dispor e relacionar todo o conjunto do idioma, o livro de leitura, que servindo, por assim dizer, de cenrio aos elementos novos, que vo entrando em papel diante da inteligncia para eles voltada, facilita a sua impresso e reteno, possibilitando, portanto, o seu uso, visto pr em jogo a memria sugestiva, que cria pensadores e sublima sbios, e proscrever a memria arbitrria, dote de dicionrio ou de catlogo, que gera papagaios e, fora de tenso cerebral, multiplica esta moderna forma de idiotismo, a que o vezo eufnico da nossa sensibilidade latina batizou de erudio , o livro de leitura, enfim, que parte de um todo,

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Arnaldo Barreto lecionou na Escola Caetano de Campos, de So Paulo, sendo seu Raul Pompia o escritor Jorge Americano, que l estudou: "Ao fim do recreio seu Arnaldo (Arnaldo Barreto) vinha ao patamar da escada, com uma sineta na mo. Meninos corriam a ele, pedindo para deix-los bater a sineta. Seu Arnaldo a entregava a um deles. Primeira badalada, parar onde estivesse. Segunda, tomar lugar na fila, junto professora. Terceira, marchar para voltar s aulas". (Americano, 1957).

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fica, pelas modificaes feitas, relacionado com o "Curso sistemtico da lngua materna", em que o autor atualmente trabalha com esperana de breve remate (Kopke, 1924). No Prefcio ao "Quarto livro de leituras", Joo Kopke anuncia novos objetivos, considerando a mudana do nvel de escolarizao dos alunos: O presente volume e os dois que, em breve, o ho de seguir, completando a srie Rangel Pestana, incluem excertos, em prosa e verso, de autores brasileiros e portugueses.

Amrico Brasiliense (Jos Bonifcio de Andrada e Silva), Antnio Carlos Ribeiro de Andrada, Antnio Feliciano de Castilho, Arajo Porto Alegre, Bernardo Guimares, Bocage, Cames, Casimiro de Abreu, Castelo Branco, Castro Alves, Curvo Semedo, Ea de Queirs, Evaristo da Veiga, Fagundes Varela, Gonalves Crespo, Gonalves Dias, Gregrio de Matos, Guerra Junqueiro, Joo de Deus, Joo de Lemos, Joaquim Manuel de Macedo, Jos de Alencar, Machado de Assis, Nicolau Tolentino, Pimentel Maldonado, Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigo, Sousa Viterbo e o Visconde de Porto Seguro (Francisco Adolfo de Varnhagen). Outra seleta no mesmo perodo sugere a predominncia desse modelo, segundo o qual a leitura dos autores consagrados permite o aprimoramento do gosto literrio, de que resulta o bom uso da lngua, obtido graas imitao dos escritores exemplares, os mesmos que se leu no comeo desse processo circular. Eis o que A. Joviano apresenta como Plano das lies, datado de 2 de abril de 1923, que abre Lngua Ptria: No perodo do ensino, em que o aluno j tenha hbito das formas corretas para se exprimir e falar das cousas que o rodeiam e interessam, comea o seu vocabulrio a receber o primeiro contingente de expresses e vocbulos literrios. Estes novos elementos, adquiridos j em parte nas primeiras recitaes, sero supridos agora, diretamente, pelas composies dos melhores autores, em leitura, interpretao e cpia dos trechos em prosa e verso, devendo ser preferidos os que mais se prestem a uma assimilao pronta, de aplicao imediata.

Nos trs volumes anteriores, o principal fito da compilao foi fornecer base para os exerccios orais de reproduo do lido e ampliao do vocabulrio; do presente at ao ltimo, seu intento, ampliando ainda e sempre o vocabulrio, inspirar, pela prtica e pelo comrcio contnuo com os bons modelos, o gosto literrio, nos ensaios de composio sobre diversos gneros, a que ser solicitado o aluno. Os autores aqui includos o foram somente nos trechos para os quais se presume que est aparelhado o esprito do aluno pela marcha do ensino anterior; e, nos livros subseqentes, ho de eles, talvez, reaparecer com assunto mais elevado, de envolta com os que para esses mesmos livros foram especialmente reservados (Kopke, 1924). Esto includos na seleo de Kopke os seguintes escritores: Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Alvares de Azevedo,

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O trabalho de assimilao das formas literrias pelo aluno se operar nas seguintes condies: a) imitando ele a leitura expressiva da professora; b) lendo por sua vez a interpretao do trecho literrio; c) respondendo ao questionrio que esclarece e confirma a interpretao feita e, mais tarde, lendo o comentrio e tomando parte na conversao; d) copiando o trecho literrio, cuja ortografia e pontuao vo ser imitadas; e) lendo, aplicadas desde logo em frases e sentenas usuais, as expresses literrias que vo fazer parte do seu vocabulrio; f) lendo em manuscrito e escrevendo o ditado da reproduo do texto original. E logo que introduzida na srie de lies qualquer dessas composies literrias, os elementos que ela fornece so reproduzidos a todo momento em aplicaes vrias, orais e escritas, de tal modo recapituladas que se tornam uma aquisio completa para o aluno e to familiares como as demais expresses de uso corrente na prpria linguagem (Joviano, 1923). A eficcia e a permanncia desse modelo de ensino podem ser constatadas em depoimentos de escritores brasileiros educados no final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX, como Laudelino Freire, que conta a Joo do Rio: As minhas primeiras leituras, na poca em que estudava preparatrios (1890), foram feitas em almanaques, seletas e pequenos manuais enciclopdicos, de que me resultaram os primeiros conhecimentos com os autores nacionais e portugueses mais em voga. Recordo-me do entusiasmo, ainda hoje conservado, com que lia e decorava as poesias de Castro Alves, Gonalves Dias, Alvares de Azevedo, Fagundes Varela,

Tobias Barreto, Casimiro de Abreu, Guerra Junqueiro, Toms Ribeiro... (Rio, 1908). Mrio Quintana, no interior do Rio Grande do Sul, tambm recorda seus tempos de leitor de seletas, como a de Alfredo Clemente Pinto, lanada em 1883, e ainda figura importante nas escolas do estado na primeira metade do sculo XX: Esse Marqus de Maric do compndio de leitura dava-nos conselhos... compendiosos... verdadeira chatice, alis... como se no bastassem os conselhos de casa! Felizmente para a turma, o resto no era nada disso, pois tratava-se da "Seleta em Prosa e Verso", de Alfredo Clemente Pinto, um mundo... quero dizer, o mundo! Logo ali, primeira pgina, o bom Cristvo Colombo equilibrava para ns o ovo famoso e, pelas tantas, vinha Nossa Senhora dar o famoso estalinho no coco duro daquele menino que um dia viria a ser o Padre Antnio Vieira. Porm, em meio e alheio a tais miudezas, bradava o poeta Gonalves de Magalhes: Waterloo! Waterloo! lio sublime! S esta voz parece que ficou, porque era em verso, era a magia do ritmo... e comtinua ressoando pelos corredores mal iluminados da memria. (Em vo tenho procurado nos sebos um exemplar da Seleta...)

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Sim, havia aulas de leitura naquele tempo. A classe toda abria o livro na pgina indicada, o primeiro da fila comeava a ler e, quando o professor dizia "adiante!", ai do que estivesse distrado, sem atinar o local do texto! Essa leitura atenta e compulsria seguia assim, banco por banco, do princpio ao fim da turma (Quintana, 1977). Jos Lins do Rego transplanta a situao para sua fico, fazendo a literatura tematizar sua circulao na escola: Era um pedao da Seleta clssica, que at me divertia. L vinha o Paquequer rolando de cascata em cascata, do trecho de Jos de Alencar. (...) "A Queimada"de Castro Alves e o "h dous mil anos te mandei meu grito", de "Vozes d'frica" (...) Esses trechos da Seleta clssica, de to repetidos, j ficavam ntimos da minha memria (Rego, 1984). Com a Revoluo de 30 e a criao do Ministrio de Educao, encabeado primeiramente por Francisco Campos e, depois, por Gustavo Capanema, deu-se nova regulamentao do ensino primrio e secundrio. Em junho de 1931, o ministro expediu os "programas do curso fundamental do ensino secundrio", fixando os objetivos e os contedos para a matria agora denominada Portugus (Brasil, 1931). A meta principal desta cadeira "proporcionar ao estudante a aquisio efetiva da lngua portuguesa, habilitando-o a exprimirse corretamente, comunicando-lhe o gosto da leitura dos bons escritores e mmistrando-lhe o cabedal indispensvel formao do seu esprito bem como sua educao literria". Para chegar a esse fito, cabe ao professor, "desde o princpio do curso", "tirar o mximo proveito da leitura, ponto de partida de todo o ensino,

no se esquecendo de que, alm de visar a fins educativos, ela oferece um manancial de idias que fecundam e disciplinam a inteligncia, prevenindo maiores dificuldades nas aulas de redao e estilo". De novo a leitura colocada na base, desde que constitua leitura de "bons escritores", a partir de que se organiza o estudo subseqente: O conhecimento do vocabulrio, da ortografia e das formas corretas fundar-se- nos textos cuidadosamente escolhidos, e, pelo exame destes, se notaro, pouco a pouco, os fatos gramaticais mais importantes, cujas leis jamais sero apresentadas a priori, mas derivadas naturalmente das observaes feitas pelo prprio aluno. O conhecimento da literatura, "ensino propriamente literrio", vem mais tarde, tornando-se "preponderante na 5a srie". O documento ministerial explicita, com detalhes, as tcnicas de trabalho em sala de aula: O ensino propriamente literrio, subordinado ao da lngua na 4a srie, tornar-se-preponderante na 5a srie, expondo-se ento as regras da composio literria e o estudo, ainda que sumrio, das melhores obras de escritores nacionais e portugueses. Instrudos pela leitura dos textos, sero os alunos obrigados a tomar parte ativa na anlise dos processos de cada autor, caracterizando-lhe a construo e o estilo, mencionando os conceitos e as passagens que mais os impressionaram, apontando as formas elegantes e vigentes ou as que, j arcaicas, no devem ser imitadas. Aps o conhecimento fragmentrio de uma obra, recebero sumria notcia das demais partes que a constituem, do plano a que

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obedece, do fim que se prope, da individualidade do autor, corrente literria a que pertenceu e outras obras que produziu. A novidade a indicao de que " prefervel comear pelas obras modernas", com a seguinte justificativa: Somente elas, por mais comunicativas, provocam emoes sinceras e despertam o prazer dos estudos desta natureza. Com o que se pretende , antes de tudo, educar o gosto literrio; quase todo o ensino, para ser atraente, tem de gravitar em torno do pensamento hodierno, em ambiente conhecido, convindo, portanto, a preferncia pelas obras modernas e deixando-se a anlise das obras clssicas para o momento em que o aluno, dotado de algum senso crtico, estiver apto a assimilar com real proveito os velhos exemplares da boa linguagem. A histria da literatura em lngua portuguesa completa os estudos literrios, culminando um processo que se d por passos midos: Finalmente incumbe ao professor fazer a sinopse histrica e a apreciao geral da literatura portuguesa e da brasileira, de sorte que, ao concluir o curso fundamental, tenha o estudante indicaes seguras para poder consolidar por si as noes adquiridas na escola. Na seqncia, o ministrio discrimina os contedos de cada uma das sries. Cabe s duas primeiras sries proceder leitura de trechos de pensadores e poetas contemporneos, escolhidos de acordo com a capacidade mdia da classe.5

Explicao dos textos. Estudo metdico do vocabulrio. Reproduo oral do assunto lido. Recitao de pequenas poesias, previamente interpretadas. Composio oral. (...) Na terceira srie, ocorre "a leitura de excertos de prosadores e poetas modernos", a "explicao dos textos" e o "estudo metdico do vocabulrio". Na quarta, "leitura e interpretao de trechos de prosadores e poetas dos dois ltimos sculos", junto com a "anlise literria elementar"; na quinta, repete-se a "anlise literria", com nfase nas "obras modernas", mas se acrescenta a literatura, de que se estudam "noes preliminares"; "sinopse da histria literria" e "composio e estilo". Novas "Instrues pedaggicas para a execuo do programa de Portugus", dirigidas ao "curso ginasial do ensino secundrio", so editadas em 1942, assinadas agora por Gustavo Capanema5 . Mas os termos no variam muito, apenas so apresentados na forma de tpicos. Assim, explicando as "finalidades do estudo da lngua portuguesa", informa-se que "o programa de portugus do curso ginasial procura": a) proporcionar ao estudante a aquisio efetiva da lngua portuguesa, de maneira que ele possa exprimir-se corretamente;

Reproduzido em Cruz, 1944. Todas as citaes provm desse texto.

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b) comunicar-lhe o gosto da leitura dos bons escritores; c) ministrar-lhe aprecivel parte do cabedal indispensvel formao do seu esprito e do seu carter, bem como base sua educao literria, se quiser ingressar no segundo ciclo ou faz-la por si, autodidaticamente; d) mostrar-lhe a origem romnica da nossa lngua e, portanto, a nossa integrao na civilizao ocidental, o que o ajudar a compreender melhor o papel do Brasil na comunho americana e fora dela. No captulo dedicado "estrutura do curso de portugus", explica-se que as finalidades expostas acima so alcanadas "mediante um ensino pronunciadamente prtico, que compreender trs partes paralelas: gramtica, leitura explicada e outros exerccios", conforme a seguinte distribuio: A leitura se far em todo o curso; a matria gramatical, corn os respectivos exerccios, vai repartida, em cada srie, por trs unidades, cada uma das quais se lecionar dentro de um trimestre; os trabalhos indicados no programa sob a denominao de "outros exerccios"se distribuiro por todo o ano letivo pelo modo que o professor julgar mais conveniente. A leitura matria de um captulo inteiro do projeto, pois cabe-lhe desempenhar o seguinte papel: O professor se empenhar em obter o mximo proveito da leitura, no se esquecendo de que ela oferece, quando bem

escolhida e orientada-, um manancial de idias que fecundam e disciplinam a inteligncia e concorrem para acentuar e elevar, no esprito dos adolescentes, a conscincia patritica e a conscincia humanstica. Na leitura, explicada minuciosamente de todos os pontos de vista educativos, que os alunos encontraro boa parte da base necessria formao de sua personalidade integral, bem como aquelas generalidades fundamentais de onde eles podero subir a estudos mais elevados de carter especial. De novo colocada na base do ensino, mas com tarefas mais complexas e exigncias mais amplas, a leitura passa a confundir-se com o ensino do portugus, de que resultam efeitos grandiosos, de cunho patritico e preservacionista, diante das ameaas vindas de fora. So esses efeitos: "o amor lngua, o zelo dela traduzido no desejo de manej-la bem e de proteg-la das foras dissolventes que esto continuamente a assaltla"; o respeito por "sua modalidade mais nobre a lngua literria"; "o reconhecimento da necessidade de preserv-la como instrumento de unio e como patrimnio sagrado da coletividade nacional, em um pas, como o nosso, de amplo territrio e aberto imigrao de estrangeiros das mais variadas procedncias". O documento emanado do Ministrio da Educao tem ainda o cuidado de discriminar os tipos de livros a serem utilizados pelos alunos:

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Devero eles ter consigo os seguintes compndios: a) livro de leitura, num volume para a primeira e segunda sries e noutro volume para a terceira e quarta; b) gramtica, em um volume, para as quatro sries; c) dicionrio porttil, em um volume, tambm para as quatro sries. O "livro de leitura" ainda objeto de uma especificao maior, detalhando-se no apenas seu contedo, mas igualmente suas finalidades a longo prazo: O livro de leitura, nos seus dois volumes, deve conter alm das pginas que astisfazem, de um modo geral, prescrio do programa para cada srie matria de leitura orientada em dois sentidos: um, que interesse mais s meninas, e o outro, aos rapazes. Os textos destinados de preferncia ateno das meninas devem encarecer as virtudes prprias da mulher, a sua misso de esposa, de me, de filha, de irm, de educadora, o seu reinado no Iar e o seu papel na escola, a sua ao nas obras sociais de caridade, o cultivo daquelas qualidades com que ela deve cooperar com o outro sexo na construo da Ptria e na ligao harmnica do sentimento da Ptria com o sentimento da fraternidade universal. Os excertos que visarem principalmente educao dos alunos do sexo masculino procuraro enaltecer aquela tempera de carter, a fora de vontade, a coragem, a compreenso do dever, que fazem os grandes homens de ao, os heris da vida civil e militar e esses outros elementos, no menos teis

sociedade e Nao, que so os bons chefes de famlia e os homens de trabalho, justos e de bem. Leitura e literatura integram-se ao programa de portugus, que toma sua feio definitiva. Ambas conduzem ao conhecimento da lngua materna, que simultaneamente lngua ptria e lngua literria. Por isso, nos livros didticos dos anos 40 e 50, encontra-se o que considerado o melhor da literatura nacional produzida at ento, provavelmente a literatura moderna a que se referia o documento ministerial. Trs livros publicados entre os anos 30 e 50 exemplificam que corpus era esse, a quem competia consolidar o cnone da literatura brasileira e a natureza da lngua literria do pas. Em Idioma ptrio, de Modesto de Abreu, esto selecionados textos de Afonso Arinos, Artur de Azevedo, Domingos Olmpio, Emlio de Menezes, Eduardo Prado, Frana Jnior, Fagundes Varela, Gonalves Dias, Ingls de Souza, Joo Ribeiro, Jlia Lopes de Almeida, Jos do Patrocnio, Jlio Ribeiro, Joaquim Nabuco, Joo Francisco Lisboa, Lindolfo Gomes, Luiz Murat, Lus Guimares Jnior, Mcio Teixeira, Manuel Antnio de Almeida, Martins Pena, Paulo Barreto, Paula Ney, Quintino Bocaiva, Raul Pederneiras, Raimundo Correia, Rui Barbosa, Sotero dos Reis, Tobias Barreto, Visconde de Taunay, Xavier Marques e Zalina Rolim (Abreu, 1939). Nelson Costa, em Leitura e exerccio, de 1945, em grande parte repete o elenco de autores, com a seguinte seleo de textos: "O rio", de Afonso Arinos; "Anjo enfermo", de Afonso Celso; "A casa da Rua Ablio", de Alberto de Oliveira; "Se eu morresse amanh", de Alvares de Azevedo; "A fazenda", de Bernardo Guimares; "Meus oito anos", de Casimiro de Abreu; "Crepsculo sertanejo", de Castro

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Alves; "Paisagem", de Coelho Neto; "Acrobata da dor", de Cruz e Sousa; "Carta a um afilhado", de Eduardo Prado; "O estouro da boiada", de Euclides da Cunha; "O canto dos sabis", de Fagundes Varela; "Cano do exlio", de Gonalves Dias; "A queimada", de Graa Aranha; "Meu pai", de Humberto de Campos; "A mentira", de Joo Ribeiro; "Contraste", de Joaquim Manuel de Macedo; "O minuano", de Jlia Lopes de Almeida; "A terra natal", de Laurindo Rabelo, "A pororoca", de Lus Guimares Jnior; "Uma boa ao", de Machado de Assis; "Benedicte!", de Olavo Bilac; "De volta na terra", de Paulo Setbal; "A chegada", de Raimundo Correia; "Os colegas", de Raul Pompia; "A um adolescente", de Ronald de Carvalho; "Marinha", de Rui Barbosa; "Pressentimento", de Tobias Barreto; "O orgulho da guia", de Vicente de Carvalho e "Meio-dia", de Visconde de Taunay (Costa, 1945). Este mesmo grupo de autores e obras est presente ainda em Seleta infantil, de Orlando e Lgia Mendes de Morais, de 1951: "O serto bruto", de Afonso Arinos; "Anjo enfermo", de Afonso Celso; "Os livros", de Antnio Vieira; "A pororoca", de Araripe Jnior; "Saudades", de Casimiro de Abreu; "Nossa terra, nossa gente", de Francisca Jlia; "A boiada", de Humberto de Campos; "A espada encantada", de Malba Tahan; "Amo minha ptria" e "O rio", de Olavo Bilac; "Tarde sertaneja", de Visconde de Taunay (Morais, 1951). A leitura constitui elemento fundamental na estruturao do ensino brasileiro porque forma sua base: est no comeo da aprendizagem e conduz s outras etapas do conhecimento. O campo de ensino mais prximo dela o da literatura, representada por textos exemplares da literatura em lngua portuguesa, a partir dos anos 30, fornecidos pela literatura brasileira, responsvel em boa parte pela modernidade do programa.

Nem leitura, nem literatura, contudo, tm consistncia suficiente para se apresentarem como disciplinas autnomas. No sculo XIX e incio do sculo XX, a leitura em voz alta formava o estudante no uso da lngua, em especial na expresso oral, respondendo s necessidades da Retrica ainda dominante na escola. Quando a leitura tornou-se passagem para a literatura, revelando a nfase agora dada ao escrito, tomou acento na cadeira de Portugus, junto com seus companheiros de viagem, os textos literrios. Mas nunca deixou de ser propedutica, preparando para o melhor que vem depois. Nesse sentido, significativa a observao de Loureno Filho, no prefcio dirigido aos professores colocado no primeiro volume da srie Pedrinho, destinada ao ensino primrio: Ler por ler nada significa. A leitura um meio, um instrumento, e nenhum instrumento vale por si s, mas pelo bom emprego que dele cheguemos a fazer. O que mais importa na fase de transio, a que este livro se destina, so os hbitos que as crianas possam tomar em face do texto escrito (Loureno Filho, 1959). Dos anos 50 em diante, as modificaes se deveram s diferentes reformas de ensino implantadas na dcada de 60, como a Lei de Diretrizes e Bases, e na dcada de 70, que alteraram o desenho do ensino bsico. Os livros didticos, especialmente quando se constitui a disciplina de Comunicao e Expresso, na dcada de 70, tiveram de responder s novas exigncias. Mas no mudaram duas concepes bsicas: 1) A noo de que a leitura no necessariamente em voz alta, mas sempre do texto literrioforma a base do ensino, concentrada

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nas disciplinas relacionadas aprendizagem da lngua materna. o que se v, por exemplo, no livro de Carlos Emlio Faraco e Francisco M. de Moura, Comunicao em lngua portuguesa, que divide os temas a estudar em unidades e, ao estrutur-las, toma "o texto [como] o ponto de partida para todas as atitudes" (Faraco, 1983). Este ponto de partida, a leitura, nem chega a ser expresso na proposta dos autores, to bvio lhes parece o fato. Tomando-o como deflagrador da unidade, estruturam seu trabalho conforme o quadro abaixo, em que se verifica tambm a retomada da leitura em voz alta, numa espcie de sntese do trabalho pedaggico realizado pela escola brasileira at os nossos dias: Texto Expresso oral I. Vamos conversar sobre texto II. Agora, vamos treinar a entonao III. Discusso sobre o texto Expresso escrita I. Vamos escrever sobre o texto o II. Vamos aumentar nosso vocabulrio III. Vamos pontuar IV. Vamos nos expressar de outra forma

fora do livro didtico. Por isso, os autores e excertos motivadores do trabalho didtico proposto por Faraco e Moura provm da literatura infantil, encontrando-se no volume dedicado 5 srie o seguinte material: "A astcia do jabuti", de Antonieta Dias de Moraes; "O esparadrapo", de Carlos Drummond de Andrade; "Congresso de bruxos", de Carlos Eduardo Novaes; "O emprego", de Carlos Heitor Cony; "O assalto", de Eliane Ganem; "O lenhador", de Fernanda Lopes de Almeida; "Uma aventura", de Francisco de Barros Jnior; "Tatipirum", de Graciliano Ramos; "O viajante das nuvens", de Haroldo Bruno; "Tempestade", de Henriqueta Lisboa; "Uma campanha no cu", de Hernani Donato; "Menino de asas", de Homero Homem; "rea interna", de Leon Eliachar; "O vaivm", de Lindolfo Gomes; "Aventuras de Xisto", de Lcia Machado de Almeida; "Emergncia", de Lus Fernando Verssimo; "A lngua do p", de Maria Cristina Porto; "O socorro", de Miller Fernandes; "As letras falantes", de Orgenes Lessa; "Recado ao senhor 903", de Rubem Braga; "Marcelo, marmelo, martelo", de Ruth Rocha; "Choro, vela e cachaa", de Stanislaw Ponte Preta; "O gato", de Vincius de Moraes e "O menino maluquinho", de Ziraldo. Mas no primeiro volume da srie Para gostar de ler, que rene crnicas de escritores brasileiros dos anos 70, que essa noo aparece de modo mais evidente. Na apresentao, dirigida ao "amigo estudante", os autores garantem que "este livro no tem a inteno de ensinar coisa alguma a voc. Nem gramtica, nem redao, nem qualquer matria includa no programa da sua srie" (Andrade, 1981)6 . Pelo contrrio,

Gramtica Comunicao Divirta-se Exerccios Complementares Redao 2a) A noo de que os textos lidos, to importantes para a aprendizagem, so passagem para um outro estgio, superior, situado

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As citaes provm dessa edio; o grifo dos autores.

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ns s queremos convidar voc a descobrir um mundo maravilhoso dentro do mundo em que voc vive. Este mundo a leitura. Est disposio de qualquer um, mas nem tda gente sabe que ele existe, e por isso no pode sentir o prazer que ele d. Por isso, o livro pode ser aberto "em qualquer pgina", dando acesso a uma crnica, gnero "que procura contar ou comentar histrias da vida de hoje". Essas histrias do cotidiano poderiam ter acontecido "at com voc mesmo", s que "uma coisa acontecer, outra coisa escrever aquilo que aconteceu". quando se produz a diferena: Ento voc notar, ao ler a narrao do fato, como ele ganha um interesse especial, produzido pela escolha e pela arrumao das palavras. E a comea a alegria da leitura, que vai longe. Ela nos faz conferir, pensar, entender melhor o que se passa dentro e fora da gente. Da por diante a leitura ficar sendo um hbito, e esse hbito leva a novas descobertas. Uma curtio. Tornada hbito, a leitura se entranha na vida do sujeito. Mas o texto que o "amigo estudante" tem em mos no the real thing a se mostrar mais adiante: As crnicas sero apenas um comeo. H um infinito de coisas deliciosas que s a leitura oferece e que voc ir encontrando sozinho, pela vida afora, na leitura dos bons livros. Os "bons livros" vm depois, o que dizem os cronistas Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, que assinam a nota de abertura. Percorrido o longo caminho que leva dos "caros meninos", de Ablio Csar Borges,

ao "amigo estudante", de nossos melhores prosadores, chega-se pelo visto ao mesmo lugar: a leitura proposta no livro didtico introduz, mas no basta para se justificar enquanto tal. Sem uma finalidade mais adiante que d visibilidade e sentido ao trabalho com textos escritos, o ensino de leitura no se sustenta. Eis a utopia da leitura; utopia, no entanto, que a desfigura, porque promete uma felicidade que est alm dela, mas pela qual no pode se responsabilizar.

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SOBRE LIVROS DIDTICOS-, quatro pontos Nilson Jos Machado*

Sua formulao somente poderia decorrer de uma explorao da questo apenas em sua dimenso retrica, o que pode resultar de um excessivo distanciamento do tema em suas circunstncias concretas ou da ausncia de uma parcela mnima quer da prudncia indutiva baconiana, quer dos preceitos da lgica aristotlica. Seguramente, existem livros de m qualidade e livros de boa qualidade no mercado; existem hoje e poderamos dizer que sempre existiram. Alguns livros de indiscutvel qualidade, inclusive, deixaram de circular; morreram de "inanio" por falta de adoo, por no serem escolhidos pelos professores e no serem utilizados pelos alunos. Por outro lado, diversas comisses de avaliao, designadas por rgos governamentais responsveis pela distribuio de livros didticos, em diferentes ocasies, chegaram a diagnsticos mais ou menos parecidos: os livros utilizados apresentariam incorrees tericas, disseminariam vises preconceituosas, etc.; seriam, em suma, de m qualidade. Chegamos, ento, a um ponto em que necessrio ter-se o cuidado de no simplificar demasiadamente a questo, concluindo-se que o problema se resumiria a uma falta de discernimento dos professores, por ocasio da escolha. No esse o xis da questo. Na verdade, a palavra "qualidade" tem sido utilizada em temas educacionais com certa liberdade semntica, pretendendo-se, muitas vezes, transportar-se relaes constitutivas de seu significado do terreno econmico ou de contextos empresariais para o universo educacional. Tal transferncia resulta, quase sempre, eivada de impertinncias. De fato, os projetos empresariais costumam ter metas muito ntidas, visando a alvos bem delimitados. Os valores em questo so

Introduo No Brasil, os livros didticos so, em sua maioria, desatualizados, de baixa qualidade, caros e de difcil acesso por parte dos estudantes. Afirmaes como estas costumam circular em meios educacionais excetuando-se, talvez, entre autores, editores e livreiros como se sobre elas houvesse um razovel consenso. Todas elas, no entanto, exprimem meias-verdades, constituindo, naturalmente, meias-mentiras. Qualidade, quantidade, custo e atualizao so pontos sobre os quais diversas questes, pertinentes ou impertinentes, tempestivas ou intempestivas, tm sido formuladas no diagnstico ou na proposio de polticas pblicas para o livro didtico. Neste artigo, vamos analisar cada um desses quatro pontos, buscando responder s questes referidas ou reformul-las, evidenciando as limitaes no sentido em que so, freqentemente, interpretadas.

A qualidade Comecemos com a questo da qualidade. A proposio categrica 'Todos os livros didticos so de m qualidade" inteiramente inaceitvel.

* Professor da Faculdade de Educao Universidade de So Paulo (USP).

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essencialmente de natureza econmica; outras componentes valorativas so, decididamente, perifricas. No caso das escolas, os projetos educacionais so muito mais complexos, sobretudo porque os valores em cena so muito mais abrangentes, transcendendo em muito a dimenso econmica. A mais complexa das empresas mais simples do que a mais simples das escolas, quando o que se tem em vista a definio de um projeto norteador. E falar-se em qualidade sem uma explicitao do projeto em curso pode significar uma discusso sobre a melhor maneira de ir no sei aonde. No caso especfico dos livros didticos, a qualidade tem sido examinada sempre a partir da perspectiva de determinada forma de utilizao, na qual o papel dos mesmos freqentemente superestimado, sobretudo em sua relao com o do caderno. Na verdade, muito haveria para examinar no que tange s funes do par livro-caderno, que apresentam uma complementaridade verdadeiramente essencial. A desconsiderao de tal fato j conduziu, em diferentes momentos, a desvios contraproducentes, como o que ocorreu com a emergncia e a disseminao dos livros "consumveis". Tais livros subsumiam de modo caricato muitas das funes do caderno. As anotaes individuais, em vez de constiturem uma mediao necessria entre a organizao e a estabilidade da linguagem do livro e a maleabilidade e a instabilidade da linguagem do quadro-negro, tornaram-se estereotipadas nos livros "descartveis", limitando-se, muitas vezes, a um preenchimento de espaos vazios da forma imaginada pelo autor. Tal padronizao constitui um desservio construo da autonomia intelectual, na medida em que vincula os alunos aos professores de modo muito mais subserviente do que ocorre quando h a mediao do caderno.

Aps um curto perodo de predomnio, o livro "consumvel" foi "condenado" por razes essencialmente econmicas, permanecendo ao largo os fatores pedaggicos mais incisivos que o tornavam indesejvel. A forma bsica de utilizao, no entanto, foi mantida, e o livro "adotado" pelo professorconsumvel ou nopraticamente determina o contedo a ser ensinado. O professor abdica do privilgio de projetar os caminhos a serem trilhados, em consonncia com as circunstncias experincias, interesses, perspectivas de seus alunos, passando a conformar-se, mais ou menos acriticamente, com o encadeamento de temas propostos pelo autor. Tal encadeamento ora tem caractersticas idiossincrticas, ora resulta da cristalizao de certos percursos, que de tanto serem repetidos, adquirem certa aparncia de necessidade lgica; nos dois casos, a passividade do professor torna um pouco mais difcil a j complexa tarefa da construo da autonomia intelectual dos alunos. Como se pode depreender do cenrio acima esboado, a forma de utilizao praticamente conduz escolha de determinado tipo de livro, uma vez que parece muito mais fcil entrar em sintonia com um autor que trilha caminhos conhecidos, que no cria "dificuldades", no aumenta a carga de trabalho do j sobrecarregado professor, oferecendo, pelo contrrio, inmeras facilitaes de cunho supostamente pedaggico. Insistimos em que o livro didtico precisa ter seu papel redimensionado, diminuindo-se sua importncia relativamente a outros instrumentos didticos, como o caderno, seu par complementar, e outros materiais, de um amplo espectro que inclui textos paradidticos, no-didticos, jornais, revistas, redes informacionais, etc. A articulao de todos esses recursos, tendo em vista as metas projetadas para as circunstncias concretas

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vivenciadas por seus alunos, uma tarefa da qual o professor jamais poder abdicar e sem a qual seu ofcio perde muito de seu fascnio. importante registrar que, ao pretender a diminuio da importncia relativa do livro, situamo-nos bem distantes daqueles que, algumas vezes, pretendem sua simples eliminao; temos como assentado que, utilizado de modo adequado, o livro mais precrio melhor do que nenhum livro, enquanto o mais sofisticado dos livros pode tornar-se pernicioso, se utilizado de modo catequtico. Um aspecto que tem sido diretamente responsvel pelas alegaes de m qualidade do livro didtico so os erros que eles supostamente conteriam. Nesse terreno, muito do que se aponta como erro parece no passar de mal-entendidos. Recentemente (1995), um grande jornal de So Paulo publicou uma matria em que especialistas em matemtica condenavam com veemncia certo manual, por representar um conjunto C atravs de um diagrama de Euler uma curva fechada, circundando os elementos de C , situando a letra C no interior da curva. Dizia o especialista que isto confundiria os alunos, que poderiam pensar que C era um elemento do conjunto representado... No diria que tal reclamao seria um preciosismo, trata-se, no caso, de um evidente exagero. O exemplo no isolado e muitos outros poderiam ser arrolados em defesa da afirmao de que, em sua maioria, as reclamaes referentes a uma suposta m qualidade dos livros so irrelevantes. No seria o caso de faz-lo aqui, tanto por razes de espao quanto pelo fato de que, em nossa argumentao, mesmo alguns erros considerados indiscutveis poderiam no ser determinantes da rejeio de um livro: preciso avali-lo pelo seu projeto global, pelo que apresenta de positivo, pelas sementes que planta, pelos

estmulos que provoca. Muitas vezes, os livros mais adotados, segundo critrios policialescos de no conterem qualquer erro "conceituai", esto entre os que menos acrescentam em idias para um fecundo trabalho em classe. Naturalmente, existem erros graves que so francamente inadmissveis; tais casos so raros e no justificariam afirmaes to categricas quanto qualidade dos livros didticos em geral. Sintomaticamente, no temos em mente qualquer exemplo de erros desse tipo registrado nos livros didticos j examinados pelas comisses de especialistas, sendo seus relatrios amplamente divulgados pelos jornais e revistas. Resumindo, no temos qualquer receio em afirmar que, entre os inmeros textos didticos disponveis, certamente existem livros de boa qualidade nem sempre os mais adotados pelas escolas; o fato de os professores eventualmente escolherem aqueles que oferecem mais facilidades imediatistas do que recursos efetivos para um trabalho proveitoso em classe deve-se cristalizao de uma forma de utilizao inadequada a que foram conduzidos, sobretudo, em razo de condies de trabalho reconhecidamente insatisfatrias. Mais adiante, ao discutirmos o contedo dos livros didticos, voltaremos a tratar da questo da qualidade. Passemos, agora, a analisar outro ponto: o da quantidade.

A quantidade O governo federal distribuiu, no ano de 1995, cerca de 60 milhes de livros didticos aos alunos do l grau e j anunciou que, em 1996, o total de livros a serem distribudos ser de cerca de 110

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milhes. Como o nmero de matrculas nesse nvel de ensino de cerca de 28 milhes, isto significa que cada estudante dever receber, em mdia, quatro livros apenas no ano em curso. Seria de se esperar que todos os alunos resultassem plenamente atendidos, no mximo, em um perodo de dois anos consecutivos. Seguramente, no este o caso. Basta lembrar que, em trs anos consecutivos, entre 1989 e 1991, mais de 200 milhes de livros didticos foram distribudos para praticamente a mesma populao de estudantes. Onde esto tais livros agora? Foram literalmente consumidos, em razo, sobretudo, de uma forma inadequada de distribuio dos mesmos. A se encontra, com segurana, o buslis da questo: os livros so distribudos aos estudantes quando deveriam s-lo s escolas. Em cada sala de aula, deveria haver prateleiras com os livros a serem utilizados pelos alunos, um livro para cada um. Na biblioteca da escola, um nmero razovel de livros deveria estar disponvel para aqueles que desejassem retirar e levar para casa. Mantidos os atuais nveis de distribuio pelo governo, em um ou dois anos, todas as salas de aula passariam a dispor de livros de todas as disciplinas para todos os alunos. Com mais um ou dois anos, todas as bibliotecas estariam supridas com um acervo suficiente para atender aos que desejassem retir-los. Haveria, naturalmente, um aumento expressivo no nmero de bibliotecas escolares a serem alimentadas. A partir da, o trabalho a ser realizado seria basicamente o de manuteno, de atualizao, ou o de substituio total de natureza tpica, em uma ou outra rea. Naturalmente, uma tal perspectiva pressupe algumas condies bsicas, como uma alterao significativa na forma de utilizao dos livros j referida anteriormente , alm de certa estabilidade

nos ttulos disponveis. Se a primeira das condies citadas esbarra nas precrias condies de trabalho dos professores, a segunda no parece em sintonia com os interesses comerciais das editoras, para os quais a presente situao pode parecer prefervel. Entretanto, tal aparncia pode ser enganosa, uma vez que a situao atual conduz a uma dependncia muito acentuada das editoras em relao aos rgos governamentais que compram os livros a serem distribudos. O aumento do nmero de bibliotecas, conjuminado com o da autonomia das unidades escolares, poderia contribuir para uma maior descentralizao das compras. O incremento no nmero de ttulos vendidos poderia compensar amplamente a diminuio das vendas por ttulo. E h ainda o fato de que a sazonalidade das vendas poderia ser bastante atenuada, no caso de uma contnua atividade de manuteno e atualizao dos acervos das escolas e das bibliotecas. Temas como a qualidade ou a quantidade de livros didticos disponveis para os estudantes da escola bsica encontram-se, naturalmente, associados a problemas financeiros, a questes de custo. Discutiremos tais aspectos, a seguir.

O custo No h como tergiversar: o livro didtico no Brasil caro. Lidando-se com tiragens de dezenas de milhares, muitas vezes, de centenas de milhares, no h como entender-se um custo unitrio de 20,30 reais, ou at mais. As editoras alegaro, naturalmente, os custos da produo, onde o livreiro ou o distribuidor abocanham uma parcela expressivanunca

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inferior a cerca de 30% do preo de capa. Os direitos autorais, que nunca ultrapassam cerca de 10% do referido preo, na maioria das vezes situando-se muito abaixo de tal patamar ou mesmo, da metade dele , so regulados por contratos padronizados, draconianos, e dificilmente poderiam ser responsabilizados pelo custo excessivo dos livros. Neste terreno, alm da freqente falta de regularidade e da arbitrariedade quase geral na fixao das datas de pagamento, ocorrem absurdos do seguinte tipo: nas vendas aos rgos governamentais, como o preo efetivo de venda muito menor do que o de mercado, a porcentagem de direito autoral tambm costuma ser diminuda. Assim, se um livro que custaria dez reais tiver sido vendido por cinco reais, os direitos autorais, que seriam, digamos, de 8%, passaro a ser de 4%, numa inslita compreenso do significado da porcentagem. No caso dos livreiros ou distribuidores, subjaz a questo do dimensionamento do papel do intermedirio, s vezes mero "atravessador", que no peculiar distribui