borges - ficções (funes, o memorioso)
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7/21/2019 BORGES - Fices (Funes, o Memorioso)
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FUNES, O MEMORIOSO
Recordo-o (no tenho direito de pronunciar esse verbo sagrado, somente um homem
na terra teve direito e esse homem morreu) com uma escura flor-da-paixo na mo, vendo-o como ningum o viu, embora o avistasse do crepsculo do dia at o da noite, toda uma
vida. Recordo-o, o rosto taciturno e inditico e singularmente distante, por trs do cigarro.
Recordo (creio) suas mos afiladas de tranador. Recordo perto dessas mos um
chimarro, com as armas da Banda Oriental; recordo na janela da casa uma esteira
amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente sua voz; a voz pausada,
ressentida e nasal do antigo homem dos subrbios, sem os silvos italianos de agora. Mais
de trs vezes no o vi; a ltima, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos
aqueles que o conheceram sobre ele escrevam; meu testemunho ser talvez o mais breve e
sem dvida o mais pobre, mas no o menos imparcial do volume que os senhores editaro.Minha deplorvel condio de argentino me impedir de incorrer no ditirambo gnero
obrigatrio no Uruguai, quando o tema um uruguaio.Literato,cafajeste,portenho; Funes
no disse essas injuriosas palavras, mas estou bastante consciente de que eu representava
para ele essas desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era precursor dos
super-homens, "um Zaratustra xucro e vernculo"; no discuto isso, contudo no convm
esquecer que era tambm um compadrito de Fray Bentos, com certas incurveis
limitaes.
Minha primeira lembrana de Funes muito perspcua. Vejo-o num entardecer demaro ou fevereiro do ano oitenta e quatro. Meu pai, esse ano, levara-me a veranear em
Fray Bentos. Voltava eu com meu primo Bernardo Haedo da estncia de So Francisco.
Voltvamos cantando, a cavalo, e essa no era a nica circunstncia de minha felicidade.
Depois de um dia bochornoso, uma enorme tormenta cor de ardsia escondera o cu.
Animava-a o vento do Sul, j enlouqueciam as rvores; eu tinha o temor (a esperana) de
que nos surpreendesse num descampado a gua elementar. Fizemos uma espcie de
corrida com a tormenta. Entramos num beco que se aprofundava entre duas caladas
altssimas de tijolo. Escurecera, de chofre; ouvi rpidos e quase secretos passos no alto;
alcei os olhos e vi um rapaz que corria pela estreita e quebrada calada como por umaestreita e quebrada parede. Lembro-me da bombacha, das alpargatas, lembro-me do
cigarro no duro rosto, contra o nuvarro j sem limites. Bernardo gritou-lhe
imprevisivelmente: "Que horas so, Irineu?" Sem consultar o cu, sem deter-se, o outro
respondeu: "Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco". A voz
era aguda, zombeteira.
Sou to distrado que o dilogo que acabo de contar no me teria chamado a ateno
se no o houvesse repetido meu primo, a quem estimulavam (acredito) certo orgulho local
e o desejo de mostrar-se indiferente resposta tripartida do outro.
Disse-me que o rapaz do beco era um tal Irineu Funes, mencionado por algumas
excentricidades como a de no dar-se com ningum e a de saber sempre a hora, como um
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relgio. Acrescentou que era filho de uma lavadeira do povoado, Maria Clementina Funes,
e que alguns diziam que seu pai era um mdico da charqueada, um ingls OConnor, e
outros, um domador ou rastreador do distrito de Salto. Vivia com sua me, depois da
chcara dos Laureies.
Nos anos oitenta e cinco e oitenta e seis, veraneamos na cidade de Montevidu. Em
oitenta e sete retornei a Fray Bentos. Perguntei, como natural, por todos os conhecidos e,finalmente, pelo "cronomtrico Funes". Responderam-me que o derrubara um redomo na
estncia de So Francisco, e que ficara aleijado, sem esperana. Lembro-me da impresso
de incmoda magia que a notcia me produziu: a nica vez que o vi, vnhamos a cavalo de
So Francisco e ele andava num lugar alto; o fato, na boca de meu primo Bernardo, tinha
muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que no se movia do
catre, postos os olhos na figueira do fundo ou numa teia de aranha. Nos entardeceres,
permitia que o levassem janela. Portava a soberba at o ponto de simular que fora
benfico o golpe que o tinha fulminado... Duas vezes o vi atrs da grade, que relembrava
toscamente sua condio de eterno prisioneiro: uma, imvel, com os olhos fechados; outra,tambm imvel, absorto na contemplao de um oloroso galho de santonina.
No sem alguma vanglria eu iniciara naquele tempo o estudo metdico do latim.
Minha mala inclua o De Viris Illustribus de Lhomond, o Thesaurus de Quicherat, os
comentrios de Jlio Csar e um volume mpar da Naturalis Historia de Plnio, que
excedia (e continua excedendo) minhas mdicas virtudes de latinista. Tudo se propala num
povoado pequeno; Irineu, em seu rancho dos arrabaldes, no tardou a inteirar-se da
chegada desses livros anmalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual
recordava nosso encontro, infelizmente fugaz, "do dia sete de fevereiro do ano oitenta e
quatro", ponderava os gloriosos servios que Dom Gregrio Haedo, meu tio, falecido
nesse mesmo ano, "prestara s duas ptrias na valorosa jornada de Ituzaing", e solicitava-
me o emprstimo de alguns dos volumes, acompanhado de um dicionrio "para a boa
inteligncia do texto original, porque ainda ignoro o latim". Prometia devolv-los em bom
estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que
Andrs Bello preconizou: i por y, j por g. A princpio, temi naturalmente uma brincadeira.
Meus primos asseguraram-me que no, que eram coisas de Irineu. No soube se atribuir a
descaramento, a ignorncia ou a estupidez a idia de que o rduo latim no requeria mais
instrumento que um dicionrio; para desiludi-lo completamente mandei-lhe o Gradus ad
Parnassumde Quicherat e a obra de Plnio.
Em catorze de fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse
imediatamente, porque meu pai no estava "nada bem". Deus me perdoe; o prestgio de ser
o destinatrio de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a
contradio entre a forma negativa da notcia e o peremptrio advrbio, a tentao de
dramatizar minha dor, fingindo um viril estoicismo, talvez me distrassem de toda
possibilidade de sofrimento. Ao fazer a mala, observei que me faltavam o Gradus e o
primeiro volume daNaturalis Historia. O "Saturno" zarpava no dia seguinte, pela manh;
nessa noite, depois de jantar, encaminhei-me casa de Funes. Surpreendeu-me muito quea noite fosse no menos pesada que o dia.
No asseado rancho, a me de Funes me recebeu.
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Disse-me que Irineu estava no quarto do fundo e que no estranhasse encontr-lo s
escuras, porque Irineu costumava passar as horas mortas sem acender a vela. Atravessei o
ptio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo ptio. Havia uma parreira; a
escurido pde parecer-me completa. Ouvi de repente a alta e zombeteira voz de Irineu.
Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha da treva) articulava com moroso deleite um
discurso ou prece ou encantao. Ressoaram as slabas romanas no ptio de terra; meutemor as acreditava indecifrveis, interminveis; depois, no enorme dilogo dessa noite,
soube que formavam o primeiro pargrafo do vigsimo quarto captulo do livro stimo da
Naturalis Historia. A matria desse captulo a memria; as palavras ltimas foram ut
nihil non sdem verbis redderetur auditum.
Sem a menor mudana de voz, Irineu disse-me que passasse. Estava no catre,
fumando. Parece-me que no vi seu rosto at o amanhecer; creio rememorar a fasca
momentnea do cigarro. O quarto cheirava vagamente a umidade. Sentei-me; repeti a
histria do telegrama e da enfermidade de meu pai.
Chego, agora, ao mais difcil ponto de minha narrativa. Esta (bom que j o saiba o
leitor) no tem outro argumento que esse dilogo de h j meio sculo. No tentarei
reproduzir suas palavras, irrecuperveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas
coisas que me disse Irineu. O estilo indireto remoto e fraco; sei que sacrifico a eficcia
de meu relato; que meus leitores imaginem os entrecortados perodos que me angustiaram
nessa noite.
Irineu comeou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memria prodigiosa
registrados pela Naturalis Historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome
todos os soldados de seus exrcitos; Mitridates Eupator, que administrava a justia nos 22
idiomas de seu imprio; Simnides, inventor da mnemotcnica; Metrodoro, que professava
a arte de repetir com fidelidade o escutado uma nica vez. Com evidente boa-f
maravilhou-se de que tais casos maravilhassem. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa
em que o derrubou o azulego ele fora o que so todos os cristos: um cego, um surdo, um
abobado, um desmemoriado. (Tentei lembrar-lhe sua percepo exata do tempo, sua
memria de nomes prprios; no me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem
sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair,
perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolervel de to rico eto ntido, e tambm as memrias mais antigas e mais triviais. Pouco depois, constatou
que estava aleijado. O fato apenas lhe interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era
um preo mnimo. Agora sua percepo e sua memria eram infalveis.
Ns, de uma olhadela, percebemos trs taas em uma mesa; Funes, todos os
rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as formas das nuvens
austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compar-
las na lembrana aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e
s linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na vspera da batalha doQuebracho. Essas lembranas no eram simples; cada imagem visual estava ligada s
sensaes musculares, trmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os
entressonhos. Duas ou trs vezes havia reconstrudo um dia inteiro; nunca havia duvidado,
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cada reconstruo, porm, j tinha requerido um dia inteiro. Disse-me: "Mais recordaestenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o mundo mundo". E
tambm: "Meus sonhos so como a viglia de vocs". E, igualmente, prximo do
amanhecer: "Minha memria, senhor, como despejadouro de lixos". Uma circunferncia
num quadro-negro, um tringulo retngulo, um losango so formas que podemos intuir
plenamente; o mesmo acontecia a Irineu com as emaranhadas crinas de um potro, com
uma ponta de gado numa coxilha, com o fogo mutvel e com a inumervel cinza, com osmuitos rostos de um morto num longo velrio. No sei quantas estrelas via no cu.
Essas coisas me falou; nem ento nem depois as coloquei em dvida.. Naquele
tempo no havia cinemas ou fongrafos; , no obstante, inverossmil e at inacreditvel
que ningum fizesse uma experincia com Funes. O certo que vivemos postergando todo
o postergvel; talvez todos saibamos profundamente que somos imortais e que, cedo ou
tarde, todo homem realizar todas as coisas e saber tudo.
A voz de Funes, da escurido, prosseguia falando.
Disse-me que por volta de 1886 projetara um sistema original de numerao e que
em pouqussimos dias excedera o vinte e quatro mil. No o tinha escrito, porque o pensado
uma nica vez j no se lhe podia apagar. Seu primeiro estmulo, acredito, foi o desagrado
de que os trinta e trs orientais requereram dois signos e trs palavras, em vez de uma
nica palavra e um nico signo. Aplicou depois esse disparatado princpio aos demais
nmeros. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Mximo Prez; em lugar de
sete mil e catorze, A Ferrovia; outros nmeros eram Luis Melin Lafinur, Olimar, enxofre,
os bastos, a baleia, o gs, a caldeira, Napoleo, Agustn de Vedia. Em lugar de quinhentos,dizia nove. Cada palavra tinha um sinal particular, uma espcie de marca; as ltimas eram
muito complicadas... Tentei explicar-lhe que essa rapsdia de vozes inconexas era
exatamente o contrrio de um sistema de numerao. Disse-lhe que dizer 365 era dizer trs
centenas, seis dezenas, cinco unidades; anlise que no existe nos "nmeros" O NegroTimteo ou manta de carne. Funes no me entendeu ou no quis entender-me.
Locke, no sculo XVII, postulou (e reprovou) um idioma impossvel no qual cada
coisa individual, cada pedra, cada pssaro e cada ramo tivesse um nome prprio; Funes
projetou certa vez um idioma anlogo, mas o rejeitou por parecer-lhe demasiado geral,
demasiado ambguo. De fato, Funes no s recordava cada folha de cada rvore de cadamonte, como tambm cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado. Resolveu
reduzir cada uma de suas jornadas pretritas a umas setenta mil lembranas, que definiria
depois por cifras. Dissuadiram-no duas consideraes: a conscincia de que a tarefa era
interminvel, a conscincia de que era intil. Pensou que na hora da morte no teria
acabado ainda de classificar todas as recordaes da infncia.
Os dois projetos que indiquei (um vocabulrio infinito para a srie natural dos
nmeros, um intil catlogo mental de todas as imagens da lembrana) so insensatos, mas
revelam certa balbuciante grandeza. Deixam-nos vislumbrar ou inferir o vertiginosomundo de Funes. Este, no o esqueamos, era quase incapaz de idias gerais, platnicas.
No s lhe custava compreender que o smbolo genrico co abrangesse tantos indivduos
dspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o co das trs e catorze
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(visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o co das trs e quarto (visto de frente). Seu
prprio rosto no espelho, suas prprias mos, surpreendiam-no todas as vezes. Menciona
Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes
discernia continuamente os tranqilos avanos da corrupo, das cries, da fadiga. Notava
os progressos da morte, da umidade. Era o solitrio e lcido espectador de um mundo
multiforme, instantneo e quase intoleravelmente exato. Babilnia, Londres e Nova York
sufocavam com feroz esplendor a imaginao dos homens; ningum, em suas torrespopulosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a presso de uma realidade to
infatigvel como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde
sul-americano. Era-lhe muito difcil dormir. Dormir distrair-se do mundo; Funes, de
costas no catre, na sombra, imaginava cada fenda e cada moldura das casas certas que o
rodeavam. (Repito que a menos importante de suas lembranas era mais minuciosa e mais
viva que nossa percepo de um prazer fsico ou de um tormento fsico.) A leste, num
trecho no demarcado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava pretas,
compactas, feitas de treva homognea; nessa direo voltava o rosto para dormir. Tambm
costumava imaginar-se no fundo do rio, embalado e anulado pela corrente.
Tinha aprendido sem esforo o ingls, o francs, o portugus, o latim. Suspeito,
entretanto, que no era muito capaz de pensar. Pensar esquecer diferenas, generalizar,
abstrair. No abarrotado mundo de Funes no havia seno pormenores, quase imediatos.
A receosa claridade da madrugada entrou pelo ptio de terra.
Ento vi o rosto da voz que toda a noite falara. Irineu tinha dezenove anos; nascera
em 1868; pareceu-me monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior s
profecias e s pirmides. Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada um de meus
gestos) perduraria em sua implacvel memria; entorpeceu-me o temor de multiplicar
gestos inteis.
Irineu Funes morreu em 1889, de uma congesto pulmonar.
1942