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DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU

Avaliar 0 impacto que a sociologia de Pierre Bourdieu (1930-2002) provocou no pensamento do seculo 20 certamente envolve urna especie de constrangimen­to. Em primeiro lugar, porque Bourdieu construiu

urn enorme corpo te6rico, incluindo estudos em quase todos campos de interacao social; seja na economia, na religiao, na arte, na politica, na comunicacao ou na educacao, suas analises buscaram compreender os fenomenos sociais tanto sob uma perspeetiva estrutural, na interposicao entre agentes dominan­tes e dominados em urn campo social determinado, quanto sob a perspeetiva "concreta" dessesmesmos fenomenos, a exemplo das analises empiricas sobre alta-costura, sobre as visitas aos museus na Europa, sobre 0 mercado imobiliario, sobre 0 agen­da setting no jornalismo, ou ate sobre os jogos olimpicos. Ao tentar resumir a multiplicidade de sua producao, em urn dossie de poucas paginas, corre-se 0 risco portanto das distorcoes que todo grande pensador pode eventualmente sofrer.

Mas a tarefa se torna ainda rnais problematica quando sa­bemos que Bourdieu e urn dos autores mais lidos nas ciencias humanas. De fato, alguns dos conceitos operacionais criados pelo soci6logo, como "capital cultural", habitus, "campo" rver quadro nestedossieJ, hoje sao colocados em circulacao no meio academico como instrumentos indispensaveis para

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TE DE COMBATE as diversas praticas sociol6gicas que nao se limitam ao diag­ Durkheim e Weber, alem de internalizar os aportes te6ricos n6stico das assimetrias economicas de classes. Valem para que 0 estruturalismo oferecia acompreensao das diferentes o conhecimento transversal que perpassa desde a medicina dinamicas culturais, nem por isso imunizou as criticas ao aos social ate 0 jornalismo. Alem disso, seu engajamento, suas rigidos estamentos universitarios; fato que the rendeu severa intervencoes como figura marcante no debate publico fran- antipatia entre alguns de seus pares. ces enos movimentos globais contra 0 neoliberalismo (basta Assim, apesar das dificuldades de dar conta em poucas recordar sua participacao na greve de 1995 que paralisou 0 paginas de urna obra tao polemica e multifacetada como a de sistema de transportes na Franca], concederam-lhe uma po­ Bourdieu, 0 dossie desta edicao privilegiou aqueles aspectos pularidade controversa e bastante rara entre os intelectuais, que pelo menos asseguram urn panorama consistente de suas sobretudo a partir da decada de 70. Na melhor tradicao de ideias principais e de seu ativismo politico. Como introducao, Zola, Bourdieu acreditava que 0 intelectual deveria servir aos Maria das Cracas Setton fala sobre a formacao do "gosto", interesses de uma verdadeira praxis de transforrnacao social, sob a 6tica de Bourdieu; Jose Sergio Leite Lopes, sobre sua apontando os mecanismos de reproducao de toda dominacao trajet6ria e participacao politica; Cl6vis de Barros Filho, so­simb6lica. 0 papel da sociologia, subsidiaria de uma ampla bre sua sociologia da comunicacao; Ilana Goldstein, sobre teoria reflexiva, seria 0 de fornecer entao as armas te6ricas a sociologia da cultura; Ana Paula Hey e Afranio Catani, necessarias para esse desvelamento da realidade e para sua sobre sua decisiva contribuicao para a educacao. Em entre­conseqiiente transformacao. Enesse sentido que "a sociologia vista, Bourdieu afirmou que "atualmente estamos engajados e urn esporte de combate", boutade que virou titulo de urn num combate, em defesa de urna civilizacao, e 0 Brasil, que documentario sobre 0 cotidiano do sociologo. sofreu a politica neoliberal (...) mas que tern grandes recursos

A originalidade de metodologia de Bourdieu e sua rela­ culturais, hist6ricos, pode ser urn dos lugares de resistencia". <;:ao com os saberes instituidos, por outro lado, nao deixa­ Compreender Bourdieu significaria, portanto, compreender ram de ser alvo de ataques passionais. Afinal, se num primei­ tambem nosso imperativo de resistencia. ro momenta soube assimilar 0 canone formado por Marx, (Eduardo Socha)

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DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU

Pequeno glossario da teoria de Bourdieu

i. j

:1

Os conceitos de

Bourdieu, aqui ex­

postos de maneira

esquemdtica, devem

ser compreendidos

em sua interdepen­

dencia, ou seja, na

reladio de um ao

outro. Como adverte

o proprio autor, em

Reponses: "nocoes

como habitus, campo

e capital podem ser

definidos, mas somen­

te no interior do sis­

tema teorico que eles

constituem, nunca

isoladamente. »

campo: nocao que caracteriza a autonomia de

certo dominic de concorrencia e disputa interna.

Serve de instrumento ao metoda relacional de

analise das dominacoes e praticas especificas

de urn determinado espaco social. Cada espa­

QO corresponde, assim, a urn campo especifico

- cultural, econorruco, educacional, cientffico,

jornallstico etc -, no qual sao determinados a

posicao social dos agentes e onde se revelam,

por exemplo, as figuras de "autoridade", deten­

toras de maior volume de capital.

capital: ampliando a concepcao rnarxlsta, Bourdieu entende por esse termo nao apenas

o acurnulo de bens e riquezas econorrucas, mas

todo recurso ou poder que se manifesta em uma

atividade social. Assim, alern do capital econo­

mica (renda, salaries, im6veis), e decisive para

o socioloco a compreensao de capital cultural

(saberes e conhecimentos reconhecidos par

diplomas e tftulos), capital social (relacoes so­

cials que podem set- convertidas em recursos

de dornmacac). Em resumo, refere-se a urn ca­

pital simb6/ico (aquilo que chamamos prestfgio

ou honra e que permite identificar os agentes

no espaco social). Ou seja, desigualdades so­

ciais nao decorreriam somente de desigualdades

econornicas, mas tambern dos entraves causa­

dos, por exemplo, pelo deficit de capital cultural

no acesso a bens simb6licos.

estrateqla: em Coises Dites, Bourdieu afirma

que "a nocao de estrateqia e 0 instrumento

de uma ruptura com 0 ponto de vista objeti ­

vista e com a acao sem agente, suposta pe­

10 estruturalismo (que recorre por exemplo a

nocao de inconsciente) [...J Ela e produto do

sentido pratico."

habitus:sistema aberto de disposlcoes, acoes

e percepcoes que os individuos adquirem com

o tempo em suas experiencias sociais (tanto na

dirnensao material, corp6rea, quanto simb6lica,

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cultural, entre outras). 0 habitus val, no entanto,

alern do indivfduo, diz respeito as estruturas re­

lacionais nas quais asta inserido, possibilitando

a compreensactanto de sua poslcao num cam­

po quanta seu conjunto de capitais. Bourdieu

pretende, assim, superar a antinomia entre ob­

jetivismo (no caso, preponderancia da estruturas

sociais sobre as acoes do sujeito) e subjetivismo

(primazia da acao do sujeito em relacao as de­

terrnlnacoes sociais) nas ciencias humanas (ver

estrateqla).Segundo Maria Drosila Vasconcelos,

trata-se de "uma rnatriz, determinada pela posi­

cao social do indivfduo que Ihe permite pensar,

ver e agir nas mais variadas situacoes, 0 habitus

traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos

politicos, morais, esteticos. Ele e tambern urn

meio de acao que permite criar ou desenvolver

estrateqias individuais ou coletivas."

papel da sociologia: para Bourdieu, "a sociolo­

gia nao mereceria talvez nenhuma hora de aten­

cao se tivesse como objetivo apenas descobrir

os fios que movem os individuos que ela obser­

va, se ela esquecesse que tern compromisso

com os homens, justamente quando estes, a

maneira das marionetes, participam de urn jogo

cujas regras ignoram, enfim, se ela nao tivesse

como tarefa restituir 0 sentido dos pr6prios atos

destes homens" (Le bal des ce/iba{aires, inedito

no Brasil)

sentido pratico: origem das pratlcas rituais que

estabelecem a coerencia parcial em urn deter­

minado campo.

vioh~ncia simb6lica: termo que explicaria a

adesao dos dominados em urn campo: trata­

se da dorninacao consentida, pela aceitacac das

regras e crencas partilhadas como se fossem

"naturals", e da incapacidade critica de reconhe­

cer 0 carater arbitrarlo de tais regras impostas

pelas autoridades dominantes de urn campo.

(Eduardo Socha)

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Uma introducao a Pierre Bourdieu Pela discussao do gosto, Bourdieu denunciou as distorcoes na producao da cultura e na sua difusao educacional

Maria da Graca Jacintho Setton

Considerado urn dos maiores soci­ologos de lingua francesa das ul­timas decadas, Pierre Bourdieu e urn dos mais importantes pensa­

dores do seculo 20. Sua producao inte1ectual, desde a decada de 1960, estende-se por uma extensa variedade de objetos e temas de es­tudo. Embora contemporaneo, e tao respei­tado quanta urn classico. Critico mordaz dos mecanismos de reproducao das desigua1dades sociais, Bourdieu construiu urn importante re­ferencial no campo das ciencias humanas.

No entanto, mesmo sendo reconhecida pe­1a origina1idade, a obra de Bourdieu e objeto de grande controversia, A maior parte de seus criticos, numa 1eitura parcial de seus traba­1hos, c1assifica-o como urn teorico da repro­ducao das desigua1dades sociais. Nao obstan­te, a reflexao de Bourdieu se destaca por uma

singu1aridade. Para e1e, os condicionamentos materiais e simbolicos agem sobre nos (sociedade e individuos) numa comp1exa relacao de interdependencia, Ou seja, a posicao social ou 0 poder que detemos na sociedade nao dependem apenas do volume de dinheiro que acu­mu1amos ou de uma situacao de prestigio que desfrutamos por pos­suir esco1aridade ou qua1quer outra particu1aridade de destaque, mas esta na articulacao de sentidos que esses aspectos podem assumir em cada momento historico,

Para 0 autor, a sociologia deve aproveitar sua vasta heranca aca­dernica, apoiar-se nas teorias sociais desenvo1vidas pelos grandes pen­sadores das ciencias humanas, fazer uso de tecnicas estatisticas e et­nograficas e utilizar procedimentos metodologicos serios e vigilantes para se forta1ecer como ciencia, Bourdieu fez de sua vida academics e inte1ectua1 uma arma politica e de sua sociologia urna sociologia enga­jada, profundamente comprometida com a demincia dos mecanismos de dominacao em uma sociedade injusta. De acordo com sua perspec­tiva, a sociedade ocidenta1 capita1ista euma sociedade hierarquizada,

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o

organizada segundo uma divisao de poderes ~

extremamente desigual. Mas como se organi­ j­zaria essa distribuicao desigual de poderes? Como as formacoes sociais capitalistas conse­guem manter os grupos sociais e os individuos hierarquizados? Em outras palavras, como se perpetua uma situacao de dominacao entre os grupos sociais?

Concep~ao relacional da sociedade Epossivel afirmar que Bourdieu tern uma

concepcao relacional e sisternica do social. A estrutura social evista como urn sistema hie­rarquizado de poder e privilegio, determinado tanto pelas relacoes materiais elou economi­cas (salario, renda) como pelas relacoes sim­bolicas (status) elou culturais (escolarizacao) entre os individuos, Segundo esse ponto de vista, a diferente localizacao dos grupos nessa estrutura social deriva da desigual distribuicao de recursos e poderes de cada urn de nos. Por recursos ou poderes, Bourdieu entende mais especificarnente 0 capital economico (renda, salarios, imoveis), 0 capital cultural (saberes

"I'! I

e conhecimentos reconhecidos por diplomas e titulos), 0 capital social (relacoes sociais que podem ser revertidas em capital, relacoes que

6 Cartaz do documentarlo "A Sociologiaeum Esporte de

Combate"(2001),de PierreCarles, podem ser capitalizadas) e por fim, mas nao sobre0 cotidiano de Bourdieu

por ordem de importancia, 0 capital simb6­lico (0 que vulgarmente chamamos prestigio elou honra). Assim, a posicao de privilegio Aproducao do gosto ou nao-privilegio ocupada por urn grupo ou Posto isso, a sociologia de Bourdieu emais individuo edefinida de acordo com 0 volume que uma sociologia da reproducao das dife­e a composicdo de urn ou rnais capitals ad­ rencas, materiais ou economicas; euma so­quiridos e ou incorporados ao longo de suas ciologia interpretativa do jogo de poder das trajetorias sociais. 0 conjunto desses capitais distincoes economicas e culturais de uma so­seria compreendido a partir de urn sistema de ciedade hierarquizada. Aqui chamo atencao disposicoes de cultura (nas suas dimens6es para urn aspecto de sua obra relativa a in­material, simbolica e cultural, entre outras), terpretacao da producao do gosto cultural. denominado por ele habitus. Bourdieu considera que 0 gosto e as praticas

A sociologia, para Bourdieu, euma cien­ de cultura de cada urn de nos sao resultados cia que incomoda, pois tende a interpretar os de urn feixe de condicoes especificas de socia­fenomenos sociais de maneira critica, Para os lizacao. Ena historia das experiencias de vi­interesses desta introducao, vejamos apenas da dos grupos e dos individuos que podemos uma de suas muitas contribuicoes no campo apreender a composicao de gosto e com pre­da Sociologia da Cultura; mais especificamen­ ender as vantagens e desvantagens materiais te, a maneira pela qual Bourdieu interpreta e simbolicas que assumem. a formacao do gosto cultural de cada urn de Nas decadas de 60 e 70 do seculo passado, nos, pondo em xeque urn dos consensos mais Bourdieu se envolve em uma serie de pesqui­difundidos de nossa historia cultural, 0 de que sas de carater qualitativo e quantitativo sobre gosto nao se discute. a vida cultural, sobre as praticas de lazer e de

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consumo de cultura entre os europeus, sobre­tudo, entre os franceses.

Dessas experiencias de investigacao Bourdieu publica, em 1976, uma grande pes­quisa intitulada Anatomia do gosto. Mais tar­de, essa mesma pesquisa passa a ser objeto de publicacao de sua obra prima, lancada em 1979: 0 livro intitulado A distincao - criti­ca social do [ulgamento. Nessas duas obras, Bourdieu e uma equipe de pesquisadores ten­tam explicar e discutir a variacao do gosto en­tre os segmentos sociais. Isto e, analisando a variedade das praticas culturais entre os gru­pos, Bourdieu acaba por afirmar que 0 gosto cultural e os estilos de vida da burguesia, das camadas medias e do operariado, ou seja, as maneiras de se relacionar com as praticas da cultura desses sujeitos, estao profundamente marcadas pelas trajetorias sociais vividas por cada urn deles.

Mais especificamente Bourdieu afirma que as praticas culturais sao determinadas, em grande parte, pelas trajetorias educativas e socializadoras dos agentes. Dito com outras palavras, Bourdieu afirma, causando urn gran­de mal-estar na epoca, que 0 gosto cultural e produto e fruto de urn processo educativo, am­bientado na familia e na escola e nao fruto de uma sensibilidade inata dos agentes sociais.

"Capital cultural incorporado" Nesse sentido, Bourdieu poe em discussao,

desafiando varias autoridades, urn consenso muito em Yoga, relativo a crenca de que gos­to e os estilos de vida seriam uma questao de foro intimo. Para 0 autor, 0 gosto seria, ao contrario, 0 resultado de imbricadas relacoes de forca poderosamente alicercadas nas insti­tuicoes transmissoras de cultura da sociedade capitalista.

Para fundamentar essa afirrnacao, Bourdieu argumenta que essas instituicoes se­riam a familia e a escola; seriam elas respon­saveis pelas nossas cornpetencias culturais ou gostos culturais. De urn lado, chamou a aten­~ao para 0 aprendizado precoce e insensivel, efetuado desde a primeira infancia, no seio da familia, e prolongado por urn aprendizado escolar que 0 pressupoe e 0 completa (apren­dizado mais comum entre as elites). De outro, destacou os aprendizados tardio, metodico e

acelerado, adquiridos nas instituicoes de en­sino, fora do ambiente familiar, em tese urn conhecimento aberto para todos.

Assim, a distincao entre esses dois tipos de aprendizado, 0 familiar e 0 escolar, refere-se a duas maneiras de adquirir bens da cultura e com eles se habituar. Ou seja, os aprendi­zados efetuados nos ambientes familiares se­riam caracterizados pelo seu desprendimento e invisibilidade, garantindo a seu portador urn certo desernbaraco na apreensao e apre­ciacao cultural; por sua vez, 0 aprendizado escolar sistematico seria caracterizado por ser voluntario e consciente, garantindo a seu por­tador uma familiaridade tardia com a produ­~ao cultural.

Essas duas formas de aprendizado, segun­do Bourdieu, seriam responsaveis pela forma­cao do gosto cultural dos individuos. Seria, especificamente, 0 que se chamariamos de "capital cultural incorporado", uma dimen­sao do habitus de cada urn; uma predispo­sicao a gostar de determinados produtos da cultura, por exemplo, filmes, livros ou mu­sica, consagrados ou nao pela cultura culta; uma tendencia desenvolvida em cada urn de nos, incorporada e que supoe uma interiori­zacao e identificacao com certas inforrnacoes e/ou saberes; urn capital, enfim, em uma ver­sao sirnb6lica, transvertido em disposicoes de cultura, portanto, fruto de urn trabalho de assimilacao, conquistado a custa de muito in­vestimento, tempo, dinheiro e desernbaraco no caso dos grupos privilegiados.

odescompasso educacional Seria pertinente perguntar: qual 0 signifi­

cado dessas contribuicoes de Bourdieu para a interpretacao das culturas? Qual 0 significado da perspectiva crftica sobre a producao do gosto cultural nas sociedades capitalistas?

Para responder a essa questao, valeria fa­zer uma pequena digressao. Esabido, entre os sociologos da educacao, que todas as relacoes educativas e socializadoras sao relacoes de comunicacao. Isto e, a mensagem cornunica­tiva, mais propriamente 0 conjunto de regras culturais disponibilizadas pela escola, sobre­tudo aquelas relativas as artes eruditas ou a cultura letrada dependem da posse previa de c6digos de apreciacao. Em outras palavras,

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a sensibilidade estetica, a capacidade de as­similar e se identificar com urn objeto artis­tico dependem fundamentalmente do acesso e, sobretudo, de urn aprendizado previa de codigos e instrumentos de apropriacao, isto e, uma sensibilizacao anterior, normalmente conquistada no seio familiar.

Ora, diria Bourdieu, em uma sociedade hierarquizada e injusta como a nossa, nao sao todas as farnilias que possuem a bagagem cul­ta e letrada para se apropriar e se identificar com os ensinamentos escolares. Alguns, os de origem social superior, terao certamente mais facilidade do que outros, pois ja adquiriram parte desses ensinamentos em casa. Existiria uma aproximacao e uma similaridade entre a cultura escolar e a cultura dos grupos sociais dominantes, pois estes ha muitas geracoes acumulam conhecimentos disponibilizados pela escola. Nesse sentido, 0 sistema de ensi­no que trata a todos igualmente, cobrando de todos 0 que so alguns detem (a familiaridade com a cultura culta), nao leva em considera­cao as diferencas de base determinadas pelas desigualdades de origem social. Bourdieu de­tecta entao urn descompasso entre a compe­tencia cultural exigida e promovida pela es­cola e a competencia cultural apreendida nas familias dos segmentos rna is populares.

Em sintese, para Bourdieu 0 sistema es­colar, em vez de oferecer acesso democratico de uma competencia cultural especifica para todos, tende a reforcar as distincoes de capital cultural de seu publico. Agindo dessa forma, o sistema escolar limitaria 0 acesso e 0 pleno aproveitamento dos individuos pertencentes as familias menos escolarizadas, pois cobra­ria deles os que eles nao tern, ou seja, urn co­nhecimento cultural anterior, aquele necessa­rio para se realizar a contento 0 processo de transmissao de uma cultura culta. Essa co­branca escolar foi denominada por ele como uma uiolencia simbolica, pois imporia 0 re­conhecimento e a legitimidade de uma unica forma de cultura, desconsiderando e inferiori­zando a cultura dos segmentos populares.

Assim, convertendo as desigualdades so­ciais, ou seja, as diferencas de aprendizado anterior, em desigualdades de acesso a cultura culta, 0 sistema de ensino tende a perpetuar a estrutura da distribuicao do capital cultural,

contribuindo para reproduzir e legitimar as diferencas de gosto entre os grupos sociais. Posto isso, as disposicoes exigidas pela esco­la, como por exemplo, as sensibilidades pelas letras ou pela estetica visual ou musical, en­fim, uma estetica artistica, privilegio de alguns poucos, tendem a intensificar as vantagens daqueles rna is bern aquinhoados, material e culturalmente.

Distincoes do gosto Com esse argumento Bourdieu poe em dis­

cussao urn dos maiores consensos do seculo, qual seja, gosto nao se discute. Ao contrario, para ele 0 gosto nao e uma propriedade inata dos individuos. 0 gosto e produzido e e re­sultado de urn feixe de condicoes materiais e simbolicas acumuladas no percurso de nossa trajetoria educativa. Para ele, 0 gosto cultu­ral se adquire; mais do que isso, e resultado de diferencas de origem e de oportunidades sociais e, portanto, deve ser denunciado en­quanto tal.

Nesse sentido, as disrincoes do gosto cul­tural revelam, sobretudo, uma ordem social injusta, em que as diferencas de cultura de origem podem ser transubstanciadas em dife­rencas entre 0 born e a mau gosto numa per­manente estrategia de classificar hierarquica­mente a cultura dos segmentos sociais,

Para finalizar, seria interessante fazer al­gumas ressalvas a esse pensamento. Pierre Bourdieu e ainda hoje respeitado como urn dos fundadores do paradigma teorico acerca das praticas de cultura. Nao obstante, uma serie de trabalhos vern tentando atualizar su­as contribuicoes, admitindo a existencia de outros espacos transmissores e legitimado­res de urn gosto cultural. Entre eles podemos destacar 0 poder das midias ou, no caso es­pecifico dos jovens, seus grupos de pares. Nas sociedades modernas, portanto, uma gama complexa de referencias de cultura partilharia com a escola e a familia a formacao do gosto de todos os segmentos sociais. 8

Maria da Grace Jacintho Setton Eo professora de Sociologia na Faculdadede Educacao da USp' autora de Rotary Club: habitus, estila de vida e saciabilidade (Ed. Annablume) e organizadora dos artigos de Bourdieu reunidosem A produc;aa da crencs: uma contribuic;aa para uma tearia das bens simb61icos (Ed. Zauk).

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Articula~oes inovadoras entre ciencia e politica A posicao polftica de Bourdieu esta diretamente associada aos instrumentos de iibertacao fornecidos pela pesquisa cientffica

Jose Sergio Leite Lopes

AViSibilidade dos posicionamentos publicos de Pierre Bourdieu se deu amplamente com sua defesa dos di­reitos dos ferroviarios e dos traba­

lhadores e funcionarios que fizeram uma greve em dezembro de 1995 paralisando a Franca. Nessa ocasiao ele fora uma voz isolada a de­fender os trabalhadores dentre a maioria dos intelectuais de renome, que se conformava com uma modernizacao inelutavel diante do que era visto como urn movimento grevista desesperado em defesa do passado. Mas tal visibilidade se deu por ser ele urn sociologo de grande notoriedade cientifica, produtor de uma obra enorme e inovadora e que havia gal­gado os postos mais prestigiosos de professor e pesquisador na Escola de Altos Estudos em Ciencias Sociais e no College de France. Dali ate a sua morte, no inicio de 2002, ocupou a posicao de intelectual contestatario com gran­de presenca na vida publica.

Dois anos antes da greve de 1995, Bourdieu havia sido condecorado com a medalha de ou­ro do Conselho Nacional de Pesquisa Cientifica da Franca (CNRS) pelo conjunto de sua obra - mas 1993 e tambem 0 ana da publicacao do livro A miseria do mundo, obra coletiva por ele organizada. Esse livro - de mais de 600 paginas, com uma tiragem enorme, em varias reimpressoes, inusitada para urn livro de cien­cias sociais - chama atencao para 0 sofrimento social causado pelas bruscas transformacoes capitalistas por que passava a Franca (como em diversas partes do mundo).

No livro e destacado 0 fenomeno da miseria de posidio ressentida por grupos sociais e individuos que perdem a antiga sociabilidade e 0

sentido da vida no trabalho, na vizinhanca ou na familia e tern 0 senti­mento de piora com a diminuicao do que ele chama de mao esquerda

Greve em dezembro de 2005.na Franc;a: a partldpcao ativa de Bourdieunos movimentoscontra 0 neoliberalismoconcedeu grande popularidadeao sodoloqo

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do Estado, 0 Estado social de que nos fala dois anos depois Robert Castel (em seu livro Metamorfoses da questdo social). Eentao que, perto da aposentadoria compulsoria aos 70 anos no ana 2000, Bourdieu torna-se urn in­telectual de projecao nos movimentos sociais

i ,' e na resistencia aintensificacao da entrada do I'

capitalismo em todas as esferas da vida, fazen­do aumentar as distancias entre classes e gru­pos sociais, e, como salientado por ele, amea­cando processos historicos de autonomizacao do campo cultural em relacao ao poder eco­nomico, revertendo 0 que foi sendo construido desde seculos anteriores.

Estudo das formas de dominacao Essa posicao de intelectual de grande visi­

bilidade politica dos anos 1990 surpreendeu a imagem que tinham de sua trajetoria anterior colegas mais distantes ou rivais e, portanto, certo senso comum na universidade francesa. De fato, Bourdieu distinguia-se por escolher novas formas inusitadas de dominacao para analisar, atraves de modos reflexivos de analise - inclusive a analise critica da escola, da arte, da ciencia e dos intelectuais - ameacando de certa maneira 0 conformismo escolar e univer­sitario, Ap6s sua experiencia no mundo rural em transformacao, tanto argelino como fran­ces - onde estuda 0 drama do celibato campo­nes em seu proprio povoado de origem (sem dize-lo), reconciliando-se, atraves do que viu do mundo rural argelino, com seu mundo de origem, do qual se distanciara por sua forma­~ao universitaria - Bourdieu tern as condicoes materiais (como diretor de pesquisa da Escola de Altos Estudos em Ciencias Sociais de Paris aos 34 anos de idade) de estudar sistematica­mente as formas especificas de dorninacao que se manifestam na educacao e na cultura.

Cria assim a nocao de campo que da des­taque a autonomia de certo dominio de con­correncia e disputa interna, nocao que e urn instrumento na constituicao de urn metodo re­lacional de analise das dominacoes e praticas especificas a urn determinado mundo social. Dotado de urn impulso e uma libido volta­dos para a analise critica do mundo artistico e intelectual, possivelmente advindos de suas experiencias de origem social confrontadas as hierarquias e dos internatos escolares por que

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passou, mas pleno tambern dos instrumentos intelectuais e cientificos para faze-lo, Bourdieu torna-se urn colega maldito por muitos de seus pares concorrentes, que 0 veem'como urn soci­610go rigoroso, pouco politico no sentido tra­dicional do intelectual total, mas incomodo na critica reflexiva ao mundo intelectual. A relutancia de Bourdieu de participar nas for­mas tradicionais de assinatura de manifestos e peticoes acaba tambem ocultando 0 sentido politico de sua pratica de pesquisador. Essa pratica e uma contribuicao politica de longo prazo, investida nos resultados e na maneira de fazer pesquisa.

Desde 0 desvendamento da transrnissao da heranca familiar que traz 0 aluno diante da escola publica republicana, reproduzindo as desigualdades na escola, 0 chamado ca­pital cultural (ver a coletanea Escritos sobre educa~ao,organizada por A. Catani e Maria Alice Nogueira, Ed. Vozes), ate as formas de poder criadas pelas grandes escolas do siste­ma universitario bi-partido frances que se cris­talizam nurna nova nobreza de Estado, pas­sando pela analise do campo politico e pelo campo economico, Bourdieu orienta-se para a dissecacao critica do campo do poder na sociedade moderna. No entanto, aquilo que aprendeu nas sociedades tradicionais e cam­ponesas enos fenomenos de proletarizacao e sub-proletarizacao do inicio de sua carreira, e que e trabalhado de forma te6rica em seus li­vros Esboco de uma teoria da prdtica (1972) e 0 senso prdtico (1979), estara sempre pre­sente em sua nocdo de habitus, construida na primeira socializacao familiar e tambem na acao de inculcacao escolar ou profissional. Sua insistencia no entendimento da pratica e das condicoes de possibilidade da acao humana faz par com sua aversao ao saber escolastico do mundo academico e intelectual, visto co­mo uma forma de dominacao, E e na virada dos anos 1990 que Bourdieu volta de forma analitica a empatia que tern pelos dominados (e que se manifestara na sua producao sobre o campesinato argelino e frances), acionando sua rede de pesquisadores para os apresentar de forma sensivel, atraves de entrevistas apro­fundadas, como em A miseria do mundo e em capitulos importantes de seu livro de maturi­dade Medita~8es pascalianas.

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Origens e caracteristicas datrajet6ria Mas essa forma diferente de construir urn

outro ponto de vista sobre a politica vinha sen­do feita desde 0 inicio de sua trajet6ria profis­sional, embora somente reconhecida por urn circulo mais proximo de colaboradores e leito­res, incluindo urna rede internacional de pes­quisadores que teve a estrategia de longo pra­zo de estimular. Esse estilo de tomar posicao atraves da pratica cientffica, desvendando os mecanismos mais sutis de dominacao e vendo tal conhecimento servindo como instrumentos de libertacao, pode explicar-se por algumas caracteristicas de sua trajet6ria.

Urna dessas caracteristicas e 0 fato de ter incorporado ao longo de sua obra urn trabalho reflexivo permanente e sutil sobre os efeitos de sua origem, incorporados asua trajet6ria esco­lar e profissional, assim como asua percepcao dos processos sociais. Embora anteriormente asua obra p6stuma de auto-analise os leito­res familia res e atentos asua obra pudessem perceber atraves de seus textos algo dos refe­ridos efeitos de forma implicita, somente apos a publicacao de Esboco de auto-analise (ver tambern 0 prefacio de Sergio Miceli na edicao brasileira) que essa caracteristica fica mais evi­denciada para urn publico leitor mais arnplo. Como se sabe, Bourdieu teve urna infmcia pas­sada num povoado rural dos Pirineus france­ses, neto de camponeses e filho de funcionario local dos correios, origem esta muito impro­vavel de compatibilizar-se com 0 seu otirno percurso escolar que 0 levou pelo sistema me­ritocratico do ensino publico frances a suces­sivos internatos, primeiramente no ginasio da cidade maior da regiao, depois no renomado liceu Louis Ie Grand de Paris e finalmente no setor de filosofia da Escola Normal Superior de Paris. No seu esboco de auto-analise Bourdieu da destaque asua vivencia das agruras entre os alunos internos da provincia e de origem popular, dos quais ele fazia parte, e os alunos externos parisienses de alta origem, como que lhe proporcionando uma visao precoce e inter­nalizada das desigualdades sociais no acesso a educacao e acultura.

Urna segunda caracteristica na formacao de Bourdieu se da atraves do seu treinamento na area de filosofia e historia da ciencia, que lhe propiciou instrumentos de base epistemol6gica

que compoern sua marca distintiva no campo das ciencias sociais de seu tempo. Esses instrumentos poderao ser ilustrados pela leitura do seu livro publicado em 1968 com seus colegas de entao J. C. Passeron e J. C. Chamboredon, A profissZio do socialogo. Essa opcao na filosofia contribuiu para faze-lo aproximar-se das ciencias sociais e the deu uma solida base para apropriar-se da etnologia, da sociologia e das tecnicas estatisticas de forma nao-escolar e de forma autodidata. Alem disso, deu-lhe condicoes de valorizar todos os procedimentos do trabalho cientifico, mesmo as consideradas mais modestas, usualmente delega­das a alunos e auxiliares.

Periodo na Argelia A sua conversao para a etnologia e depois para a sociologia se deu

no impacto de sua estadia na Argelia, Logo ap6s completar seus estudos na Ecole Normale, passar pelo concurso da agregation que 0 habilita ao ensino secundario e universitario no sistema publico de educacao nacional (e que 0 dispensou posteriormente de fazer 0 doutorado), Bourdieu econvocado aos 25 anos para 0 service militar na Argelia. Serviu nurna guarnicao que protegia urn enorrne estoque de rnunicdo no interior da entao colonia e depois passou para 0 service burocratico do governo geral frances em Argel. Paralelamente a suas tarefas de escri­turario e redator no gabinete militar, fazia para si mesmo anotacoes de suas observacoes sobre 0 pais que culminaram em seu primeiro livro, Sociologie de l'Algerie, publicado em 1958 na colecao "Que Sais-je?" ("Saber Atual"), onde sua empatia pelo povo argelino dominado pela Franca se vestia do conhecimento da complexidade da tradicao cultural de suas diferentes etnias, no momenta mesmo em que tal tradicao ene­gada na metr6pole colonial e mal conhecida pelos pr6prios intelectuais franceses engajados contra 0 colonialismo.

Ao termino do service militar, deu cursos de filosofia e sociologia na Faculdade de Argel, onde pode reunir um grupo de estudantes para fa­zer pesquisas de campo, complementares aos cursos, e depois pesquisas etnograficas e estatisticas, desenvolvidas por uma associacao que reuniu jovens estatisticos do INSEE (0 IBGE frances) e sua pr6pria equipe de estudantes, onde se destacava seu futuro colega e amigo de toda a vida Abdelmalek Sayad. Foi assim que na Argelia, fascinado pela tradicao cabila que se perdia e pela rransforrnacao brusca do campesinato pela modernizacao capitalista e pela politica colonial, Bourdieu desenvolve de forma autodidata a pesquisa etnografica e 0 aprendizado das tecnicas estatisticas. Edo tesouro de aprendizados e de licoes humanas vividos na Argelia, a que e levado de inicio ao acaso e compulsoriamente, que Bourdieu tirara materiais analiticos pelo resto de sua vida, alimentan­do sua obra futura - e isso, mesmo quando ela se volta para realidades ernpiricas distintas.

Tarnbem e do periodo argelino 0 inicio da elaboracao de suas po­sicoes politicas relacionadas ao conhecimento cientifico.: Nesse caso, sua posicao era a de fazer a pesquisa etnologica, mesmo enfrentando os perigos da situacao extrema de guerra colonial contra a insurreicao nacionalista argelina, e revelar ao publico a analise de processos sociais desconhecidos das autoridades coloniais, bern como dos intelectuais criticos franceses, assim como de boa parte da rede de militancia e de

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DOSSIE

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Foto tiradaporBourdieu,l> naArgelia, onde realizou,

entre 1958e 1961,sua pesquisa etnogratica sobre a desagregal;.lO dos modos

devidados camponeses

apoio dos revoltosos. Isso eargumentado no verdadeiro manifesto que que podem ser fornecidos pela pesquisa cienti­e 0 pr6logo que inicia a segunda parte do livro Trabalho e trabalba­ fica naquela situacao, Alem disso, no prefacio dares na Argelia, de 1963 (versao resumida em portugues, 0 desen­ do livro, sobre 0 que denomina de "fetichismo cantamento do mundo), onde se coloca contra as posicoes de principio da estatistica", inicia urna linha de critica aos destituidas do minimo de conhecimento empirico dos processos sociais artefatos estatisticos utilizados para justificar em questao da parte de intelectuais franceses criticos a guerra colonial efeitos de dorninacao social, analise que pros­(tendo como mote 0 artigo de urn etn6logo declarando ser impossivel seguira posteriormente com relacao as sonda­fazer-se pesquisa naquelas condicoes). A posicao politica implicita de gens de opiniao publica que regem cada vez Bourdieu se da atraves da valorizacao dos instrumentos de libertacao mais a politica eleitoral.

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) PIERRE BOURDIEU

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Legado De fato, em sua trajetoria ascendente ful­

minante no mundo universitario, Bourdieu contara com 0 acaso e 0 senso de oportunida­de de oferecer analises decisivas a fenomenos e processos sociais que estiveram no centro da atualidade politica e social. Assim foi com suas analises das sociedades argelina e cabilia quando a guerra da Argelia era a questao de­cisiva para a Franca no inicio dos anos 1960; assim foi tam bern com suas analises, junto com J.e. Passeron, sobre 0 sistema escolar fran­ces e sobre a centralidade ocupada pela escola nas sociedades conternporaneas, antecipando a crise de 1968 e dando instrumentos para a sua compreensao (0 livro Les heritiers, ainda nao traduzido, e de 1964). Tambem esse senso de estar tocando, pelos resultados de pesqui­sa, em problemas cruciais da atualidade, sem estar procurando para isso satisfazer a midia (antes pelo contrario, analisando seus efeitos nefastos), se produz tambem como vimos nos anos 1990, quando da publicacao de A mise­ria do mundo.

Bourdieu da importancia aos impondera­veis da vida real, que acabam fazendo da ne­cessidade virtude, baseado em sua propria tra­[etoria pessoal. Assim foi com 0 fato de fazer dos prolongamentos de seu service militar a ocasiao de seus primeiros trabalhos cientifi­cos de peso, de fazer de sua falta de capital cultural herdado urn estimulo a analise critica dos intelectuais e dos artistas apos urn enor­me esforco de aquisicao dos instrumentos de conhecimento necessaries; assim foi tambern transformar suas posicoes de desvantagem so­cial vividas no impulso de desvendamento das dominacoes e na sensibilidade que tern com os dominados. Mesmo 0 fato de trabalhar forte­mente em equipe no inicio de suas pesquisas, formando uma extensa rede de colaboradores na Franca e internacionalmente, deu-se pela sua necessidade (e ansiedade) de afrontar-se aos seus colegas estabelecidos, afeitos as pra­ticas de catedra, nas instituicoes prestigiosas a que foi galgado. Nao somente suas proprias obras, como a revista inovadora Actes de la

congregando uma rede de intelectuais euro­peus criticos e colecoes de livros a baixo custo numa linha militante como Raisons d/agir -, tomaram-lhe parte importante de seu ritmo impressionante de atividades.

Seu legado e constituido pela profusao de instrurnentos de pesquisa, por ele formulados, para serem desenvolvidos em varias areas das ciencias humanas. Embora ainda visto frequen­temente com antipatia no pequeno mundo dos colegas concorrentes, de alguns jornalistas e in­telectuais midiaticos, e da profusao de escolas de pensamento rivais na Franca, seu renome cientifico internacional e cada vez maior. No Brasil sua recepcao foi precoce, comparado particularmente aos campos academicos norte­americano e ingles, Enquanto estes descobri­ram Bourdieu no final dos anos 1980 e durante os anos 1990, traduzindo ja suas obras mais famosas e maduras, no Brasil ele e ensina do em algumas pos-graduacoes de antropologia e sociologia (a partir de alguns poucos ex-alunos brasileiros) desde 0 inicio dos anos de 1970, atraves de artigos em revistas e seus primeiros livros. Tambem desde 1974, com a publicacao da coletanea A economia das trocas simboli­cas, organizada por Sergio Miceli, seus artigos iniciais esclarecedores, dificeis de serem encon­trados hoje em frances, ficaram accessiveis pa­ra 0 publico universitario brasileiro.

Alem disso, suas reflex6es inovadoras e sua propria pratica, articulando atividade cientifica e intervencoes politicas, chegando a resulta­dos rnais gerais a partir de objetos de analise singulares inusitados, assim como trabalhan­do sobre objetos tradicionais - entre os quais aqueles banalizados pelas atualidades da midia - sob novos pontos de vista, constituem sua contribuicao a perdurar, conservando seu po­der inovador e sua atualidade no futuro. r!I

Recherche em Sciences Sociales, fundada em 1975, e as colecoes que dirigiu, introduzindo em lingua francesa autores de outras tradi­

Jose Sergio Leite Lopes e professor do Museu Nacional/UFRJ (Antropoloqia Social), aurar de 0 vapor do diabo: 0 trabalho dosopererios do ac;ucar (1976) e arganizador de A ambientalizac;ao dos conflitossociais: Participac;ao e controle

coes nacionais - e depois revistas como Liber, publico da poluic;ao industrial (2004).

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A dinamica dos meios de • #ItI#

comumcacao A sociologia de Bourdieu desmascara os interesses na producao da notfcia, mas tarnbern suas crfticas acadernicas mais inqenuas

Clovis de Barros Filho

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Infelizmente 0 sociologo Pierre Bourdieu legou poucos estudos e reflex6es sobre os meios de co­municacao. Apesar de uma pro­

ducao abrangente que discute desde problemas relativos a estrutura do ensino (A reprodudioi, passando por complicadas questoes sobre 0 gosto, a arte (A distindio, As regras da arte), e ate mesmo tratando questoes liga­das ao mercado imobiliario (As estru­turas sociais da economia), Bourdieu pesquisou muito pouco sobre a co­municacao. Seu principal texto so­bre 0 assunto foi publicado no Brasil, em livro, intitulado Sobre a teleuisdo, Texto este muito aquern de seus ou­tros trabalhos. Tanto no mimero de paginas, quanto no rigor de pesquisa e na profundidade do assunto. Coube entao aos seus discipulos, engajados no campo da cornunicacao, usar as ferramentas oferecidas por ele para o estudo da rnfdia.

Partindo dos referenciais teoricos de Bourdieu, podemos afirmar que 0

gosto, determinante de nossas inclina­~6es aos atos de consumo rnidiatico, tern uma origem social. Assim como a propria producao desta. E, por es­sa razao, ambas devem ser objetos de investigacao sociol6gica. Sociologia do consumo midiatico, Sociologia de sua producao, Problemas intrinsecos para quem faz uso dessa maneira de ver 0 mundo.

Com base em A distincdo (1975), de Bourdieu, podemos constatar que tanto a producao como 0 consumo de produtos ligados aos meios de co­rnunicacao de massa nao apenas pos­sui uma origem social. Ela tambern discrimina e hierarquiza seus agentes. Classifica socialmente. Diferencia 0

leitor da revista CULT da leitora da

eda~ao dojornal ingles The Oaily Telegraph: produ~ao danoticia nao decorre deurn donismo naif, como acreditam alguns nsadores p6s-modernos

revista Contigo, e exclui provaveis consumidores de revistas pornogra­ficas que utilizam papel couche fosco, o consumo de midia e, portanto, ob­jeto de distincao social. Assim como tambern discrimina os agentes sociais que trabalham nesses meios, bern co­mo seus textos.

Teoria sobre dominacao A definicao do que e urn meio de

cornunicacao legitimo e, assim, uma questao de primeira importancia pa­ra todos os agentes do grupo social. Afinal, alguns meios dominantes, co­mo a Rede Globo e a Editora Abril, por exemplo, pretendem conservar 0

status quo midiatico, enquanto ou­tros, como a Rede Record e SBT, edi­toras perifericas e portais de internet apostam na subversao da ordem es­tabelecida, isto e, da relacao de forcas que estrutura 0 espaco da comunica­~ao. Por isso, essa relacao de forcas acaba se objetivando numa relacao de valores. Afinal, toda a vida orga­nizada em sociedade, a menos que se recorra aviolencia fisica, deve ser re­conhecida e aceita como legitima.

Por isso, a sociologia que estuda os meios de comunicacao, como pro­posta por Bourdieu, e indissociavel de sua teoria sobre a dominacao. E pela demanda de seus produtos (vul­go Ibope) e pelas rnanifestacoes dos telespeetadores que os dominantes as­seguram suas posicoes, Abre-se, aqui, todo urn campo de analise dos confli­tos e da violencia simb6lica em jogo pelos meios, na qual os dominados participarn da construcao de legiti­midade imposta, aceitando suas posi­coes e ratificando urn tipo dominante de se fazer produtos midiaticos,

Mas se a midia e urn objeto

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sociol6gico que recentemente se im­poe, constitui-se num objeto de inves­tigacao particularmente dramatico pa­ra 0 sociologo, 0 consumo midiatico que, de certa forma, 0 traduz fenome­nicamente, e urn imenso deposito de pre-construcoes naturalizadas, portan­to ignoradas enquanto tais no cotidia­no, que funcionam como instrumen­tos habituais de construcao. Todas as categorias comumente empregadas na identificacao de suas tendencias, ida­de - jovens e velhos -, sexo - homens e mulheres -, renda - ricos e pobres -, sao contrabandeadas do senso co­mum, pelo discurso cientffico, sem muita reflexao, Alem disso, 0 padrao de quem avalia urn produto televisivo, por exemplo, e 0 padrao enraizado pela trajetoria social desse avaliador nas suas experiencias com os diversos programas de televisao com que teve contato desde a infancia,

Essas categorias de analise do pro­duto midiatico fazem parte de todo urn trabalho social de construcao de grupo e de uma representacao desse grupo infiltrada na ciencia do mundo social. Eo que explica tanta facilida­de de adaptacao. Facilidade exagera­da, talvez, Aceitas as categorias, listas e mais listas de dados estao adisposi­~ao do pesquisador para confirmacao ou refutacao parcial.

A investigacao sobre as inclina­~6es de audiencia deste ou daquele ni­cho - respeitados os criterios estatis­ticos de amostragem - ganham aura de constatacao cientifica. A indiscuti­bilidade desse tipo de resultado legiti­rna procedimentos e suas premissas. Encobre seu carater arbitrario. Isso porque as escolhas tecnicas, as mais aparentemente ernpiricas, sao insepa­raveis das escolhas de construcao de

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objeto, as mais teoricas, Logo, expli­car a producao dos meios de comuni­cacao atraves de dados de audiencia, tiragem, assinantes, cliques, e quanti­dade de amincios recai num equivoco grave que so e justificado pelo imagi­nario do senso comum.

"Urn jornalista escreve para outro jornalista"

o campo de producao de conte­iidos midiaticos tern regras proprias que se encontram em seus proprios agentes e nas suas relacoes com os demais. No meu livro a 'habitus' na comunicacdo, mostro como a produ­cao jornalistica e fruto de urn habi­tus jornalistico, utilizando 0 jargao de Bourdieu, onde os criterios de fato jornalistico e de pauta nao sao meras

,I estrategias burguesas de dominacao, como diria urn marxista, mas sim fru­tos de uma interiorizacao da aprendi­zagem jornalistica. Interiorizacao esta que aprende aver 0 mundo segundo uma determinada importancia, classi­"I:

H ficada em certas editorias jornalisticas (primeira pagina, cidade, esporte, in­I ternacional etc.), pensa numa quan­tidade "x" de caracteres, e avalia a materia segundo as observacoes de seus pares. Como nossos pesquisados confessam, "urn jornalista escreve pa­ra outro jornalista". Assim como em nossas pesquisas sobre 0 campo pu­blicitario, feitas na Escola Superior de Propaganda e Marketing, escutamos constantemente entre os dominantes a mesma observacao: "Minha pro­paganda se impoe contra meu con­corrente... Apesar de existirem as exigencias do briefing imposto pelo contratante, nossa equipe esta pouco preocupada com a recepcao do publi­co final. So nos interessa 0 que nossos colegas vao dizer".

o forte apego apesquisa de cam­po, exigencia central feita pela socio­logia de Bourdieu, desmascara nao so 0 discurso interessado dos agen­tes da comunicacao mas tarnbem 0

senso comum academico que avalia a rnidia segundo "achismos". Ao cons­tatar que 0 discurso de urn jornalista, ou de urn relacoes piiblicas, nao e em nenhum momento pautado pelos cri­terios "idealistas" de transparencia, objetividade, neutralidade e democra­tizacao do conhecimento, constata­mos que tais producoes sao frutos de urn jogo de desejos. As materias sao selecionadas e escritas visando atin­gir interesses os mais divers os, deter­minados pela posicao do agente no campo. Sem altruismos e sem pensar no "bern comurn", apesar de seus dis­cursos identitarios,

Jogo da comunicacao Nem mesmo os publicitarios, ti­

dos como manipuladores, estao inte­ressados no bern de seus clientes ou dos consumidores. No que se refere aos discursos academicos dominan­tes sobre a comunicacao, a sociologia de Bourdieu, atraves de uma pesqui­sa de campo rigorosa, expoe as in­genuidades e os erros que perspecti­vas marxistas e pos-rnodernas fazem da producao midiatica, Ha, sim, in­teresses envolvidos na fabricacao de urna noticia, como ambos denunciam. Mesmo nesta materia que eu escrevo, denunciando os interesses. Porem, 0

comunicador nao e movido por uma ideologia burguesa para a domina­~ao de massa. A reuniao de pauta das grandes midias nao e, em nenhum momento, uma reuniao de porcos as­querosos que visam camuflar a explo­racao capitalista e combater a arneaca comunista ate seu total exterrninio, posicao esta compartilhada por rnui­tos academicos da "velha guarda" e

por jovens, cheios de horrnonios, que habitam os centros academicos.

A producao da noticia, ou da pro­paganda, tambem nao e fruto de dese­jos individuais que querem se expres­sar em toda sua "forca" visando sua satisfacao e fluidez, caracterfstico das ditas "sociedades pos-modernas" de consumo. Nao e 0 hedonismo naif 0

"combustivel" que move oscomunica­dores de diversas areas, como querem acreditar os pensadores pos-moder­nos. Sao desejos complexos de aceita­~ao no campo, disputa e dominacao que estao em jogo. Sao os trofeus dos campos e suas posicoes de destaque e dominancia 0 fim ultimo da producao de noticia. A "preocupacao" com 0

leitor, telespectador, ou consumidor e somente uma desculpa para justificar seus acertos ou fracassos. Respeitar o "bern" da empresa que contrata 0

comunicador e somente uma mera desculpa para se manter empregado e continuar jogando 0 jogo da comuni­cacao. Jogo esse com regras bern cla­ras, mas quase nunca expressas.

Por essas duas razoes, a sociolo­gia de Pierre Bourdieu encontra difi­culdades em se estabelecer no mundo academico e rnercadologico. Os rneto­dos de investigacao, e seus resultados, desmancham os mecanismos de defesa de ambos os campos. Desmascara os agentes da comunicacao e os interes­ses acadernicos mais sordidos. Ao en­carar tanto a producao da noticia ou publicidade e sua critica voraz como produtos de consumo recheados de in­teresses, essa sociologia cria inumeros inimigos. Nesse sentido, imita seu pro­prio criador. Odiado em vida por mui­tos e admirado por muito poucos. Ii

C16vis de Barros Filho Eo professor livre-docente da ECA/USP, professor e organizador de curso na ESPM. Eautor de Etica na comuniceceo (Summus, 2006) e 0 'habitus' na «omuniceceo (Ed. Paulus, 2003)

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Hierarquias da cultura A sociologia da arte de Bourdieu procurou evidenciar a estreita liga<;;ao entre polftica e preferencias esteticas

Ilana Goldstein

Bourdieu construiu pilares fundamen­tais para 0 estudo sociol6gico da cul­tura e da arte, a partir da aplicacao dos conceitos de "campo" e de "ha­

bitus" a diversas esferas de criacao simb6lica, como a alta-costura, a fotografia, as artes phis­ticas e a literatura. No p610 da criacao artistica, Bourdieu questionou a crenca no "genio", ou seja, a ideia de que urn artista possa produzir de maneira isolada, guiado apenas por sua ins­piracao individual. Propos que, para se com­preender a genese de uma obra, sejam levadas em conta as relacoes do artista no campo de producao simbolica a que pertence, bern como os constrangimentos sociais e materiais a que esta subrnetido.ja no p610 da recepcao, pos em xeque a ideia de que as diferencas nas atitudes e escolhas do publico se devam a faculdades sen­soriais e predisposicoes naturais - 0 "born ou­vide", 0 feeling e assim por diante. Por meio de pesquisas ernpiricas, 0 autor demonstrou que as preferencias esteticas estao relacionadas, antes, aorigem familiar, ao grau de instrucao e apo­si<;:ao socioeconomica dos individuos.

Urn sociologo de inspiracao bourdieusiana interessado em compreender 0 papel e a po­etica de determinado criador ira reconstituir o percurso biografico, intelectual e profissio­nal de seu objeto de estudo, mapeando suas relacoes com outros agentes do "campo" e seus investimentos ao longo da vida. Bourdieu chamou esse procedimento metodol6gico de "estudo de trajet6ria" e, em Razbes prdticas, detiniu-o da seguinte maneira: "diferentemen­te das biografias comuns, descreve a serie de posicoes sucessivamente ocupadas pelo mes­mo escritor em estados sucessivos do campo". Urn exemplo concreto de "esrudo de trajet6ria" encontra-se em As regras da arte, livro em que o sociologo frances se debruca sobre 0 escri­tor Gustave Flaubert e no qual afirma que "as

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obras guardam traces de determinismos sociais que se exercem por meio do habitus do produ­tor (familia, escola, contatos profissionais) e das demandas e constrangimentos sociais ins­critos na posicao ocupada por esse artista no campo de criacao (...). Flaubert, enquanto de­fensor da arte pela arte, ocupava urna posicao neutra no campo, opondo-se ao mesmo tempo aarte social e aarte burguesa".

De acordo com Bourdieu, a maior parte das estrategias artisticas sao simultaneamen­te esteticas e politicas, 0 processo pelo qual determinadas obras se irnpoem sobre outras e produto das lutas entre aqueles que ocupam momentaneamente a posicao dominante den­tro do "campo", em virtude de seu "capital" especifico - e que tendem aconservacao e a rotinizacao da ordem simb6lica estabelecida - e aqueles que sao inclinados a"ruptura he­retica", acritica das formas estabelecidas e a subversao dos modelos em vigor. Nessa pers­pectiva, urn dos grandes desafios do cientista social e desvendar as disputas envolvidas na definicao das categorias e classificacoes inter­nas aos campos - como "belo", "legitime" ou "moderno" -, explicitando a posicao de onde fala cada agente. Faz-se necessario, portanto, reconstituir 0 processo de construcao do cano­ne, a hierarquizacao que preside os sistemas de classificacao em generos, escolas, estilos e pres­tigio - frutos de disputas que acabam sendo na­turalizadas. A micro-hist6ria pr6pria do "cam­po" eo pre-requisite para a sua interpretacao. Epor isso que uma das principais criticas que Bourdieu faz as analises marxistas das obras culturais, como as de Lukacs e Goldmann, e 0

fato de elas colocarem entre parenteses a 16gica e a hist6ria especificas de cada "campo", rela­cionando a obra diretamente a "classe" para a qual ela e destinada e fazendo do artista 0 porta-voz dos interesses gerais de uma classe.

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DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU

oconceito de "capital cultural" Trata-se, portanto, de uma sociologia da

cultura que analisa 0 encontro entre a pulsao expressiva dos criadores e 0 espaco dos "possi­veis" em que se movem. Como resume 0 pro­prio autor, em 0 poder simb6lico: "Se existe uma historia propriamente artistica, e porque os artistas e seus produtos se acham objetivamente situados, pela sua pertenca ao campo artistico, em relacao a outros artistas e aos seus produtos e porque as rupturas mais propriamente esteti­cas com uma tradicao artistica tern sempre que ver com a posicao relativa, naquele campo, dos que defendem esta tradicao e dos que se esfor­earn por quebra-la".

Urn segundo conjunto de questoes e desafios lancados pela sociologia da cultura de Pierre Bourdieu diz respeito aelucidacao da logica que rege 0 consumo e as praticas culturais. Uma nocao-chave, aqui, e a de "capital cultural" ­esbocada em 0 amor pela arte e explicitada em A distincdo. Trata-se de uma riqueza simbolica desigualmente distribuida dentro de cada cam­po, que e acumulada e transmitida de geracao em geracao, traz poder a seus detentores e susci­ta 0 desejo - consciente ou nao - de se distinguir dos demais por meio de atitudes "tipicas" de urn conhecedor. Segundo Bourdieu, 0 "capital cultural" pode aparecer sob tres formas diferen­tes: como habitus cultural, quando e fruto da socializacao prolongada, que garante a alguem saber falar bern em publico ou se sentir avon­tade em uma opera, por exemplo; como forma objetivada, presente em bens culturais como li­vros, quadros, discos etc.; sob forma institucio­nalizada, contida nos titulos escolares e vincu­lada ao mercado de trabalho. Vale destacar que nao necessariamente 0 "capital cultural" esta associado ao capital econornico; muitas vezes, grupos menos privilegiados do ponto de vista financeiro sao os maiores detentores do "capital cultural". De qualquer maneira, 0 montante e a natureza do "capital cultural" possuido pelos diferentes agentes tern relacao direta com suas preferencias esteticas e aquisicoes culturais.

Essa hipotese surgiu primeiramente em Un art moyen. Essai sur les usages sociaux de la photographie (1965), escrito em conjunto com Luc Boltanski e Robert Castell. Com base em metodologias quantitativas, 0 objetivo do estu­do era desvendar os diversos usos da fotografia

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de acordo com a posicao socioeconomica dos entrevistados, da apropria­~ao mais instrumental amais estetizante, do mero reconhecimento dos objetos retratados a alusoes complexas aqualidade formal das imagens. Entre as camadas populares, os pesquisadores encontraram urn uso pre­dominantemente funcional da fotografia (albuns de familia), ao passo que as camadas medias valorizaram enfaticamente 0 aspecto "artistico" das imagens, ao contrario das camadas superiores, menos entusiasmadas com essa "arte mediana".

Uso estrateqico do gosto A publicacao de L'amour de l'art, em co-autoria com Alain Darbel,

em 1969, viria confirmar que 0 "amor pela arte" e fruto de aprendiza­gem e socializacao, A pesquisa revelou, por exemplo, que a diferenca na taxa de visitacao anual de muse us entre urn agricultor e urn professor europeu era da ordem de 300 vezes. A partir dai, 0 que hoje parece evi­dente, foi urn passo decisivo na epoca: denunciar a ideologia do gosto natural. Quinze anos mais tarde, em La distinction (1979), Bourdieu se lancou aexplicacao das diferencas de posicionamento politico, de com­portamento e de apreciacao dos produtos culturais presentes nos dife­rentes estratos da sociedade, por meio de urn novo conceito: "habitus".

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Vernissage em Melke, Austria: 0 usa estrateqico do gosto permite a demarcacao social e 0 reconhecimento de maior capital simb6lico

o autor argumentava que os atores sociais fazem um uso estrategico do gosto, manejando sua destreza lingiiistica e estetica como maneira de se demarcar socialmente de grupos com menor "capital cultural" e de obter reconhecimento simb6lico e prestigio. Nessa logica, 0 consumo cultural e 0 deleite estetico sao acionados como forma de distincao, ou seja, a fa­miliaridade com bens simb6licos traz, consigo, associacoes como "com­petencia", "educacao", "nobreza de espirito" e "desinteresse material". Eo cruel eque a divisao da sociedade entre "barbaros" - incapazes de se deleitar com uma bela sinfonia ou uma pintura expressionista - e "ci­vilizados" - eruditos e dotados de "born gosto" - acaba tendo consequ­encias politicas: justifica 0 monop6lio dos instrumentos de apropriacao dos bens culturais por parte desses ultimos.

Politicas culturais na Franca e no Brasil As analises de Pierre Bourdieu sobre arte e cultura repercutiram muito

alern da Academia. As instituicoes culturais e os arte-educadores passaram a nao mais falar de um publico no singular, abstrato, mas de publicos no plural, com cornpetencias e repert6rios diferenciados. 0 livro 0 amor pelaarte levou os muse us franceses, inclusive, a repensarem suas estrate­gias de comunicacao, dando origem a um dos principais instrumentos da

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politica cultural francesa. Desde 1974, 0 gover­no encomenda levantamentos estatisticos peri6­dicos sobre a vida cultural das regioes, para um relat6rio intitulado Les pratiques culturelles des [rancais. Sao estimados, para cada faixa etaria e categoria socioprofissional, 0 mimero medio de idas a museus, de frequencia ao cinema e ao teatro, de visitas a monumentos hist6ricos, a pratica amadora de modalidades artisticas, en­tre outros indicadores. A partir dai, delineiam­se as estrategias e prioridades do Ministerio da Cultura para os an os seguintes.

Einteressante notar que, tarnbem no Brasil, uma das preocupacoes da atual gestae do Ministerio da Cultura ecriar indicadores cul­turais que possam nortear seu planejamento. Para suprir a lacuna de informacoes nesse se­tor, 0 IBGE, 0 MinC, 0 Instituto de Pesquisas Econornicas Aplicadas - IPEA e a Casa de Rui Barbosa assinaram uma parceria, ha quatro anos, criando uma base de dados culturais. Inicialmente, estao apenas sendo aproveitadas informacoes ja coletadas pelo IBGE em pesqui­sas gerais, que permitem aferir conclusoes so­bre a oferta e a demanda de bens e services culturais, os gastos das familias e os gastos pii­blicos com cultura, alern do perfil da mao-de­obra ocupada em atividades culturais. Mas a ideia erealizar sondagens, mais adiante, espe­cificamente sobre praticas e demandas culturais dos diversos segmentos da populacao. Curiosa coincidencia: as traducoes de 0 amor pelaarte e A distindio s6 foram publicadas, no Brasil, a partir de 2004, mesmo ana em que se selou a parceria entre 0 MinC, 0 IBGE e 0 !PEA para a construcao do Sistema de Indicadores Culturais. Talvez se trate apenas de uma coincidencia de datas; ou talvez estejamos diante de uma sauda­vel retroalimentacao entre as politicas ptiblicas, a divulgacao cientifica e a reflexao academics, como agradaria a Pierre Bourdieu. [!J

t1ana Goldstein e professora da FGV-SP e da Escola de Belas Artes do Parana, e doutoranda em Antropologia Social.Eautora de Responsabi/idade Social: dasgrandes corpotecoes ao terceiro setor (Atica, 2008).

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Bourdieu e a educacao Pelo sistema de ensino, as diferencas iniciais de c1asse sao transformadas em desigualdades de destino escolar e em forma especffica de dominacao

Ana Paula Hey e Afranlo Mendes Catani

APartir dos anos 1960, e du­rante quase 45 anos, Pierre Bourdieu produziu um con­junto de analises no ambito

da sociologia da educacao e da cultura que influenciou decisivamente algumas geracoes de intelectuais, obtendo 0 re­conhecimento de pesquisadores, estu­dantes e ativistas que atuam em varias outras esferas da sociedade. Em "Uma sociologia da producao do mundo cul­tural e escolar", introducao a Escritos de educacdo (1998), que reline 12 textos do soci6logo frances, Maria A. Nogueira e Afranio Catani escrevem o seguinte: "Ao mesmo tempo em que colocava novos questionamentos, sua obra fornecia respostas originais, re­novando 0 pensamento socio16gico sobre as funcoes e 0 funcionamento social dos sistemas de ensino nas so­ciedades conternporaneas, e sobre as relacoes que mantem os diferentes gru­pos sociais com a escola e com 0 saber. Conceitos e categorias analiticas par ele construidos constituem hoje moeda corrente da pesquisa educacional, im­pregnando boa parte das analises bra­sileiras sobre as condicoes de producao

e de distribuicao dos bens culturais e simb6licos, entre os quais se incluem os produtos escolares".

Bourdieu, em seus escritos, procu­rou questionar, nas sociedades de clas­ses, tematica que persegue muitos in­telectuais: a compreensao de como e por que pequenos grupos de individu­os conseguem se apoderar dos meios de dominacao, perrnitindo nomear e representar a realidade, construindo categorias, classificacoes e vis6es de mundo as quais todos os outros sao obrigados a se referir, Compreender 0

mundo, para ele, converte-se em pode­roso instrumento de libertacao - e esse procedimento que ele realiza, dentre outros domini os, no educacional.

A cultura vema ser urn sistema de significacoes hierarquizadas, tornan­do-se urn m6vel de lutas entre grupos sociais cuja finalidade e a de manter distanciamentos distintivos entre clas­ses sociais. A dominacao cultural se expressa na f6rmula segundo a qual a cada posicao na hierarquia social cor­responde uma cultura especifica (eli­tista, media, de massa), caracterizadas respectivamente pela distincao, pela

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pretensao e pela privacao. Definida por gostos e formas de apreciacao estetica, a cultura e central no pro­cesso de dominacao; e a imposicao da cultura dominante como sendo "a cultura" que faz com que as clas­ses dominadas atribuam sua situacao subalterna a sua suposta deficiencia cultural, e nao a imposicao pura e simples. 0 sistema de ensino desem­penha papel de realce na reproducao dessa relacao de dorninacao cultural, funcionando ainda, para Bento Prado Jr., "como chancela de diferencas cul­turais e Iingiiisticas ja dadas, antes da escolarizacao, no quadro da socializa­c;ao primeira, que e necessariamente diferencial, segundo a inscricao das familias nas diferentes classes sociais. (... ) 0 c6digo Iingiiistico da burgue­sia (com seus cacoetes, idiotismos, sua particularidade) sera encontrado, pe­los futuros notaveis, nas salas de aula, como a linguagem da razao, da cultu­ra, numa palavra, como elemento ou harizonte da Verdade. 0 particular e arbitrariamente erigido em universal e o 'capital cultural' adquirido na esfera domestica, pelos filhos da burguesia,

, "'­

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"Tratando todos os educandos como iguais emdireitose deveres, 0 sistema escolar e levadoa dar sua san~ao as desigualdades iniciais de cultura"

lhes assegura urn privilegio considera­vel no destino escolar e profissional. No Destino, enfim" ("A Educacao de­pois de 1968", em as Descaminhos da Educadio, ed. Brasiliense).

A escola como reprodutora da dominacao

A funcao do sistema de ensino eser­vir de instrumento de legitimacao das desigualdades sociais. Longe de ser li­bertadora, a escola econservadora e mantern a dominacao dos dominantes sobre as classespopulares, sendo repre­sentada como urn instrumento de refer­co das desigualdades e como reprodu­tora cultural, pois ha 0 acesso desigual a cultura segundo a origem de classe.

o fil6sofo idealista Alain (Emile Chartier, 1868-1951) foi professor durante decadas na Kbiigne (classes preparat6rias as Escolas Normais nas areas de letras e filosofia, on­de sao recrutados os intelectuais de maior prestigio no campo intelectu­al frances) do Lycee Henri IV (Paris) tendo, dentre centenas de outros alu­nos, Raymond Aron, Simone Weill e Georges Canguilhem. Em 1932, Alain

escrevia em Propos sur leducation ­Pedagogic enfantine, de maneira apo­logetica, que "se pode perfeitamente dizer que nao ha pensamento a nao ser na escola",

Bourdieu construira sua trajeto­ria analitica no dorninio da sociolo­gia da educacao procurando opor-se a urn idealismo como 0 preconizado por Alain, em que a reflexao edes­tituida de qualquer fundamento his­t6rico, como na velha tradicao fran­cesa. Em artigo de 1966, "A escola conservadora: as desigualdades frente a escola e a cultura" , rompe com as explicacoes fundadas em aptidoes na­turais e individuais e critica 0 rnito do "dorn", desvendando as condicoes so­ciais e culturais que permitiriam 0 de­senvolvimento desse mito. Desmonta, tarnbem, os mecanismos atraves dos quais 0 sistema de ensino transforma as diferencas iniciais - resultado da transmissao familiar da heranca cul­tural- em desigualdades de destino es­colar. Explora a relacao com 0 saber, em detrimento do saber em si mesmo, mostrando como os estudantes pro­venientes de familias desprovidas de

capital cultural apresentarao uma re­lacao com as obras da cultura veicu­ladas pela escola que tende a ser inte­ressada, laboriosa, tensa, esforcada, enquanto para os alunos originarios de meios culturalmente privilegiados essa relacao esta marcada pelo dile­tantismo, desenvoltura, elegancia, fa­cilidade verbal "natural". Ao avaliar 0

desempenho dos alunos, a escola leva em conta, conscientemente ou nao, es­se modo de aquisicao e uso do saber.

Segundo Bourdieu, "para que se­jam desfavorecidos os mais favoreci­dos, enecessario e suficiente que a es­cola ignore, no ambito dos conteudos do ensino que transmite, dos rnetodos e tecnicas de transrnissao e dos crite­rios de avaliacao, as desigualdades cul­turais entre as criancas das diferentes classes sociais. Tratando todos os edu­candos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, 0 sistema escolar elevado a dar sua sancao as desigualdades ini­ciais diante da cultura" .

Bourdieu constr6i seu esquema analitico relativo ao sistema esco­lar e as relacoes nao explicitas que 0

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ancoram em uma longa trajetoria que envolve analises empiricas objetivas, centradas em estatisticas da situacao escofar francesa. Ja em 1964, em Les etudiants et leurs etudes (as estudan­tes e seus estudos) e Les beritiers. Les etudiants et la culture (as herdeiros. as estudantes e a cultural, escritos com Jean-Claude Passeron, examina como os estudantes se relacionam com a estrutura do sistema escolar e co­mo sao nele representados, e constata a desigual representacao das diferen­tes classes sociais no sistema superior. Investiga a cultura "legitima", aquela das classes privilegiadas que evalidada nos exames escolares e nos diplomas outorgados, e 0 ensino, aquele que au­tentica urn corpo de conhecimentos, de saber-fazer e, sobretudo, de saber dizer, que constitui 0 patrimonio das classes cultivadas.

o fato de desvendar as desigual­dades do ensino frances, tanto como sistema como em seu interior, signifi­ca uma grande mudanca no pressu­posto ja canonizado - principalmente com Durkheim, que personifica 0 ide­al da Tcrceira Republica (1870-1940), conhecida como "A Republica dos Professores" -, em que a escola de­veria fornecer a educacao para todos os individuos, proporcionando-lhes instrumentos que pudessem garantir sua liberdade, mas, tarnbern, sua as­censa0 social.

Ao afirmar que 0 sistema esco­lar institui fronteiras sociais analo­gas aquelas que separavam a grande nobreza da pequena nobreza, e esta dos simples plebeus, ao instaurar uma ruptura entre os alunos das grandes

escolas e os das faculdades (ao anali­sar 0 campo universitario frances e 0

papel das Grandes Ecolesi, Bourdieu desvela a crueza da desigualdade so­cial e, ao mesmo tempo, como ela e simulada no sistema escolar e entra­nhada nas estruturas cognitivas dos participantes desse universo - profes­sores, alunos, dirigentes.

Conhecimento e poder Assim, a instituicao escolar e vis­

ta como desempenhando uma grande funcao de producao de diferencas cog­nitivas, uma vez que ajuda a produzir esquemas de apreciacao, percepcao e acao do mundo social por via da inter­nalizacao dos sistemas classificatorios dominantes no mundo social global.

Suas analises da educacao, entao, passam a pertencer ao campo da so­ciologia do conhecimento e da socio­logia do poder, pois como ele mesmo afirma, longe de ser urna ciencia apli­cada e adequada somente aos peda­gogos, ela se situa na base de uma antropologia geral do poder e da le­gitimidade, porquanto se detern "nos mecanismos responsaveis pela repro­ducao das estruturas socia is e pela re­producao das estruturas mentais",

Para Loic Wacquant, Bourdieu ofe­rece uma anatomia da producao do novo capital [0 cultural] e uma ana­lise dos efeitos socia is de sua circula­<;ao nos varies campos envolvidos no trabalho de dominacao. Em La no­blesse d'Etat (A nobreza do Estado) comprova e reforca suas teses iniciais sobre 0 sistema de ensino e a "rela­cao de colisao e colusao, de autono­mia e cumplicidade, de distancia e de

dependencia entre poder material e poder sirnbolico". Sua sociologia da educacao e, antes de tudo, uma "antro­pologia generativa dos poderes focada na contribuicao especial que as formas simb6licas dao arespectiva operacao, conversao e naturalizacao, (...) 0 inte­resse de Bourdieu pela escola deriva do papel que ele the atribui como garan­tidor da ordem social conternporanea via magia do Estado que consagra as divisoes sociais, inscrevendo-as simul­taneamente na objetividade das distri­buicoes materiais e na subjetividade das classificacoes cognitivas".

A apropriacao do autor no campo educacional brasileiro ocorre de for­ma mais incisiva no uso de suas no­coes mais evidentes e, nao raramente, desvinculadas de sua epistemologia. Epor isso que podemos encontrar os "teoricos" de Bourdieu, os "ativistas" e, de forma menos usual, aqueles que se apropriam de sua "pratica episte­mologica". Constata-se a necessida­de de re-conhecer 0 autor, buscando o entendimenro da teoria sociologies que embasa suas nocoes rnais conhe­cidas e tambern rnais banalizadas, as­sim como 0 sentido da percepcao do mundo social que tal teoria informa. Bourdieu nos ensina que toda pratica humana encontra-se imersa em uma ordem social, sobretudo essa catego­ria especifica de praticas inerentes ao mundo academico. Fazer uma socio­logia da educacao bourdieusiana, ana­lisando 0 papel do sistema de ensino na consagracao das divisoes sociais e consolidando urn novo modo de do­rninacao, torna-se urn desafio ate para os acadernicos mais ousados. 8

Ana Paula Hey e professora no Programa de Pos-Graduacao em Educa~ao da UMESP e autora do livro Esbor;o de uma sociologia do campo academico. A educar;ao superior no Brasil (EDUFSCar/FAPESP)

Afranlo Mendes Catani eprofessor na Faculdade de Educa~ao da USP e pesquisador do CNPq. Organizou, com MariaAlice Nogueira, Escritos de educac;ao (Vozes), reunindo ensaios de Pierre Bourdieu.

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Bibliografia selecionada disponivel no Brasil Coletaneas de artigos LiVIo de grande repercussao social

1--- A economia das trocas simbolices .~.. . A Miseria do Mundo Sao Paulo : Perspectiva, 1974 . Petropolls: Vozes, 2003 I ­

I--- Coisas ditas Livros com materiais da Argelia J Sao Paulo: Brasiliense, 1990

--- A Dominaqao Masculina Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999

___ 0 poder simb6lico Lisboa / Rio de Janeiro: DIFEU Bertrand Brasil, 1989 Revista Socio/ogia e Po/itica

n. 26, junho de 2006 (disponfvel em http. z/www.scielo.br)

~ ,::," 1--- Escritos Sobre Educeceo .nlulJl;lI - - - - a Desencantamento do Mundo'~~ B Petropolis: Va,,"s, 1999 Sao Paulo: Perspectiva, 1979

Plt ARE: SO URO, EU --- Razaes Praticas RAl 6 f:S

~~_T.I .S~~ Sao Paulo: Paplrus, 1996 Livro sobre classificacoes sociais, cultura e poder

A Distim;ao; Critica Social do Ju lgamento

--- A Socio/ogia de Pierre Bourdieu -~ Porto Aleqre/Sao Paulo: "....= Sao Paulo: Olho d'aqua, 2005 .-. ZoukiEDUSP, 2007 (1979)

-e

Livros sobre arte

o Amor Pe/a Arte: museus de arteLivro postumo --- na europa e seu publico

Porto Alegre: Editora Zouk, 2003 - - - Esboc;o de auto-analise

Sao Paulo: Cia. das Letras, 2005 As Regras da Arte; genese do campo titersrio Sao Paulo: Cia. das Letras , 1996

Sintese e balance de sua obra Textos de intervencao politica

---- Meditaqaes Pascalianas --- Sabre a TelevisiioRio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2001

Rio de Janeiro: Zahar, 1997

Livro epistemol6gico Contrafogos

A Profissao do Sociotago Rio de Janeiro : Zahar, 1998 (escrito com J-C Passeron e J-C Camboredon)

Petr6polis: Vozes, 1999

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