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Page 1: BORGES E OS MAPAS DA MEMÓRIA - unigran.br · medida essa obra de Jorge Luis Borges permite tratar de uma confluência, pela e na literatura, ... Em “Do rigor da ciência”, de

www.interletras.com.br – v.1, n.5 – jul./dez. 2006

BORGES E OS MAPAS DA MEMÓRIA

Vívien Gonzaga e Silva*

RESUMO: A partir da leitura do livro Atlas, de 1935, busca-se discutir em que medida essa obra de Jorge Luis Borges permite tratar de uma confluência, pela e na literatura, de saberes historicamente instituídos como contraponto ao texto ficcional. Na presente leitura, privilegia-se a imbricação de coordenadas espaciais – principalmente nos domínios da cartografia – e temporais – como encenação da memória, nos moldes dos “relatos de viagem”.

BORGES AND THE MEMORY MAPS

ABSTRACT: From the reading of Atlas – 1935 – one would discuss how a piece of work by Jorge Luis Borges allows oneself to deal with intertwining, through and in literature, of historical knowledge which works away from the fictional text. In the present reading it is privileged the embedment of space coordinates as memory acts according to the “Journey Logs”.

PALAVRAS-CHAVE: memória; fronteira; relatos de viagem

KEYWORDS: memory, border, Journey Logs

Ao referir-se à “clausura edificada pelo conhecimento moderno”, particularmente em sua filiação cartesiana, Cássio Hissa (2002, p. 26) toca em um tema bastante caro a certa literatura. E não será por simples coincidência que esse autor, geógrafo de formação, irá recorrer a um texto de Borges para encaminhar sua análise sobre o “significado da fronteira” no âmbito dos diversos saberes em jogo na contemporaneidade. Em “Do rigor da ciência”, de 1935, Borges abre campo para um diálogo que veio tomando corpo principalmente a partir da segunda metade do século XX: não apenas as fronteiras entre a literatura e a ciência, mas também alguns princípios que vinham assegurando uma rígida jurisdição para uma e outra, vêem-se, agora, sob suspeita.

As poucas linhas que constituem o texto de Borges são uma provocação à ilusória precisão científica que, de certo modo, nos mantêm, a todos, em terreno seguro. De fato, as “Disciplinas Geográficas”, reduzidas a ruínas no pequeno texto borgeano, sempre foram úteis à necessária organização do mundo conhecido. A arte da

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cartografia, como especialidade das ciências da Terra, data de milênios1 e, na esfera de ação das ciências aplicadas, poucas áreas vêm se servindo tanto dos avanços tecnológicos como esta que se dedica à representar os limites e fronteiras do espaço habitado e, possivelmente, por habitar.

Mas, é a partir desse diálogo entre a literatura – enquanto domínio exclusivo da ficção – e a ciência – como lugar privilegiado de construção de um saber socialmente legitimado – que se pode perceber a porosidade das fronteiras que demarcam um e outro campo. Mais precisamente, é a partir da literatura de linhagem borgeana que se pode entender o equívoco, ou o que “há de mais ingênuo na aventura supostamente sem riscos da ciência moderna” (HISSA, 2002, p. 27), ao se supor que o mundo é apreensível como realidade comprovável nos limites do rigor científico.

No entanto, é com base na leitura de um outro conjunto de textos de Jorge Luis Borges que proponho explorar essas fronteiras – hoje, um pouco mais flexíveis do que se acreditava no início do século passado, quando o escritor argentino lança sua provocação às certezas dos diligentes cartógrafos.

Editado em 1984, Atlas é um livro que “certamente não é um Atlas” (BORGES, 2000, p. 455), mas que, ao evocar, já em seu título, a noção primeira desse vocábulo, ou seja, a de uma “coleção de mapas ou cartas geográficas”, mobiliza um sem número de abordagens possíveis. Algumas delas dirão mais respeito à própria literatura – ou a certos procedimentos literários que figuram tipicamente na literatura borgeana. Outras irão se acercar da História, como ciência constituída e, hoje, também posta em crise, como as “Disciplinas Geográficas” ironizadas pelo escritor. Outras, ainda, darão acesso à própria demarcação de territórios visitados – domínio, em sentido estrito, daqueles que se dedicam a produzir os tais atlas –, e assim por diante. A entrada que busco aqui, está ardilosamente dissimulada por essas múltiplas possibilidades ou, talvez, encontre-se imbricada em cada uma delas.

Em Atlas, Borges retoma – e reelabora – uma prática textual antiga, talvez tão antiga como a arte cartográfica: os “relatos de viagem” remetem mesmo a longínquas narrativas orais e aos primórdios da cultura escrita. Não será por obra do acaso que o livro se abre com uma espécie de “verbete-relato” que reporta à tradição celta, ou a um tempo ainda mais remoto, se considerarmos o percurso que leva

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Borges da estátua gálica – “abrigada e exibida por essa curiosa coisa, um museu” (BORGES, 2000, p. 457) – aos ritos para sempre perdidos no tempo. É justamente esse o ponto que desafia nesta leitura. O deslocamento processado por Borges ao constituir um Atlas – referência espacial – como um inventário de memórias, essa instância imaterial por excelência, esse “espaço” intangível, dada sua mobilidade polimórfica.

É provável que Borges tenha, muito conscientemente, evitado a precisão das datas e das referências geográficas apenas para que o leitor sempre possa duvidar da realidade de seu trajeto. Tanto melhor, pois a forma fragmentária e oscilante de seus escritos faz do Atlas borgeano uma “aventura que prossegue”, no intento de “descobrir o desconhecido” (BORGES, 2000, p. 455), também para os viajantes pósteros.

Há, assim, nesses relatos, uma espécie de perversa interdição – como traço de um olhar latino-americano – ao que seria um “esforço de tradução do vivido em terras alheias” para um repertório comum ao leitor (ÁVILA, 1999, p. 115). Esse esforço é o que marcaria, de certo modo, os relatos dos viajantes europeus em exercício no “Novo Mundo”.2 Borges, ao contrário desse esforço de fixação do real, relata a errância da memória, a partir da qual as coordenadas de tempo-espaço se diluem em conexões que transportam a paisagem de Lucerna, Colorado ou Cairo para uma “esquina precisa do bairro de Palermo” (BORGES, 2000, p. 484) ou para outra esquina qualquer:

onde agora há um alto edifício com rampas, e antes um longo cortiço com vasos de flores na sacada, e antes uma casa que ignoro, e, no tempo de Rosas, um rancho, com a calçada de tijolos e a rua de terra (BORGES, 2000, p. 486).

Importa pouco, ao se refazer o roteiro de Borges, a experiência vivida no plano do real. As “impressões” que vão se sucedendo no curto espaço do livro fazem desintegrar, pouco a pouco, a concretude da viagem do escritor e de sua acompanhante, Maria Kodama; e, por um momento, parece que essa viagem é também o arquétipo de toda viagem possível. Em uma das poucas notas datadas do Atlas, Borges afirma que “as vésperas e a carregada memória são mais reais que o presente intangível” (BORGES, 2000, p. 501). Essa passagem deixa entrever uma noção importante aqui: a memória, essa carregada memória, não abarca apenas o passado experienciado e preservado em sua totalidade, mas um passado poroso o suficiente para deixar-se penetrar de futuros. “As vésperas de uma viagem são uma

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preciosa parte da viagem”, diz ele, dando-nos uma dimensão nova da experiência relatada. Estão incluídas nesse “presente intangível”, assinalado como “22 de agosto de 1983”, não somente as próximas etapas da viagem por começar, mas todas as viagens empreendidas, não só por Borges e Kodama, mas por toda a humanidade, ao longo de sua história. Seria a isso, talvez, que Borges chama de “memória universal dos homens”?

É a partir desse ponto que também se pode pensar na mobilidade das fronteiras entre o real e o ficcional, e não seria exagero afirmar que toda a obra de Borges tenha sido construída sobre esse lugar instável – “pântanos com andaimes”, imagina o escritor. Provavelmente, nenhum outro escritor jamais tenha se apropriado dessa “memória universal” com tanta legitimidade. Essa apropriação – de algum modo, inseparável da própria memória que temos de Borges –, parece se dar como se sua escrita reconhecesse certo movimento que rege, de fato, as coisas em estado natural, ignorantes dos limites e fronteiras definidos pelos “olhos da cultura”, como pensa Hissa: “quando chega o verão chuvoso, o rio solidário acolhe a tempestade e transforma-se nela” (2002, p. 22). A “viagem” de Borges parece, assim, acolher uma totalidade de experiências que está não apenas nos registros estritos do real, mas num “livro de areia”, ou numa “enciclopédia sonhada”, em que todos os verbetes são pressentidos – e isso é o bastante para que se saiba que lá estão –, embora o tempo do sonho nunca seja suficiente para esgotar sua leitura.

O Atlas de Borges, nesse sentido, não deixa de constituir uma compilação totalizante das coisas do mundo – coisas não mais reais “que as formas de um sonho” (BORGES, 2000, p. 480). O sonho de Deus, pensado pelo teólogo irlandês Erígena, é, possivelmente, uma fonte inesgotável para os sonhos escriturais de Borges. A força dessa imagem, sempre metamorfoseada, irá permear não apenas o Atlas, mas inúmeros outros textos do autor. E ela própria será subvertida em algum momento.3 Para Erígena, toda a experiência humana seria um simulacro da grande narrativa que se desenrola em sonho divino. Deus, eternamente adormecido, estaria a criar formas perfeitas, as verdadeiras formas. Aí estaria o arquétipo cujo modelo, inutilmente, insistimos em recriar no plano terreno. Nesse cruzamento entre a religião e a filosofia – por que não entre a literatura e a ciência? –, essa imagem se mostra capaz de encerrar a forma arquetípica do todo. Somente tamanha abstração tornaria possível agregar a infinitude da experiência humana.

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Para Borges, os limites dessa experiência estão sempre envoltos em neblina e, não raras as vezes, seus roteiros de viagem atravessam também a fronteira entre a vigília e o sonho. Em alguns relatos, a narrativa se concentra, de fato, apenas na experiência onírica – são elas também parte importante da viagem. Uma passagem, em especial, se refere à “outra fronteira dos desertos”. O olhar do sonhador estaria já situado em uma dada fronteira, da qual se avista “a outra”. Mas, que ponto será este do qual se divisa – ou se pressente – uma totalidade de “desertos”? Novamente, uma abstração assombrosa, na qual a exatidão das medidas é lançada ao abismo: há, no sonho, fileiras de lousas “cuja longitude é medida por léguas ou por léguas de léguas”. Essa grandeza em desuso sugere uma progressão numérica incalculável, como a areia de todos os desertos, ou como os próprios verbetes, inscritos a giz – essa outra matéria que tem o hábito de se desfazer –, na superfície das lousas também incontáveis. Como apenas nos sonhos se sabe, há “uma cifra indefinida, mas certamente não-infinita, para o número de vezes que pronunciarás, entre o berço e a sepultura, o nome de Shakespeare ou de Kepler”. Essa enciclopédia monstruosa, organizada com o rigor alfabético, fixa o destino de cada homem, e sobreviverá a ele, talvez guardando, por um tempo também indeciso, aquilo que não foi visto, ouvido, lembrado, pronunciado (ver BORGES, 2000, p. 471). A natureza mutável da vida está, nesse relato, assinalada por uma pequena, mas determinante, margem de casualidade: os verbetes, mesmo que virtualmente, abarcariam todos os destinos cabíveis numa existência – até o número de vezes dado aos batimentos do coração –, mas, a cada instante, “alguém altera ou apaga uma cifra”, o que elimina qualquer possibilidade de certeza. O acaso é também um deus poderoso!

Borges expressa alguma consciência desse poder demiúrgico em uma das notas mais belas do Atlas. É pela memória de um gesto mínimo que o escritor põe em ação uma imagem grandiosa: “Estou modificando o Saara” (BORGES, 2000, p. 500). Ao mover um punhado de areia do deserto, consuma-se uma interferência no sonho de Deus; ou teria Deus sonhado com aquele homem a modificar o deserto? De qualquer modo, esse instante fugaz estará, para sempre, incorporado à “memória universal dos homens”, registrado sob o verbete – o deserto – que, em si, aponta para um mapa que é arquétipo de todos os mapas e, ao mesmo tempo, é o mapa impossível. A imagem arquetípica dessa região, estéril por definição – ou na qual a vida é rarefeita –, só pode ser habitada por uma natureza nômade, errante, como a memória borgeana.

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O Atlas é, nesse sentido, uma coleção de geografias efêmeras, cujos mapas só podem existir na condição provisória de uma fotografia, esse simulacro de verdades que costumamos usar para reter o tempo. Assim como as dunas de um deserto, toda realidade fotografada se sabe passageira. “Arquivos imperfeitos” – e, por isso mesmo, tão preciosos – da experiência objetiva do homem no espaço. Transformados em signos, em indícios de coisas mais distantes,4 os registros possíveis dessa experiência somente podem se dar pela compreensão de que “entrar num país ou num livro” (BORGES, 2000, p. 477) são atos idênticos ou, pelo menos, de igual valor. Uma fotografia, como enquadramento de uma cena que se oferece no plano da realidade, não faz dessa mesma cena uma verdade mais concreta. Ao contrário, a moldura da foto, uma espécie de fronteira entre a cena real e a cena de papel – ou, contemporaneamente, a cena digital –, está ali apenas para dizer que sempre é possível mover a lente no último instante. Altera-se, nesse movimento, o real? É provável que Borges respondesse afirmativamente a essa pergunta. Para ele, são tão reais os tigres das gravuras quanto aquele, de carne e osso, “cuja garra indiferente ou carinhosa” (BORGES, 2000, p. 479) demorou-se, um dia, sobre sua cabeça. A realidade dessa experiência sensorial é naturalmente inapreensível fora da memória do escritor, no entanto, ela nos parece, agora, tão concreta quanto a página de papel que lhe dá suporte. Esse tigre será, para o leitor, um tigre do verbo, conhecido como verdade, desde que se aceite a equivalência entre esses dois territórios – o país e o livro –, como metáforas de tantos outros definidos pelo “olhar da cultura”. Mas não deixa de ser curioso que, segundo essa mesma cultura, certos livros – assim como certos países – tenham menos concretude que outros. Compreender a potência de ficção desses registros é compreender a própria crise da noção de fronteira no mundo contemporâneo.

A literatura de Jorge Luis Borges talvez seja o melhor exemplo dessa compreensão. Nesse sentido, a enciclopédia, um dos “paraísos perdidos” do escritor, pode ser entendida também como esse lugar onde a fronteira somente preexiste sob a forma do desejo obsessivo que lhe deu origem em um momento qualquer. A partir daí, quando ela mesma assume sua concretude – seja no meio físico do papel ou no meio virtual do suporte eletrônico – toda fronteira será reconfigurada a cada novo acesso. É a partir dessa liberdade que Borges elabora seus mapas. Todas as esquinas estão presentes no Atlas, todos os rios, todos os desertos, todas as cidades, até mesmo as invisíveis. Assim como Borges, Calvino faz do verbo a matéria de todas as cidades existentes no passado e no futuro; suas torres, vielas, varandas e habitantes estão, assim, pressentidos no Atlas. Os

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próprios relatos de Marco Polo são, talvez, também os de Borges, assim como o são os de Thevet, Darwin, Burton, Martius, Gandavo.

Ao tratar a literatura como espaço de confluência de todos os possíveis, Borges não apenas irá negar uma hierarquia historicamente construída em torno dos saberes constituídos, como irá legitimar outros, de algum modo – e também historicamente – negligenciados. A mitologia, a fábula, o diário, as epigramas, as notas bibliográficas, as inscrições lapidares irão coexistir com os tratados filosóficos, os compêndios médicos, os documentos históricos, com as relíquias arqueológicas e cartas geográficas. A toda essa matéria somam-se os inextricáveis relatos dos sonhos, os seus e os de outros homens que sonharam. Tudo isso irá compor um inesgotável – por ser incompleto – inventário de “lembranças possíveis (e impossíveis) de todas as coisas vistas, lidas, experimentadas e imaginadas ao longo de uma vida” (MACIEL, 2004, p. 13).

Como Funes, o memorioso Borges teve que encontrar um modo de conviver com essa desmedida capacidade de apreensão. No caso da criatura, a imobilidade das sombras foi, talvez, a única e precária forma de sobrevivência. No caso do criador, a extrema mobilidade, a errância interminável, acabou por se constituir numa forma de mobilizar essa memória universal, esse aterrador patrimônio do qual se apropriou desde muito cedo, no contato maravilhado com as grandes enciclopédias.

Como ele mesmo conta, em outro relato, em criança, ia à Biblioteca Nacional com o pai, e escolhia, ao acaso, um volume da Britannica ou da Brockhous ou, ainda, de Meyer (BORGES, 2000, p. 311-23). O hábito da infância iria se tornar, ao que parece, uma condição mesma da existência do escritor. As enciclopédias que fascinavam o menino seriam multiplicadas ao infinito na vida adulta. E talvez essa seja a imagem capaz de sintetizar a obra borgeana. É provável que esse contato precoce com os propósitos de exaurir o mundo pela catalogação, enumeração, organização, ordenação, tenham definido o destino do Borges escritor. O olhar infantil – assim como aquele que Ávila nomeia de “o olhar latino-americano” – parece ser capaz de parodiar e subverter o modelo, neutralizando sua força devastadora.

A obra enciclopédica de Borges é, assim, de uma outra ordem, e propõe-se um movimento inverso ao dos seus volumes da infância: ao contrário do arquivamento exaustivo de todas as lembranças, o texto borgeano busca fazê-las permutar continuamente no tempo e

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no espaço. Somente esse movimento, que, ao final, é um persistente exercício de esquecimento, pode fazer surgir das sombras da memória, ou das prateleiras, um mundo que se renova a cada instante. É nessa relação com as coisas do mundo – ou com “a memória das coisas” –, com a vida, que podemos ter uma idéia do que é capaz de processar a literatura, pelo menos a literatura de Borges:

Sempre senti que meu destino era, antes de mais nada, um destino literário; ou seja, que me aconteceriam muitas coisas ruins e algumas coisas boas. Mas eu sempre soube que tudo isso acabaria transformando-se em palavras, principalmente as coisas ruins, já que a felicidade não precisa ser transmutada: a felicidade é seu próprio fim. (BORGES, 2000, p. 318).

Trata-se, então, de um apropriar-se de todas as coisas do mundo – o conhecido e o por descobrir –, como se não existissem fronteiras, limites, territórios proibidos. E, depois, deixá-las escoar por entre os dedos, como a areia do deserto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ÁVILA, Myriam. Peripatografias – considerações sobre o motivo da viagem na literatura latino-americana contemporânea, a partir de Héctor Libertella. In: MACIEL, Maria Esther; ÁVILA, Myriam; OLIVEIRA, Paulo Motta (Org.). América em movimento. Ensaios sobre literatura latino-americana do século XX. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.

BORGES, Jorge Luis. Obras completas de Jorge Luis Borges. Volume III. São Paulo: Globo, 2000.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COLOMBO, Fauto. Os arquivos imperfeitos. Trad. Beatriz Borges. São Paulo: Perspectiva, 1991. (Coleção Debates, D243).

HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004.

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SANTOS, Luis Alberto Brandão. Atlas do tempo. In: Maciel, Maria Esther; Marques, Reinaldo (Org.). Borges em dez textos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da

Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (PósLit/FALE/UFMG).

Professora Orientadora: Lyslei de Souza Nascimento. 1 Segundo a Encyclopaedia Britannica (versão eletrônica, 1991), existem inúmeros

mapas produzidos na Antigüidade, entre os quais, um exemplar de origem bastante remota (cerca de 2500/3000 a.C.), que se encontra, atualmente, no Museu Semítico da Universidade de Harvard, em Cambridge (EUA); gravado em pedra argilosa, foi achado na região de Ga-Sur (Mesopotâmia).

2 Essa interpretação é possível se considerarmos a inclusão do Atlas de Borges numa certa tradição literária que se contrapõe a uma “literatura oficial, de encômio e prestação de contas à metrópole”. Nessa “literatura oficial”, produzida principalmente (mas não apenas) no período colonial, por viajantes europeus, a pretensa exatidão (inclusive iconográfica) dos relatos servia, talvez, a uma necessidade de apropriação/incorporação do outro pelo imaginário do “descobridor”. A literatura latino-americana contemporânea, no que diz respeito à experiência em “terras alheias”, seria, então, uma forma de estranhamento ou paródia desses relatos, fazendo-se marcar “pela errância que faz da viagem sua metáfora por excelência”. Ver, nesse sentido, o ensaio de Myriam Ávila (1999, p. 113-128) sobre Héctor Libertella.

3 Ao que parece, numa operação muito sutil, Borges cogita uma outra direção para a relação entre o Criador e suas criaturas: ele lembra que alguns chineses pensaram “e continuam pensando que cada coisa nova que há na terra projeta seu arquétipo no céu” (2000, p. 475). A anterioridade das coisas da terra ao sonho divino recoloca a questão e, numa irônica inversão, o “grande brioche” do relato borgeano seria o Arquétipo, aproveitado, agora, para fazer parte do sonho de Deus.

4 É útil, aqui, a reflexão de Fausto Colombo (1991) sobre a falibilidade dos mecanismos de arquivamento desenvolvidos pela humanidade ao longo do tempo.