borges - ficções (a seita da fênix)

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  • 5/20/2018 BORGES - Fic es (a Seita Da F nix)

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    A SEITA DA FNIX

    Aqueles que escrevem que a seita da Fnix teve sua origem em Helipolis e a

    derivam da restaurao religiosa que sucedeu morte do reformador Amenfis IV alegamtextos de Herdoto, de Tcito e dos monumentos egpcios, mas ignoram, ou queremignorar, que a denominao da Fnix no anterior a Hrabano Mauro e que as fontes maisantigas (as Saturnais ou Flvio Josefo, digamos) s falam da Gente do Costume ou daGente do Segredo. J Gregorovius observou, nos conventculos de Ferrara, que a meno Fnix era rarssima na linguagem oral; em Genebra, tratei com artesos que no mecompreenderam quando perguntei se eram homens da Fnix, mas que admitiram,imediatamente, ser homens do Segredo. Se no me engano, semelhante coisa acontececom os budistas; o nome pelo qual os conhece o mundo no o que eles pronunciam.

    Miklosich, numa pgina bastante famosa, equiparou os sectrios da Fnix aosciganos. No Chile e na Hungria h ciganos e tambm h sectrios; fora dessa espcie deubiqidade, muito pouco tm em comum, uns e outros. Os ciganos so negociantes,caldeireiros, ferreiros e ledores da sorte; os sectrios costumam exercer felizmente asprofisses liberais. Os ciganos configuram um tipo fsico e falam, ou falavam, um idiomasecreto; os sectrios confundem-se com os demais e a prova que no tm sofridoperseguies. Os ciganos so pitorescos e inspiram os maus poetas; os romances, oscromos e os boleros omitem os sectrios... Martim Buber declara que os judeus so

    essencialmente patticos; nem todos os sectrios o so e alguns abominam o pattico; estapblica e notria verdade basta para refutar o erro vulgar (absurdamente defendido porUrmann) que v na Fnix uma derivao de Israel. Discorre-se mais ou menos assim:Urmann era um homem sensvel; Urmann era judeu; Urmann freqentou os sectrios nosguetos de Praga; a afinidade que Urmann sentiu comprova um fato real. Sinceramente, noposso concordar com essa opinio. Que os sectrios num meio judaico paream-se aos

    judeus no comprova nada; o inegvel que se parecem, como o infinito Shakespeare deHazlitt, a todos os homens do mundo. So tudo para todos, como o Apstolo; dias atrs, odoutor Juan Francisco Amaro, de Paysand, ponderou a facilidade com que se

    acrioulavam.Disse que a histria da seita no registra perseguies. Isso verdade, mas como

    no h grupo humano em que no figurem partidrios da Fnix, tambm certo que noh perseguio ou rigor que estes no hajam padecido ou exercido. Nas guerras ocidentaise nas remotas guerras da sia verteram-lhes o sangue secularmente, sob bandeirasinimigas; muito pouco lhes vale identificar-se com todas as naes do orbe.

    Sem um livro sagrado que os congregue como a Escritura a Israel, sem umamemria comum, sem essa outra memria que um idioma, espalhados pela face da terra,diversos em cor e em traos, uma nica coisa o Segredo os une e os unir at o fim dosdias. Certa vez, alm do Segredo, houve uma lenda (e qui um mito cosmognico), masos superficiais homens da Fnix esqueceram-na e hoje apenas guardam a obscura tradio

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    de um castigo. De um castigo, de um pacto ou de um privilgio, porque as verses diferem

    e somente deixam entrever a sentena de um Deus que assegura a uma estirpe a

    eternidade, se os homens dela, gerao aps gerao, praticarem um rito. Consultei os

    relatos dos viajantes, conversei com patriarcas e telogos; posso dar f de que o

    cumprimento do rito a nica prtica religiosa que observam os sectrios. O rito constitui

    o Segredo. Este, como j indiquei, transmite-se de gerao a gerao, mas o uso no quer

    que as mes o ensinem aos filhos, nem tampouco os sacerdotes; a iniciao no mistrio tarefa dos indivduos mais desprezveis. Um escravo, um leproso ou um mendigo servem

    de mistagogos. Tambm um menino pode doutrinar outro menino. O ato em si trivial,

    momentneo e no requer descrio. Os materiais so a cortia, a cera ou a goma-arbica.

    (Na liturgia, fala-se de lodo; este se costuma usar tambm.) No h templos dedicados

    especialmente celebrao desse culto, mas uma runa, um poro ou um vestbulo so

    considerados lugares propcios. O Segredo sagrado mas no deixa de ser um pouco

    ridculo; seu exerccio furtivo e ainda clandestino e os adeptos no falam dele. No h

    palavras decentes para denomin-lo, mas se entende que todas as palavras o denominam,

    ou antes, que inevitavelmente o aludem, e assim, no dilogo eu disse uma coisa qualquer eos adeptos sorriram ou se incomodaram, porque sentiram que eu tinha tocado o Segredo.

    Nas literaturas germnicas h poemas escritos por sectrios, cujo sujeito nominal o mar

    ou o crepsculo da noite; so, de algum modo, smbolos do Segredo, ouo repetir . "Orbisterrarum est speculum Ludi" reza um adgio apcrifo que Du Cange registrou em seuGlossrio. Uma espcie de horror sagrado impede a alguns fiis a realizao do

    simplicssimo rito; os outros os desprezam, mas eles se desprezam ainda mais. Gozam de

    forte crdito, em troca, os que deliberadamente renunciam ao Costume e obtm um

    comrcio direto com a divindade; estes, para manifestar esse comrcio, fazem-no com

    figuras da liturgia, e assim John of the Rood escreveu:

    Saibam os Nove Firmamentos que o Deus deleitvel como a Cortia e o Lodo.

    Tenho merecido em trs continentes a amizade de muitos devotos da Fnix; consta-

    me que o Segredo, a princpio, pareceu-lhes frvolo, penoso, vulgar e (o que mais

    estranho) inacreditvel. No concordavam em admitir que seus pais se houvessem

    rebaixado a tais prticas. O estranho que o Segredo no se tenha perdido, h muito; a

    despeito das vicissitudes do orbe, a despeito das guerras e dos xodos, chega,

    surpreendentemente, a todos os fiis. Algum no vacilou em afirmar que j instintivo.

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