brasil observer #26 - portuguese version

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BRASIL OBSERVER WWW.BRASILOBSERVER.CO.UK LONDON EDITION ISSN 2055-4826 #0026 APRIL/2015 GUILHERME ARANEGA / ESTÚDIO RUFUS (WWW.RUFUS.ART.BR) PEDALADA OS ESFORÇOS E DESAFIOS DE SÃO PAULO E LONDRES PARA TRANSFORMAR A MOBILIDADE URBANA PELO USO DAS BICICLETAS ECONOMIA ESTAGNADA Para voltar a crescer, Brasil precisa recuperar investimentos EMICIDA EXCLUSIVO Rapper brasileiro vem a Londres e fala ao Brasil Observer REPRODUÇÃO DIVULGAÇÃO

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Em São Paulo e Londres, a transformação urbana está em andamento sobre duas rodas

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Page 1: Brasil Observer #26 - Portuguese Version

B R A S I LO B S E R V E R

WWW.BRASILOBSERVER.CO.UKLONDON EDITION ISSN 2055-4826 # 0 0 2 6APRIL/2015GUILHERME ARANEGA / ESTÚDIO RUFUS (WWW.RUFUS.ART.BR)

PEDALADAOS ESFORÇOS E DESAFIOS DE SÃO PAULO E LONDRES PARA

TRANSFORMAR A MOBILIDADE URBANA PELO USO DAS BICICLETAS

ECONOMIA ESTAGNADA Para voltar a crescer, Brasil precisa recuperar investimentos

EMICIDA EXCLUSIVORapper brasileiro vem a Londres e fala ao Brasil Observer

REPRODUÇÃO DIVULGAÇÃO

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SUMÁRIO4

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1416

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21242628

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ANA TOLEDODiretora de Operações

[email protected]

GUILHERME REISDiretor de Redação

[email protected]

ROBERTA SCHWAMBACHDiretora Financeira

[email protected]

EDITORES EM INGLÊSKate Rintoul

[email protected] Shaun Cumming

[email protected]

DESIGN E DIAGRAMAÇÃOJean Peixe

[email protected]

COLABORADORESAna Beatriz Freccia Rosa, Andressa

Moreno, Franko Figueiredo, Gabriel Noleto, Gabriela Lobianco, Michael Landon, Pedro

Ekman, Ricardo Somera, Rômulo Seitenfus, Wagner de Alcântara Aragão

IMPRESSÃOSt Clements press (1988 ) Ltd,

Stratford, [email protected]

10.000 cópias

DISTRIBUIÇÃOEmblem Group Ltd.

PARA ANUNCIAR [email protected]

020 3015 5043

PARA [email protected]

PARA SUGERIR PAUTA E COLABORAR

[email protected]

ONLINEbrasilobserver.co.uk

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EM FOCO O futuro da energia na América Latina

CONEXÃO BR-UK Empresas britânicas participam da maior feira de turismo da América Latina

PERFILEliane Elias e a inspiração que vem do silêncio

CONECTANDODe Tunis, um relato sobre mais uma edição do Fórum Social Mundial

COLUNISTA CONVIDADO Pedro Ekman defende a regulamentação da mídia no Brasil

BRASILIANCEOs obstáculos de Dilma Rousseff para fazer o Brasil voltar a crescer

BRASILIANCEOs significados dos protestos realizados nos dias 13 e 15 de março

BRASIL GLOBALSobre duas rodas: São Paulo e Londres se adéquam aos novos tempos

GUIAEntrevista exclusiva com o rapper brasileiro Emicida

GUIAClube do Choro UK: De volta ao Brasil sem sair de Londres

DICAS CULTURAISShows e exposições para curtir Londres com um toque brasileiro

COLUNISTAS Franko Figueiredo faz uma reflexão sobre o que é liberdadeRicardo Somera traz os destaques do Lollapalooza Brasil

VIAGEM Kerala, o país de Deus

LONDON EDITION

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É uma publicação mensal da ANAGU UK UN LIMITED fundada por:

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B R A S I LO B S E R V E R

À

E D I T O R I A L

Às vésperas da Eleição Geral de 7 de maio no Reino Unido, a tentação de traçar comparações entre a correlação de forças políticas britânica e a que testemunhamos no Brasil é inescapável. Pois vejamos. Levando-se em conta o debate televisionado entre sete líderes de partidos bri-tânicos, aqui se tem um cenário mais progres-sista – em tese, porque em campanha eleitoral se promete o impossível.

Obviamente, o trabalhista Ed Miliband equivale à petista Dilma Rousseff e o conser-vador David Cameron, ao tucano Aécio Ne-ves. O liberal-democrata Nick Clegg, pelo pa-pel de fiel da balança exercido por seu partido no último Parlamento, poderia ser compara-do a algum figurão do PMDB, mas a julgar pela última eleição presidencial no Brasil ele se parece mais com Marina Silva, então can-didata pelo PSB – nem de direita, nem de es-querda, muito pelo contrário.

Nas quatro peças restantes, a diferença sutil que faz a conjuntura britânica poder ser con-siderada mais progressista do que a brasileira. Enquanto Nicola Sturgeon (primeira-ministra da Escócia pelo Partido Nacionalista Escocês), Leanne Wood (primeira-ministra do País de Gales pelo também nacionalista Plaid Cymru) e Natalie Bennett (Green) defendem o fim da austeridade e o desenvolvimento de um novo paradigma político-econômico-ambiental, ape-nas Nigel Farage (UKIP) faz papel de bizarro – ao culpar exclusivamente os imigrantes pe-los males da nação. No Brasil, a bizarrice tinha dois nomes na eleição passada: Pastor Everaldo, do PSC, e Levy Fidélix, do PRTB. A defesa de temas “espinhosos”, como legalização da ma-conha, descriminalização do aborto e taxação de grandes fortunas, por exemplo, ficou com Luciana Genro (Psol) e Eduardo Jorge (Verde).

Fora isso, por conta das diferenças decor-rentes do sistema político de cada país (parla-mentarismo no Reino Unido, presidencialismo no Brasil) e dos diferentes graus de desenvol-vimento de cada um deles, qualquer outra comparação seria mero exercício de “achismo”. Impossível não notar, porém, outro fator em comum – e que, aliás, é facilmente identificá-vel em quase todos os sistemas democráticos ocidentais. Trata-se daquele velho receio a tudo que questione e possa modificar, ainda que de maneira superficial, o status quo.

Nicola Sturgeon é quem melhor represen-ta o ponto fora da curva. Foi quem melhor apontou, no debate, a irresponsabilidade do discurso de Nigel Farage; as contradições do Partido Trabalhista; a hipocrisia de Nick Cle-gg; e a falta de competência de David Came-ron. E por agir baseada em nada mais além da sacrossanta verdade factual, é apontada por alguns setores como a pessoa mais perigosa do Reino Unido. Resta saber o que dirão as urnas no início do mês que vem.

Enquanto isso, no Brasil, aqueles que espa-lham o medo quando surge a possibilidade de

qualquer mísero avanço na direção de uma de-mocracia social soberana, capaz de desarmar as estruturas seculares do atraso nacional, seguem falando alto – e cada vez mais alto, diga-se. Esperar o que, afinal? Se nem mesmo aqueles escolhidos para representar o desejo emancipa-tório da sociedade conseguem – por incompe-tência ou má fé – exercer aquilo para que fo-ram eleitos, quem mais o fará? Resignado seja, então, o compasso da desilusão, como diria o mestre navegante Paulinho da Viola.

Tivessem Dilma Rousseff e o PT o capital político necessário para seguir a pauta com a qual alcançaram democraticamente, pela quar-ta vez consecutiva, a maioria dos votos brasilei-ros, o país estaria debatendo seriamente, no mí-nimo, duas questões elementares para superar os problemas centrais dos dias que correm: a formação de uma Assembleia Constituinte Ex-clusiva para conduzir a reforma política, sendo que um dos pontos principais seria o fim do fi-nanciamento empresarial de campanhas eleito-rais; e uma reforma tributária que corrigisse as distorções primárias de um sistema regressivo que pune os mais pobres. O combate à corrup-ção e o ajuste fiscal que o país tanto necessita passam por esses dois debates. Ou se não de que forma o governo conseguirá economizar mais de 60 bilhões de reais sem afetar o direito das classes médias? Como fará isso sem preju-dicar os investimentos e o emprego?

Quando Dilma prometeu que não faria tudo aquilo que está fazendo agora, adiou er-roneamente o debate sobre essas perguntas, que são, afinal, inerentes às transições de ci-clo. O modelo onde “todos ganham” que foi tão bem sucedido nos anos Lula não funciona mais. O mundo é outro. Não basta um ajuste meramente econômico. Falta, essencialmente, um ajuste político. Mas quem está no coman-do? A pauta do retrocesso caminha a passos largos no Congresso Nacional liderado por Eduardo Cunha e Renan Calheiros, enquanto a base de apoio ao governo petista se esfarela, nos gabinetes e nas ruas.

É pertinente a análise de que o PT falhou ao não politizar os milhões de brasileiros que ascenderam socialmente graças às políticas pú-blicas colocadas em prática pelos governos Lula e Dilma. Mas foi o mínimo. O cidadão tem o di-reito de achar que ascendeu por conta própria – afinal, sem vontade individual não se vai longe – e se sentir lesado quando vê que seus direitos estão em risco nas mãos justamente daqueles que prometeram assegurar suas conquistas. E ninguém suporta mais os casos de corrupção envolvendo o partido, por mais que os maus hábitos não sejam exclusividade petista.

Quando o medo do avanço impossibilita a ação de quem sempre representou o questiona-mento do status quo, não há maquiagem que resista. Quem no poder defende o establish-ment, vê a sociedade como inimiga. Isso vale para o Brasil. Isso vale para o Reino Unido.

VALE AO BRASIL, VALE AO REINO UNIDO

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4 brasilobserver.co.uk | April 2015

O

EM FOCO

Não haverá integração latino-americana plena enquanto o Brasil e o México não se aproximarem comercial e economicamente.

O Vice-Presidente de Energia da CAF (Ban-co de Desenvolvimento da América Latina), Hamilton Moss de Souza, participou em Londres de evento organizado pela Canning House, ‘The Future of Energy in Latin Ameri-ca – bright prospects for the renewables sec-tor?’, em março.

Em seu discurso, Moss de Souza fez ques-tão de defender a América Latina, “uma re-gião confiável para investidores”, mesmo diante de uma conjuntura econômica desfa-vorável (principalmente pela queda no preço das commodities e pela falta de certeza sobre as condições financeiras globais), e reconhe-ceu que “ainda são necessários muitos inves-timentos para darmos início a um novo ciclo de desenvolvimento”. De acordo com dados apresentados por ele, só no setor de energia a região precisará de ao menos 71 bilhões de dólares por ano na próxima década, diante de uma realidade em que 30 milhões de latino-a-mericanos não têm acesso à energia elétrica.

Após o evento, Moss de Souza, que chegou ao CAF depois de uma importante carreira no Ministério de Minas e Energia (MME) no Brasil, onde chefiou o Departamento de Desenvolvimento Energético e coordenou a elaboração do Plano Nacional de Eficiência Energética, respondeu algumas perguntas co-locadas pelo Brasil Observer.

Qual a posição do Brasil no setor de energias renováveis?

Em certas áreas, somos liderança no mundo, por conta de dois aspectos. Primei-ro pelo tamanho do Brasil, pois, mesmo que não fosse bom do ponto de vista técnico, já teria um peso importante – e somos bons tecnicamente na questão do álcool e da bio-massa, por exemplo. E segundo pela questão

hidráulica; o Brasil há mais de cem anos usa energia hidráulica em diversas áreas. O uso da energia solar e eólica ainda é pequeno, mas está crescendo. Então o Brasil acaba in-fluenciando os mercados pelo volume e pela capacidade técnica.

Quais são as vantagens estratégicas do Brasil neste setor?

A vantagem de investir no Brasil é que o país tem uma escala que por si só já é su-ficientemente vantajosa, independentemente de qualquer outra coisa. Mas, além de ter um mercado próprio por conta de seu tamanho, o Brasil tem uma liderança técnica e de aplicação de mercado, então investir no país pode ser um primeiro passo para estender os investimentos para a América Latina como um todo.

E as desvantagens? O que ainda precisa ser melhorado?

O Brasil primeiro tem de confiar mais em si próprio, precisa reconhecer mais suas qualida-des, pois somos muito críticos de nós mesmos. Os investidores estrangeiros enxergam no Bra-sil muitas possibilidades, mas às vezes por uma falta de confiança o país acaba não aproveitan-do elas. Depois existe a questão da burocracia. Isso é quase unânime. Somos um país muito burocrático, então precisamos simplificar as coisas, facilitar a vida de quem quer investir no país, tanto para as empresas estrangeiras quanto para as brasileiras.

BRASIL EXERCE LIDERANÇA EM ENERGIAS RENOVÁVEIS

Leslie Bethell, Professor Emérito de História Latino-Americana (Universidade de Londres), durante aula pública sobre a ‘Americanização’ da Política Externa Brasileira (1889-1914) organizada pela Canning House e o Instituto Brasil do King’s College

g Direitos Humanos e Justiça na Argentina Pós-AutoritáriaA Canning House e o Instituto Cervantes estão apresentan-do uma série de palestras com foco nas ditaduras militares do século passado na América La-tina e suas consequências. Esta vai explorar o papel do sistema judiciário argentino diante do legado do Estado opressor.

Quando: 16 de abril (18:30-20:30)Onde: Instituto Cervantes – 102 Eaton SquareEntrada: Membro Corporativo: Grátis / Membro Individual: £5 / Não Membro: £10www.canninghouse.org

g Debate Sobre os Movimentos Sociais na América Latina Evento do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Uni-versidade de Londres recebe Clifton Ross, editor de ‘Until the Rulers Obey: Voices from Latin American Social Move-ments’, que analisa os movi-mentos por trás da recente onda de mudanças em países da América Latina.

Quando: 21 de abril (18:30-20:30)Onde: Senate House – Malet Street Entrada: Preço não disponível até o fechamento da ediçãowww.ilas.sas.ac.uk

g Conservação na Colômbia e Oportunidade de NegóciosConferência será dividida em duas sessões. A primeira se concentra nas implicações do recém-lançado Plano Nacional de Desenvolvi-mento 2014-2018 para os negócios sustentáveis na Colômbia. A segunda foca em como alcançar as metas estabelecidas.

Quando: 29 de abril (14:30-20:00)Onde: Canning House – 14/15 Belgrave Square Entrada: Evento [email protected]

g IV Conferência Oxbridge de Estudos Brasileiros Organizado pela Universidade de Cambridge e por grupos brasileiros da Universidade de Oxford (CUBS e OUBS), evento multidisciplinar reúne pesqui-sadores das áreas de ciências naturais, sociais e humanida-des para debater os impactos de suas pesquisas no Brasil.

Quando: 2 de maio (9:00-19:00)Onde: Hughes Hall – University of Cambridge Entrada: Preço não disponível até o fechamento da ediçãowww.oxbridgeonbrazilstudies.webs.com

g Jantar de Gala e Prêmio Personalidade do Ano 2015 A Câmara Brasileira de Comércio na Grã-Bretanha premia dois líderes – um brasileiro e um britânico – por suas conquistas recentes. Os vencedores são Marcos Molina e Sir Martin Sorrel. O ministro da Fazenda do Brasil, Joaquim Levy, fará o discurso principal da noite.

Quando: 12 de maio (19:00)Onde: London Hilton – 22 Park Lane Entrada: Membro Individual: £215 / Não Membro: £270www.brazilianchamber.org.uk

NA AGENDA

MAS PRECISA CONFIAR MAIS EM SI PRÓPRIO, DIZ HAMILTON MOSS DE SOUZA

É possível ter acesso aos dados apresentados por Hamilton Moss de

Souza no evento através do endereço online http://goo.gl/7ofcQ9

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5brasilobserver.co.uk | April 2015

Are you consideringdoing business in Brazil?

The world has finally discoveredthe potential of this great countryand how it plays a leading role inLatin America.

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Page 6: Brasil Observer #26 - Portuguese Version

6 brasilobserver.co.uk | April 2015

COLUNISTA CONVIDADO

Por Pedro Ekmanu g

OOs primeiros desenhos de um sistema de-mocrático talvez tenham como melhor re-presentação a ágora grega, uma espécie de praça pública onde a população se reunia para tomar decisões sobre os rumos que a sociedade deveria seguir. Neste espaço to-dos e todas poderiam expor seus argumen-tos, ouvir ponderações e pontos de vista contrários e tomar decisões de forma livre, votando segundo as suas próprias convic-ções e interpretação dos fatos. Em uma sociedade como a que se vive no Brasil em 2015, tomar decisões em praça pública com centenas de milhões de pessoas ao mesmo tempo não é algo factível. Talvez a internet um dia permita isso, mas com o nível de inclusão digital atual ainda estamos longe deste cenário.

Para resolver o problema da impossibi-lidade de reunir todos fisicamente em um espaço público comum para tomar decisões sobre o país, inventamos dois instrumen-tos: o sistema de representação política e a comunicação social eletrônica, ambos des-critos e definidos na Constituição Federal. O Congresso Nacional passa a ser a praça pública de debates onde participam com direito a voto os representantes eleitos. O rádio e a TV passam a organizar o debate feito pelos milhões de brasileiros em um território nacional de dimensões continen-tais. Através do debate feito pela comunica-ção social, difundida por meios eletrônicos como o rádio e a TV, a sociedade se infor-ma para tomar decisões elegendo represen-tantes e saindo às ruas para protestar contra o que percebe estar errado.

Tanto o Congresso Nacional como os ca-nais de rádio e TV são espaços públicos. A Constituição Federal fez questão de os de-finir assim, pois são espaços estruturantes do sistema democrático representativo. O problema é que a política brasileira, seguin-do a tradição latino-americana, privatizou o espaço público ao longo de sua história, en-tregando o debate aos interesses privados em detrimento dos interesses públicos e republi-canos. Os representantes do parlamento são eleitos com campanhas milionárias financia-das por corporações que passam a ter seus interesses verdadeiramente representados no Congresso. As cédulas de dólares e reais substituem a cédula de votação em impor-tância, corrompendo a estrutura do siste-ma. Os canais de rádio e TV são entregues à poucas empresas privadas que definem o debate político e cultural do país.

A democracia existe no papel, mas não se realiza na prática. O artigo 220 da Cons-tituição Federal define que não pode haver monopólio ou oligopólio na comunicação social eletrônica. A Globo, no entanto, con-trola cerca de 70% do mercado, faturando sozinha mais do que todas as demais em-presas de comunicação. Isso acontece por-

que o Congresso nunca elaborou leis que definissem os meios pelos quais se impedi-ria o monopólio de se formar. E por que o Congresso tem sido omisso nas suas obri-gações? A artigo 54 da mesma carta magna determina que deputados e senadores não podem ser donos de concessionárias de serviço público (canais de rádio e TV são serviços públicos prestados também por empresas privadas). Porém, a família Sar-ney e os senadores Fernando Collor, Aécio Neves, Agripino Maia e Edson Lobão Filho são apenas alguns exemplos das dezenas de parlamentares que controlam canais de rá-dio e TV em seus estados.

Criar as leis que tornem viáveis os ob-jetivos constitucionais é justamente o que se chama de regulamentar a Constituição. Regular a mídia nada mais é do que regula-mentar os artigos da Constituição Federal que dizem respeito à comunicação social eletrônica, ou seja, criar regras para que o jogo democrático possa ser jogado de forma justa e equilibrada. Congressistas e grandes emissoras de TV, no entanto, de-finem a regulação da mídia como cercea-mento da liberdade de expressão e como um ataque de um suposto governo autori-tário que quer impedir críticas à sua gestão. Isso acontece por que as corporações de mídia, ao reconhecerem a possibilidade de um cenário em que terão que dividir o bolo que sempre comeram sozinhos com o resto da sociedade, atacam a proposta incitando o medo na sociedade para que ela também reaja contra a proposta.

Para se ter uma ideia do impacto da concentração de mercado no debate públi-co, podemos analisar a discussão que ocor-re neste momento no Congresso Nacional sobre a possibilidade da redução da maio-ridade penal. Como será a reação de uma sociedade que é bombardeada diariamente por programas policialescos e telejornais que veiculam crimes cruéis supostamen-te cometidos por adolescentes sem sequer preservar o direito constitucional de pre-sunção da inocência? Com adolescentes condenados pela praça pública da TV, a so-ciedade se vê impelida a votar pela redução da maioridade penal, pois esse que parece ser o caminho razoável a se tomar diante dos fatos que foram selecionados para se-rem apresentados ao debate.

Na maioria das vezes o mais importante não é o que se comunica, mas aquilo que se deixa de comunicar. Recentemente as redes sociais foram surpreendidas por uma notí-cia que foi ao ar com uma nota do jornalista ao editor que dizia “Podemos tirar, se achar melhor” após um trecho da reportagem que ligava o esquema de corrupção da Petro-bras ao governo do ex-presidente Fernan-do Henrique Cardoso. O diálogo entre um jornalista e um editor é algo absolutamente

trivial, mas, ao expor a preferência de se colocar em debate público algumas infor-mações e não outras, a sociedade se pôs a pensar quantas notas ela deixou de ver e quantas informações ela simplesmente não tomou conhecimento para poder debater. O fato de que a mídia tem lado, posiciona-mento e opinião contraria o discurso cor-rente de que os meios são técnicos e sempre optam pela melhor forma de informar. Ten-do isso claro, fica mais fácil perceber que um cenário de mercado altamente concen-trado – no qual apenas uns poucos empre-sários decidem o que toda a sociedade vai debater – é mortal para uma sociedade que se pretende democrática.

Regular a mídia não é censura e nem coisa de comunista. Países não comunistas como a Inglaterra, a França, a Alemanha e até os Estados Unidos regulam a mídia de maneiras mais determinadas que o Brasil. É importante lembrar que o Brasil também regula a mídia, que não se está inventan-do um assunto novo, apenas o fazemos de forma absolutamente insuficiente. Enquan-to os donos do The New York Times, por exemplo, não podem ser os mesmos donos de uma emissora de TV em Nova York – por-que a regulação americana coloca limites à propriedade cruzada dos meios de comuni-cação proibindo a formação de oligopólios –, no Brasil os donos da Globo podem ter ca-nais de TV, de rádio, jornais, editoras, grava-doras e outros tantos veículos sem qualquer limite. Se no Brasil as emissoras de TV ques-tionam na justiça a classificação indicativa (regulação de conteúdo e não de mercado) que existe para proteger a infância de conte-údos impróprios, na Suécia a publicidade voltada para crianças é proibida de ir ao ar. Estados Unidos e Suécia estão longe do projeto comunista e nem por isso definem regulação da mídia como censura.

Entendendo que a solução para esse pro-blema não virá espontaneamente do Con-gresso e cansada de esperar um governo que decida enfrentar a questão, a sociedade civil brasileira decidiu elaborar um projeto de lei de iniciativa popular que regulamen-te a Constituição nos temas da comunicação social eletrônica. Para ajudar a sociedade bra-sileira a conseguir fazer esse debate de forma mais qualificada do que ela faria se só tivesse a informação produzida pelos grande meios de comunicação, o Intervozes decidiu tam-bém produzir um documentário sobre como é feita a regulação da mídia em todo o mun-do. A sociedade pode assinar o projeto de lei em www.paraexpressaraliberdade.org.br e apoiar a produção do filme em www.catar-se.me/pt/leidamidiabrasil. Se, mesmo com todo o esforço da sociedade civil para pau-tar e debater o assunto, ele não aparece na TV e no rádio, é porque certamente alguém achou melhor tirar.

Regular a mídia nada mais é do que regula-mentar os artigos da Constituição Federal que dizem respeito à comunicação social eletrônica, ou seja,

criar regras para que o jogo democrático pos-

sa ser jogado de forma justa e equilibrada

VAMOS DEBATER A MÍDIA?(PODEMOS TIRAR, SE ACHAR MELHOR)

g Pedro Ekman é membro da Coordenação

Executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de

Comunicação Social (www.intervozes.org.br)

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8 brasilobserver.co.uk | April 2015

PERFIL

Após o lançamento de seu 25º disco, cantora, compositora e pianista brasileira se prepara para apresentação única no Barbican e conversa com o Brasil

Observer sobre sua música

INSPIRAÇÃO QUE VEM DO SILÊNCIO

ELIANE ELIAS

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9brasilobserver.co.uk | April 2015

OO estilo musical de Eliane Elias combina suas raízes brasileiras e voz sensual com Jazz instrumental e composição clássica. É dessa forma que o Barbican anuncia o show que a cantora, compositora e pianis-ta nascida em São Paulo fará na famosa casa de Londres, dia 4 de maio.

Mistura. E que mistura. O talento mu-sical de Eliane Elias aflorou logo cedo. Aos sete anos, começou a estudar piano e, aos doze, já tirava solos de grandes mestres do Jazz. Passou a ensinar com apenas quinze e daí foi um pulo, pois iniciou sua carreira no Brasil aos dezessete, trabalhando com o cantor e compositor Toquinho e com o po-eta Vinícius de Morais. Em 1981, o grande turning point: se mudou para Nova York, onde vive até hoje a colecionar histórias e prêmios graças a uma trajetória musical aclamada e de sucesso internacional.

Ao todo, Eliane Elias já gravou 25 dis-cos. O mais recente deles, lançado no final de março, foi batizado de Made in Bra-zil. Não à toa. Afinal, foi a primeira vez que Eliane fez boa parte da gravação no país em que nasceu. O que não significa, porém, que não haja um decisivo toque global em sua nova obra. Até o histórico Abbey Road Studios, em Londres, teste-munhou o desenvolvimento do álbum.

Em entrevista concedida ao Brasil Ob-server, Eliane Elias fala sobre seu novo tra-balho, da mistura de influências presente em sua música e revela o fator determinante para seu processo criativo: o silêncio.

Mesmo estando há tanto tempo fora do Brasil, como é desenvolver um trabalho tão ligado à cultura brasileira?

Muitos dos meus discos incluem músi-ca Brasileira. Nossa música é parte do meu DNA. Não importa onde, minhas raízes permanecem.

Muitas premiações e indicações fizeram seu público no exterior crescer. Como isso influenciou sua carreira no Brasil?

Os prêmios são uma parte do reconheci-mento de uma carreira. Nem sempre refletem o sucesso de um artista. Eu me sinto orgulhosa por ter uma carreira internacional há tantos anos, fazendo concertos pelo mundo inteiro e alcançando o topo dos charts de Jazz com todos os meus discos. Quanto ao Brasil, não sei expli-car o porquê, mas não sou tão conhecida nem reconhecida como sou internacionalmente.

Pode nos dizer o que você costuma ouvir no dia a dia?

Gosto muito do silêncio. Estou sempre em processo de criação. Tento me manter atualizada com os novos lançamentos dos gêneros que me interessam musicalmente, mas, na verdade, quando eu estou traba-lhando num disco, compondo, gravando, produzindo, no meio de uma agenda mui-to ocupada de turnês, prefiro o silêncio nas horas vagas. Dele nascem minhas ideias, minhas composições e arranjos.

Como foi a mistura entre Bossa Nova e Jazz na sua música?

Moro há 33 anos em Nova York, para onde me mudei muito jovem. A princi-pio me estabeleci como pianista de Jazz e compositora. Fui aceita de braços abertos no mundo jazzístico, trabalhando com os maiores nomes do gênero na atualidade. A música brasileira foi incorporada. To-dos os meus discos trazem improvisação: uns com ritmos brasileiros; outros mais jazzísticos e straight ahead; outros real-çam o lado da composição; outros real-çam mais o lado vocal. A Bossa Nova é um ótimo veículo para o Jazz e para a improvisação.

Como foi o processo criativo do novo álbum?

Primeiro vieram as ideias, meus arran-jos e as minhas composições, assim como a escolha das músicas e da direção que o disco ia tomar. Nesses arranjos e nessas composições se fez interessante a inclusão de músicos parceiros para que eu alcançasse o som que estava imaginando. É como um quadro. Você faz primeiro o esboço e depois escolhe as cores que ficam interessantes na-quelas composições.

O disco tem seis músicas próprias, e canções de Ary Barroso, Roberto Menescal e Tom Jobim. Diferentes gerações...

Sim. O álbum Made in Brazil começa com um toque da história de nossa músi-ca, o samba exaltação, passando pela Bossa Nova e chegando às minhas composições, que refletem a música de hoje.

Sete das 12 faixas do seu novo álbum tiveram arranjo de Rob Mathes, gravadas no lendário Abbey Road Studios. Como foi esse processo, já que o disco foi finalizado em São Paulo?

No Brasil fizemos as composições e os arranjos, gravamos todas as bases e acrescentamos os vocais do Ed Motta. Nos Estados Unidos foram gravadas as participações do grupo Take 6, da Aman-da Brecker e do Mark Kibble. Então fo-mos para Londres gravar as cordas. Os arranjos de cordas foram escritos por Rob Mathes. É o terceiro disco que ele participa como arranjador orquestral e que gravamos as cordas em Londres, no histórico Abbey Road Studios.

No começo de maio, o Barbican rece-be Eliane Elias e Ed Motta. Como foi essa parceria e qual é a expectativa para o show?

Estaremos cada um fazendo o seu pró-prio show, e estamos estudando uma parti-cipação conjunta. O Ed cantou na minha música chamada “Vida”, então pensamos em cantar essa música juntos.

DIV

ULG

ÃO

Page 10: Brasil Observer #26 - Portuguese Version

10 brasilobserver.co.uk | April 2015

BRASIL GLOBAL

Os benefícios trazidos pelo uso da bicicleta como meio de transporte

são mais do que conhecidos. Tanto em São Paulo quanto em Londres, a

transformação está em andamento

Por Guilherme Reis

MA

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OS SA

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S/USP

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SSOBRE DUAS

RODAS

LLondres, 27 de março, 6pm horário lo-cal. Nos arredores do Southbank Centre, ciclistas se reúnem para mais uma peda-lada organizada toda última sexta-feira do mês pelo grupo Massa Crítica (Criti-cal Mass, em inglês). Por volta das 7pm, com uma aglomeração que ultrapassava seguramente a marca de 500 pessoas, as buzinas avisam que a marcha sobre duas rodas está para começar. Nas horas se-guintes, ao som do reggae e outros gêne-ros que saiam de caixas acopladas nas bi-kes de alguns participantes, a reportagem do Brasil Observer acompanha a pro-cissão que passa por Holborn, Camden Town e King’s Cross até chegar ao ponto final, em Covent Garden. O motivo do encontro: promover o uso da bicicleta como meio alternativo de transporte, menos poluente, além de conscientizar a população para o compartilhamento se-guro dos espaços públicos.

São Paulo, 27 de março, 6pm horário local. Na Praça do Ciclista, na Avenida Paulista, ciclistas, cicloativistas e simpati-zantes aproveitam a bicicletada que acon-tece toda última sexta-feira do mês para protestar. O motivo: uma liminar do Mi-nistério Público que, uma semana antes, havia suspendido a construção de ciclo-vias em toda a cidade por falta de planeja-mento. Pouco depois das 8pm, o ato que reuniu cerca de sete mil pessoas começa a se deslocar no sentido da estação Paraí-so do Metrô. No meio do caminho chega a notícia de que o Tribunal de Justiça de São Paulo havia acabado de derrubar a li-

minar que impedia a implementação das ciclovias. Os manifestantes comemoram, mas sabem que a luta a favor da bicicle-ta como meio alternativo de transporte, assim como a conscientização dos cida-dãos para o compartilhamento pacífico dos espaços públicos, continua.

Os benefícios sociais, econômicos, ambientais e de saúde trazidos pelo uso da bicicleta como meio de transporte são mais do que conhecidos. Exatamente por isso as maiores cidades do mundo têm se esforçado para incentivar uso da “magre-la” nos deslocamentos diários. Um esforço que envolve a construção de toda a infra-estrutura cicloviária e a conscientização de motoristas de automóveis, pedestres e dos próprios ciclistas para que haja segurança na atividade de pedalar em ambientes ur-banos. São Paulo e Londres, como não po-deria deixar de ser, também se adéquam aos novos tempos, ainda que estejam em estágios diferentes do processo.

SÃO PAULO: NOVIDADE PARTIDARIZADA

A demanda por uma infraestrutura cicloviária compatível com a grandeza da cidade de São Paulo existe há pelo menos três décadas, disse ao Brasil Observer a paulistana Renata Falzoni, cicloativista e bikerrepórter com mais de 30 anos de ex-periência. Mas somente agora, na admi-nistração do prefeito Fernando Haddad (PT) – eleito em 2012 para quatro anos de mandato –, a pauta foi incorporada

no Programa de Metas da prefeitura. O plano é entregar 400 km de ciclovias até o final de 2015, ao custo estimado de 80 milhões de reais. “Em bom português, demorou!”, comentou Renata Falzoni.

O último trecho entregue pela prefei-tura até o fechamento desta edição foi na região do Bom Retiro, na zona central da cidade, no dia 2 de abril. Assim, a cidade passou a contar com um total de 264,8 km de vias destinadas aos ciclistas. Desse montante de ciclovias existentes na ci-dade, a atual gestão inaugurou 201,8 km desde junho de 2014. Portanto, antes, São Paulo contava apenas com 63 km.

Para o cicloativista Willian Cruz, au-tor do site Vá de Bike, “já é possível per-correr longas distâncias na cidade usan-do ciclovias na maior parte do trajeto, por vezes no caminho todo”. Ao Brasil Observer, ele reconheceu, porém, que “em alguns pontos existem irregularida-des no asfalto ou na sinalização, o que já existia antes, com a diferença de que ago-ra a utilização é exclusiva do ciclista”.

A sensação de que ainda é possível melhorar alguns pontos do projeto é re-corrente. Mas, de maneira geral, os ciclis-tas estão satisfeitos. “Estamos relevando muitos problemas. O que está sendo feito é basicamente o que se consegue fazer nesse momento, nessa cidade caótica que ainda depende do carro, tanto por neces-sidade quanto por vício”, afirmou Renata Falzoni. Ela acredita que a estrutura ci-cloviária está sendo feita em rede e que vai conectar os ciclistas. “Somente assim

é que mais e mais pessoas sairão de bici-cleta às ruas, ocuparão a rede cicloviária e, consequentemente, o espaço público. E com isso darão sentido a esse esforço. O importante é conectar, ocupar e depois melhorar”, completou.

Pesquisa divulgada pelo Ibope em setembro último mostrou que São Paulo ganhou 86,1 mil ciclistas frequentes de 2013 para 2014 – período que coincide, em partes, com a ampliação da malha ci-cloviária. Segundo o levantamento, 261 mil paulistanos usavam bicicletas todos os dias como meio de transporte no ano passado. Já a última Pesquisa Origem/Destino do Metrô, de 2012, contabilizou 333 mil viagens diárias de bicicleta, mas não a quantidade de pessoas – o número representa aproximadamente 1% do total de viagens feitas somando todos os meios de transporte disponíveis.

Há, porém, quem reclame das ciclo-vias. “A resistência parte de uma mínima parcela da população que acredita que o espaço público deve ser privatizado para estacionamento de carros particulares, ou para único uso dos motoristas em au-tomóveis, modelo que expulsa a popula-ção das ruas, que segrega e que é respon-sável direto pela baixa qualidade de vida de nossa cidade”, opinou Renata Falzoni.

Para Willian Cruz, o grande proble-ma tem sido a “polarização partidária” em cima do projeto da prefeitura. “As vias para ciclistas são chamadas de ‘ciclovias do Haddad’ por boa parte da imprensa, como se fossem feitas para atingir obje-

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tivos eleitorais ou partidários, não para melhorar a mobilidade e proteger a vida das pessoas que usam ou pretendem usar a bicicleta”, comentou o clicoativista.

A segurança dos ciclistas, aliás, deve ser o melhor termômetro para medir o quanto a cidade está sendo eficiente, tanto na ques-tão de infraestrutura e sinalização quanto no quesito conscientização. Os dados mais recentes referentes aos acidentes e mortes no trânsito de São Paulo são de 2013. Na-quele ano, foram registrados 712 acidentes envolvendo ciclistas, com 35 mortes – nú-mero elevado para os padrões europeus. Em 2005, foram contabilizadas 93 mortes.

“São Paulo se parece com Londres. Muitos ônibus, taxis e caminhões de en-trega nas ruas. Tem que ter sangue frio para enfrentar. Londres tem a vantagem de ter muito menos motos e muito mais ciclistas nas ruas. E se o motorista atrope-lar, vai para cadeia. O motorista londrino pode não gostar dos ciclistas, mas respeita. Em São Paulo alguns motoristas não res-peitam e ponto”, afirmou Renata Falzoni.

Ela lembrou que uma medida impor-tante nessa adaptação do espaço público é o pedágio urbano – aqui em Londres, o Congestion Charge. “Londres encarou de frente a proposta de tirar os carros da rua. Em São Paulo, temos o rodízio que foi criado há duas décadas e não evoluiu. Qualquer um que seja carro-maníaco tem dois carros”.

LONDRES: AVANÇADA, MAS EXIGENTE

A bicicleta como meio de transporte passou a ser levada a sério em Londres em 2008, quando o então prefeito traba-lhista Ken Livingstone estabeleceu a meta de aumentar em 400% as viagens de bike na cidade até 2025. Naquele mesmo ano, porém, ele perdeu as eleições para o con-servador Boris Johnson, que prometeu continuar apoiando a expansão da malha cicloviária da capital britânica.

Em 2010, foram disponibilizadas seis mil bicicletas no esquema de aluguel-rá-pido (até 30 minutos) Barclays Cycle Hire em 400 estações em nove bairros centrais de Londres. O número logo foi ampliado para oito mil bicicletas em 570 estações, transformando a chamada ‘Boris Bike’ em um símbolo da cidade – que, aliás, está mudando de cor, do azul para o vermelho do banco Santander, novo patrocinador.

Nem tudo é tão fácil, porém. Das 12 ‘Cycle Superhighways’ propostas por Levin-gstone em 2008, apenas quatro já saíram do papel: CS3 (Barking até Tower Gateway), CS7 (Merton até a City), CS2 (Stratford até Aldgate) e CS8 (Wandsworth até West-minster). Todas juntas têm 33 km, segundo o site da TFL (Transport For London).

Mas há ainda uma série de outras rotas disponíveis que formam a ‘London Cycle Network’, sinalizadas com desenhos de bicicletas no asfalto e, em alguns casos, com números. Dessa forma, já em 2011 se registrava em Londres que 2,5% das viagens para o trabalho eram feitas de bi-cicleta – número alto para a realidade de São Paulo, mas considerado decepcionan-te pelas autoridades inglesas (na cidade de Cambridge, por exemplo, o número era de aproximadamente 30%).

Depois da Olimpíada de 2012 é que, enfim, a bicicleta passou a parecer capaz de revolucionar o transporte em Londres. Ins-pirados pelo bom desempenho dos ciclistas britânicos nos jogos, as autoridades decidi-ram transformar o gosto pela pedalada em legado olímpico e, em 2013, Boris Johnson apresentou proposta ousada: construir duas grandes ciclovias segregadas que fariam um xis na cidade, de norte a sul, de leste a oeste, somando quase 35 km.

Como em São Paulo, houve bastan-te oposição, principalmente dos taxistas, preocupados com o fato de os trajetos fi-carem mais longos por conta dos desvios necessários para adaptar as vias. Mesmo assim, o projeto foi aprovado e as obras começaram no mês passado na região de Southwark. A rota norte-sul terá quase 5 km e vai de King’s Cross a Elephant and Castle, enquanto a rota leste-oeste terá por volta de 30 km, saindo de Barking e che-gando até Acton.

Para Rosie Downes, da London Cy-cling Campaign, “o projeto sempre foi bem-vindo, mas demorou muito para ser colocado em prática”. Segundo ela, as ci-clovias segregadas representam um gran-de passo a frente na criação de vias mais seguras para os ciclistas. “Temos algumas preocupações em detalhes que estão sen-do resolvidos com a TFL, mas de maneira geral estamos satisfeitos em ver que o pro-jeto dá muito mais espaço para ciclistas e pedestres”, completou Downes.

O planejamento da prefeitura de Lon-dres prevê investimento de 913 milhões de libras nos dez anos de 2013 a 2023 para deixar a cidade mais convidativa ao uso das bicicletas. Isso envolve desde a cons-trução de ciclovias segregadas até a adap-tação de vias e rotatórias e a ampliação do esquema de aluguel-rápido de bikes.

Uma das propostas, aliás, é chamada de ‘Quiteways’, que são rotas para bicicletas em ruas menores e menos movimentadas, de modo que o ciclista possa fugir das high streets que são sempre mais perigosas. Ro-sie Downes, porém, faz um alerta. “A ideia é boa, pois precisamos de rotas acessíveis que levem a todos os lugares possíveis. Mas é essencial que essas ruas sejam realmente calmas e viáveis para ciclistas de todos os níveis. Muitas ruas ao redor das high stre-ets acabam sendo usadas por motoristas apressados que tentam fugir do congestio-namento, então é preciso que haja sinaliza-ções bem claras nos cruzamentos e limite de velocidade”, ponderou.

Por ser mais plana e ter um sistema viário mais organizado, além de ciclovias bem sinalizadas, Londres certamente é uma cidade mais convidativa para o ciclis-ta do que São Paulo. Os próprios números comprovam isso: em 2012, a média diária de viagens feitas de bicicleta na capital bri-tânica foi de quase 600 mil, sendo que em todo o ano foram registradas 14 mortes decorrentes de acidentes de bike – mesmo número registrado em 2013, considerado alto por aqui.

As duas cidades, porém, compartilham o mesmo desejo, por parte considerável de seus cidadãos, de transformar a mobilida-de urbana por meio do uso das bicicletas, repensando a utilização dos espaços pú-blicos e promovendo uma maneira mais amistosa de se locomover.

Mesmo que em estágios diferentes, São Paulo e Londres

se adéquam para incentivar o uso das bicicletas

O aumento do número de ciclovias nas grandes cidades brasileiras e a dis-seminação de um estilo de vida mais saudável estão aquecendo o mercado de bicicletas no país, principalmente no segmento “premium”, com modelos que custam de 3 mil a 70 mil reais.

“Nos últimos cinco anos, as vendas de bikes de mais de 3 mil reais aumen-taram pelo menos 100%”, disse à BBC Brasil Marcelo Maciel, presidente da Associação Brasileira do Setor de Bici-cletas (Aliança Bike). Luis Felipe Pra-ça, presidente da Trek no Brasil, tem estimativa semelhante. “Nossas vendas desse segmento devem ter crescido em média 20% ao ano nos últimos cinco anos”, afirmou à reportagem.

As montadoras de carros também estão de olho nesse mercado. Entre as marcas que fabricam bicicletas de luxo estão a Land Rover, que está pla-nejando levar para o Brasil alguns de seus modelos, e a BMW, que já vende no mercado brasileiro três tipos de bike “premiun”, com preços de 7 a 19 mil reais. Além dessas, Chevrolet e Volkswagen também já lançaram suas superbikes no país.

Os impactos na produção das “ma-grelas” como um todo, porém, não devem ser sentidos imediatamente, conforme avaliação da Abraciclo, que reúne os fabricantes de bicicletas, motos, motonetas e outros veículos de duas rodas. Segundo a entidade, o número de unidades fabricadas e vendidas no país tem se mantido está-vel nos últimos anos, em torno de 4,5 milhões de bicicletas. Mas isso não é pouco: o Brasil é o terceiro maior fa-bricante de bicicletas do mundo, com uma fatia de 4% do mercado global. Em primeiro lugar está a China, com 67% da produção total (80 milhões de bicicletas por ano), seguida pela Ín-dia, que tem 8% (10 milhões de bici-cletas por ano).

Dados da mesma associação in-dicam que o Brasil é o quinto maior mercado consumidor de bicicletas no mundo, com 5,3 milhões de unida-des – os primeiros são China, Estados Unidos, Japão e Índia.

Entre os modelos nacionais e impor-tados que circulam pelo país, a Associa-ção Brasileira da Indústria, Comércio, Importação e Exportação de Bicicletas, Peças e Acessórios (Abradibi) estima que 50% são usadas como meio de lo-comoção para o trabalho, 32% são de crianças, 17% são para o lazer e 1% são usadas em competições.

PEDALADAS LUCRATIVAS: MERCADO DAS SUPERBIKES AVANÇA NO BRASIL

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CONEXÃO BR-UK

BRITÂNICOS EXPÕEM NA WTM LATIN AMERICA

ENERGIA: BRASIL E REINO UNIDO CELEBRAM PARCERIA

CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS: EMBAIXADOR É ESCOLHIDO

Terceira edição da feira de turismo em São Paulo tem participação de Wedgewood, Travco, JacTravel e TravelTek; evento deve gerar mais de 200 milhões de libras em negócios

DDestinos, produtos de turismo e ser-viços tecnológicos ligados ao setor de viagens de diversas regiões do mundo participam da terceira edição da feira World Travel Market Latin America, entre os dias 22 e 24 de abril, na cidade de São Paulo. O evento ocorre simulta-neamente ao 43º Encontro Comercial Braztoa e conta, de acordo com a or-ganização, com quatro expositores do Reino Unido.

São eles: Wedgewood, que oferece uma série de serviços para viagens cor-porativas; Travco, cujo foco é acomoda-ção; JacTravel, um dos principais forne-cedores mundiais de reservas de hotel on-line; e TravelTek, que proporciona soluções tecnológicas para empresas do setor de turismo em todo o mundo atra-vés do uso da internet.

À reportagem do Brasil Obser-ver, o diretor da WTM Latin America, Lawrence Reinisch, explicou que o ob-jetivo é “promover negócios duradou-ros”. “No ano passado, US$ 341 milhões foram transacionados durante [a feira] e nos meses seguintes ao evento”, afirmou. O valor corresponde a 206 milhões de li-bras – meta a ser ultrapassada pela edição 2015, que pretende ser a melhor já feita.

“Nesta edição”, esclareceu Lawrence Reinisch, “teremos várias novidades para aumentar esse volume de negócios, entre elas a área de Turismo Corporativo, en-cabeçada pela ALAGEV (Associação La-

tino Americana de Gestores de Eventos e Viagens Corporativas), e o workshop do FOHB (Fórum de Operadores Hotelei-ros do Brasil), que representa as mais im-portantes redes hoteleiras no país, com 26 associados, somando 630 hotéis e 104 mil unidades habitacionais”.

O diretor da WTM Latin America acrescentou que o evento conta ain-da com “ações já consagradas, como o programa de Compradores Internacio-nais Convidados (Hosted Buyers), que dá a oportunidade para que até 150 profissionais altamente qualificados e interessados na América Latina partici-pem de forma VIP da feira, e o Speed Networking, sessões com cem compra-dores e 600 expositores”.

Entre os Compradores Internacio-nais estarão representantes de seis em-presas do Reino Unido: Saltours Inter-national, Miki Travel, Barrhead Travel, Lowcostbeds.com, Ruby Mear Group e Kuoni Travel.

Para Lawrence Reinisch, mesmo com a participação de britânicos na WTM Latin America deste ano, há es-paço para crescer. “Consideradas as dimensões da economia britânica e da economia brasileira, ainda é baixo o re-lacionamento econômico entre os dois países. Isto é um desafio importantís-simo a ser vencido: como aumentar a percepção do Brasil no Reino Unido e do Reino Unido no Brasil?”, questionou.

A missão britânica no Brasil recebeu brasileiros e britânicos para o coquetel ‘UK & Brazil: Partners in Energy’ no iní-cio de março no Rio de Janeiro. O evento celebrou a parceria entre os dois países no setor de energia e aproveitou para co-memorar os 450 anos da cidade.

O sucesso da relação do Reino Unido com o Brasil se deve a um envolvimento integral no setor que vai além da parceria comercial. O Reino Unido tem uma tra-dição de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia de ponta, cada vez mais com-partilhada com o Brasil.

O embaixador do Reino Unido, Alex

Ellis, demonstrou confiança. “A experi-ência de exploração e produção por mais de 50 anos no Mar do Norte levaram a indústria britânica a desenvolver uma forte cadeia de fornecedores que muito pode contribuir para os investimentos no Brasil em águas profundas, mais es-pecificamente no pré-sal”, disse.

A parceria entre os dois países no setor, apenas com o auxílio do Governo Britânico, gerou aproximadamente R$ 7 bilhões nos últimos dois anos, com mais de 120 empresas atuando no país. Nos últimos três anos, 25 missões comerciais foram organizadas entre os países.

Lucas Leung, aluno do 7º semestre do curso de Engenharia de Manufatura, venceu o concurso ‘SwB UK Ambassa-dor 2015’, promovido pela embaixada britânica no Brasil para selecionar um representante do programa Ciências Sem Fronteiras no Reino Unido.

A conquista lhe dará a oportunida-de de viajar para o país e, durante uma semana, participar de atividades aca-dêmicas e culturais programadas es-pecialmente para ele. Lucas irá visitar algumas das mais importantes univer-sidades britânicas e entrar em contato com professores e profissionais especia-listas em sua área e que poderão orien-tá-lo quanto às chances de prosseguir seus estudos no exterior.

“Sinto-me privilegiado e sinto a res-ponsabilidade da nomeação. Estou de-terminado a buscar toda e qualquer chance de promover nosso país por todo Reino Unido, assim como trazer para o Brasil as oportunidades e experiências vividas em um país de desenvolvimento exemplar, alta tecnologia, inovação e rica cultura”, afirmou o aluno.

Lucas lembrou ainda que o Reino

O portfólio World Travel Market é composto pelos principais eventos de viagens de lazer no mundo: World Travel Market, em Londres (novembro); WTM Latin America, em São

Paulo; WTM Africa, na Cidade do Cabo; e Arabian Travel Market, em Dubai

Lucas Leung: “Estou determinado a buscar toda e qualquer chance de promover nosso

país por todo Reino Unido”

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Unido é o segundo país a receber mais alunos do programa Ciências Sem Fron-teiras, desenvolvido pelo governo federal brasileiro. “Garanto que é a escolha cer-ta a ser feita por futuros alunos que irão participar do programa”, afirmou.

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BRASILIANCE

É INVESTIR OU SUCUMBIRPolíticas de ajuste fiscal, numa economia estagnada como se verifica hoje no Brasil, conduzem à recessão. É um caminho

sem volta? Não. Se o país recuperar os níveis de investimento, o quadro pode se reverter. O governo de Dilma Rousseff aposta nisso, mas tem obstáculos consideráveis a superar

Por Wagner de Alcântara Aragão

AA economia do Brasil estagnou-se, mostram os dados do documento Contas Nacionais de 2014, do Instituto Bra-sileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), divulgado no final de março. O Produto Interno Bruto (PIB) aumentou apenas 0,1% no ano passado, em comparação com 2013. O mais preocupante, porém, foi o desempenho do com-ponente Formação Bruta de Capital Fixo – em outras pa-lavras, os investimentos que foram feitos no país. A For-mação Bruta de Capital Fixo caiu 4,4% em 2014, o pior resultado desde 1999, quando houve queda de 8,3% ante o ano anterior. Recuperar os investimentos é imperioso para que o PIB brasileiro volte a crescer em longo prazo; e para se evitar ou minimizar uma recessão num prazo mais imediato.

O governo federal sabe disso. O ministro do Planeja-mento, Nelson Barbosa, e a presidenta Dilma Rousseff têm anunciado para breve o lançamento da segunda fase do Programa de Investimentos em Logística (PIL). Dilma Rousseff também vem prometendo para logo a terceira fase do Programa Minha Casa, Minha Vida e a etapa três do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). São ações que envolvem um conjunto de obras públicas que deverão ser viabilizadas com forte investimento da iniciativa priva-da, tanto nacional quanto estrangeira. Conforme a presi-denta tem argumentado, o ajuste fiscal que está sendo co-locado em prática desde o início do ano busca justamente resgatar, de parte dos investidores, a confiança no país.

Mesmo que algumas medidas do ajuste ainda depen-dam da aprovação do Congresso – onde Dilma não tem tido vida fácil –, a agência de análise de risco Standard & Poor’s manteve a nota de crédito e o grau de investimento do Brasil. “A perspectiva estável reflete a nossa expectati-va de que a correção em andamento continuará a atrair o apoio da presidente Dilma Rousseff e, finalmente, do Congresso, que gradualmente irá restaurar a credibilida-de política perdida, abrindo o caminho para perspectivas de crescimento mais forte em 2016 e nos anos seguintes”, afirmou a agência. Um rebaixamento neste momento se-ria péssimo para as ambições do país na atração de capital, avalia o governo federal.

Só a ‘confiança’ do mercado, porém, não é suficiente. Os efeitos desses investimentos no reaquecimento da ati-vidade econômica estarão condicionados à transposição de pelo menos dois obstáculos imediatos. Um deles é o período entre os lançamentos dos programas e a efetiva concretização das obras. Esse hiato precisará ser abrevia-do, pois os impactos de obras públicas levam tempo para aparecer. O outro obstáculo é que as maiores empreiteiras do Brasil, teoricamente mais aptas a tocarem empreendi-mentos de grande escala, estão sendo investigadas pela Operação Lava Jato, suspeitas de terem pagado propina em troca de contratos com a Petrobrás.

Em relação ao tempo de maturação dos investimen-tos, a primeira fase do PIL sinaliza o desafio que o gover-no terá pela frente. O programa consiste basicamente na concessão de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos a consórcios privados, por determinado período de tempo. Em troca, a iniciativa privada arca com os investimentos (financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). São obras de revitalização, duplica-ção, extensão e mesmo construção de infraestrutura lo-gística, nos mais diferentes modais.

O primeiro PIL foi lançado em agosto de 2012, mas as

Portos e ferrovias devem ser os destaques da segunda fase do Programa de Investimentos em Logística, trunfo do governo para atrair investimentos privados e reaquecer a economia

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licitações para as primeiras concessões à iniciativa privada só foram colocadas na praça um ano depois. Apenas em 2014 as obras começaram a sair do papel. Ou seja, mesmo que a segunda fase do PIL surja ainda neste primeiro se-mestre, é praticamente impossível, até o final do ano, efe-tuar as licitações, assinar os contratos com os investidores e começar a tirar as obras das pranchetas. Os reflexos dos investimentos no PIB serão notados a partir de 2016, no mínimo.

EMPREITEIRAS

Sobre o envolvimento das empreiteiras nos escânda-los flagrados pela Lava Jato, e o quanto isso pode travar os investimentos, há razões para temer o pior. Empresas com credibilidade arranhada, atrasando compromissos e paralisando obras já são parte da realidade do país.

Um dos casos refere-se à paralisação das obras da BR-153, entre os Estados de Tocantins e Goiás, que foi con-cedida à construtora Galvão Engenharia no ano passado. A revitalização (incluindo duplicação) da rodovia prevê R$ 4,3 bilhões de investimentos em 30 anos, sendo R$ 2,7 bilhões só no primeiro quinquênio. A modernização da BR-153 é fundamental para se criar uma rota eficiente de ligação entre a Zona Franca de Manaus (Norte) e as regi-ões Sudeste e Sul do país.

Outro caso envolve a concessão do maior terminal aeroportuário do Brasil, o Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. A construtora OAS teve os seus 25% de participação no consórcio controlador do terminal expropriados pela Justiça, de acordo com

reportagem da revista Carta Capital. O Ministério Pú-blico Federal pede a proibição da construtora em no-vas concorrências públicas.

PETROBRÁS

O comportamento da própria Petrobrás é balizador também das sequelas da Operação Lava Jato na economia brasileira. Embora, ao contrário do que ocorre em países superdependentes de petróleo, os investimentos da Pe-trobrás não sejam hegemônicos na atividade econômica nacional, a companhia exerce peso considerável. Apesar do desgaste na imagem, a Petrobrás não parou: segue, por exemplo, batendo recorde atrás de recorde na produção de petróleo e gás natural na camada do pré-sal das bacias de Santos e Campos.

Os investimentos em refinaria e em indústria naval, porém, desaceleraram conforme os escândalos de con-tratos superfaturados foram vieram à tona. Em março, a empresa anunciou um plano de desinvestimento (vendas de ativos, projetos, negócios e propriedades) da ordem de US$ 13,7 bilhões. A Petrobrás pretende vender ativos em áreas de exploração tanto no Brasil quanto no exterior, e ainda nas áreas de abastecimento, gás e energia. O objeti-vo da empresa é focar na produção de óleo e gás no Brasil.

RISCO

O cenário de dúvidas preocupa o presidente da Co-missão de Obras Públicas, Privatizações e Concessões da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC),

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15brasilobserver.co.uk | April 2015

g PIBO Produto Interno Bruto registrou crescimento de 0,1% em 2014, somando R$ 5,521 trilhões. Para 2015, o prog-nóstico é pior: uma recessão já é admitida pelo governo. Analistas do mercado financeiro e do setor produtivo pre-veem queda de 1%.

g PIB per captaO desempenho do PIB per capta foi ainda pior: redução de 0,7% em 2014, em comparação com 2013.

g PIB por componenteA Formação Bruta de Capital Fixo (investimentos) regis-trou a maior diminuição: queda de 4,4%. Em segundo lugar entre os piores desempenhos está a indústria (que-da de 1,2%). Ligeiro crescimento houve na agropecuária (0,4%) e no setor de serviços (0,7%). O consumo do go-verno teve o maior resultado (1,3%), seguido do consumo das famílias (0,9%).

O CENÁRIO ATUAL

SE O GOVERNO SE EMPENHAR, TEMOS CONDIÇÕES DE INVESTIRPresidente da Comissão de Obras Públicas, Privatizações e Concessões da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, Carlos Eduardo Lima Jorge, responde ao Brasil Observer.

O governo federal deve anunciar em breve uma nova etapa do programa de concessões. Na sua avaliação, é preciso remodelação do programa em relação à etapa inicial?

O Brasil atravessa uma delicada, porém necessária, fase de ajuste fiscal. Fase que pressupõe um controle rígido das despe-sas do governo, incluindo os investimen-tos. Embora defendamos que é preciso manter um nível razoável de investi-mentos nos programas de infraestrutu-ra, sabemos que haverá retração em re-lação aos anos anteriores. Uma saída possível para o país será a retomada do programa de concessões e PPPs, as par-cerias público-privadas, como forma de atender às demandas da infraestrutura e de garantir crescimento da economia. O governo deverá promover ajustes para atrair empresas e investidores nas próxi-mas concessões.

O fato de as principais empreiteiras brasileiras estarem envolvidas na Operação Lava Jato pode inviabilizar as obras já em curso, assim como as novas que o governo pretende lançar?

Os efeitos ainda dependem de julgamen-tos e decisões dos órgãos envolvidos. Tais empresas têm e terão enorme dificuldade de continuar ocupando o mesmo papel que exerceram nas diversas concessões e obras do país. Mas há saídas concretas

para o governo garantir a continuidade do programa de concessões.

A tendência é a de uma maior abertura a empreiteiras estrangeiras? Isso seria benéfico ou prejudicial?

As saídas a que me referi passam pelo governo criar condições efetivas de par-ticipação de um amplo conjunto de mé-dias empresas que, reunidas em consór-cios, terão total competência técnica e econômica de se responsabilizarem pelas concessões de rodovias, ferrovias, por-tos, aeroportos, saneamento, entre ou-tras. Um sinal claro nessa direção vem sendo dado pelo Banco Nacional de De-senvolvimento Econômico e Social, que nessa fase pretende trocar sua função de financiador de projetos privados a ju-ros fortemente subsidiados pela função de ‘estimulador de negócios’, entrando com uma pequena fatia do financiamen-to, mas dando um ‘selo de qualidade’ ao investimento, e com isso facilitando a captação de recursos. A modulação adequada dos projetos também é fator fundamental na nova fase das conces-sões. Resumindo: se o governo se empe-nhar em criar condições adequadas, nos-so mercado interno terá plenas condições de garantir o avanço da infraestrutura do Brasil. E as empresas estrangeiras interessadas poderão participar desse mercado, em parceria com as construto-ras brasileiras.

Carlos Eduardo Lima Jorge. A CBIC é uma entidade que reúne sindicatos e outras associações empresariais do se-tor da construção civil. Em entrevista ao Brasil Observer (leia mais ao lado), Carlos Jorge disse considerar a con-tinuidade do Programa de Investimentos em Logística como imprescindível para a recuperação da economia brasileira. Entretanto, ressalvou, diante do envolvimento das principais empreiteiras do país em casos de corrup-ção, o risco de os investimentos não vingarem é grande.

A CBIC, de acordo com o dirigente da entidade, tem pelo menos três sugestões para que a segunda fase do PIL supere essa dificuldade. Primeiro é dividir as obras a se-rem licitadas em blocos menores, tornando os empreen-dimentos factíveis a médias empresas e, assim, viabilizar a participação delas nas concorrências públicas. Criar novos mecanismos de financiamento de longo prazo que estimulem a constituição de fundos de investimento em infraestrutura é outra sugestão. Por fim, a CBIC defende menor “interferência estatal” na definição das taxas de retorno (lucro) dos empreendimentos, de modo que se tornem mais atraentes aos investidores privados.

CIFRAS TRILIONÁRIAS

Potencial para investimentos, o Brasil tem. Estudo lan-çado em dezembro do ano passado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – Perspectiva de Investimento – calcula em R$ 4,1 trilhões os investimen-tos necessários na economia brasileira para o período de 2015 a 2018. Trata-se de um montante 17,1% superior ao investimento efetivamente realizado no país entre os anos de 2010 e 2013. Os R$ 4,1 trilhões estimados incluem os setores de indústria, agricultura e serviços, infraestrutura e residências.

Exatamente no setor de infraestrutura, abrangido pelo programa de concessões do governo federal, é que está o maior crescimento previsto. A estimativa é que até 2018 o setor deva receber investimentos da ordem de R$ 598 bilhões, ou 30% a mais que os R$ 457 bilhões realizados entre 2010 e 2013 – portos e ferrovias devem ser os desta-ques da segunda fase do PIL a ser apresentada.

MINHA CASA, MINHA VIDA

Outro programa governamental tido como aposta para reaquecer a construção civil e, consequentemente, a economia é o Minha Casa, Minha Vida, cuja terceira fase deverá ser lançada em maio, de acordo com declarações públicas da presidenta da Caixa Econômica Federal, Mi-riam Belchior (que foi ministra do Planejamento no pri-meiro mandato de Dilma Rousseff). A nova fase prevê a construção de três milhões de unidades habitacionais em todas as regiões brasileiras.

O programa deverá contar com uma nova faixa de renda familiar (intermediária às faixas atuais) a ser con-templada com subsídios e ainda dispor de novas regras que facilitem a construção de moradias em municípios pequenos. “Recentemente, ouvi do presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção [José Carlos Mar-tins] algumas críticas quanto [à modalidade] do Minha Casa, Minha Vida [chamada de] ‘sub-50’, que é para ci-dades com menos de 50 mil habitantes. São críticas perti-nentes. Vamos melhorar isso”, declarou Dilma, em entre-vista à imprensa durante ato público em março.

Se os impactos de todo esse conjunto de obras públi-cas no crescimento da economia são demorados, os lan-çamentos das novas fases dessas ações podem pelo menos amortecer os efeitos de tantas projeções e notícias ruins sobre a economia. Frente ao ajuste fiscal que sacrifica os trabalhadores e contribuiu para a presidenta ver sua popu-laridade despencar, garantir a ampliação de um programa como o Minha Casa, Minha Vida reitera o compromisso em expandir os avanços sociais que marcaram o Brasil no último decênio. Frente ao aumento das taxas de juros e da carga tributária do setor produtivo, reformular o pacote de grandes obras é sinalizar à iniciativa privada a disposição em manter a política desenvolvimentista em seu curso.

g DesempregoA taxa de desocupação, medida pelo IBGE, acumula ligeiro aumento em 2015. Em fe-vereiro (último dado disponível), estava em 5,9%, maior que no mesmo mês em 2014 (5,1%) e acima da taxa de janeiro (5,3%). Caiu o número de empregados com carteira assi-nada no setor privado (-4,3%) na comparação entre fevereiro de 2015 e o mesmo mês de 2014, e de trabalhadores por conta própria (-3,8%).

g InflaçãoA inflação (IPCA/IBGE) acumulada dos 12 me-ses encerrados em fevereiro está em 7,7%, acima do teto da meta fixada pelo Banco Cen-tral (6,5%). O mercado financeiro estima uma inflação para 2015 de 8,1%.

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AS RUAS E OS RUMOSEnquanto se discutem os significados dos protestos dos dias 13 e 15 de março, segmentos sociais que apoiaram a reeleição de Dilma Rousseff

lutam para que o governo tome um rumo distinto do sugerido neste início de segundo mandato

Por Vinicius Gomes g

NNa sexta-feira dia 13 de março, os gritos eram pela reforma política, contra a perda dos direitos trabalhis-tas e em defesa da Petrobrás. Dois dias depois, centenas de milhares em algumas das principais cidades brasilei-ras bradavam contra a cor-rupção e pelo impeachment da atual presidente do Bra-sil, com muitos defendendo uma nova intervenção mili-tar no país – estes estavam longe de ser a maioria, mas não eram tão insignifican-tes como muitos querem fazer crer. Por fim, os dois episódios mostraram que, quatro meses e meio depois das eleições, parte da socie-dade parece continuar com o clima de acirramento que caracterizou a disputa pre-sidencial de 2014.

Um dos pontos-chave da tese do terceiro turno é o estado de São Paulo. Na esteira da polêmica sobre o “um milhão de pessoas na Avenida Paulista”, número calculado pela Polícia Mi-litar, o Datafolha divulgou que 82% das 210 mil pessoas que o instituto estima terem passado pelo local disseram ter votado em Aécio Neves no segundo turno do ano passado. No dia 13, 71% afir-maram ter votado em Dilma Rousseff. Porém, a principal motivação das manifestações e a consequente resposta do governo federal são os fatos mais sugestivos. A defesa dos direitos trabalhistas (25%) e o protesto contra a corrup-ção (47%) foram as princi-pais bandeiras nos dias 13 e 15, respectivamente. Dilma Rousseff, na segunda-feira 16, confirmou a criação de um “pacote contra a corrup-ção” e voltou defender a po-lítica econômica do governo e as medidas de austeridade.

Estaria o governo ouvin-do apenas o dia 15 e negli-genciando a demanda da parcela fundamental que a reelegeu em outubro passa-do? E, se assim o for, a ide-ologia da classe média, ma-

joritária no dia 15, pode ser abraçada pelas classes mais baixas e que ascenderam principalmente durante os anos da gestão de Lula?

15M BRASILEIRO

A primeira vez que se nomeou um movimento com a denominação “15M” – referência à 15 de março – foi na Espanha, em maio de 2011, quando as ruas de diversas cidades espanholas foram tomadas por cidadãos descontentes com a política neoliberal do governo do PSOE (Partido Socialista dos Trabalhadores da Es-panha). Das ruas tomadas no 15M, surgiu o Podemos, uma sigla à esquerda. Qual-quer semelhança entre os “15M” espanhol e brasileiro é mera coincidência.

De acordo com o Data-folha, além da corrupção, as principais motivações dos manifestantes paulistanos foram o impeachment de Dilma (27%), protestar con-tra o PT (20%) e contra os políticos em geral (14%). To-davia, os dados mais interes-santes residem no perfil dos presentes: 74% participavam de um protesto pela primei-ra vez na vida e 41% tinham renda familiar de mais de 10 salários-mínimos.

Diante da questão se de fato era apenas a classe média protestando ou se a insatisfa-ção deste segmento já che-gava até outros extratos eco-nômicos, o sociólogo Rudá Ricci afirma que a ideologia da classe média, especial-mente a paulista, se espraia, mas ainda se concentra em quem votou em Aécio. “A crise econômica piorada pela recessão ainda está fazendo suas vítimas. O caldo pode engrossar, mas pelos dados de perfil dos manifestantes ainda não engrossou”, diz.

Para Francisco Fonseca, cientista político e professor na Fundação Getúlio Vargas e na Pontifícia Universidade Católica, ambas de São Paulo,

os manifestantes do domingo tinham um perfil claramente conservador, alguns sendo de extrema-direita, membros de uma classe média constituída em grande parte por profis-sionais liberais.

Porém, para ele, a maior marca da manifestação era o baixo grau de politização daqueles que foram às ruas. “As pessoas do dia 15 têm, de modo geral, um perfil in-dividualista, despolitizado e com uma visão de políti-ca bastante primária, tanto que mais de 70% dos que estavam lá iam pela primei-ra vez na vida a uma mani-festação e com uma pauta ampla, sem um objetivo es-pecífico”, afirma Fonseca.

O cientista político dá como exemplo a pauta do combate à corrupção no atual sistema, discutida de forma a não se combater suas causas, em especial o financiamento privado de campanha. “Os próprios organizadores são outsiders da vida política brasileira, não têm visão do que é po-lítica”, argumenta. Todavia, Fonseca alerta para os “ino-centes úteis” das “classes médias ascendentes”, cujo papel das políticas governa-mentais, como o ProUni, a valorização do salário-mí-nimo, a ampliação e conso-lidação do mercado interno, a extensão do crédito (pro-dutivo e ao consumidor), é crucial para sua ascensão.

Esses grupos, generica-mente chamados de “classe C”, tendem a reproduzir o discurso de valorização do mérito individual, esquecen-do-se que sua ascensão é re-sultado da vontade política, consolidada em políticas pú-blicas. Daí deriva o discurso das classes médias tradicio-nais e das elites se “popula-rizarem”, invertendo o que Fonseca considera como ten-dência reformista incremen-tal de centro-esquerda repre-sentada – embora de forma contraditória – pelo petismo, em prol do conservadorismo

de uma “nova direita”.Segundo Gilberto Ma-

ringoni, professor da Uni-versidade Federal do ABC (UFABC) e ex-candidato ao governo paulista pelo Psol, a direita está atingindo sucesso em hegemonizar um descon-tentamento difuso com o go-verno federal e a culpa seria do próprio governo. “As pes-quisas indicam que a classe média foi majoritária nos atos de domingo. Mas esse setor só ganhou musculatura porque a piora das condições de vida se generaliza”, afirma. Ele sugere que a série de me-didas tomadas após a reelei-ção, principalmente a eleva-ção dos juros e o ajuste fiscal, podem minar a esquerda de uma forma geral. “A percep-ção de que a vida piorou e vai piorar começa a transformar a decepção em raiva. Para a maioria, a esquerda é res-ponsável pela situação, pois, em tese, quem governa é um partido de esquerda”.

AS REDES E A MÍDIA

O papel da mídia tradi-cional brasileira na cobertu-ra dos protestos de domingo 15 de março foi contestado por muitos. Em uma ati-tude incomum, a Folha de S. Paulo, por exemplo, deu o “serviço” dos protestos, orientando seus leitores. Mas as principais críticas recaíram sobre a Rede Glo-bo e seu canal de TV fecha-da, a Globo News.

Na opinião de Fonseca, o desserviço à democracia que o aparato de emissoras de rádio e televisão – que são concessões públicas, nunca é demais relembrar – e os grandes jornais e revistas fi-zeram e fazem ao país é ele-mento crucial para a consti-tuição da visão despolitizada de parte dos manifestantes. Assim, o “interesse de classe”, que motiva defesa de privilé-gios, se manifesta junto com a despolitização generalizan-te, na incapacidade de refle-xão (senso comum) e na falta

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Uma avenida, distintas pautas. De acordo com o Datafolha,

manifestação de 13 de março (acima) teve cerca de 40 mil

pessoas nas ruas de São Paulo e a do dia 15, mais de 200 mil

de solidariedade social. O cientista político cunhou os manifestantes como “filhos da mídia”. “Apesar de o pro-cesso organizacional ter sido realizado por alguns outsi-ders (Movimento Brasil Li-vre e Revoltados Online), as manifestações de domingo foram conclamadas, infladas e coordenadas pelos grandes meios privados de comu-nicação, principalmente o Sistema Globo de Comuni-cação”, pontua Fonseca.

Entretanto, assim como ocorreu durante a corri-da presidencial em 2014, as redes sociais têm sido a principal ferramenta desses outsiders, que servem tanto para a direita, quanto para a esquerda. Um dos princi-pais nomes no mapeamento de redes sociais no Brasil é o professor Fábio Malini, da Universidade Federal do Es-pírito Santo. Ele criou uma fanpage que, durante três meses, curtia apenas páginas associadas à crítica política conservadora. Em seguida, usando o Netvizz (plugin do Facebook), solicitou que o sistema identificasse, em cada uma dessas fanpages, quem elas seguiam.

Segundo o pesquisa-dor, o movimento 15M no Brasil foi composto por um conjunto de 360 páginas, cuja marcação editorial era delimitada em propa-gar o anticomunismo (1), o combate à corrupção e intervenção militar (2) e a mobilização de rua para protestos (3). A rede 1 é formada por fanpages que constituem seus valores de defesa da família, do livre mercado e da moral e bons costumes; a rede 2 tem vo-cação mais militarista, com uma mistura de princípios patrióticos e de profunda negação do comunismo e petismo. A rede 3, menos densa pois novata, é for-mada pelos principais arti-culadores do 15 de março, como Movimento Brasil Livre e Revoltados Online.

Em um dos mapea-mentos sobre as páginas que clamavam por violên-cia policial, linchamentos, morte de “esquerdistas” e novo golpe militar, notou-se uma associação dessas páginas com outras como “Dilma Rousseff Não” e “Movimento Contra Cor-rupção”, ou seja, páginas que se colocam no campo da direita mais reacionária do país. Malini afirma que, com o aparente fracasso no

controle da corrupção, ali-menta-se a despolitização, que é o combustível para essas páginas de ódio. O pesquisador argumenta, no entanto, que a despo-litização não é apenas um processo produzido pelos “repressores”, mas por su-cessivos governos mergu-lhados em escândalos e que são tecidos por relações políticas cínicas em nome da governabilidade.

A SAÍDA

O sociólogo Ricci afir-ma que a esquerda se en-fraqueceu por ser gover-nista. “A esquerda não se confunde com governos ou se torna populista, como ocorre em tantos países la-tino-americanos”, afirma.

Para Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalha-dores Sem Teto (MTST), “a saída para a crise não é o ajuste [fiscal], e sim um programa de reformas po-pulares”. “Falar em ajuste deveria ser falar em taxa-ção das grandes fortunas, de reforma tributária, au-ditoria da dívida pública”, afirma Boulos, que diz que a reforma política, em espe-cial o fim do financiamento privado de campanha, tem de se tornar uma resposta à insatisfação popular.

Para Fonseca, é possível realizar alguns ajustes que de fato são necessários, mas sem mexer em determina-das agendas e sem ser fisca-lista. “Pode-se fazer alguns ajustes, como por exemplo, diminuir subsídio, mas não se precisa e nem se pode, a meu ver, reduzir direitos sociais trabalhistas. Pode-se diminuir o crédito para a compra de automóvel, mas não diminuir o seguro-de-semprego”, exemplifica.

Enquanto a pergunta se a direita continuará mo-bilizada e tomando as ruas permanece sem resposta (a próxima manifestação con-tra o governo estava marca-da para 12 de abril), a maior certeza, por enquanto, é que o governo Dilma precisa se fortalecer urgentemente, sendo necessário olhar me-nos para o dia 15 e mais para aqueles do dia 13 – os mes-mos que fizeram a estreita diferença no segundo turno de 2014 e que podem ser sua única base de sustentação frente aos inevitáveis ata-ques que sofrerá até o final de seu mandato.

g Este artigo foi originalmente publicado

na Revista Fórum Semanal (www.revistaforum.com.br), e

editado pelo Brasil Observer

PAULO

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g O STF estava julgando a constitu-cionalidade das doações de cam-panha no Brasil. Como acabou o julgamento?Ainda não acabou. Em 2014, o STF retomou a análise de uma ação da OAB na qual a entidade alega que as doações empresariais são inconstitucionais. Seis ministros concordaram com a tese e um rejeitou a ação. Gilmar Mendes pediu vistas do processo, parali-sando o julgamento. Até hoje ele não devolveu o processo, alegan-do que se trata de uma matéria de responsabilidade do Congresso.

g Como funciona o financiamento de campanha hoje no País? No Brasil, adota-se o sistema mis-to. Os partidos podem arrecadar dinheiro por meio de doações de empresas e de pessoas físicas.

g Há dinheiro público nas eleições brasileiras?Sim. Os recursos públicos para os partidos políticos são distribuí-dos de duas formas. Por meio do Fundo Partidário e por meio da isenção fiscal para os canais de TV que veiculam o horário eleitoral. Entre 2002 e 2014, as emissoras de televisão e rádio receberam 4,4 bilhões de reais em isenções fiscais para transmitir os progra-mas políticos.

g O que é Fundo Partidário?É o dinheiro público que sustenta os partidos políticos. Em 2014 fo-ram distribuídos 289,6 milhões de reais. O relator do Orçamento da União para 2015, o senador Ro-mero Jucá (PMDB-RR), apresen-tou uma emenda triplicando os repasses em 2015. Com isso, os 32 partidos políticos receberiam até 867 milhões de reais neste ano.

g Como funciona a distribuição do Fundo Partidário? Por lei, 5% dos recursos do fundo são divididos, em partes iguais, entre todos os partidos. Os 95% restantes são distribuídos de for-ma proporcional aos votos da última eleição à Câmara dos De-putados.

g Atualmente, as empresas podem doar para um candidato?Sim, as empresas podem doar, na mesma campanha eleito-ral, para um ou mais partidos e também para candidatos indivi-

dualmente. Isso permite que as empresas doem tanto para par-tidos de situação como de opo-sição, seja nos municípios, no estados ou no governo federal.

g Qual foi a participação das em-presas nas últimas eleições?Nas eleições de 2014, as doações privadas deram 5 bilhões de reais a partidos e candidatos. Quase to-das foram feitas por empresas.

g Para as empresas, é bom finan-ciar campanhas políticas?Sim. Realizado por três universi-dades americanas, o estudo ‘The Spoils of Victory’, que examinou doações para candidatos do PT, concluiu que as empresas finan-ciadoras dos candidatos a depu-tado federal do partido em 2006 receberam entre 14 e 39 vezes o valor doado por meio de contra-tos com o poder público nos anos seguintes.

g Há ligação entre as doações em-presariais e casos de corrupção?Sim. Quase todos os grandes ca-sos de corrupção envolvem doa-ções de campanha. Contribuições deste tipo fizeram parte do caso que terminou com o impeach-ment do ex-presidente Fernando Collor, da CPI dos Anões do Or-çamento, do chamado “mensa-lão”, da Operação Lava Jato e do escândalo envolvendo o senador Agripino Maia (DEM).

g No Brasil, há quem cogite acabar com as doações empresariais. Outros países fazem isso?Ao todo, 39 países, como Portu-gal, França e Canadá, proíbem do-ações de empresas para políticos e partidos. A Espanha também estuda adotar a restrição.

g Proibir o financiamento empre-sarial de campanhas é efetivo para combater a corrupção?Depende. Os Estados Unidos, por exemplo, proíbem doações diretas de empresas, mas per-mitem que as companhias fa-çam campanhas por seus can-didatos. Por isso, na prática, a restrição não surte efeito. Para a maioria dos especialistas, so-mente leis mais firmes, com mais transparência governa-mental e com autonomia dos órgãos de investigação são ca-pazes de inibir a corrupção por agentes públicos.

Perguntas e respostas sobre o financiamento de campanha eleitoral

Há um consenso de que o sistema atual, foco de inúmeros casos de corrup-ção, é problemático, mas não ocorre o mesmo a respeito de como reformá-lo. O debate segue no Congresso e mudanças nas regras do financiamento de campanha podem ser feitas caso uma reforma política seja aprovada. Leia, a seguir, algumas perguntas e respostas sobre o tema

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CONECTANDO

FÓRUM SOCIAL MUNDIAL: REFLEXÃO COLETIVA É NECESSÁRIA

Em tese, o FSM está comprometido em facilitar a auto-governança dos intercâmbios entre movimentos, ideias e experiência das ideologias progressistas. No entanto, alguns têm observado o gradual

desenvolvimento de uma hierarquia

Por Henda Chennaoui, de Tunis g

gHenda Chennaoui é jornalista freelancer e ativista tunisiense. Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, em www.nawaat.org

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OO Fórum Social Mundial 2015 abriu suas portas no final de março na cidade de Tunis, na Tunísia. Desde 2001, este é um espaço aberto que representa uma alterna-tiva ao Fórum Econômico Mundial de Da-vos e que declarara sua abordagem anti-globalização na luta contra o capitalismo e o neoliberalismo. Em cada sessão, os parti-cipantes e visitantes expressam suas ideias e experiências pessoais de modo que suas vozes possam ser ouvidas na construção e aperfeiçoamento de uma estrutura hori-zontal e auto-governada.

Este ano, os participantes logo ex-ternaram suas críticas. O número de visitantes desapontados foi claramente maior do que no ano passado. Muitos, inclusive o Comitê de Direção do FSM, talvez não estejam muito interessados em experimentar formas alternativas de organização. Em tese, o FSM está com-prometido em facilitar a auto-gestão dos intercâmbios entre movimentos, ideias e experiências das ideologias progressis-tas. No entanto, alguns têm observado o gradual desenvolvimento de uma hierar-quia de comando entre os organizadores do fórum, chegando à conclusão de que uma séria reflexão coletiva para as pró-ximas edições é mais do que necessária.

O escritor e ativista político egípcio Houssein Abdel Rahim participa do fó-rum desde sua primeira edição. “Tudo começou com o trabalho de base dos mo-vimentos sociais em Bruxelas. Na época havia uma crise de união. Então Chris-tophe Aguiton começou a conectar pesso-as e organizar um intercâmbio entre ativis-tas. No ano seguinte, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) participou da celebra-ção internacional do Manifesto Comunis-ta e requisitou a ajuda dos movimentos de esquerda da Europa para as eleições que ocorreriam no país. Foi aí que os organiza-dores decidiram ir para Porto Alegre para criar o fórum, em 2001. O PCdoB então passou a focar no poder político, mas o FSM continuou a se desenvolver a cada ano. Tudo isso para dizer que nada muda tão facilmente quanto podemos pensar. O FSM sofreu com manipulações político-partidárias desde o início”.

Abdel Rahim acrescenta ainda que, apesar de tudo, o fórum foi bem sucedido em mudar a forma da esquerda tradicio-nal, mas não seu fundamento. “Este car-naval de ativistas não é tão participativo e democrático quanto pretende ser. A ver-dade é que segue um esquema de pirâmi-de. Grandes decisões são monopolizadas por uma minoria governante, à imagem e semelhança do sistema capitalista”.

Tendo participado do fórum ape-nas duas vezes, a atriz e diretora Kha-led Ferjani observou que uma sensação de desânimo permeou o encontro este ano. “O desapontamento dos tunisianos e árabes foi bem real. Se no ano passado as assembleias estavam cheias de tunisia-nos entusiasmados em mudar o país, este ano eles ficaram restritos às festividades. Vimo-los em todos os cantos dançan-do, cantando ou ocupando os espaços vazios com músicas no último volume.

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O Fórum Social Mundial começou no Brasil em 2001

e, pela segunda vez consecutiva, foi realizado na Tunísia

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Eles estavam menos dispostos a participar dos debates políticos, o que acredito ter a ver com a realidade da Tunísia hoje”.

Esquivando-se de muitos processos pendentes na cidade Sidi Bouzid, a ati-vista Safouen Bouaziz aproveitou o fó-rum para rever amigos e encontrar novas pessoas. Foi seu primeiro FSM, pois no ano passado ela preferiu não participar por motivos de segurança. “Eu tinha uma ideia totalmente diferente sobre o que era o fórum. Pensei que fosse mais radical. Há mais reformistas do que revo-lucionários. O ambiente festivo e quase comercial do encontro se sobrepõe ao es-pírito de protesto que deveria prevalecer diante da atual crise global”.

Da mesma forma, o ativista esloveno Dragan Nicevic explicou que “o objetivo comum do fórum não é mais mudar o siste-ma global e lutar contra o capitalismo, mas apenas denunciar os perigos do neolibe-ralismo que leva o mundo a uma situação cada vez mais caótica”. E acrescentou: “Não acho que isso esteja ligado apenas à situação da Tunísia, e sim com o que vemos ao redor do mundo, em um momento em que os movimentos progressistas passam por um evidente declínio, com exceção de alguns países como a Grécia”.

Neste ano o FSM reuniu menos parti-cipantes do que na edição passada. Uma explicação pode ser as condições climáti-cas adversas, ou talvez o fato de ter sido realizado no mesmo local que no ano anterior. O ativista belgo Samuel Legros compartilhou sua opinião. “Creio que muitos não retornaram porque ficaram com a impressão de que não estamos avançando em direção a uma visão co-mum e a um projeto sólido. Mesmo que o FSM vete a deliberação de medidas decisi-vas, temos a responsabilidade de elaborar um projeto comum. A falta de resultados concretos na luta contra o neoliberalismo cria uma frustração real e causa muitas críticas e relutância. Estou desapontado em ver que o fórum se transformou em uma espécie de feira aonde as pessoas mostram seus trabalhos, ficam em seus círculos de conhecimento e saem sem o menor sinal de mudança”.

Em umas das tardes, dezenas de volun-tários protestaram por conta das difíceis condições de trabalho. Um deles afirmou que “por conta da chuva, não temos lugar para passar as noites protegidos da água que entra nas tendas; não recebemos janta e aqueles que passam a noite em suas casas se viram por si só e não ajudam os outros”.

Composto em sua maioria por estu-dantes e recém-graduados desemprega-dos, o corpo de voluntários pediu suporte para o Comitê de Direção do FSM, que aparentemente não foi muito eficiente.

Mesmo com diversas críticas, o Fó-rum Social Mundial permanece com seu charme para quem costuma parti-cipar regularmente do encontro. “Se a auto-crítica continua sendo possível, é porque todas as mudanças seguem al-cançáveis. Cobrir diferentes pontos de vista é o objetivo de todos”, disse Car-minda, membro da delegação do Cana-dá, onde provavelmente será realizada a edição 2016 do FSM.

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B R A S I LO B S E R V E R

RAPPER BRASILEIRO SE APRESENTA NESTE MÊS EM LONDRES. CONFIRA ENTREVISTA EXCLUSIVA >> PGS. 22 E 23

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EMICIDAVEM PRA RIMA

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22 brasilobserver.co.uk | April 2015

GUIA

FAZER ARTE NO BRASIL É UM TRABALHO DE RESISTÊNCIA

Com show marcado para o

dia 24 de abril em Londres, Emicida

concede entrevista exclusiva ao Brasil

Observer sobre sua música, seu

modo de enxergar o rap nacional e não foge da raia

quando o tema é o momento político

vivido pelo país

Por Gabriela Lobianco

Londres não tem do que reclamar quando o assunto é música brasileira. Afinal, a cidade virou parada obrigatória na turnê dos principais artistas do Bra-sil, tanto os contemporâneos quanto os da velha guarda (veja as dicas culturais nas páginas 26 e 27). Neste mês, quem se apresenta na capital é Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido como Emicida, figura de ‘responsa’ do rap nacional.

Calejado nas batalhas de rimas de São Paulo, Emicida vendeu muitos mi-xtapes de mão em mão até alcançar os holofotes. E fez isso graças ao som me-lodicamente diverso e progressivo que produz. Seu mais recente álbum, ‘O Glorioso Retorno de Quem Nunca Es-teve Aqui’, mistura rap com samba, soul e funk, por exemplo, dando às letras político-sociais uma abrangência ainda maior perante o público.

Nesta entrevista, Emicida fala da ex-pectativa para sua segunda visita a Lon-dres, das dificuldades de se fazer arte no Brasil, da cara do rap nacional e, sem se es-quivar, mostra o tom político de sua obra.

Em abril você se apresenta em Londres pela segunda vez. Como aconteceu o convite e quais suas expectativas?

A gente já estava com algumas datas pela Europa e conseguiu colocar Londres na agenda. É um lugar que a gente visita pouco se for comparar com Berlim e Lis-boa. Londres tem uma cena interessante, gosto muito de grime, de dubstep. Minha expectativa é levar algumas dessas pesso-as para ver a fusão que a gente faz entre música brasileira e coisas que vieram do hemisfério Norte. Além de poder dar uma mergulhada nessa cena aí que me interes-sa bastante.

Você sente que seu trabalho é bastante conhecido na Europa? E na Inglaterra? Que tipo de público espera no show?

Acho que ainda tem muito traba-lho para fazer, se a intenção é se tornar mais conhecido no continente europeu. A gente tem que trabalhar muito com a atmosfera da música e com o impac-to da performance; foi assim na Dina-marca, na Suíça, na Alemanha, onde o idioma é completamente diferente. A gente recebe um público bem variado. Vai uma rapaziada que gosta de rap, um pessoal que gosta do Brasil. O Brasil

tem essa benção das pessoas gostarem muito da música brasileira e ficarem interessadas em fugir do estereótipo.

O preço do ingresso para o show em Londres é a partir de 15 libras. No ano passado, você fez um show em São Paulo em que o valor máximo da entrada ficou em 50 reais. O que acha dos preços de eventos culturais em geral no Brasil?

Primeiro que sem viver em Londres não posso dar um parecer se 15 libras é um di-nheiro alto ou um dinheiro baixo. Mas o que acontece no Brasil é o seguinte: a cultura é elitizada. Quando as pessoas têm a oportu-nidade de subir o preço, elas fazem isso, infe-lizmente. Fazer arte no Brasil é um trabalho de resistência. E não estou falando somente do grupo ao qual pertenço. Estou falando da cultura em geral, até dos artistas do mains-tream. Às vezes você tem um mega espetá-culo e, para fazer com que aquilo se mova, é preciso cobrar um pouco mais caro o ingres-so. A gente se esforça para fazer essa conta fechar de uma maneira que todos saiam satisfeitos. Essa luta de um espetáculo baca-na por um preço acessível a gente encampa. Mas é muito difícil. Algumas coisas já estão estabelecidas há muito tempo e as pessoas de certa maneira tem o hábito burro de pensar que se uma coisa é cara automaticamente é boa. Isso não é verdade.

Faz dois anos desde o lançamento de ‘O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui’. Sai projeto novo em 2015?

Tenho gravado de uma maneira bem exaustiva. Estou morando no estúdio praticamente. A gente quer colocar um novo projeto na rua agora em 2015, que passa por países da África e finaliza com gravações aqui no Brasil. Tudo isso dará origem ao novo projeto que o nome ainda não está definido. É um casamento e uma volta às origens para mim e para todas as pessoas que trabalham comigo.

‘O Glorioso Retorno...’ foi seu primeiro trabalho em estúdio. O que amadureceu nele desde ‘Triunfo’, seu primeiro hit?

Muita coisa mudou. A gente está fa-lando de um hiato de quase dez anos. Minha cabeça mudou com as experi-

ências que eu tive, que quando mora-va numa favela não tinha. Aquilo era como uma prisão. A minha visão ficava centrada na realidade em que eu vivia. ‘Triunfo’ é de alguém que tem seus vinte e poucos. O ‘Glorioso’ já é a perspecti-va de alguém que está perto dos trinta. Tem teclas que eu acho que é importan-te continuar batendo, tem outras que eu acho que é legal puxar para outro tom. Nem chamaria ‘Triunfo’ de hit. Um hit é uma música que tocou muito no rádio. ‘Triunfo’, se foi um hit, foi subterrâneo, uma injeção de auto-estima para quem ama o rap, para quem sentiu na música que a parada não estava para baixo.

As participações especiais desse álbum são de nomes como Rael, Pitty, MC Guime, Juçara Marçal, Fabiana Cozza, Quinteto em Branco e Preto, Wilson das Neves... São artistas de estilos bem diferentes. Acredita que suas influências são ecléticas?

O brasileiro é eclético. Não é o Emi-cida que é eclético. A segregação em nosso país é tão agressiva que as pessoas falam das outras como se os universos não se cruzassem no dia-a-dia. Eu cres-ci com pagodeiros, roqueiros, skatistas, viados... Estava todo mundo na rua, todo mundo se conectando, trocando ideia, falando de vários universos. O que me trouxe aqui foi esse compêndio de várias influências, de vários tipos e trocas, vários conflitos. Independen-temente de a Fabiana Cozza e o MC Guime terem caminhos opostos, vejo o coração dos dois na música deles. E gosto quando a gente pode sincronizar as coisas de uma forma que o coração deles vem bater junto na minha músi-ca. Ambos têm as verdades deles e eu acrescento a minha, assim a gente con-ta uma história de verdade, mostrando uma pluralidade que nossa televisão não tem; nosso rádio não tem; nosso entretenimento não tem.

Com quem mais você gostaria de fazer parcerias?

Admiro uma pá de artista. Djavan... Tem uma menina aqui da América Lati-na, a porto-riquenha Calma Carmona. A Nneka, que é da Nigéria, e mora nos Estados Unidos. Tem uma menina em Portugal chamada Capicua, ela é bem

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bacana também. Fora os caras mais tradicionais. Eu gosto muito da música tradicional dos lugares. Nesse próximo trabalho eu pude pescar alguma coisa ou outra dos lugares que a gente passou em Cabo Verde e Angola. Tenho muito interesse pela música que era feita antes de eu chegar aqui. Se eu for falar de ar-tistas brasileiros, tem uma lista grande demais. É melhor pular.

Qual é a cara do rap brasileiro hoje em dia?

Não acho que a gente tenha que ba-ter nessa tecla de qual é a cara da mú-sica que a gente faz. Acho que se tem uma coisa que a gente aprendeu é que o hip-hop é uma cultura plural. Você vai encontrar vários tipos de música, artista, estilo. Talvez o mercado abrace um determinado tipo de rap que não é o rap que é feito em sua maioria no país. Isso é importante pontuar: o mercado e o movimento podem se desencontrar e encontrar. No Brasil, temos uma gama muito grande de estilos. É semelhante aos Estados Unidos, aonde você tem saudosistas, nostálgicos, modernos, hip-sters. O hip-hop está plural.

O que você acha do cenário político que o Brasil vive no momento, com as manifestações do grupo Vem Pra Rua?

É um momento delicadíssimo. Concor-do muito com o Eduardo Galeano quando ele fala que a esquerda apanha quando erra e apanha quando acerta. Essa luta por um terceiro turno no Brasil mostra que realmente algumas chaves da estru-tura social brasileira estão girando e isso desagrada uma parcela da população que é pequena, mas que tem o controle dos meios de comunicação. A gente sabe que no Brasil a comunicação está nas mãos de quatro, cinco, seis famílias. Não muda desde sempre. Acho que o povo tem que ir para rua, tem que protestar, tem que ba-ter... Meu questionamento é que São Pau-lo está sem água, e o Geraldo Alckmin não sai na capa dos jornais. O mensalão saiu na capa do jornal, mas o cartel do metrô, a lista do HSBC, todo mundo fala baixi-nho. Isso me preocupa. Não me identifi-quei com o Vem Pra Rua porque era uma campanha da Fiat. Como que um jingle vai dar força para a população lutar por melhora? Um bagulho que é feito estrita-mente para consumo?

A gente quer colocar novo projeto na rua em 2015, que passa por países da África e finaliza no Brasil

A cara da cultura hip-hop no Brasil é plural. Você vai encontrar vários tipos de música, artista, estilo

Concordo com Eduardo Galeano quando ele fala que a esquerda apanha quando erra e quando acerta

EMICIDA – LA LINEA FESTIVAL

Quando: 24 de abril – 8pm Onde: Rich Mix (35-47 Bethnal Green Road)Ingresso: £18, £15 antecipadoInfo: www.comono.co.uk/la-linea

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GUIA

O CHORO DA MADEIRAEstá com saudade de casa? Então anote: Clube do Choro UK

Por Gabriel Noleto e Andressa Moreno

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O Clube do Choro UK se reúne em todo último sábado de cada mês. Acesse www.clubedochoro.co.uk

No dia 28 de março, o ônibus 31 me levou de Notting Hill até Camden Town. Desci nos arre-dores da Delancey Street. Uma rápida caminhada e lá estava eu em frente ao que parecia ser um portal que me levaria para longe. Mas para onde? Descobri 12 ho-ras depois. Este foi o tempo em que estive sonhando em plena Londres e seu vento gelado.

Desci do ônibus por volta das 11 da manhã. Uma porta de vidro fazia as vezes de portão de embar-que. Mas nada de Airbus moder-no. Depois de cruzar o limiar do real e o sonho, me vi dentro de uma espaçonave de madeira. A madeira do violão. Em vez de rotas de voo, as notas e os acordes. Um mapa musical capaz de me levar para casa.

O vento frio lá de fora não ti-nha vez ali dentro. Tirei o casaco imediatamente. O calor vinha da madeira, que, como bem dizia João Nogueira, “quando morre, canta”. E, cá entre nós, meu saudo-so João, aqui em Londres, mesmo

longe e do outro lado do Atlântico, a madeira canta e canta muito!

O violão se juntou ao trombo-ne, que piscava e se insinuava para o pandeiro, que rebolava miudinho para a flauta. É choro? É choro!

Depois de descer do ônibus 31 e de cruzar o portal na Delancey Street, respirei canarinho. Senti o vento quente da minha terra.

Está com saudade de casa? Quer conhecer o nosso Brasil mais de perto, sem sequer sair de Lon-dres? Anote: 3-7 Delancey Street, The Forge. E anote também: Clu-be do Choro UK. Bambas que, em todo último sábado de cada mês, vão bater ponto em Camden Town com o Lapa in London. Workshops, palestras, aulas de dança, música... Um projeto para aproximar os in-gleses, e nós também, da cultura do bairro carioca da Lapa e, claro, por tabela, do choro. Afinal, Lapa e choro são sinônimos.

Esse foi apenas o primeiro evento do ano e o próximo será no dia 25 de abril. O ônibus 31 que me aguarde.

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DICAS CULTURAIS

MÚSICA TROPKILLAZ Quando: 10 de abrilOnde: KOKO (1a Camden High Street) Ingresso: £5.95 (inc. 0.95 fees) Info: www.koko.uk.com

FLÁVIA COELHOQuando: 18 de maio

Onde: Rich Mix (35-47 Bethnal Green Road) Ingresso: £15

Info: www.richmix.org.uk

LUCAS SANTTANA Quando: 5 de maioOnde: Purcell Room at Queen Elizabeth Hall Ingresso: £12.50 Info: www.southbankcentre.co.uk

CAETANO VELOSO & GILBERTO GILQuando: 1º de julho

Eventim Apollo (45 Queen Caroline Street) Ingresso: £45.75–£67.75Info: www.eventim.co.uk

Tropkillaz é uma dupla formada por dois produtores brasileiros que representam a velha e a nova escola: DJ Zegon e Laudz. O resultado des-sa junção é uma intensa mistura de diversos estilos musicais, como ele-trônico, hip-hop e latino. Na apre-sentação deste mês, contam com o suporte de Afrikan Boy, cujo estilo está entre grime, hip-hop e afrobeat – sua música tem sido influencia-da pelos gostos de Fela Kuti, Style Plus, Wiley, Dizzee Rascal, M.I.A e Yvone Chaka Chaka. Outro MC da noite é The Kemist – artista jamai-cano que funde letras espirituosas com melodias graves e batidas pe-sadas para criar o ambiente propí-cio para uma quente celebração na pista de dança.

Criada nas tradições do samba e da bossa nova, Flávia Coelho é uma cantora brasileira versátil que pas-seia com leveza por ritmos que mis-turam do reggae ao hip-hop. Fora do Brasil desde 2006, quando se mudou para Paris, Flávia encantou a crítica especializada com seu primeiro dis-co, ‘Bossa Muffin’, que lhe garantiu grande repercussão no Reino Unido, com direito a participação no Lon-don Jazz Festival. Em 2015, Flávia Coelho volta a Londres para abrir o festival Serious Space Shoreditch, uma semana depois do lançamento de seu novo disco, ‘Mundo Meu’. O novo trabalho revela uma visão de mundo diversa, com a junção de ritmos como funk, afrobeat, forró e samba.

Lucas Santtana está no centro da nova cena pop brasileira. O gênero está atualmente passando por uma revolução, com a influência do pop e rock ocidental sendo substituída pelos ritmos da África e da nova identidade pós-ditatorial da Amé-rica Latina. ‘Sobre Noites e Dias’, lançado em setembro de 2014, é o sexto álbum de Lucas Santtana. Trabalhando com uma variedade de colaboradores, o mais recente disco do cantor baiano continua o processo iniciado com o ante-rior, ‘O Deus que Devasta Também Cura’. Mais uma vez, ele combina o acústico com o eletrônico, a alter-nância entre reflexão e visceral: a agitação da cidade seguido do sua-ve sussurro do campo.

Caetano Veloso e Gilberto Gil não precisam de apresentações: são nomes consagrados da Música Po-pular Brasileira. Em julho, os dois sobem ao palco em aparição rarís-sima para o público de Londres. A cidade, aliás, faz parte da trajetória pessoal e artística dos dois. Na vi-rada da década de 1960 para 1970, após o auge do movimento musical que ficou conhecido como Tropicá-lia, Caetano e Gil passaram um perí-odo de exílio na capital britânica – o Brasil vivia os anos mais difíceis da ditadura civil-militar. Daquela épo-ca, ambos guardam memórias que certamente serão lembradas em for-ma de relatos e canções. O público deve pedir que Caetano cante “Lon-don, London”.

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Mudança Doméstica e Internacional

Armazenagem e Empacotamento

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ARTEO RAPPA Quando: 11 de julhoOnde: Electric Brixton (Town Hall Parade) Ingresso: £25 Info: www.electricbrixton.uk.com

PUT YOUR EYE IN YOUR MOUTH

Quando: Até 23 de maioOnde: White Cube (Manson’s Yard)

Info: www.whitecube.com

DONA ONETE Quando: 24 a 26 de julhoWomad Festival (Charlton Park, Malmesbury) Ingresso: £165 para o fim de semana Info: www.womad.co.uk

PANGAEA II: NEW ART FROM AFRICA AND LATIN AMERICA

Quando: Até 6 de setembroOnde: Staachi Gallery

(Duke Of York’s HQ, King’s Road) Info: www.saatchigallery.com

O Rappa retorna a Londres dia 11 de julho, após uma ausência de seis anos dos palcos do Reino Unido. O nome da turnê da ban-da que é uma das mais aclamadas do Brasil é ‘Nunca Tem Fim’, que é também o nome do mais recente álbum do grupo. A banda vai apre-sentar músicas desse disco, assim como clássicos para comemorar os 20 anos de estrada. Com ‘Nunca Tem Fim’, O Rappa dá voz à classe trabalhadora brasileira, às lutas do dia-a-dia e a força necessária para superar os obstáculos. Para acom-panhar esse mote, as melodias va-riam entre dub, reggae, rock e hi-p-hop. Tudo aliado ao desejo da banda de fundir novas tecnologias ao seu som existente.

As pinturas abstratas e eloquen-tes de Christian Rosa funcionam como uma escrita construída a partir de elementos individuais em grandes extensões de tela crua. As pinturas nesta exposição (Put Your Eye in Your Mouth) dão continui-dade ao seu processo de descoberta, visível em composições diretas que contêm blocos para a construção da narrativa pictórica, bem como métodos para a sua própria des-construção. Nessas novas obras, em óleo, carvão, lápis, resina e vara de petróleo, uma redução das pince-ladas cria a sensação de que foram feitas de improviso, mantendo os elementos da pintura equilibrados em uma tensão visual que prende a atenção do olhar.

A cantora brasileira Dona One-te só gravou seu álbum de estreia (‘Feitiço Caboclo’, com a Mais Um Discos) aos 73 anos de idade. Ela tinha estado muito ocupada exer-cendo a profissão de professora de História em sua cidade natal na Amazônia. Mas agora, sem mais palestras para dar ou provas para corrigir, sua segunda carreira está muito bem encaminhada; sua voz permite voar livremente, seduzin-do os ouvintes. A muito aguarda-da estreia fez valer a longa espera. Considerada a diva do carimbó chamegado, a paraense Dona One-te reúne em sua música todo o folclore da região Norte do Brasil, misturando carimbó, boi bumba, salsa caribenha, samba e brega.

A Staachi Gallery reúne o tra-balho de 19 artistas internacionais, na segunda etapa da exposição so-bre esses dois grandes continentes. Um desses trabalhos é a série do brasileiro Eduardo Berliner que utiliza a tensão entre a pintura e a imagem para questionar a autenti-cidade da memória, criando repre-sentações de seres vivos, cenas do mundo natural, formas de plantas, animais, pessoas e cenas domésti-cas e a invenção não intencional da imagem como verdade. As pin-turas são um resíduo da tentativa do artista de desfragmentar um evento. O trabalho é residual, uma invenção da consciência humana subjetiva, com uma ligeira sensa-ção de David Hockney.

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COLUNISTAS

FRANKO FIGUEIREDO

COM LIBERDADE VEM RESPONSABILIDADENão é o governo nem a polícia, mas nós, como indivíduos, que criamos limitações

ou expansões para nossa liberdade

g Franko Figueiredo é diretor artístico e produtor associado da Companhia de Teatro StoneCrabs

Levei recentemente um casal de ami-gos para passear pelas ruas de Londres e depois para assistir ao musical Memphis. Quando estávamos prestes e seguir para o teatro, eles me perguntaram se podiam voltar ao hotel para se arrumarem, ar-gumentando que precisavam mudar de roupa. Eles estavam bem vestidos, acredi-te. Fiquei surpreso ao escutar de um de-les que, no Brasil, jamais poderia fazer o mesmo porque, primeiro, seria barrado na entrada por estar de bermuda e, segundo, porque as pessoas ficariam espantadas.

Não pensei muito a respeito. Até que meus amigos começaram a fazer compara-ções intermináveis entre o que eles observa-vam em Londres e o que regularmente vi-viam no Brasil. A lista incluía: Londres não tem condomínios fechados; os carros são estacionados na rua, pois a maioria das resi-dências não tem garagem particular; as ca-sas não têm barras de proteção nas janelas; motoristas respeitam os pedestres; a polícia não porta armas; se locomover de bicicleta parece ser uma opção divertida que não de-fine sua condição social; as pessoas parecem à vontade para vestir o que quiserem; etc. “Me sinto mais livre aqui do que no Brasil”, um deles chegou a dizer.

Talvez meus amigos estivessem se sentido dessa forma porque tínhamos acabado de assistir ao musical Mem-phis. Mas talvez não.

O espetáculo Memphis é baseado em uma história real de amor proibido entre um DJ de rádio branco que quer mudar o mundo e uma cantora negra que quer nada mais do que paz. Tudo se passa nos anos 1950, quando reinavam intolerância e desigualdade. Com as tensões da segre-gação racial de pano de fundo, as músicas transmitem a urgência moral da luta pela liberdade, expressando a coragem das pes-soas comuns que estavam no coração des-sa disputa. A liberdade não foi algo fácil, muito menos rápido de se alcançar.

O filósofo contemporâneo Zygmunt Bauman explica que sentir-se livre sig-nifica experimentar a ausência de im-pedimento, obstáculo, resistência ou qualquer outra forma de empecilho aos movimentos pretendidos e desejados. Ele argumenta, seguindo Schopenhauer, que sentir-se livre das limitações signifi-ca alcançar um balanço entre os próprios desejos e a teimosa indiferença do mun-do em relação a esses desejos. Esse equi-líbrio pode ser alcançado de duas manei-ras: ou expandindo a capacidade de ação, ou limitando os desejos.

Em Memphis, nem Huey nem Felícia são livres; a comunidade não aceita o rela-cionamento dos dois. A intolerância daque-la sociedade cria a gaiola onde muitos estão presos. As opções do casal são duas: ou se mudam para Nova York, onde as pessoas são mais compreensivas (expandido a ca-

pacidade de ação), ou aceitam viver em um relacionamento escondido (limitando o de-sejo). Fossem os indivíduos da comunidade mais respeitosos, a crise seria evitada.

Nelson Mandela acreditava que liber-dade não se resumia apenas à quebra das correntes, e sim viver de forma que se res-peite a liberdade dos outros. E o Marxis-mo defende que liberdade são o direito e a capacidade das pessoas determinarem suas próprias ações dentro de uma comu-nidade, que poderia então possibilitar aos indivíduos o desenvolvimento pleno das potencialidades humanas.

Mesmo que sejamos livres para agir e ex-pressar quem somos, ao nos sentirmos acu-ados pelo medo da crítica, da desaprovação ou até da violência física e verbal, perdemos a sensação de liberdade. Podemos concluir que não é o governo nem a polícia, mas nós, como indivíduos, que criamos limitações ou expansões à nossa liberdade.

Talvez o que meus amigos testemunha-ram aqui em Londres não foi uma socie-dade mais livre, mas uma sociedade cujas escolhas e valores éticos são diferentes: as pessoas tendem a obedecer às regras sociais porque elas tornam nossas vidas mais fáceis (como respeitar a faixa de pe-destres). Não é a polícia que cria a ordem. Nós fazemos isso, é nossa responsabilida-de. A polícia tem de fiscalizar.

Com cada escolha que fazemos uma causa; com cada causa vem uma consequ-ência; com liberdade vem responsabilidade.

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Memphis se baseia em uma história real de amor proibido entre um DJ de rádio branco e

uma cantora negra. A liberdade não foi algo fácil, muito menos

rápido de se alcançar

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29brasilobserver.co.uk | April 2015

RICARDO SOMERA

SOBRE O QUE VI NO LOLLAPALOOZA BRASIL

Sou daqueles que, mesmo sabendo que vou a determinado show, me en-rolo até o último momento para com-prar o ingresso. Não foi diferente com o Lollapalooza Brasil, em São Paulo, no final de março.

Acordei ‘cedo’ e peguei o trem em direção a Interlagos. Depois de muita caminhada até achar a bilheteria, final-mente ouvia alguma coisa, mesmo que de longe: a Banda do Mar. A intenção principal, porém, era ver minha banda inglesa favorita do momento: Alt-J.

Às 15h55min, Joe Newman, Thom Green e Gus Unger-Hamilton entraram no palco ao som de Hunger of Pine. Com ingressos esgotados para apresentação do dia anterior, a banda foi a minha prin-cipal razão de ir ao Lollapalooza 2015 – e valeria os 340 reais gastos mesmo que fosse apenas para o show deles. A melhor e mais estranha das novas bandas ingle-sas consegue ser ainda melhor ao vivo

do que nos seus dois álbuns. As músicas Tessellate, Matilda e Something Good fo-ram cantadas (e embromadas) por gran-de parte do público e muitos dos presen-tes estavam lá exclusivamente (ou quase) por causa deles. A canção Breezeblocks, debaixo de sol agradável, fechou meu primeiro show do dia com chave de ouro.

Em outros tempos, sairia correndo para ver Kasabian no outro palco do festival, mas preferi comer um sandu-íche de salmão assado ao modo viking. As opções de alimentação melhoraram desde que o festival perdeu o patrocínio de um hambúrguer pronto de qualida-de duvidosa. Como no ano passado, o festival incrementou sua estrutura e as marcas investiram em ações de marke-ting de mais criativas.

Confesso que conheço pouco de Led Zeppelin, mas sabia que não me decepcionaria com Robert Plant and The Sensational Space Shifters. Passei

o show deitado no gramado, mas era nítido que Robert Plant estava lá para dar uma aula de rock. Muita gente, como eu, não acreditou que esse se-nhor podia fazer uma multidão pular e chacoalhar as antigas cabeleiras – e atuais carecas. Pois ele o fez.

Às 21h15min, foi a vez de Jack White subir ao palco acompanhado de Dominic Davis (baixo), Dean Fertita (teclados), Fats Kaplin (guitarra), Daru Jones (bate-ria) e Lillie Mae Rische (violino), inician-do sua apresentação com Icky Thump, do último álbum do White Stripes.

Sou fã do White Stripes e do Racon-teurs, mas não acompanho a carreira solo de Jack White. Aliás, não sei se solo seria uma boa palavra. O que vi naque-le show foi um maestro de uma banda incrível. Uma ponte entre o clássico e o cutting edge. As luzes, o cenário e o ta-lento dos músicos estavam impecáveis. Mesmo sem saber cantar todas as músi-

cas, foi um momento memorável. A violinista Lillie Mae Rische é en-

cantadora não só por seu talento e bele-za, mas também pelo carisma em cada nota tocada no violino e pela grande sintonia com Jack no palco. O momen-to mais marcante para mim foi quando a banda tocou Temporary Ground, do álbum Lazaretto. O público que acom-panha o artista desde que Seven Na-tions Army estourou estava aguardan-do ansiosamente pela canção. Quando começaram os primeiros acordes foi como se eu tivesse sido transportado para uma baladinha indie de uma dé-cada atrás. Gente chorando, pulando, gritando... Pessoas que não tinham a menor dúvida de que Jack White é o maior artista deste século.

Quanto a apresentação da banda Bastille – que fechou o Lollapalooza Bra-sil 2015 em outro palco –, sinto muito. Deixa para a próxima.

Melhor e mais estranha das novas bandas inglesas, Alt-J consegue ser ainda melhor ao vivo. Jack White foi memorável

g Ricardo Somera é publicitário e você pode encontrá-lo no Twitter @souricardo e Instagram @outrosouricardo

515 anos: Parabéns, Brasil!É no mês de abril que o Brasil comemora seu aniversário! Há 515 anos, o 22 de abril foi marcado oficialmente pela chegada dos portugueses ao país tupiniquim.

No passado eram os europeus que cruzavam o Oceano Atlântico em busca de um novo mundo. Hoje, por motivos diversos, somos nós brasileiros que aterrizamos em solo europeu para descobrir novas oportunidades.

A Casa Brasil, servindo a população brasileira em Londres há 26 anos, aproveita a ocasião para parabenizar nosso imenso país, abençoado por natureza, e todos os brasileiros que vivem no Reino Unido e fazem do Brasil uma nação ainda mais rica, mesmo a milhares de quilômetros de distância.

Para se sentir mais pertinho de casa nesse dia 22 de abril, faça uma visita à Casa Brasil, no Queensway Market. Além de toda a variedade de produtos brasileiros e latinos, a Casa Brasil abre espaço para a promoção de artistas brasileiros. No mês de abril é a vez da artista Eunice de Pascali, que apresenta trabalhos exclusivos em cerâmica. A mostra vai até o dia 30 de abril.

Fique ligado nas novidades pelo www.facebook.com/casabrasillondres, ou cheque o website www.casabrasillondres.co.uk

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30 brasilobserver.co.uk | April 2015

VIAGEM

KERALA, O PAÍS DE DEUSPor Ana Beatriz Freccia Rosa g

Com um slogan que já mostra a que veio, o país de Deus é cercado por águas e coqueiros. Kerala, considerada uma das regiões mais bonitas da Índia, mistura o toque europeu – devido à colonização inglesa, holandesa e portuguesa – com as cores e sabores locais.

Localizado na região sudoeste da Índia, o Estado de Kerala possui um dos maiores índices de desenvolvi-mento humano do país – equivalente ao IDH de Portugal e Chile – e é con-siderado um dos locais mais seguros, limpos e com melhor sistema de edu-cação do território indiano. Seus 14 distritos são cortados pelas águas fres-cas dos canais conhecidos como “Gre-at Backwaters”: aonde quer que você vá, estará cercado de belas paisagens por todos os lados.

Sem a fama da grande Mumbai,

dos templos do Rajastão ou da famosa Agra, onde fica o Taj Mahal, Kerala é a típica região em que turistas se esbal-dam em autenticidade. Com árvores de coco, lagos e rios cruzando toda a região, prepare-se para ver magníficos fins de tarde e muito verde espalha-do por todo lugar, além de belos sor-risos e pessoas felizes pelo caminho. Conhecer Kerala é se integrar à natu-reza, provar sabores únicos e renascer em uma nova Índia.

Para quem já conhece o país e suas caóticas e barulhentas cidades, Kerala é o fim do caminho. É lá que você po-derá desfrutar a calma depois do caos, caminhando na beira dos rios e lagos ou relaxando nas praias – Kovallam e Cherai são as mais famosas, mas não sonhe com coquetéis, pois bebidas al-coólicas são proibidas na região.

Para quem está começando a via-gem pelo mundo maravilhoso do prín-

cipe Shah-Jahan, muito prazer e bem-vindo ao paraíso. Aproveite a quietude e contemple o por do sol em uma ca-sa-barco, enquanto ela navega pelas águas frescas do lago Kayamkulam e sua comida é preparada pelos bar-queiros que adquirem frutos do mar e frutas frescas em uma das paradas nos mercados locais. Converse com os moradores e veja os campos de ar-roz. Ao voltar, o jantar estará na mesa: peixe, banana frita, salada com coco e vegetais preparados com condimen-tos e molhos recomendados pela me-dicina ayurvedica.

Você está no lugar certo e na hora certa. Sem nem esperar, vai se deparar com uma farmácia, claro, de produtos naturais. Esqueça o remédio e trabalhe em busca de equilíbrio, já que as mas-sagens ayurvedicas – criadas na Índia – alinham os seus doshas e aliviam qualquer problema. Reconhecida pela

OMS (Organização Mundial da Saú-de), a Ayurveda trata o equilíbrio do indivíduo e não a doença.

Preste atenção nos sarees (vesti-menta típica), beba água de coco e pro-ve os muitos temperos e sabores. Nos intervalos, conheça belezas como o Pe-riyar National Park, perdendo-se nas plantações de chá de Munnar. Visite os templos hindus, as igrejas católicas ou mesmo as sinagogas espalhadas por várias cidades: a cultura é uma mistu-ra perfeita entre o velho continente e a Ásia, com suas cores e influencias di-versas. Também tem café bom e muito chá, além de comida temperada com as especiarias cultivadas no quintal de casa – e você pode fazer como os locais e tentar comer com as mãos.

Mais que tudo isso, Kerala tem muito sorriso e gente feliz aguardando sua chegada em qualquer vilarejo. Na-maskaran. Bem-vindo!

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31brasilobserver.co.uk | April 2015

Para quem está começando a via-gem pelo mundo maravilhoso do príncipe Shah-Jahan, muito prazer e bem-vindo ao paraíso

g Ana Beatriz Freccia Rosa é jornalista e escreve suas histórias de viagens no blog “O mundo que eu vi” (www.omundoqueeuvi.com). A viagem à Índia é realizada a convite do Kerala Tourism, órgão oficial da região, que premiou 30 blogueiros de viagem de 21 países em uma competição. Todas as despesas foram cobertas pelo projeto #KeralaBlogExpress, além de hotéis e restaurantes parceiros.

Cores, sabores e sorrisos de uma Índia a ser conhecida por aqueles que querem

relaxar e conhecer novas culturas

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