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REVISTA DE

DIREITO FINANCEIRO

E DOS

MERCADOS DE

CAPITAIS

1 RDFMC (2019)

Diretor: A. Barreto Menezes Cordeiro

Fevereiro de 2019Edição gratuita

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Revista de Direito Financeiro e dos Mercados de Capitais

1 RDFMC (2019)

Diretor

A. Barreto Menezes Cordeiro

Comissão de Redação

A. Barreto Menezes Cordeiro Ana Perestrelo de Oliveira Filipe Albuquerque Matos Margarida Lima Rego Paulo Câmara

Comissão Científi ca

António Menezes Cordeiro António Pedro FerreiraAntónio Pinto MonteiroArmindo Saraiva MatiasCarlos Ferreira de Almeida Carlos Osório de Castro Fernando Gravato Morais Frederico Lacerda da Costa Pinto Gabriela Figueiredo Dias Luís Menezes LeitãoLuís MoraisJanuário da Costa Gomes Jorge Brito PereiraManuel Carneiro da Frada Miguel Pestana de VasconcelosPaula Costa e Silva Paulo Mota PintoPaulo Olavo Cunha Pedro MaiaPedro Romano Martinez Rui Pinto Duarte

Comissão Executiva

Dinis Braz Teixeira Joana Costa Lopes Maria Leonor Ruivo

Paginação

Jorge Neves

Proprietária

Blook, Lda.NIPC: 513 900 276

Sócios

Pedro Francisco Bugalho Lacerda (50%)António Barreto Menezes Cordeiro (50%)

Registo ERC

127257

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ÍNDICE

Os deveres de adequação dos intermediários fi nanceiros à luz da DMIF II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1

A. Barreto Menezes Cordeiro, LLM

A admissibilidade da alienação em garantia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Gonçalo Albuquerque

Notas sobre o Anteprojeto de Transposição da Nova Diretiva dos Diretos dos Acionistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

António Garcia Rolo

Súmula Jurisprudencial (nov. e dez. 2018) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

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Os deveres de adequação dos intermediários

fi nanceiros à luz da DMIF II

The assessment of suitability under MiFID II

RESUMO: O dever de adequação surge, com a DMIF II, desdobrado em três regimes distintos, consoante os serviços efetivamente prestados: (i) dever de adequação nos serviços de consultoria de investimento e de gestão de cartei-ras; (ii) dever de adequação nos demais serviços fi nanceiros, incluindo os ser-viços auxiliares; e (iii) dever de adequação na execução, receção e transmissão de ordens.

Palavras-chave: (i) intermediário fi nanceiro; (ii) dever de adequação; (iii) dever de lealdade

ABSTRACT: With MiFID II, the assessment of suitability now breaks down into three distinct legal frameworks depending on the particular services provides: the assessment of suitability in investment advice and portfolio management services; (ii) the assessment of suitability in other fi nancial services, including ancillary services; and (iii) the assessment of suitability in executing, receiving and transmitting orders. Key words: (i) fi nancial intermediaries; (ii) suitability rule; (iii) duty of loyalty

PROF. DOUTOR A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, LLM*

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Europeia. Investigador do Centro de Investigação de Direito Privado

* [email protected]

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SUMÁRIO: 1. Enquadramento dogmático e sistemático. 2. As origens do dever de adequação. 3. Fontes europeias e nacionais. 4. Sistematização do dever de adequação. 5. O dever de adequação em sentido amplo. 6. O dever de se infor-mar. 7. O dever de adequação em sentido estrito. 8. Outros serviços de inves-timento. 9. A execução, a receção e a transmissão de ordens. 10. Relatórios de adequação. Bibliografi a.

1. Enquadramento dogmático e sistemático

I. Nos termos do artigo 24.º/1 da Diretiva 2014/65/UE, de 15 de maio1 (DMIF II), devem as empresas de investimento atuar “de forma honesta, equitativa2 e profi ssional, em função dos interesses dos clientes”. Esta disposição, que encontra no artigo 304.º do CVM a sua correspondência interna, é herdeira do artigo 11.º/1 da Dire-tiva 93/22/CEE, de 10 de maio (DSI)3, e do artigo 19.º/1 da Diretiva 2004/39/CE, de 21 de abril (DMIF I)4.

II. A obrigação de atuar no interesse dos clientes marca o ritmo e o conteúdo dos vários deveres concretos assumidos pelos interme-diários fi nanceiros, maxime, os deveres de informação e de adequa-ção, artigos 24.º e 25.º da DMIF II, respetivamente. Nestes termos, o dever de atuar no interesse dos clientes assume um papel nuclear na construção do regime jurídico da intermediação fi nanceira.

Também numa perspetiva interna, ou seja, no âmbito da relação existente entre os intermediários fi nanceiros e os investidores5, o dever de atuar no interesse destes benefi ciários assume um papel

1 Relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros. 2 A expressão equitativa não só se mostra desadequada, em face da ratio que subjaz ao preceito, como tende a desconsiderar a linguagem jurídico-científi ca portuguesa. Melhor seria ter sido empregue a expressão legal. Essa mesma era já utilizada no artigo 19.º/1 da Diretiva 2004/39/CE, de 21 de abril (DMIF I). 3 Relativa aos serviços de investimento no domínio dos valores mobiliários. 4 Relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros. 5 Quanto aos vários sentidos e dimensões assumidos pelo conceito de relação de intermedia-ção fi nanceira, veja-se Carlos Ferreira de Almeida, Relação de clientela na intermediação de valores mobiliários, 3 DVM (2001), 121-136.

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nuclear. É, de resto, este dever6 que permite reconduzir esta relação ao universo fi duciário7.

III. O dever de atuar no interesse do cliente8, com toda a carga jurídica e social associada, corresponde, na prática, ao mais conhe-cido dever de lealdade9.

O dever de lealdade, por sua vez, distingue-se em dever de leal-dade positivo e dever de lealdade negativo10. O primeiro impõe ao intermediário fi nanceiro a obrigação de atuar no melhor interesse do cliente11, concretizando-se o segundo na obrigação de não colocar os interesses próprios ou os interesses de terceiros à frente dos inte-resses do cliente.

O dever de lealdade negativo materializa-se, por exemplo, nos vários deveres relativos a confl itos de interesses12 e na proibição de obtenção de benefícios ilegítimos13. O dever de lealdade positivo materializa-se, por seu lado e a título exemplifi cativo, no dever de adequação.

6 Na realidade, a dimensão fi duciária da relação manifesta-se em inúmeros preceitos do nosso CVM: A. Barreto Menezes Cordeiro, Manual de Direito dos valores mobiliários, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2018), 282-283: apanhado completo dos vários preceitos em que essa dimensão surge espelhada. 7 Para além de Barreto Menezes Cordeiro, Manual cit., 282 ss e das várias referências bibliográfi cas aí mencionadas, veja-se o mais recente estudo de Luca Enriques/Matteo Gargantini, The Expanding Boundaries of MiFID’s Duty to Act in the Client’s Best Interest: The Italian Case, 3 Ital L J (2017), 485-510. 8 Não se nega, naturalmente, que o dever de atuar no interesse de outrem não é um corolário único das relações fi duciárias. Contudo, é no seio destas últimas que a expressão assume uma dimensão única. 9 Sobre o dever de lealdade nas relações fi duciária: A. Barreto Menezes Cordeiro, Do trust no Direito civil, Almedina: Coimbra (2014), 519 ss; e, especifi camente, na relação de inter-mediação: Barreto Menezes Cordeiro, Manual cit., 296 ss.10 Barreto Menezes Cordeiro, Manual cit., 298 ss. 11 P. ex.: artigo 304.º/1 ou artigo 326.º/1, a), ambos do CVM.12 P. ex.: artigo 309.º/3 ou artigo 347.º, ambos do CVM.13 P. ex.: artigo 313.º/1 do CVM.

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2. As origens do dever de adequação

I. As origens do dever de adequação são, tradicionalmente, encontradas na suitability rule estado-unidense14.

Em 1938, o Maloney Act introduziu um novo preceito no Securi-ties Exchange Act, 193415 – a s. 15A. A sua positivação visou pro-mover a criação de uma associação que autorregulasse as ativi-dades desenvolvidas pelos brokers e pelos dealers. Deu-se, assim, um primeiro passo16, no sentido da regulação mais efetiva destas atividades de intermediação fi nanceira17. Foi neste contexto que se constituiu a National Association of Securities Dealers (NASD)18 – hoje

Financial Industry Regulatory Authotity (FIRNA)19. Em 1939, a NASD publica as suas primeiras Rules of Fair Prac-

tice20. É no Article III, section 2, destas Rules que iremos encontrar

14 Entre nós: Paulo Câmara, Manual de Direito dos valores mobiliário, 3.ª ed., Almedina: Coimbra (2016), 410 ss.15 O Direito dos valores mobiliários contemporâneo formou-se no pós-Grande Depressão, com a entrada em vigor dos seus dois mais célebres diplomas: o Securities Act, 1933 e o Securi-ties Exchange Act, 1934. Sobre a evolução do Direito mobiliário estado-unidense: A. Bar-reto Menezes Cordeiro, Direito dos valores mobiliários, I, Almedina: Coimbra (2015), 70 ss. 16 Sobre o Direito aplicável aos intermediários fi nanceiros antes da entrada em vigor do Securities Exchange Act, 1934: Cheryl Goss Weiss, A Review of the Historic Foundations of Broker-Dealer Liability for Breach of Fiduciary Duty, 23 J Corp L (1997), 65-119, 72 ss.17 Anónimo, Over-the Counter Trading and the Maloney Act, 48 Yale (1939), 633-649; Tamar Hed-Hofmann, The Maloney Act Experiment, 6 BCL Rev (1965), 187-218; Richard W. Jen-nings, Self-Regulation in the Securities Industry: The Role of the Securities and Exchange Commission Securities Regulation, 29 Law & Contemp Probs (1964), 663-690.18 Sobre as origens, história e propósito da NASD, vide, como ponto de partida: Paul S. Grant, The National Association of Securities Dealers: Its Origins and Operation, Wis L Rev (1942), 597-609; Thomas B Rutter, The National Association of Securities Dealers: Continuing Government-Industry Cooperative Regulation in the Over-the Counter Securi-ties Industry, 7 Vill L Rev (1962), 611-655.19 Em 2007, foi promovida a fusão entre a NASD e a dimensão regulatória da New York Stock Exchange (NYSE), dando origem à Financial Industry Regulatory Authotity: Chris-topher W. Cole, Financial Industry Regulatory Authority (FINRA): Is the Consolidation of NASD and the Regulatory Arm of NYSE a Bull or a Bear for U.S. Capital Markets?, UMKC L Rev (2007), 251-271.20 Estas rules tiveram como fonte inspiradora o Code of Fair Competition for Investment Bankers (1933).

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a primeira referência a um dever de adequação, na esfera jurídica dos intermediários fi nanceiros – a famosa suitability rule21:

In recommending to a customer the purchase, sale or exchange of any security, a member shall have reasonable grounds for believing that the recommendation is suitable for such customer upon the basis of the facts, if any, disclosed by such customer as to his other security holdings and as to his fi nancial situation and needs22.

II. A década de 60 do século passado trouxe importantes novi-dades. Em 1963, é publicado o Special Study of Securities Markets of the Securities and Exchange Commission23-24. Composto por mais de 3 000 páginas, o estudo cobre as mais variadas áreas do Direito dos valores mobiliários. No que ao dever de adequação respeita, o estudo elenca uma série de queixas apresentadas por clientes25, nomeadamente: a falta de conhecimento dos intermediários fi nan-ceiros em relação aos produtos que aconselham; o aconselhamento, sem a informação necessária, de valores mobiliários especulativos; ou a sugestão de compra ou de venda de produtos não adequados às características de cada cliente em concreto26.

21 Evolução histórica: Arvid E. Roach II, The Suitability Obligations of Brokers: Present Law and the Proposed Securities Code, 29 Hastings LJ (1978), 1069-1216, 1073 ss; Mat-thew P. Allen, A Lesson from History, Roosevelt to Obama – The Evolution of Broker-Dealer Regulation: From Self-Regulation, Arbitration, and Suitability to Federal Regulation, Liti-gation, and Fiduciary Duty, 5 Entrepreneurial Bus LJ (2010,) 1-96, 21 ss.22 Esta disposição permaneceu inalterada até à entrada em vigor das FINRA Rules. Atual-mente, corresponde à Rule 2111. 23 Pode ser consultado, na sua totalidade, em http://sechistorical.org/museum/papers/1960/ (consultado a 8 de dezembro de 2018).24 Byron D. Woodside, Resumé of the Report of the Special Study of Securities Markets and the Commission’s Legislative Proposals, 19 Bus Law (1994), 463-479: linhas gerais e propósi-tos subjacentes às alterações. William L. Cary, Introduction: The Special Study of Securi-ties Markets of the Securities and Exchange Commission Recent Developments in Securi-ties Regulations: The Special Study of Securities Markets, 62 Mich L Rev (1964), 557-566.25 A doutrina da época identifi cava iguais problemas: Fishman, Broker-Dealer Obligations cit., 239 ss.26 Part I, 268-270.

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O Special Study recomendava, em consequência, um controlo interno – pelos próprios intermediários fi nanceiros – e externo – pela NASD – das práticas de venda e de aconselhamento, assim como um aprofundamento do dever de adequação.

Em 1967, é dado um novo passo, com a publicação da Exchange Act rule 15b10-3:

Every nonmember broker or dealer and every associated person who recommends to a customer the purchase, sale or exchange of any security shall have reasonable grounds to believe that the recommendation is not unsuitable for such costumer on the basis of information furnished by such customer after reasonable inquiry concerning the customer’s invest-ment objectives, fi nancial situation and needs, and any other informa-tion known by such broker or dealer or associated person27. Esta disposição, por ser mais exigente do que a imposta pela

NASD28-29 – decretou deveres de informação ativos aos intermediá-rios fi nanceiros –, causou alguma fricção entre o regulador privado e a SEC30. Até este momento, a legislação estado-unidense não conhe-cia qualquer preceito que impusesse, aos intermediários fi nanceiros e mesmo que sectorialmente, o dever de se informarem sobre os recursos, necessidades e pretensões dos clientes31, apesar de a SEC já então defender essa conceção32.

III. Nas décadas que se seguiram, a suitability rule foi sendo, sucessivamente, objeto de aperfeiçoamentos e sempre no mesmo sentido: densifi cação do dever de adequação imposto aos brokers e dealers.

27 § 240.15b10-3, 32 FR 11639, 11-ago.-1967. 28 Rediker, Civil Liberty cit., 27: o novo preceito veio clarifi car algumas omissões evidentes das NASD Rules.29 Alguma doutrina da época mostrou-se crítica da autorregulação promovida pela NASD: Mundheim, Professional Responsibilities cit., 480. 30 Roach II, The Suitability Obligations cit., 1080 ss. 31 Fishman, Broker-Dealer Obligations cit., 245 ss. 32 Rediker, Civil Liberty cit., 25.

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Atualmente, e embora não se desconheça a multiplicação de fon-tes legislativas e paralegislativas, o núcleo do dever de adequação estado-unidense encontra-se previsto na FINRA rule 2111. Suitabi-lity. Atente-se ao disposto na sua alínea (a):

A member or an associated person must have a reasonable basis to believe that a recommended transaction or investment strategy invol-ving a security or securities is suitable for the customer, based on the information obtained through the reasonable diligence of the member or associated person to ascertain the customer’s investment profi le. A customer’s investment profi le includes, but is not limited to, the custo-mer’s age, other investments, fi nancial situation and needs, tax status, investment objectives, investment experience, investment time horizon, liquidity needs, risk tolerance, and any other information the customer may disclose to the member or associated person in connection with such recommendation. IV. O estudo da suitability rule no Direito estado-unidense, em

especial quando desenvolvido com propósitos comparatísticos ou mesmo legislativos, não pode ignorar as especifi cidades do modelo de intermediação fi nanceira local.

Ao contrário do que se verifi ca entre nós, onde o intermediário fi nanceiro assume um conceito congregador de múltiplas ativida-des – recorde-se, a este propósito, os extensos e esclarecedores arti-gos 289.º, 209.º e 291.º, todos do CVM –, o Direito estado-unidense não conhece uma fi gura nuclear, antes distinguindo os brokers e os dealers dos advisors. Aos primeiros, cabe executar ordens relativas a transações de instrumentos fi nanceiros33; e, aos segundos, prestar aconselhamento mobiliário34.

33 Securities Exchange Act, 1934, s. 3(4)(A): “In General.– The term “broker” means any person engaged in the business of affecting transactions in securities for the account of oth-ers”; Securites Exchange Act, 1934, s. 3(5)(A): “In General.– The term ‘‘dealer’’ means any person engaged in the business of buying and selling securities (not including security-based swaps, other than security-based swaps with or for persons that are not eligible con- tract participants) for such person’s own account through a broker or otherwise”.34 Investment Advisers Act, 1940.

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Apesar do caminho percorrido nos últimos anos, apenas os advisors são, tradicionalmente, considerados fi duciários35. Assim, quanto a estes nunca a dúvida relativa à existência ou não existên-cia de deveres de adequação se colocou: trata-se de uma decorrência lógico-jurídica do dever de atuar sempre no melhor interesse dos clientes, enquanto benefi ciários da relação. Já o mesmo não se veri-fi ca, à luz da conceção clássica, em relação aos brokers e aos dealers.

Apesar do enorme interesse em atender à realidade estado-u-nidense, em face dos seus desenvolvimentos legislativos e práticos, não podem os juristas continentais desconsiderar ter sido a suita-bility rule desenvolvida, pelo menos parcialmente, como forma de contrabalançar a não recondução dos brokers ao universo fi duciário.

3. Fontes europeias e nacionais

I. O Direito dos valores mobiliários, assim como os demais ramos do Direito fi nanceiro, está a tornar-se, do ponto de vista legislativo, um autêntico quebra-cabeças, em face da multiplicação de diplomas legislativos, nacionais e europeus, a que acrescem outros documen-tos, com uma força vinculativa nem sempre clara, da autoria da CMVM e da ESMA.

II. Do ponto de vista do Direito europeu, o artigo 25.º da DMIF II corresponde ao ponto de partida para a análise ao dever de ade-quação – com a epígrafe: Avaliação da adequação e prestação de informações aos clientes36.

O disposto neste preceito surge concretizado nos artigos 54.º ss do Regulamento Delegado (UE) 2017/565, de 26 de abril de 2016

35 Steven D. Irwin/Scott A. Lane/Carolyn W. Mendelson, Wasn’t My Broker Always Look-ing out for My Best Interests? The Road to Become a Fiduciary, 12 Duq Bus LJ (2009), 41-61; Arthur B. Laby, Fiduciary Obligations of Broker-Dealers and investment Advisers, 55 Vill L Rev (2010), 701-742; Norman S. Poser, Refl ections on the Securities Broker as a Fiduciary, 68 SMU L Rev (2015), 845-856.36 O dever de adequação é ainda tratado no artigo 26.º da DMIF II.

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(RD (UE) 2017/565)37: artigo 54.º: Avaliação da adequação e relató-rios de adequação38; artigo 55.º: Disposições comuns à avaliação da adequação39; artigo 56.º: Avaliação da adequação e obrigações rela-cionadas em matéria de manutenção e registo40; artigo 57.º: Presta-ção de serviços relativamente a instrumentos não complexos41; artigo 59.º: Obrigações de informação em relação à execução de ordens que não as relativas a gestão de carteiras42; artigo 60.º: Obrigações de informação relativamente à gestão de carteiras43; artigo 61.º: Obri-gações de informação relativamente às contrapartes elegíveis44; artigo 62.º: Obrigações adicionais de informação relativamente às transações de gestão de carteiras ou com passivos contingentes45; artigo 63.º: Declarações relativas aos instrumentos fi nanceiros ou aos fundos dos clientes46; e artigo 73.º: Manutenção de registos dos direitos e obrigações da empresa de investimento e do cliente47.

Por fi m, importa atender, ainda ao nível europeu, às Guidelines emitidas pelas ESMA48. A saber: (i) Guidelines on certain aspects of the MiFID II suitability requirements, ESMA 35-43-1163, 6-nov.-2018; (ii) Guidelines on complex debt instruments and structured deposits, ESMA/2015/1783, de 4-fev.2016, relativas ao disposto no artigo 25.º/4 da DMIF II49; e (iii) Guidelines for assessment of know-

37 Que completa a Diretiva 2014/65/UE, no que diz respeito aos requisitos em matéria de organização e às condições de exercício da atividade das empresas de investimento e aos conceitos defi nidos para efeitos da referida directiva.38 Concretização do artigo 25.º/2 da DMIF II.39 Concretização do artigo 25.º/2 e 3 da DMIF II.40 Concretização do artigo 25.º/3 e 5 da DMIF II.41 Concretização do artigo 25.º/4 da DMIF II. 42 Concretização do artigo 25.º/6 da DMIF II.43 Concretização do artigo 25.º/6 da DMIF II.44 Concretização dos artigos 24.º/4 e 25.º/6 da DMIF II.45 Concretização do artigo 25.º/6 da DMIF II.46 Concretização do artigo 25.º/6 da DMIF II.47 Concretização do artigo 25.º/5 da DMIF II.48 Sobre o valor jurídico das Guidelines, veja-se Marloes van Rijsbergen, On the Enforce-ability of EU Agencies’ Soft Law at the National Level: The Case of the European Securities and Markets Authority, 10 Utrech L Rev (2014), 116-131, 122 ss.49 A produção destas Guidelines encontrava-se prevista no artigo 25.º/10 da DMIF II.

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ledge and competence, ESMA/2015/1886, de 22-mar.-2016, revistas a 3-jan.-2017, relativas ao disposto no artigo 25.º/1 da DMIF II50.

III. Internamente, o regime jurídico do dever de adequação, pro-fundamente alterado e parcialmente esvaziado com a transposição da DMIF II, encontra-se consagrado nos artigos 314.º a 314.º-D do CVM: artigo 314.º: Princípio geral; artigo 314.º-A: Gestão de car-teiras e consultoria para investimento; e artigo 314.º-D: receção e transmissão ou execução de ordens. Os artigos 314.º-B: Conteúdo da informação necessária; e o artigo 314.º-C: Prestação de informação foram revogados com a grande reforma de 2018 – Lei n.º 35/2018, de 20 de julho – e substituídos pelo RD (UE) 2017/565.

Estas disposições são, por fi m, complementadas pelos Regula-mentos da CMVM51 aplicáveis, com destaque para o Regulamento da CMVM n.º 2/2007: Exercício de atividades de intermediação fi nanceira.

4. Sistematização do dever de adequação

I. Apesar da consolidação linguística do termo, não se trata, à luz do Direito vigente, de um conceito unitário, i.e., não existe apenas um regime jurídico ou um único dever de adequação. O conteúdo do dever de adequação irá variar consoante o serviço efetivamente prestado pelo intermediário fi nanceiro.

A DMIF II consagrou três modelos distintos: (i) dever de ade-quação nos serviços de consultoria de investimento e de gestão de carteiras52; (ii) dever de adequação nos demais serviços fi nanceiros, incluindo os serviços auxiliares53; e (iii) dever de adequação na exe-cução, receção e transmissão de ordens54.

50 A produção destas Guidelines encontrava-se prevista no artigo 25.º/9 da DMIF II.51 Sobre o valor jurídico dos Regulamentos, veja-se, Barreto Menezes Cordeiro, Direito dos valores mobiliários I, cit., 146 ss.52 Artigo 25.º/2 da DMIF II. 53 Artigo 25.º/3 da DMIF II.54 Artigo 25.º/4 da DMIF II.

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II. É no âmbito dos serviços de consultoria de investimento e de gestão de carteiras que o dever de adequação assume maior pro-fundidade. Será esta a modalidade que irá ocupar a maior parte da nossa atenção. As duas outras categorias de serviços/deveres de adequação serão objeto de análise autónoma.

5. O dever de adequação em sentido amplo

I. Do ponto de vista dogmático, o dever de adequação previsto na DMIF II não sofreu qualquer alteração de fundo, quando comparado com o modelo consagrado na DMIF I, nem é expectável que o seu núcleo seja objeto de qualquer reforma. O dever de adequação, em sentido amplo, independentemente do seu modo de concretização e das particularidades que possa pontualmente assumir, irá sempre pressupor três dimensões: (i) o dever de se informar; (ii) o dever de adequação, em sentido estrito; e (iii) o dever de prestação principal, quer seja o aconselhamento ou a gestão de carteira, fundado, preci-samente, na informação recolhida. A estas três dimensões podemos acrescentar uma quarta, de índole mais geral: (iv) dever de conhe-cer os produtos aconselhados ou geridos – de outro modo, não seria possível garantir o efetivo cumprimento do dever de adequação55.

O dever de adequação apresenta-se, como já tivemos oportuni-dade de referir, como uma concretização do dever de lealdade posi-tivo, que impõe ao intermediário fi nanceiro, enquanto fi duciário, a obrigação de atuar no melhor interesse dos seus clientes.

II. A concretização do dever de adequação, em todas as suas dimensões ou fases, assume maior complexidade sempre que o cliente seja uma pessoa coletiva, um grupo de duas ou mais pessoas ou o cliente seja representado por um representante. Em todos estes casos, importa esclarecer qual a vontade relevante, ou seja, que pes-soa singular deve ser eleita para efeitos de cumprimento do dever

55 Artigo 54/9 do do RD (UE) 2017/565 e Guidelines on certain aspects of the MiFID II sui-tability requirements, ESMA 35-43-1163, 6-nov.-2018, 49, [69]: general guideline 7.

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de adequação56. O esclarecimento deste aspeto é, numa perspetiva temporal, anterior a qualquer outra atuação, na medida em que as informações recolhidas irão depender da pessoa que efetivamente responda às questões dirigidas pelo intermediário. Embora susci-tando problemas semelhantes, estes três casos, pelas suas intrínse-cas particularidades, exigem uma abordagem distinta.

A problemática que envolve as pessoas coletivas e a represen-tação é diretamente resolvida pelo legislador europeu: a situação fi nanceira e os objetivos de investimento reportam-se à pessoa cole-tiva e ao representado; e a experiência e conhecimento ao represen-tante da pessoa coletiva ou da pessoa singular57.

III. Os casos de cotitularidade assumem maior complexidade: importa, por isso, considerar as regras mobiliárias, societárias e bancárias. O artigo 57.º do CVM, relativo à cotitularidade, remete para o regime societário, previsto no artigo 303.º do CSC: os coti-tulares de valores mobiliários exercem os direitos a eles inerentes através de um representante comum58. A nomeação do represen-tante e os efeitos das deliberações dos cotitulares segue, por remis-são do artigo 303.º/4 do CSC, o regime das sociedades por quotas, previsto nos artigos 223.º e 224.º, ambos do CSC, respetivamente59. Seguindo este critério, o processo de adequação circunscrever-se-ia à pessoa do representante.

Já para o Direito bancário – recorde-se que, por princípio, o con-trato quadro aplicável às relações bancárias e mobiliárias será o mesmo60 –, a resposta surge associada à natureza da conta cole-tiva: solidária, conjunta ou mista61. Contudo, esta distinção não

56 Artigo 54/6, § 1, do RD (UE) 2017/565.57 Artigo 54/6, § 2, do RD (UE) 2017/565; Guidelines on certain aspects cit., 46, [58]: gene-ral guideline 6. 58 Amadeu José Ferreira, Valores mobiliários escriturais: um novo modo de representação e circulação de direitos, Almedina: Coimbra (1997), 145 ss; Tiago Soares da Fonseca, CSC Anotado, coord. António Menezes Cordeiro, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2014), 862-864. 59 Pedro de Albuquerque, CSC Anotado cit., 649 ss.60 Barreto Menezes Cordeiro, Manual cit., 322-323. 61 António Menezes Cordeiro, Direito bancário, 6.ª ed., com colaboração de A. Barreto Mene-zes Cordeiro, Almedina: Coimbra (2016), 607.

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parece ser particularmente útil para a questão ora em análise, mas somente para a execução de ordens.

A solução preconizada terá sempre de partir da natureza jurí-dica da relação que se estabelece entre o intermediário fi nanceiro e os seus clientes – relação fi duciária. O facto de um dos cotitulares ser o titular principal ou primário da conta ou de assumir a posição de representante comum em nada afeta a relação existente com os demais clientes. Isso mesmo é sublinhado pelo legislador nacional, no artigo 309.º/3 do CVM: “em situação de confl ito de interesses, o intermediário deve agir por forma a assegurar aos seus clientes um tratamento transparente e equitativo”. A este elemento, que pode-mos designar de teleológico, acresce um outro de natureza sistemá-tica: a solução positivada, para as pessoas coletivas e para situações de representação, na 2.ª parte do artigo 54.º/6 do RD (UE) 2017/565. Assim, e independentemente da pessoa do representante (303.º do CSC) e da relação interna existente entre os vários cotitulares, a análise do intermediário fi nanceiro deve reportar-se a todos os titulares, para efeitos de preenchimento da situação fi nanceira dos clientes e dos objetivos por estes prosseguidos. Somente em rela-ção à experiência e conhecimentos apenas deverá ser considerada a pessoa que efetivamente tem poderes de decisão. E mesmo neste caso, não vemos como não aplicar o disposto no artigo 55.º/3 do RD (UE) 2017/565: “salvo se tiver conhecimento, ou devesse ter conheci-mento, de que as informações estão manifestamente desatualizadas ou são inexatas ou incompletas”62.

IV. Os contornos do dever de adequação encontram-se ainda dependentes da qualidade do cliente: profi ssional e não profi ssio-nal63. Conquanto esta distinção não afete o núcleo dos deveres assu-midos pelos intermediários fi nanceiros, a sua concretização tenderá, no cumprimento do dever de adequação, a ser distinta. Assume, por princípio, uma maior fl exibilidade no âmbito das relações com

62 Artigo 55.º/3 do RD (UE) 2017/565. 63 Artigo 4.º/1, 10) e 11) da DMIF II; Guidelines on certain aspects cit., 42, [40].

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investidores profi ssionais – p. ex.: artigo 25.º/6 da DMIF II, artigo 54.º/3, 6 e 12, e artigo 56.º/1 do RD (UE) 2017/56564.

V. O dever de adequação, assim como todos os deveres dos inter-mediários fi nanceiros, não é afetado, no seu núcleo, pelo facto de o serviço ser prestado através de um sistema automatizado ou semiautomatizado: trata-se de uma decorrência lógico-jurídica direta do modelo de intermediação fi nanceira vigente em Portugal e, pelo menos, em todo o demais espaço da União Europeia. Inde-pendentemente da natureza em concreto assumida – tradicional ou robótica –, apenas os intermediários fi nanceiros devidamente auto-rizados pela autoridade competente e com registo prévio junto da CMVM podem aconselhar, a título profi ssional, operações relativas a instrumentos fi nanceiros, artigo 295.º/1 do CVM.

Reconheça-se, todavia, que a especifi cidade da denominada con-sultoria robótica impõe aos intermediários fi nanceiros um conjunto alargado de deveres de informação, nomeadamente no que respeita ao processo de aconselhamento informatizado e ao grau de inter-venção humana65.

VI. Os últimos anos têm demonstrado que o cumprimento dos deveres (específi cos) detidos para com cada um dos clientes indivi-dualmente é acautelado através da imposição de deveres (genéri-cos) de organização interna. É à luz deste pressuposto que o artigo 25.º/1 da DMIF II exige, aos intermediários fi nanceiros, o dever de garantir que os seus funcionários possuem os conhecimentos e as competências indispensáveis ao cumprimento de todos os seus deveres, nomeadamente o dever de adequação66.

64 Guidelines on certain aspects cit., 42, [41].65 Guidelines on certain aspects cit., 36, [20]-[21].66 Considerando 79. Trata-se, ainda, de uma concretização do disposto no artigo 16.º/2 da DMIF II. Guidelines on certain aspects cit., 57, [96]: general guideline 11.

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6. O dever de se informar

I. Nos termos do disposto no artigo 25.º/2 da DMIF II, o interme-diário fi nanceiro deve obter, em relação aos seus clientes ou poten-ciais clientes e no âmbito da consultoria para investimento ou de gestão de carteiras, a informação necessária relativa: (i) aos conhe-cimentos e experiência do cliente em matéria de investimento, em relação ao produtos ou serviço em questão e aos riscos associados67; (ii) à sua situação fi nanceira, incluindo a capacidade de suportar os riscos e perdas associadas68; e (iii) aos objetivos fi nanceiros prosse-guidos, o que inclui, necessariamente, a sua tolerância ao risco69. Trata-se de uma lista meramente exemplifi cativa e variável, con-soante o serviço prestado, os instrumentos fi nanceiros envolvidos, a natureza e características do cliente e demais elementos do caso concreto (princípio da proporcionalidade)70. Uma interpretação inversa traduziria uma desconsideração do dever, assumido por todos os intermediários, de atuar sempre no melhor interesse dos seus clientes. Isso mesmo resulta do disposto no artigo 54.º/2 do RD (UE) 2017/565.

Cabe ao intermediário fi nanceiro, nos termos do artigo 54.º/1 do RD (UE) 2017/565, informar os clientes, potenciais ou efetivos e de forma clara e simples, que este procedimento visa a prossecução dos seus melhores interesses71.

67 Estando em causa um cliente profi ssional, pode o intermediário fi nanceiro presumir que este tem o nível de conhecimentos e experiência necessários: artigo 54.º/3 do RD (UE) 2017/565. Trata-se, naturalmente, de uma presunção ilidível. Esta matéria terá sempre de ser analisada à luz do dever de diligência máximo.68 O intermediário fi nanceiro pode presumir, sempre que esteja em causa um cliente profi s-sional abrangido pelo anexo II, secção I, da Diretiva 2014/65/UE, que este tem a capacidade fi nanceira para suportar quaisquer riscos. Veja-se o disposto na nota anterior. 69 Artigo 54.º/2 do RD (UE) 2017/565: identifi ca estas mesmas três dimensões. 70 Artigo 54.º/2, artigo 54.º/9 e artigo 55.º/1, todos do RD (UE) 2017/565. O princípio da proporcionalidade resulta, de resto, de uma leitura integrada do diploma. Guidelines on certain aspects cit., 40, [33]: general guideline 3. 71 Guidelines on certain aspects cit., 33, [15]: general guideline 1.

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II. As informações a recolher pelos intermediários fi nanceiros surgem densifi cadas no RD (UE) 2017/565 e nas Guidelines on cer-tain aspects of the MiFID II suitability requirements.

Ao analisar os conhecimentos e a experiência dos clientes ou potenciais clientes, importa considerar, sempre à luz dos factos con-cretos e a título meramente exemplifi cativo: (i) os tipos de serviços, transações e instrumentos fi nanceiros com que está familiarizado; (ii) a natureza, o volume e a frequência das transações com ins-trumentos fi nanceiros e o período durante o qual foram realiza-das; e (iii) o nível de habilitações, a profi ssão ou anterior profi ssão relevante72.

A situação fi nanceira do cliente inclui: (i) informação sobre a fonte e dimensão dos seus rendimentos regulares; (ii) os seus ati-vos e investimentos, independentemente da sua natureza; (iii) os seus compromissos fi nanceiros periódicos; ou (iv) a necessidade de liquidez73.

Em relação aos objetivos fi nanceiros prosseguidos, deve o inter-mediário fi nanceiro atender, sempre que se mostre relevante: (i) ao período de tempo do investimento; (ii) às suas preferências quanto ao risco; (iii) ao seu perfi l de risco; e (iv) aos objetivos, numa aceção mais direta, do investimento74.

Para além desta informação, outros elementos deverão ser reco-lhidos, nomeadamente informação pessoal: (i) a idade do cliente; (ii) o seu estado civil; (iii) a sua situação familiar; ou (iv) a sua situação laboral75.

III. Ao intermediário fi nanceiro não basta coligir a informação. Cabe-lhe, ainda, garantir a fi abilidade da informação recolhida. O artigo 54.º/7 do RD (UE) 2017/565 elenca, sempre a título exemplifi -cativo, que procedimentos devem ser seguidos: (i) assegurar que os clientes estão cientes da importância de prestar informações exatas e atualizadas; (ii) assegurar que todos os procedimentos que envol-

72 Artigo 55.º/1 do RD (UE) 2017/565.73 Artigo 54.º/4 do RD (UE) 2017/565.74 Artigo 54.º/5 do RD (UE) 2017/565.75 Guidelines on certain aspects cit., 38, [27].

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vem a execução do dever de adequação são apropriados; (iii) asse-gurar que as perguntas utilizadas neste processo são passíveis de serem compreendidas pelos clientes e se adequam aos propósitos subjacentes; e (iv) assegurar a coerência das informações prestadas pelos clientes76.

Cumpridos todos estes deveres, pode o intermediário fi nanceiro confi ar nas informações reunidas junto dos seus clientes, “salvo se tiver conhecimento, ou devesse ter conhecimento, de que as infor-mações estão manifestamente desatualizadas ou são inexatas ou incompletas”77. Trata-se, não apenas de uma decorrência lógica da dimensão fi duciária dos intermediários fi nanceiros e do dever de (elevada) diligência, como da presença constante da boa-fé – neste caso, boa-fé subjetiva ética.

7. O dever de adequação em sentido estrito

I. Após recolher todas as informações necessárias, de forma a reconhecer o perfi l do cliente – de cada cliente individualmente –, segue-se uma nova fase: identifi car o instrumento fi nanceiro – consultoria – ou a decisão de gestão – gestão de carteiras – mais adequado.

Também neste ponto devem ser consideradas as três dimensões já acima identifi cadas: (i) conhecimentos e experiência; (ii) situação fi nanceira; e (iii) objetivos fi nanceiros prosseguidos78. A estes ele-mentos nucleares acrescem todos os demais que sejam necessários, à luz dos factos concretos. A título de exemplo, refi ra-se o disposto no artigo 54.º/11 do RD (UE) 2017/565, que manda atender, sempre que o aconselhamento ou a decisão de gestão impliquem uma mudança de investimentos, aos benefícios e custos envolvidos nesse processo79.

Numa perspetiva negativa, o intermediário fi nanceiro não pode, naturalmente, aconselhar ou tomar decisões de gestão quando a

76 Guidelines on certain aspects cit., 43 [44]: general guideline 4. 77 Artigo 55.º/3 do RD (UE) 2017/565. 78 Artigo 25.º/2 da DMIF II. 79 Guidelines on certain aspects cit., 55, [88]: general guideline 10.

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informação recolhida seja insufi ciente80 ou quando nenhum dos ins-trumentos disponíveis se adeque ao seu perfi l81.

II. Não é clara qual a natureza jurídica do dever de adequa-ção: consubstanciará uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultados82? Em princípio será de resultados, ou seja, não se exige que o intermediário fi nanceiro identifi que, de entre os incontáveis instrumentos fi nanceiros existentes, o mais adequado, mas apenas que desenvolva todos os esforços nesse sentido83. As variáveis envol-vidas no processo, a irracionalidade dos próprios mercados fi nan-ceiros e a confi ança que o intermediário pode, legitimamente, colo-car nas informações disponibilizadas pelo cliente84 apontam nesse sentido. Contudo, e apesar de se tratar de uma obrigação de meios, a atuação que se espera dos intermediários fi nanceiros – dever de diligência máximo e dever de lealdade positivo – difi cilmente se coa-duna com um aconselhamento ou uma tomada de decisão que não sejam efetivamente os mais adequados entre todos os que se encon-tram disponíveis.

III. No âmbito da prestação de serviços de consultoria, deve o intermediário fi nanceiro facultar aos clientes não profi ssionais um relatório que inclua um resumo do aconselhamento prestado, bem como a adequação desse aconselhamento ao cliente em concreto85. O intermediário fi nanceiro deve igualmente informar o cliente não profi ssional da possibilidade de essa avaliação ser objeto de revisão periódica, a seu pedido86. Este elemento deve constar do relatório de aconselhamento87.

80 Artigo 54.º/8 do RD (UE) 2017/565.81 Artigo 54.º/10 do RD (UE) 2017/565.82 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito civil, VI, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2012), 477 ss.83 O artigo 55.º/10 do RD (UE) 2017/565 aponta, igualmente, nesse sentido. 84 Artigo 55.º/3 do RD (UE) 2017/565. Veja-se, ainda, o ponto 5/III. 85 Artigo 54.º/12, § 1, do RD (UE) 2017/565. Veja-se, ainda, o Considerando 82 da DMIF II. 86 Artigo 54.º/12, § 2, do RD (UE) 2017/565; Guidelines on certain aspects cit., 50, [52]: general guideline 5.87 Artigo 54.º/12, § 2, do RD (UE) 2017/565.

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8. Outros serviços de investimento

I. O regime jurídico positivado no artigo 25.º/3 da DMIF II cor-responde ao regime subsidiário do dever de adequação, aplicando-se a todos os serviços de investimento e serviços auxiliares que não sejam consultoria para investimento, gestão de carteiras ou a exe-cução, transmissão e receção de ordens88.

II. Ao intermediário fi nanceiro cabe recolher informações rela-tivas aos conhecimentos e à experiência no que respeita ao tipo específi co de produto ou de serviço oferecido ou solicitado89. Esta avaliação permite avaliar os riscos envolvidos neste processo90. O sistema não impõe que se averigue a situação fi nanceira ou os objetivos prosseguidos

A esse propósito e sempre à luz do princípio da proporcionali-dade, importa recolher os seguintes dados: (i) os tipos de serviços, transações e instrumentos fi nanceiros com que está familiarizado; (ii) a natureza, o volume e a frequência das transações com instru-mentos fi nanceiros e o período durante o qual foram realizadas; e (iii) o nível de habilitações, a profi ssão ou anterior profi ssão relevante91. Também aqui, pode o intermediário confi ar nas informações reco-lhidas, “salvo se tiver conhecimento, ou devesse ter conhecimento, de que as informações estão manifestamente desatualizadas ou são inexatas ou incompletas”92.

Os intermediários fi nanceiros podem, ainda, presumir que os clientes profi ssionais têm os conhecimentos e a experiência neces-sárias para avaliar os riscos associados ao serviço prestado93. A esta

88 Anexo I, Secção A (Serviços e atividade de investimento) e Secção B (serviços auxiliares). De fora fi cam, naturalmente, as atividades de investimento em sentido estrito: negociação por conta própria, exploração de MTF ou exploração de OTF, em que não é prestado qual-quer serviço, na aceção técnica do termo. Para a distinção entre serviço de investimento e atividade de investimento em sentido estrito, veja-se: Barreto Menezes Cordeiro, Manual cit., 264 ss.89 Artigo 25.º/3 da DMIF II. 90 Artigo 56.º/1 do RD (UE) 2017/565. 91 Artigo 55.º/1 do RD (UE) 2017/565.92 Artigo 55.º/3 do RD (UE) 2017/565. 93 Artigo 56.º/1, § 1, do RD (UE) 2017/565.

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presunção aplica-se o disposto no artigo 55.º/3 do RD (UE) 2017/565, supra citado.

II. Os intermediários fi nanceiros devem manter registos relati-vos a todas as avaliações de adequação realizadas94. Estes registos devem conter, para além dos resultados da avaliação per se, os avi-sos transmitidos pelo intermediário fi nanceiro aos seus clientes, nos termos das alíneas b) e c) do artigo 56.º/2 do RD (UE) 2017/565.

9. A execução, a receção e a transmissão de ordens

I. O artigo 25.º/4 da DMIF II consagra um regime jurídico sim-plifi cado, que dispensa o intermediário do processo previsto para a consultoria/gestão de carteiras (artigo 25.º/2 da DMIF II) e para os demais serviços de investimento (artigo 25.º/3 da DMIF II). A sua aplicação encontra-se dependente da verifi cação de quatro condições: (i) os serviços referirem-se a instrumentos fi nanceiros não complexos95; (ii) o serviço ser prestado por iniciativa do cliente ou potencial cliente96; (iii) o cliente ter sido informado de que, neste tipo de serviço, o intermediário fi nanceiro não é obrigado a deter-minar a adequação ou a não adequação do produto ou do serviço

94 Artigo 56.º/2 do RD (UE) 2017/565. Guidelines on certain aspects cit., 58, [101]: general guideline 12. 95 Para além da lista elencada na alínea a) do artigo 25.º/4 da DMIF II, veja-se o artigo 57.º do RD (UE) 2017/565 e, com uma força jurídico-legal distinta, as ESMA, Guidelines on complex debt instruments and structured deposits, ESMA/2015/1787, de 4-fev.-201696 Considerando 85 da DMIF II: “Um serviço será considerado como prestado por iniciativa de um cliente, a menos que o cliente o solicite em resposta a uma comunicação personali-zada enviada pela empresa ou em nome desta, a esse cliente específi co, que contenha uma proposta ou se destine a infl uenciar o cliente relativamente a um instrumento fi nanceiro específi co ou a uma transação específi ca. Um serviço pode ser considerado como prestado por iniciativa de um cliente, não obstante o facto de esse cliente o ter solicitado com base numa comunicação que contenha uma promoção ou oferta de instrumentos fi nanceiros, qualquer que seja a forma por que for feita, se, pela sua própria natureza, essa comuni-cação for geral e dirigida ao público ou a um grupo ou categoria mais vasto de clientes ou potenciais clientes”.

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prestado e de que, em consequência, não irá benefi ciar da proteção associada; e (iv) o cumprimento, pelo intermediário fi nanceiro, das regras relativas aos confl itos de interesses, artigo 23.º da DMIF II.

II. A execução, a receção e a transmissão de ordens, quando envol-vam a concessão de créditos ou de empréstimos aos clientes, estão excluídas do campo de aplicação do artigo 25.º/4, sendo-lhes aplicável o regime subsidiário, previsto no artigo 25.º/3, ambos da DMIF II.

III. Sem negar a simplifi cação inerente à prestação destes servi-ços, não podemos deixar de sublinhar que o intermediário fi nanceiro conserva, nestas situações, o núcleo dos seus deveres. O dever de lealdade positivo, amiúde referido neste estudo, impõe uma atuação que atente, constante e ininterruptamente, aos melhores interesses de cada cliente. A esse propósito, refi ra-se o disposto no, aqui apli-cável, artigo 326.º/1, a) do CVM: “O intermediário fi nanceiro deve recusar uma ordem quando seja evidente que a operação contra-ria os interesses do ordenador, salvo se este confi rmar a ordem por escrito”. O seu cumprimento encontra-se, como não poderia deixar de ser, sujeito ao dever geral de diligência máximo – artigo 304.º do CVM e 24.º/1 da DMIF II.

10. Relatórios de adequação

O disposto no artigo 25.º/6 da DMIF II exige, ao intermediário fi nanceiro, o envio, aos seus clientes, de relatórios relativos aos ser-viços prestados. Do ponto de vista do dever de adequação, ponto que aqui nos interessa97, esses relatórios devem especifi car o aconselha-mento prestado e o modo como esse aconselhamento corresponde às preferências, aos objetivos e aos demais interesses e características do cliente não profi ssional.

97 Estes relatórios assumem um campo de aplicação particularmente extenso. Vejam-se os artigos 59.º e ss. do RD (UE) 2017/565.

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Os relatórios deverão ser facultados ao cliente no momento da prestação da consultoria para investimento98 e antes de a transação ser efetuada99-100. O serviço de gestão de carteiras rege-se por idên-ticos parâmetros101.

98 O artigo 54.º/12 do RD (UE) 2017/565 esclarece qual o conteúdo a constar neste relatório. 99 Artigo 25.º/6, § 2 da DMIF II. 100 No caso de esse relatório não poder ser facultado antes da consumação da transação, pode o intermediário fi nanceiro fornecer esse documento imediatamente após esse cliente ter fi cado vinculado por qualquer acordo, artigo 25.º/6, § 3 da DMIF II.101 Artigo 25.º/6, § 4 da DMIF II.

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A admissibilidade da alienação em garantia

The enforceability of title transfer collateral arrangement

RESUMO: O objeto deste artigo pretende indagar sobre a admissibilidade do contrato de alienação em garantia no ordenamento jurídico português. Este artigo discute a validade dos contratos de alienação em garantia que não se sujeitam à regulação sobre os acordos de garantia fi nanceira prevista no Decre-to-Lei n.º 105/2004, de 8 de maio. São analisados os primeiros obstáculos à sua validade, as fi guras afi ns, a sua conexão ao negócio fi duciário e às garantias reais, a sua função e estrutura jurídica para, a fi nal, ser adotada uma posição informada sobre a validade ou invalidade do negócio.

Palavras-chave: (i) alienação em garantia; (ii) garantias reais; (iii) negócio fi duciário

ABSTRACT: The purpose of this paper is to inquire about the admissibility of title transfer collateral arrangement in the Portuguese legal system. This paper discusses the enforceability of title transfer collateral arrangement which are not subject to the regulation on fi nancial collateral arrangements provided by Decree-Law 105/2004, of 8 May. This analysis comprises the follo-wing: the fi rst obstacles to its enforceability, resembling and closest contracts, the connection to the fi ducia cum creditore and in rem collaterals, its function and legal framework and, at the end, a position is adopted regarding the vali-dity or invalidity of the contract.

DR. GONÇALO ALBUQUERQUE*

Licenciado e Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

* [email protected]

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Keywords: (i) title transfer collateral arrangement; (ii) in rem collaterals; (iii) fi ducia cum creditore

SUMÁRIO: Introdução. 1. Aproximação ao contrato de alienação em garantia. 2. Natureza jurídica da alienação em garantia: 2.1. A teoria unitária e a teoria dualista do negócio fi duciário. 2.2. A recondução do contrato a um tipo legal: 2.2.1. A propriedade reservada. 2.2.2. O penhor e a hipoteca. 2.3. Compra e venda, em especial a venda a retro. 2.3. A negação da recondução do contrato a um tipo legal: 2.3.1. A alienação em garantia, enquanto contrato indireto de venda a retro. 2.3.2. 2.3.2. A utilização da compra e venda como tipo de referência da alienação em garantia e a prevalência da analogia sobre a inte-gração contratual e interpretação complementadora. Crítica e posição adotada. 2.4. As coordenadas garantísticas da alienação em garantia. 2.4.1. A polissemia da noção jurídica de garantia. 2.4.2. Estrutura e função das garantias espe-ciais do cumprimento das obrigações. 2.5. Natureza fi duciária da alienação em garantia. Crítica. 2.6. Conclusões sobre a natureza jurídica da alienação em garantia. 3. Problemas da admissibilidade da alienação em garantia: 3.1. A proi-bição do pacto comissório. 3.2. O pacto marciano e a sua inserção no quadro dos efeitos jurídicos da situação jurídica residual. Conclusões. Bibliografi a.

Introdução

O estudo do contrato de alienação em garantia surgiu com espe-cial interesse nos últimos anos. Esta situação deveu-se à prolifera-ção dos privilégios creditórios, morosidade dos processos de insol-vência e execução, e onerosidade na constituição das garantias reais legalmente típicas. O estudo de novas fi guras jurídicas impôs-se.

Não é analisado, especifi camente, o contrato de alienação em garantia no âmbito dos acordos de garantia fi nanceira previsto no Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de maio, cujo âmbito subjetivo foi recentemente cerceado pelo art. 306.º-E do CdVM.

O texto pode dividir-se em duas partes essenciais, ainda que informalmente.

A primeira parte tem o propósito principal de analisar o con-trato de alienação em garantia procurando descobrir os elementos estruturais, determinar a função económico-social para descobrir, a

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fi nal, qual é a sua natureza jurídica (isto é, o regime jurídico que é inato à alienação em garantia quando as partes não estipulam em sentido contrário).

A segunda parte procura responder à questão que está subja-cente à realização deste artigo: saber se o contrato de alienação em garantia é admissível no ordenamento jurídico português.

Ressalvamos que para o objeto deste artigo é dispensável a dis-tinção que normalmente se faz atendendo ao objeto do contrato: ces-são de créditos em garantia e alienação em garantia. A discussão sobre a admissibilidade do contrato é transversal e as conclusões são válidas para ambos. A distinção entre direitos de crédito e direi-tos reais pode ser aproximada pelo prisma da titularidade de uma situação jurídica com vocação para oponibilidade erga omnes, isto é, observando os direitos de crédito como objetos de negócios jurídicos, ao invés de efeitos de um negócio jurídico.

A alienação em garantia ressurge num período que a doutrina qualifi ca de crise de confi ança dos credores nas garantias reais típi-cas1. A sua onerosidade, morosidade dos processos de execução e insolvência, a presença inopinada dos privilégios creditórios, os custos e a preferência dos créditos sobre a massa insolvente con-tribuem para o ressurgimento desta fi gura pela sua aptidão para não participar no concurso de credores do alienante e salvaguardar--se da penhora por parte dos credores deste durante a execução do contrato.

1. Aproximação ao contrato de alienação em garantia

A alienação em garantia é uma fi gura vetusta, já conhecida no Direito Romano. A maioria da doutrina romanista considera que é

1 Catarina Monteiro Pires, Alienação em garantia, Almedina: Coimbra (2010), 11 ss.; Isabel Andrade Matos, O pacto comissório: contributo para o estudo do âmbito da sua proibição, Almedina: Coimbra (2006), 9 ss.; Hugo Ramos Alves, Dação em cumprimento, Almedina: Coimbra (2017), 472 ss.; Rosely de Moraes Campos, Alienação fi duciária em garantia em As operações comerciais, Almedina: Coimbra (1988), 570-571.

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a mais antiga garantia real do cumprimento das obrigações2. Desig-nada por fi ducia cum creditore, consistia no ato pelo qual o devedor (ou terceiro) transmitia o direito de propriedade de uma res man-cipi para o credor, que se obrigava a restituí-la ao garante quando se verifi casse o cumprimento do crédito garantido. Coexistia um negócio transmissivo da propriedade e um negócio jurídico obriga-cional designado por pactum fi duciae, que se destinava a vincular o fi duciário na prossecução do interesse do fi duciante. Distinguia-se da fi ducia cum amico porque o fi duciante transmitia o direito de propriedade de uma res mancipi para o fi duciário para servir outros fi ns – nomeadamente, administração – no interesse do fi duciante, fi duciário ou de um terceiro3. A fi ducia cum creditore e a fi ducia cum amico estão na origem das categorias modernas que a doutrina denomina por negócios fi duciários para garantia e negócios fi duciá-rios para administração, respetivamente.

A doutrina dividiu-se relativamente à natureza jurídica da fi gura na passagem do séc. XIX para o séc. XX: surgiu, por esta altura, a distinção entre a fi dúcia romana e a fi dúcia germânica4. A distinção assentava na natureza real da situação jurídica do fi duciário. Na fi dúcia romana considerava-se que o adquirente era proprietário pleno da coisa alienada em garantia, obtendo todos os poderes e faculdades dessa situação jurídica, apenas limitado por obrigações que surgissem do pacto fi duciário5. Na fi dúcia germânica considera-va-se que o adquirente obtinha uma propriedade plena, mas sujeita a condição resolutiva se o objeto era bem imóvel, com natural efi cá-cia erga omnes, sucedendo a condição se o fi duciário transmitisse o

2 António Vieira Cura, “Fiducia cum creditore. Aspectos gerais”, sep., 34 BFDUC (1991), 150 ss..3 Sobre a fi dúcia cum creditore e a fi ducia cum amico, respetivamente, Sebastião Cruz, Direito romano (Ius Romanum). Introdução. Fontes, I, 4.ª ed., Dislivro, (1984), 242-245; Max Kaser, Direito privado romano, trad. de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle, Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa (1999), 148-149.4 A. Barreto Menezes Cordeiro, Do trust no direito civil, Almedina: Coimbra (2014), 735 e ss..5 André Figueiredo, O negócio fi duciário perante terceiros. Com aplicação especial na ges-tão de valores mobiliários, Almedina: Coimbra (2012), 40; Mário Júlio Almeida Costa, Alienação fi duciária em garantia e aquisição de casa própria: notas de direito comparado, I D&J, n.º 1, (1980), 41-57, 44.

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bem a terceiro ou se o fi m acordado deixasse de ser possível. A pro-dução dos efeitos resolutivos estava dependente do conhecimento do terceiro da natureza fi duciária da relação. Considerava-se que o terceiro sabia que adquirira um bem transmitido em virtude de uma relação fi duciária devido à publicidade na transmissão dos bens imóveis. Se a fi dúcia tivesse como objeto bens móveis, a situa-ção jurídica do fi duciário não estava sujeita a condição resolutiva, mesmo que o terceiro adquirente conhecesse a relação fi duciária, porque estes bens não estavam sujeitos a publicidade6.

A fi dúcia germânica acabou por não prevalecer, com o argumento de que uma condição resolutiva implícita na alienação em garantia não decorria da sua natureza jurídica nem do seu regime jurídico. No seu desígnio de proteção real do alienante, a fi dúcia germânica cinde a legitimidade para alienar (que pertence ao alienante) e a titularidade do direito (que pertence ao adquirente), estabelecendo a inefi cácia de uma alienação por parte do adquirente a terceiro. No Direito português, esta construção não é possível devido ao prin-cípio da tipicidade legal dos direitos reais (n.º 1 do art. 1306.º do Código Civil).

Até ao início da segunda metade do séc. XX, vários foram os argumentos encontrados pela doutrina para rejeitar a admissibili-dade do negócio fi duciário no direito português.

Seguindo um critério cronológico, o primeiro argumento resulta da frequente estruturação do contrato de alienação em garantia como compra e venda com fi m de garantia. As partes instrumentali-zam o contrato de compra e venda (cuja função económico-social é a permuta ou a troca) porque, na realidade, o contrato que realmente querem celebrar é uma compra e venda com fi m de garantia. Esta contradição, entre a causa do tipo legal da compra e venda e o fi m prosseguido pelas partes, não seria possível. A lei, quando atribui efi cácia à transmissão do bem na compra e venda, só o faz porque pressupõe a função económico-social de troca. A compra e venda

6 Barreto Menezes Cordeiro, Do trust cit., 737-738.

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com fi m de garantia só podia ser admitida nos sistemas jurídicos em que é irrelevante a demonstração da causa da atribuição7.

Esta posição é criticável por duas razões: embora a falta de causa da atribuição refl ita a inexistência do negócio jurídico causal porque a atribuição não foi realizada conforme ao Direito, seguindo esta linha de argumentação a existência do negócio jurídico não é colocada em causa por este motivo. Este argumento funda a inva-lidade do negócio jurídico na contradição entre a fi nalidade meta-jurídica do tipo legal da compra e venda (a troca) e a fi nalidade do contrato de alienação em garantia (naturalmente, a garantia). O juízo que se pode retirar da falta de correspondência pertence à teoria da qualifi cação dos contratos, devendo o intérprete concluir que não está perante uma compra e venda. A constatação que a função económico-social da compra e venda é a troca, enquanto na venda em garantia a causa-função é a garantia, não serve, per se, para fundamentar a invalidade do contrato porque é evidente a lici-tude da função económico-social de garantia.

O segundo argumento adota como paradigma a teoria dualista do negócio fi duciário e funda a invalidade no instituto da simula-ção. A transmissão da titularidade plena de um bem através de um negócio jurídico real, limitando os poderes do adquirente através de um negócio obrigacional aparenta uma certa contradição entre a vontade declarada e a vontade real. A alienação em garantia seria um negócio simulado em que as partes recorrem a um tipo cau-sal translativo previsto na lei, mas escondem um negócio jurídico obrigacional (pacto fi duciário)8. Embora, curiosamente, se note que a vontade real e a vontade declarada das partes são coincidentes.

Esta posição não pode ser aceite. O critério de distinção reside na vontade das partes9. Enquanto na simulação existe uma diver-

7 Beleza dos Santos, A simulação em direito civil, I, Coimbra Editora: Coimbra (1921), 120-123.8 Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, II, reimp., Almedina: Coimbra (1983), 176-179.9 Cariota-Ferrara, I negozi fi duciari: transferimento cessione e girata a scopo di mandato e di garanzia, CEDAM: Pádua (1933), 44.

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gência entre a vontade declarada e a vontade real, no negócio fi du-ciário a vontade declarada e a vontade real estão em sintonia.

O terceiro argumento funda a invalidade do contrato de aliena-ção em garantia no princípio da tipicidade legal dos negócios jurí-dicos com efi cácia real10. Argumentou-se que no Direito português, em princípio, não é possível transmitir um direito sem alegação da causa da atribuição. Esta posição assumia a invalidade da alie-nação em garantia porque não estava legalmente tipifi cada uma transmissão fi duciae causa.

Embora seja certo que existe um princípio da tipicidade das cau-sas transmissivas no direito português porque vigora o princípio da causalidade e da tipicidade dos direitos reais, não é possível retirar deste princípio a existência de um princípio da tipicidade dos negó-cios com efi cácia real. Esta ideia resulta com clareza do art. 939.º porque a sua aplicação assume, naturalmente, especial relevância perante contratos legalmente atípicos. A norma que permite a atipi-cidade dos negócios jurídicos com efi cácia real e que consagra o prin-cípio da consensualidade é o art. 408.º quando, em termos amplos, prevê que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as exce-ções previstas na lei” e o n.º1 do art. 401.º que consagra o princípio da liberdade contratual11.

2. Natureza jurídica da alienação em garantia

2.1. A teoria unitária e a teoria dualista do negócio fi duciário

A conceção clássica da estrutura dos negócios fi duciários – e, historicamente por inerência, da alienação em garantia – identi-fi ca dois negócios jurídicos com efeitos distintos em união de negó-cios jurídicos. Une-se um negócio jurídico obrigacional negativo – o

10 Manuel de Andrade, Teoria geral cit., II, 177.11 José de Oliveira Ascensão, A tipicidade dos direitos reais, Livraria Petrony: Lisboa (1968), 168 ss..

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pacto fi duciário – que se destina a regular os poderes e deveres do adquirente em relação aos bens transmitidos com fi m de garantia, nomeadamente constituindo-se a obrigação de restituição dos bens para o alienante, em caso de cumprimento do crédito garantido. O segundo é um negócio jurídico real positivo que opera a transmis-são de um direito de crédito ou real para o adquirente12. Esta conce-ção foi denominada por Castro y Bravo de teoria do duplo efeito13-14.

Esta teoria só pode ser verdadeiramente entendida no contexto do ressurgimento da alienação em garantia no fi nal do séc. XIX, na Alemanha. O pano de fundo da teoria do duplo efeito é o sistema jurídico alemão para a transmissão de direitos de crédito e reais. Neste sistema jurídico vigora o princípio da separação (Trennungs-prinzip) entre a causa da atribuição (negócio jurídico obrigacional) e a transmissão (negócio jurídico real). De acordo com este princípio, a transmissão da propriedade só sucede com a celebração de um negócio jurídico real. A invalidade do negócio jurídico obrigacional não prejudica a validade do negócio jurídico real abstrato (Abstrak-tionsprinzip). A transmissão do direito de propriedade opera com a entrega da coisa ou o registo, e concomitante acordo em transmitir (cfr. §929, §873BGB)15. O sistema que está subjacente ao ordena-mento jurídico alemão de transmissão de direitos é o sistema do modo16.

12 Francesco Ferrara, Della simulazione dei negozi giuridici, 3.ª ed., Società Editrice Libra-ria: Milão (1909), 57.13 Frederico de Castro y Bravo, El negocio jurídico, Editorial Civitas: Madrid, 381 ss..14 Apoiando a teoria do duplo efeito no negócio fi duciário, cfr. acórdão do REv 28-jun.-2017 (Tomé de Carvalho), proc. n.º 687/16.2T8PTG.E1 e acórdão do REv 15-dez.-2009 (Fernando Bento), proc. n.º 283/2002.E1.15 Sobre o princípio da separação (Trennungsprinzip) do negócio jurídico obrigacional rela-tivamente ao negócio jurídico real, cfr. Jens Thomas Füller, Eigenständiges Sachenrecht?, Mohr Siebeck: Tübingen (2006), 261 ss.. O princípio da abstração foi cerceado, em casos excecionais, pela construção da Fehleridentität (equivalência no erro) que sucede quando o negócio dispositivo abstrato é contaminado pelo mesmo vício do negócio obrigacional, invalidando ambos. Sobre os desvios ao princípio da abstração no Direito alemão, Füller, Eigenständiges Sachenrecht? cit.,127 ss..16 Rui Pinto Duarte, Curso de direitos reais, 3.ª ed., Principia: Cascais (2013), 59.

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No sistema português vigora o princípio do consensualismo17. Em princípio, a entrega não é necessária para operar a transmissão da coisa. O sistema para a transmissão de direitos é o sistema do título e, convencionalmente, do título e do modo (o princípio do con-sensualismo conta com numerosas exceções, desde logo, as elenca-das no n.º 2 do art. 408.º). Não se vislumbram razões quer de regime jurídico quer quanto à natureza jurídica para a complexifi cação da alienação em garantia em dois negócios jurídicos distintos, no sistema jurídico português em que a transmissão de direitos reais ocorre, por princípio, por mero efeito do contrato (n.º 1 do art. 408.º). Por analogia deve ser aplicado o mesmo preceito legal aos direitos de crédito porque existe lacuna18.

A aptidão transmissiva (ou negócio real na teoria do duplo efeito) não é um pressuposto do negócio fi duciário. Lipari classifi ca os negócios fi duciários em dinâmicos e estáticos. O negócio fi duciá-rio dinâmico pressupõe a transmissão da titularidade de um direito previamente à efi cácia da relação fi duciária, seja a transmissão protagonizada pelo fi duciante ou terceiro. Na fi dúcia estática existe apenas a assunção da obrigação pelo fi duciário de exercer a titula-ridade do direito no interesse do benefi ciário19. A conceção da teoria dualista não é sufi cientemente ampla para incluir a fi dúcia está-tica porque não consubstancia um negócio translativo. Não é razoá-vel negar a qualifi cação como negócio fi duciário à fi dúcia estática apenas porque não consubstancia uma transmissão, verifi cando-se uma atuação do fi duciário que se comprometeu a atuar no interesse

17 Por todos, sobre o princípio do consensualismo, Luís Menezes Leitão, Direito das obriga-ções, III, 12.ª ed., Almedina: Coimbra (2018), 20 ss..18 Esta posição é controversa. A doutrina divide-se quanto aos requisitos para a transmis-são do direito de crédito. Para a maioria dos autores, a transmissão dos direitos de crédito carece de dois atos: o contrato e a notifi cação ao devedor cedido. Em caso de inexistência de notifi cação, a efi cácia da cessão é circunscrita às partes porque a notifi cação é elemento necessário para a oponibilidade a terceiros. Na nossa opinião, o princípio do consensualismo aplica-se à transmissão dos direitos de crédito. Deve ser reconhecida à notifi cação um papel de tutela do devedor cedido e não notifi cado (relacionando-se com a efi cácia liberatória do cumprimento feito ao cedente), Assunção Cristas, Transmissão contratual do direito de crédito: do carácter real do direito de crédito, Almedina: Coimbra (2005), 552-566.19 Nicolò Lipari, Il negozio fi duciario, reimp. da ed. de 1966, Giuffré: Milão (1971), 153.

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e por conta do benefi ciário, em relação a determinados direitos que já integravam o seu património.

O contrato de alienação em garantia não tem a sua estrutura assente numa união de negócios jurídicos. O contrato é unitário com efi cácia real e obrigacional. A efi cácia real produz a transmissão do direito e os efeitos obrigacionais esclarecem a posição jurídica do adquirente e do alienante, conformando-a com a função de garan-tia. A teoria dualista não é um elemento caracterizador do negócio fi duciário porque a estrutura dualista ocorre em outros tipos con-tratuais no sistema alemão de transmissão de direitos de crédito e reais.

É comum a doutrina20 referir que é característica do negócio fi duciário a desproporcionalidade dos meios jurídicos que se utili-zam, face aos fi ns económicos prosseguidos (sem justifi car adequa-damente este entendimento). As partes recorrem a um contrato típico, mas excedem os propósitos do tipo contratual legal pelo fi m económico prosseguido. A teoria do duplo efeito é impressiva para, supostamente, demonstrar esta situação: o negócio jurídico real investe o fi duciário na titularidade de um direito, mas este é limi-tado na sua atuação pelo pacto fi duciário.

O fi duciante na transmissão da titularidade de um direito concederia mais poderes ao fi duciário do que aqueles que seriam necessários para o fi m prosseguido pelas partes21. Na alienação em garantia, a transmissão da titularidade de um direito excederia o fi m de garantia prosseguido pelas partes. Nas garantias reais do

20 Adriano Vaz Serra, Cessão de créditos ou de outros direitos, BMJ, número especial (1955), 157-158; Fernando Pessoa Jorge, O mandato sem representação, Almedina: Coim-bra (1961), 325; Inocêncio Galvão Telles, Manual dos contratos em geral, 4.ª ed., Coimbra Editora: Coimbra (2002), 190. Contra, Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2009), 263-267, porque pensa que o meio é necessário para o fi m em vista; Igualmente, Luís A. Carvalho Fernandes, A admissibilidade do negócio fi duciário no Direito Português em Ars Iudicandi: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, II: Direito Privado, coord. de Jorge de Figueiredo Dias/José Joaquim Gomes Canotilho/José de Faria Costa, Coimbra Editora: Coimbra (2008), 225-254, 229; Hugo Ramos Alves, Do Penhor, Almedina: Coimbra (2010), 309-310.21 Francesco Ferrara cit., 56 ss.; Emilio Betti, Teoria generale del negozio giuridico, Edi-zioni Scientifi che Italiane: Nápoles (1994), 315.

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cumprimento das obrigações previstas no Código Civil, não é neces-sário a transmissão da titularidade do direito para o credor garan-tido para satisfazer o fi m económico de garantia prosseguido pelas partes. Existiria com a transmissão da titularidade do direito um excesso de poderes (abstratos) concedidos ao adquirente em relação ao objeto da situação jurídica de garantia face ao que seria necessá-rio para garantir o cumprimento de uma obrigação.

Uma conceção unitária de negócio fi duciário concebe que as par-tes realizem um negócio jurídico com efi cácia real e obrigacional, sem se poder dizer que exista uma desproporcionalidade dos meios jurídicos utilizados em relação aos fi ns económicos pretendidos por-que a relação desenhada pelas partes corresponde, inteiramente, às suas pretensões22.

Aquela conceção23 resulta de uma ideia de sujeição do fi duciante ao risco fi duciário aparentemente inerente ao negócio fi duciário, isto é, o risco de que o fi duciário abuse dos seus poderes e não cumpra o plano obrigacional acordado24. Este risco apresenta dois corolários: risco de recusa de retransmissão do bem após cumprimento da obri-gação garantida e risco de alienação do bem a terceiros. Não se pode dizer que este risco seja privativo do negócio fi duciário e elevado a traço estruturante do negócio. O risco de não cumprimento existe em qualquer relação obrigacional. Não é elemento caracterizador do negócio fi duciário uma especial confi ança (fi ducia) do fi duciante perante o fi duciário, porque essa confi ança existe normalmente em todos os tipos contratuais em que se desenvolvam relações entre credor e devedor. O excesso dos propósitos das partes face ao meio jurídico utilizado só pode ser avaliado no plano das vicissitudes da relação obrigacional, em concreto em caso de não cumprimento do acordo.

22 Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos cit., 263 ss.; Em tema de negócio fi duciário, FDL (teses de mestrado): Lisboa (1985), 11-16.23 André Figueiredo, O negócio fi duciário perante terceiros cit., 79-82.24 Tomando o risco fi duciário como característica essencial do negócio, cfr. acórdão do STJ 25-jun.-2013 (Fonseca Ramos), proc. n.º 532/2001.L1.S1.

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2.2. A recondução do contrato a um tipo legal

A qualifi cação de um contrato como pertencente a um tipo legal tem consequências importantes na relação entre a sua parte dispo-sitiva e as normas injuntivas que o regulam. Qualifi car um contrato como pertencendo a um determinado tipo contratual legal, signifi ca reconhecer que o legislador lhe atribuiu uma regulação, servindo de base para o intérprete procurar soluções para os problemas jurídi-cos que encontre.

A qualifi cação de contratos é um juízo que procura determinar se certo contrato é regulado por um tipo contratual legal. Esse juízo faz-se por uma pré-interpretação do contrato que se pretende quali-fi car, que tem de ser comparada com o tipo contratual legal proposto para a qualifi cação, isto é, com o sentido imanente que brota do tipo contratual e o texto do negócio jurídico25.

Os tipos contratuais legais, geralmente, não têm notas essen-ciais26 que permitam fundar um juízo binário de inclusão ou exclu-são no tipo quando se verifi cam. Os tipos legais têm características (índices do tipo) que nos auxiliam na qualifi cação de um contrato, mas esses índices não necessitam de se verifi car na totalidade (nem com a mesma intensidade) para qualifi carmos um contrato como pertencendo a determinado tipo legal. As fronteiras do tipo são fl uí-das, mas têm limites. Se concluirmos que o legislador não regulou o contrato através da comparação deste com o catálogo de tipos legais disponíveis, verifi camos que o contrato em presença é legalmente atípico27.

25 Citando José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência. Análise de uma recepção, Edito-rial Fragmentos: Lisboa (1990), 187, “A «pré-compreensão» signifi ca uma antecipação de sentido do que se compreende, uma expectativa de sentido determinado pela relação do intérprete com a coisa no contexto de dada relação. A consciência da irredutibilidade da «pré-compreensão» (e a impossibilidade de um conhecimento crítico que não seja afetado por um conhecimento pré-predicativo) não signifi ca resignação à subjetividade existencial, mas é ela própria condição de «verdade»”.26 Não é pertinente explicar em detalhe a teoria dos essentialia e o valor jurídico das defi nições. Sobre a teoria dos essentialia e o valor jurídico das defi nições, Rui Pinto Duarte, Tipici-dade e atipicidade dos contratos, Almedina: Coimbra (2000), 79 ss..27 Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos cit., 165-189.

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A alienação em garantia pode ser descrita, provisoriamente, como o contrato pelo qual uma pessoa (alienante) transmite a titularidade de um direito para outra (adquirente), facultando ao adquirente o direito de liquidar os bens transmitidos em garantia e satisfazer-se com o seu montante em caso de incumprimento da obrigação garantida. Em caso de cumprimento da obrigação garan-tida o adquirente obriga-se a retransmitir o direito para o alienante. Ademais, aquele compromete-se, obrigacionalmente, em não com-prometer o fi m de garantia do contrato.

Partindo destas características, é necessário analisar os tipos legais catalogados pelo legislador para determinar se estamos na presença de um contrato legalmente típico ou atípico. Não é neces-sário realizar essa comparação com todos os tipos legais disponí-veis, mas apenas com aqueles que partilhem semelhanças com a alienação em garantia.

2.2.1. A propriedade reservada

O instituto da reserva de propriedade foi admitido, em termos amplos, pelo legislador português. A cláusula de reserva de pro-priedade pode ser estipulada em qualquer contrato de alienação, embora seja comum na prática a sua estipulação no contrato de compra e venda.

A diferença ao nível da estrutura é evidente. Na reserva de pro-priedade a titularidade do direito permanece no vendedor, na aliena-ção em garantia é atribuído ao adquirente. Quanto à execução exis-tem igualmente diferenças. Na propriedade reservada, o vendedor tem duas opções: pode permanecer na titularidade do direito, resol-vendo o contrato se o evento que desencadeia a transmissão não suce-der, e exigir a restituição da coisa. Se o evento é o cumprimento de uma obrigação pode insistir no cumprimento se tiver mais interesse nessa situação do que na resolução do contrato. Neste caso, a reserva de propriedade mantém-se até satisfação integral do credor28. A exe-

28 Maria Peralta, A posição jurídica do comprador na compra e venda com reserva de pro-priedade, Almedina: Coimbra (1990), 94.

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cução nesta situação incide, segundo o n.º 1 do art. 735.º do CPC, sobre “os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”. A coisa que é objeto da cláusula de reserva de propriedade não é meio alterna-tivo de satisfação da dívida exequenda porque o titular do direito de propriedade é o vendedor. Não é possível executar bens próprios do exequente (art. 601.º). Na alienação em garantia, o adquirente é satisfeito através do produto da liquidação do bem (cuja titulari-dade lhe pertence) a terceiro ou permanecendo na titularidade do direito. Assim, a reserva de propriedade não se compadece com a constituição de uma relação de garantia porque não é possível o credor garantido imputar o montante da liquidação dos bens que são objeto da situação jurídica de garantia à satisfação da obrigação garantida.

A propriedade reservada, pela sua estrutura, não pode servir de modelo à alienação em garantia.

2.2.2. O penhor e a hipoteca

O regime do penhor e da hipoteca têm, igualmente, diferenças estruturais consideráveis em relação à alienação em garantia. Em primeiro lugar, os primeiros constituem um direito real menor (na esfera do credor garantido) em relação à titularidade absoluta (a propriedade). Em segundo lugar, incidem sobre bens alheios ao património do credor garantido. Radicalmente distinta, a alienação em garantia incide sobre bens transmitidos ao credor garantido pelo alienante, isto é, o objeto da garantia são bens cuja titularidade per-tence ao credor garantido. Conforme veremos, existem semelhanças importantes com a estrutura das garantias reais legalmente típicas (cfr. secção 2.4.2.).

2.2.3. Compra e venda, em especial a venda a retro

Se observarmos, estruturalmente, notamos aparentemente semelhanças com a alienação em garantia. O comprador no con-

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trato de compra e venda é o adquirente na alienação em garantia. O vendedor é o alienante. O preço é um empréstimo. É estipulada uma cláusula de venda a retro cujo preço é a soma do pagamento do capital e juros do empréstimo.

Esta conceção deve ser rejeitada. Por várias razões. Em primeiro lugar, funcionalmente o preço é “querido e estipulado pelas partes como contrapartida económica da coisa vendida, ainda que o valor não seja exatamente o mesmo para ambas as partes” 29.

Na alienação em garantia, o montante pago pelo comprador (adquirente) ao vendedor (alienante) não é um preço. É um fi nan-ciamento de capital que deve ser retribuído com juros (ou por qual-quer outro meio) mais tarde. As partes não querem que esse mon-tante seja uma contrapartida económica da coisa vendida, mas um empréstimo de capital.

A obrigação garantida não é querida e estipulada pelas partes como contrapartida económica da coisa vendida. O valor da obri-gação garantida (coberta sobre a veste de uma cláusula a retro ou de um preço de um pacto de retrovenda) é um montante de capital e juros prestados, as mais das vezes, pelo adquirente ao alienante. A obrigação garantida corresponde ao pagamento de capital e juros de um contrato de fi nanciamento que, em termos lógicos, coexiste com a alienação em garantia, mas que se distingue desta.

Na venda a retro o vendedor tem um direito potestativo à reso-lução do contrato que só pode ser exercido mediante o reembolso do preço ao comprador, colocando o comprador num estado de sujeição durante determinado período de tempo. Na alienação em garantia, o alienante exige o cumprimento da obrigação de retransmissão dos bens quando por qualquer causa é extinta a obrigação garantida.

Por outro lado, a qualifi cação de um contrato, com as caracte-rísticas mencionadas acima, como compra e venda com cláusula a retro implicaria a aplicação do regime estabelecido no art. 928.º.

Por todas estas razões, estruturais e funcionais, pensamos que se ultrapassou a elasticidade do tipo, frustrando a aplicação direta

29 Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos cit., 146.

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do regime da compra e venda, em especial da venda a retro, à alie-nação em garantia30.

2.3. A negação da recondução do contrato a um tipo legal

2.3.1. A alienação em garantia, enquanto contrato indireto de venda

a retro

A desaplicação do regime da compra e venda não pode ser encer-rada sem mais discussão. Houve quem defendesse que a venda em garantia podia ser estruturada como um contrato indireto de venda a retro31. As partes querem utilizar o tipo contratual da compra e venda para um fi m que não corresponde à função económico-social típica de troca da compra e venda32. As partes desejam o regime da compra e venda para operar a transmissão, mas celebram um pacto de adaptação (o pacto fi duciário) para conformar o negócio com o fi m de garantia que têm em vista.

O que nos parece decisivo para negar este pensamento é que a causa-atribuição do contrato de compra e venda revela a sua inap-tidão estrutural para servir um propósito de garantia. O regime da venda a retro, como vimos, apenas atribui ao vendedor o direito potestativo à resolução do contrato, ao invés da atribuição de um direito de crédito à transmissão do objeto vendido. Ainda que se convencionasse um pacto de retrovenda (uma compra e venda com promessa de revenda) não se compreenderia, em caso de incum-primento de uma prestação do preço, a possibilidade de o putativo

30 No mesmo sentido, Carvalho Fernandes, A admissibilidade cit., 233, refere que não é uma “venda, se se tratar de direitos reais, nem uma cessão, se se referir a direitos de crédito”.31 Alguma jurisprudência sufraga que a alienação em garantia é um contrato indireto de com-pra e venda. Cfr. acórdão do RPt 10-maio-2011 (Vieira e Cunha), proc. n.º 1942/06.5TBMAI.P1 e acórdão do STJ 16-março-2011 (Lopes do Rego), proc. n.º 279/2002.E1.S1.32 O contrato indireto é um contrato legalmente atípico; a modifi cação do tipo resulta da sua utilização para um fi m que não é típico desse tipo contratual. Cfr. José de Oliveira Ascen-são, Direito civil. Teoria geral: relações e situações jurídicas, III, Coimbra (2002), 306 ss.; Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos cit., 248 ss..

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vendedor exigir o direito à diferença entre o montante do preço não pago e o valor do bem à data do incumprimento através do recurso ao regime da compra e venda. Esta última possibilidade nominada por pacto marciano, desconhecendo-se autores que não admitam, só é explicada pela função económico-social de garantia e pela causa--atribuição deste tipo de contratos.

A função económico-social do contrato de compra e venda é a troca. Nos contratos de troca existe uma bilateralidade da relação custo/benefi cio, “isto é, pela existência de sacrifícios e vantagens para cada uma das pessoas envolvidas, e pela divergência de fi na-lidades: a fi nalidade global do ato (troca de bens e/ou serviços) e as fi nalidades pessoais típicas. A bilateralidade, como tal, revela-se na própria estrutura do negócio, através da referência, que a função troca implica, a uma dualidade de pessoas, em cada uma das quais coincide a qualidade de sujeito e benefi ciário, e a uma dualidade de objetos, integrados em diferentes sintagmas actanciais, isto é, representativos de custos que incidem sobre o património de cada um dos sujeitos33”.

Na compra e venda é a função de troca que explica o sinalagma que existe entre a obrigação de pagamento do preço e a obrigação de entrega da coisa. Este sinalagma não se insere na natureza jurídica da alienação em garantia porque o preço (empréstimo de capital) não é um efeito do contrato de alienação em garantia, mas de um outro contrato (normalmente, de fi nanciamento) porque é pressu-posto de constituição de uma situação jurídica de garantia a exis-tência de uma situação jurídica garantida, neste caso uma obriga-ção (cfr. secção 2.4.2.). Ao invés, no contrato de compra e venda, em princípio, as obrigações de pagamento do preço e entrega da coisa vendida constituem-se simultaneamente, e através do mesmo negó-cio jurídico.

Na alienação em garantia, a fi nalidade global do ato é suprir a frustração de um direito de crédito cuja fonte, as mais das vezes, é um contrato de fi nanciamento celebrado entre o adquirente

33 Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, II, Alme-dina: Coimbra (1990), 521-522.

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(mutuante) e alienante (mutuário). Conforme analisaremos, a sua função é uma função económico-social de garantia.

O regime jurídico da compra e venda não resolve as questões essenciais que sobrevêm à alienação em garantia no que respeita à sua validade, efeitos e conteúdo, é estrutural e funcionalmente desadequado e consequentemente é imprestável para lhe servir de base legal.

2.3.2. A utilização da compra e venda como tipo de referência da

alienação em garantia e a prevalência da analogia sobre a inte-

gração contratual e interpretação complementadora. Crítica e

posição adotada

Pais de Vasconcelos34 e Costa Gomes35 reiteram que a venda em garantia é um contrato legalmente atípico e misto que, geralmente, utiliza o tipo contratual da compra e venda como tipo de referên-cia. A modifi cação no tipo residiria na sua função económico-social. A nominação do contrato como “compra e venda em garantia” mais não é que uma qualifi cação errónea do contrato, cuja efi cácia se limitaria à utilização da compra e venda como tipo de referência.

A relevância dos tipos de referência é desenvolvida por Pais de Vasconcelos36. Nos contratos mistos construídos por referência a um tipo, o conteúdo regulativo do tipo de referência pode servir de ajuda na concretização da regulação contratual para o intérprete. A aplicação das normas do tipo de referência deve, segundo o A., ser realizada com cuidado, sem consumir a regulação contratual que visa concretizar e a parte dispositiva do tipo, naturalmente, pode ser derrogada por vontade das partes. No entanto, não podemos concordar quando sufraga que as estipulações das partes podem derrogar preceitos injuntivos do(s) tipo(s) de referência, desde que não atentem contra a ordem pública.

34 Contratos atípicos cit., 282-283.35 Assunção fi dejussória de dívida: sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fi ador, Alme-dina: Coimbra (2000), 86.36 Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos cit., 372-374.

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Conforme expõe Pinto Duarte37, o art. 239.º parece conter pelos seus dois critérios – vontade hipotética das partes e boa fé – a solução para todos os problemas que o intérprete possa enfrentar. A interpretação complementadora e a integração contratual não podem prevalecer perante as normas do tipo legal desde que haja analogia. O A. argumenta que os arts. 939.º e 1156.º estendem a apli-cação das normas dos tipos legais a contratos que a lei não tipifi cou, permitindo concluir “por uma “força expansiva” geral das normas dos contratos típicos”38. Considera não ser possível a prevalência das disposições contratuais que violem preceitos legais de natureza injuntiva, se for possível a aplicação analógica. Esta posição merece o nosso apoio.

Por outro lado, a referência apenas à compra e venda como tipo de referência na alienação em garantia (ou, como dizem os auto-res, venda em garantia) não é sufi cientemente explicativa, embora pudesse ser apoiada numa leitura tipológica do art. 939.º que refere que “as normas da compra e venda são aplicáveis aos outros contra-tos onerosos pelos quais se alienem bens ou se estabeleçam encar-gos sobre eles, na medida em que sejam conformes com a sua natu-reza [...]”. Como veremos na secção que dedicamos à estrutura e função das garantias especiais do cumprimento das obrigações, a alienação em garantia apresenta uma estrutura semelhante e par-tilha da mesma função económico-social. A diferença notória que a distingue de uma garantia real tipifi cada no Código Civil é que na alienação em garantia transmite-se a titularidade plena de um bem para o credor garantido. Naquelas constitui-se um direito real de garantia. A estrutura da compra e venda, como foi analisado, não é semelhante à estrutura da alienação em garantia e a função econó-mico-social é distinta.

A alienação em garantia é um contrato atípico e misto, mas não se pode dizer que exista um tipo de referência predominante ou apenas um tipo de referência (recebe infl uências de vários tipos contratuais, sobretudo do regime das garantias reais legalmente

37 Tipicidade e atipicidade cit., 136 ss..38 Pinto Duarte, Tipicidade e atipicidade cit., 141.

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típicas e da compra e venda, enquanto regime subsidiariamente aplicável aos negócios de alienação) porque tem a estrutura e a fun-ção de uma garantia especial do cumprimento das obrigações, mas um efeito transmissivo de um negócio translativo. A insistência na não autonomização da alienação em garantia do tipo da compra e venda deve-se à caracterização do negócio fi duciário como “contrato atípico, construído geralmente por referência a um tipo contratual conhecido, suscetível de ser adaptado a uma fi nalidade diferente da sua própria, através de uma convenção obrigacional de adapta-ção”39. Realizaremos uma crítica a esta última proposição nas pági-nas seguintes.

2.4. As coordenadas garantísticas da alienação em garantia

2.4.1. A polissemia da noção jurídica de garantia

São vários os sentidos em que o vocábulo “garantia” é utilizado no direito privado, em especial no direito civil e na prática comer-cial. Para além das garantias especiais existem outras fi guras que se referem ao conceito de garantia.

Garantia pode entender-se que é um elemento da relação jurí-dica que consiste na suscetibilidade de utilização dos meios coerciti-vos que se colocam à disposição do titular do direito subjetivo para fazer valer o seu direito ou sancionar o obrigado.

No Direito das Obrigações por garantia entende-se que é a faculdade do credor de executar o património do devedor em caso de lesão do direito de crédito. Se se adicionam meios que reforçam a expectativa de satisfação do crédito, mas extravasam aqueles que são admitidos ex lege em qualquer relação obrigacional, garantia podem ser todos os meios cuja destinação é aumentar a probabili-dade de satisfação do crédito.

Conexamente, a palavra garantia pode confundir-se com as situações jurídicas penhoráveis do património do devedor (art. 601.º)

39 Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos cit., 262.

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surgindo o princípio de que o património do devedor é a garantia comum e geral dos credores40.

Por vezes, a lei adota o vocábulo garantia referindo-se à idonei-dade do objeto contratual alienado em relação à prestação acordada. Por exemplo, na garantia da existência da posição contratual (n.º 1 do art. 426.º), garantia da exigibilidade do crédito cedido (n.º 1 do art. 587.º) ou garantia de bom funcionamento (art. 921.º).

O vocábulo garantia também é utilizado para distinguir uma espécie de contratos: os conhecidos “contratos de garantia”. São con-tratos em que uma das partes (garante) se obriga perante a outra (benefi ciário da garantia) a “assumir o risco pela verifi cação de um certo resultado futuro ou pela manutenção de uma determinada situação, fi cando obrigado ao pagamento de uma prestação equi-valente ao prejuízo emergente ou à cobertura do lucro esperado”41.

Da prática comercial surgiram as denominadas “cláusulas de garantia”. São particularmente conhecidas as cláusulas de nega-tive pledge, pari passu e cross default42 no âmbito dos contratos de empréstimo internacionais. São cláusulas que funcionam como meios de pressão do credor porque da sua violação resulta, acopla-das por convenção, o direito à resolução do contrato com efi cácia ex nunc. A sua violação faculta ao mutuante a possibilidade de exigir, antecipadamente, o cumprimento das obrigações do mutuário (“ace-leração” do contrato).

Resulta das fi guras expostas que é complicado defi nir “garantia” quando esta compreende realidades muito diversas. Alguns autores

40 Paulo Cunha, Do património, Tipografi a Minerva: Lisboa (1934), 197 ss..41 Ferreira de Almeida, Texto e enunciado, II, cit., 554-555. 42 Sobre estas cláusulas e a sua natureza jurídica, Joana Pereira Dias, Contributo para o estudo dos actuais paradigmas das cláusulas de garantia e/ou segurança: a pari passu, a negative pledge e a cross default em Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV, coord. António Menezes Cordeiro/Luís Menezes Leitão/Januário da Costa Gomes, Almedina: Coimbra (2003), 879-1030, 890 ss.; Fernando Pessoa Jorge, A garantia contratual da igualdade dos credores nos empréstimos internacionais, sep. da obra Estu-dos publicada por altura da comemoração do XX aniversário do Centro de Estudos Fiscais, Centro de Estudos Fiscais (1983), 20 ss..

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reservam o vocábulo “garantia” para se referirem apenas às garan-tias especiais do cumprimento das obrigações43.

É possível adotar uma noção ampla de garantia cujo traço comum é uma fi nalidade de segurança44. Se um direito subjetivo ou uma expetativa jurídica são agredidos, o ordenamento jurídico atribui meios ao titular da expectativa ou do direito subjetivo para reagir contra essa agressão.

Esta noção ampla de garantia deve ser corretamente entendida. Deve ser clarifi cado que todas essas fi guras jurídicas, que se refe-rem a uma noção amplíssima de garantia, não estão sujeitas às nor-mas e aos princípios comuns que o legislador criou, em especial, para as garantias especiais do cumprimento das obrigações. Cum-pre descobrir os elementos estruturais e funcionais das garantias especiais para determinar se o contrato de alienação em garantia é uma garantia especial do cumprimento das obrigações. E, se sim, quais as implicações dessa qualifi cação na categoria jurídica das garantias especiais do cumprimento das obrigações.

2.4.2. Estrutura e função das garantias especiais do cumprimento das

obrigações

Para a aplicação dos princípios e normas injuntivas resultantes das garantias especiais do cumprimento das obrigações é necessário distinguir estas de outros institutos que podem desempenhar um propósito de diminuição do risco de crédito.

Indispensável é discutir a estrutura e a função económico-so-cial de uma garantia especial do cumprimento das obrigações para as distinguir de outras fi guras que não partilham a mesma função

43 Guilherme Moreira, Instituições do direito civil português, II, 2.ª ed., Coimbra Editora: Coimbra (1925), 293-295.44 Sobre o conceito jurídico de garantia se reconduzir a uma ideia de segurança, Ferreira de Almeida, Texto e enunciado, II, cit., 556-557; Pereira Dias, Contributo cit., 1018-1022; Paulo Cunha, Da garantia das obrigações, I, Apontamentos das aulas de Direito Civil do 5.º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa pelo aluno Eudoro Pamplona Côrte-Real (1939), 22.

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económico-social nem estrutura semelhante e, por isso, não estão sujeitas aos princípios e às normas injuntivas que o legislador con-sagrou para as garantias especiais. Salvo se pudermos concluir que as partes querem, fraudulentamente, subtrair-se aos princípios e normas injuntivas que o legislador consagrou para as garantias especiais do cumprimento das obrigações.

A distinção entre as garantias especiais e as garantias, em sen-tido amplo, é importante em termos metodológicos. As garantias especiais partilham uma estrutura semelhante e, por isso, devem ser sujeitas a regras e princípios comuns45. As garantias, em sentido amplo, para além do resultado de diminuição do risco de insatisfa-ção do credor, carecem de qualquer elemento estrutural e funcional que as una às garantias especiais do cumprimento das obrigações.

É inerente ao direito de crédito a assunção do risco de crédito por parte do credor que confi ou no cumprimento espontâneo do deve-dor poder ser frustrado porque o seu direito não foi pontualmente cumprido. As garantias especiais do cumprimento das obrigações servem para acautelar esta hipótese de incumprimento, proporcio-nando um meio de satisfação alternativa do seu direito.

As garantias especiais de cumprimento das obrigações têm sem-pre como função principal, isto é, como função económico-social, a garantia.

A função económico-social46 “indica a fi nalidade metajurídica, fundamental e global, prosseguida pelo negócio jurídico”. “Não são, todavia, quaisquer fi nalidades económico-sociais que merecem ser erigidas em função negocial específi ca. Para além de serem relevan-tes e juridicamente lícitas, devem referir um escopo fundamental e global, isto é, que […] seja comum aos interessados diretos e que sintetize ou unifi que, no essencial, os eventuais fi ns diferenciados dos respetivos sujeitos e benefi ciários”. Esta última proposição é especialmente relevante para não confundir os negócios com fun-ção económico-social de garantia com aqueles em que a propriedade

45 Vítor Pereira das Neves, A cessão de créditos em garantia: entre a realização das situa-ções obrigacionais e a relativização das situações reais, FDUNL (teses de doutoramento), (2005), 89.46 Ferreira de Almeida, Texto e enunciado, II, cit., 499.

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pode servir uma função de garantia do preço ou rendas, em sentido amplo, mas cujo negócio não serve um escopo fundamental e global de garantia (v.g., na locação fi nanceira, compra e venda com reserva de propriedade, venda a retro, locação fi nanceira restitutiva, etc.)47.

A função económico-social (ou causa objetiva do contrato) cumpre duas funções: negativamente, a falta da sua alegação ou demonstração pressupõe a incompletude da declaração negocial e, por isso, a sua inexistência. Positivamente, contribui para a deter-minação do conteúdo do negócio jurídico, para a sua recondução a um tipo contratual legalmente regulado e para a classifi cação dos atos negociais48.

Os negócios de garantia caracterizam-se pela sua função eco-nómico-social de garantia, que têm como fi nalidade própria suprir a frustração de um direito ou de uma expetativa. São negócios de risco, mas de um risco previsto e acautelado para conferir segu-rança ao benefi ciário da garantia49.

Nem todos os negócios jurídicos que servem uma função econó-mico-social de garantia são garantias especiais do cumprimento das obrigações. Os “contratos de garantia”, que referimos anterior-mente, não apresentam as características estruturais para serem qualifi cados na categoria de garantias especiais porque a situação jurídica garantida é um evento50, embora partilhem a mesma fun-ção económico-social.

Imanente às garantias especiais, porque sempre se verifi cam, são os seguintes requisitos: o primeiro pressuposto de existência de uma garantia especial, relativamente à posição jurídica do bene-fi ciário da garantia, é a individualidade estrutural desta situação

47 Estes contratos têm uma função económico-social de troca. A leitura garantística destes contratos só é exigida quando as partes pretendem fi nalisticamente garantir um crédito, furtando-se às regras injuntivas que regulam as garantias reais.48 Ferreira de Almeida, Texto e enunciado, II, cit., 513-514. Defendendo que a falta de causa do contrato não pode servir para arguir a invalidade do mesmo, Barreto Menezes Cordeiro, Do trust cit., 837, apenas relevando a causa subjetiva, quanto muito, em sede de vícios da vontade (art. 257.º) e a causa objetiva confunde-se com o conteúdo do negócio jurídico “e, de resto, com pouca importância prática”.49 Ferreira de Almeida, Texto e enunciado, II, cit., 557. 50 Cfr. nota de rodapé n.º 61.

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jurídica de garantia em relação à obrigação garantida; o segundo pressuposto é a existência da obrigação garantida para a consti-tuição de uma garantia especial51. A situação jurídica de garantia coexiste com um crédito garantido, sem se confundirem as duas situações jurídicas. A individualidade estrutural entre a obrigação garantida e a situação jurídica de garantia envolve, igualmente, uma independência quanto aos factos jurídicos que constituem as duas situações, inexistindo uma garantia especial das obrigações que seja efi caz para constituir a obrigação garantida.

As garantias especiais representam um reforço (ou seja, um plus) à tutela que o ordenamento jurídico providencia a qualquer crédito através da garantia geral das obrigações. Estes meios destinam-se a superar uma postura desconforme do devedor, que não quer, mas pode, cumprir a sua obrigação. Se o devedor, independentemente de desejar cumprir, não pode cumprir porque carece dos meios neces-sários para satisfazer o credor, a garantia geral não é adequada a proporcionar a efetiva satisfação do credor porque este concorre, em igualdade, com os restantes credores e só é integralmente satisfeito se o património do devedor for sufi ciente para solver todos os crédi-tos52.As garantias especiais do cumprimento das obrigações consti-tuem uma nova situação jurídica para o credor garantido, para que este se possa satisfazer, em alternativa, em caso de incumprimento do devedor53.

As garantias especiais podem alargar o acervo patrimonial res-ponsável pelo cumprimento do crédito (garantias reais prestadas por terceiros ou garantias pessoais) ou individualizar um objeto do património do devedor (um objeto que se integra na garantia geral)

51 O n.º 3 do art. 666.º limita-se a facultar às partes uma opção quanto ao momento relevante para aferir da preferência com o objetivo de assegurar a satisfação de obrigações futuras e condi-cionais. O processo de formação de uma garantia especial só termina quando as obrigações futuras se transformam em atuais, e nas obrigações condicionadas quando se verifi que a condição. O penhor é válido, mas é futuro ou condicional. No mesmo sentido, Pereira das Neves, A cessão de créditos cit.,126.52 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit., 97 ss.53 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit., 100-101.

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que se destina, a partir da constituição da nova situação jurídica sobre esse objeto, à satisfação preferencial do crédito garantido.

Todas as garantias especiais, quanto ao seu conteúdo, proporcio-nam “um avantajamento simultaneamente qualitativo e quantita-tivo54 da posição do credor garantido”55 que se destina à satisfação primacial do crédito garantido.

54 Finalisticamente diversa é a classifi cação dicotómica das garantias em geral: garantias qualitativas e garantias quantitativas. Os sujeitos jurídicos, independentemente da ques-tão da validade perante o ordenamento jurídico português, podem recorrer a várias fi gu-ras jurídicas (legalmente tipifi cadas ou não) para a prossecução do mesmo fi m de garantia desempenhado por uma garantia especial (em especial, garantia real) do cumprimento das obrigações. Para além dos institutos jurídicos em que a função de garantia é um elemento do tipo legal utilizado, as partes podem (1) celebrar um contrato legalmente atípico com função económico-social de garantia, (2) um contrato legalmente atípico com uma função económico-social distinta da garantia, mas apta ao fi m de garantia prosseguido pelas partes, (3) ou utilizar a regulação de um tipo legal que, pela sua estrutura e/ou adaptação obrigacional, pode desempenhar um propósito de garantia, em sentido amplo. A doutrina que versa sobre o Direito das Garantias (neste sentido, Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias, 2.ª ed., Almedina: Coimbra (2013), 63; Januário da Costa Gomes, Contratos comerciais, Almedina: Coimbra (2012), 373-374; Paulo Cunha, Da garantia das obrigações, II, cit., 5) propõe, atenta esta miríade de fi guras jurídicas habili-tadas a garantir um crédito, uma classifi cação que divide dicotomicamente o universo das garantias: as garantias que reforçam qualitativa e quantitativamente a probabilidade de satisfação do crédito. Segundo Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., 61, esta nova classifi cação pretende suprir a incompletude que sofre a classifi cação entre garantias reais e pessoais.As garantias que reforçam quantitativamente a probabilidade de satisfação do crédito são aquelas em que um terceiro se vincula a cumprir, respondendo o seu património. A seme-lhança com as garantias pessoais é evidente.As garantias que reforçam qualitativamente a probabilidade de satisfação do crédito são aquelas em que o credor está investido numa posição de privilégio, em relação aos restantes credores do devedor, para a satisfação do seu crédito, na eventualidade de o património do devedor não ser sufi ciente para solver todas as dívidas. Esta classifi cação relevaria porque classifi ca as garantias reais (sobretudo, pela frequente sobreposição destas aos direitos reais de garantia) como um tipo de garantias qualitativas, ao lado de outras. As garantias qualitativas são, seguindo Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., 63-68, os direitos reais de garantia, a transmissão da titularidade de direitos com função de garan-tia (inserindo aqui, a alienação fi duciária em garantia, locação fi nanceira e a reserva de propriedade) e os patrimónios autónomos constituídos com função de garantia.Esta classifi cação prescinde de uma análise aos elementos estruturais e funcionais das garantias reais, implicando que a categoria de “garantia qualitativa” adquira, pela sua

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55 Por consequência, quantitativo porque se adicionam à garantia geral (garantias reais prestadas por terceiros ou garantias pessoais) ou, embora já fi zessem parte da garantia geral, os bens individua-lizados já não respondem nos termos do princípio do par conditio creditorum, mas tendencialmente pelo valor total do bem.

Qualitativo porque se assiste à constituição de uma nova situa-ção jurídica dotada de poderes que permitem ao credor garantido satisfazer-se, em alternativa, caso o seu direito de crédito não seja cumprido.

A função económico-social das garantias reais apresenta dois nexos distintos: um nexo de dependência funcional e um nexo de dependência estrutural.

Embora a função económico-social seja particularmente útil para interpretação complementadora da declaração do garante, o desempenho da função económico-social é sempre mediado e limi-tado pelas normas injuntivas e princípios do direito das garantias que se inscrevem no conteúdo da declaração do garante.

O nexo de dependência funcional da situação jurídica de garan-tia em relação à situação jurídica garantida cumpre dois fundamen-tos: internos e externos56.

Numa perspetiva interna, um propósito de conformação da posi-ção das partes quanto ao conteúdo e aos efeitos da situação jurídica

extensão aplicativa a institutos jurídicos tão distintos, especiais difi culdades na análise das suas características comuns e, destarte, menor profundidade nessa análise. Não devemos renunciar à análise de uma noção ampla de garantia real, embora a extensão das fi guras jurídicas que podem referir-se a esta categoria possa dar azo à mesma crítica que fi zemos anteriormente sobre a categoria das “garantias qualitativas”. Pensamos, em todo o caso, que existe maior profundidade analítica na descoberta dos elementos comuns da categoria “garantia real”, ao invés da categoria “garantia qualitativa” que sempre implicaria maior abstração (ou seja, uma menor quantidade de notas comuns às diversas fi guras jurídicas que se referem à categoria de “garantia qualitativa”).55 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit.,103-104.56 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit.,120 ss.. O A. descreve o nexo de dependência funcional como a “circunstância (e consequências daí derivadas) de a situação jurídica de garantia ter funcionalmente surgido (e aí fundamentar a sua concreta existência) para garantia do cumprimento da situação jurídica garantida, remediando os riscos de insol-vência do devedor mediante a afetação, nos termos de uma nova situação jurídica, de um (novo) bem específi co à satisfação do crédito garantido”.

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de garantia. De um ponto de vista positivo57, implica a existência de um conjunto de requisitos para a prossecução de uma função de garantia, semelhante à prosseguida por uma garantia real tipifi -cada no Código Civil.

Em primeiro lugar, o seu objeto é um bem com natureza patri-monial cujo destino é garantir uma determinada obrigação.

Em segundo lugar, a situação jurídica em que é investido o bene-fi ciário da garantia deve contar com os poderes necessários para que o benefi ciário da garantia possa dispor do bem afeto em garan-tia, aplicando o produto da disposição do bem à satisfação da obriga-ção garantida, mormente em caso de incumprimento da obrigação garantida. Não é necessário que esta faculdade de disposição resulte do conteúdo da situação jurídica de garantia porque pode resultar, igualmente, dos meios que o legislador disponibiliza a qualquer cre-dor para tutelar o seu direito de crédito (nomeadamente, o recurso ao processo executivo). Necessário é que o credor garantido possa afetar, com prioridade sobre os demais credores comuns do devedor, o produto do bem afeto em garantia à satisfação do seu crédito.

Em terceiro lugar, deve gozar de um nível mínimo de oponibili-dade a terceiros para permitir ao credor garantido opor a situação jurídica de garantia aos outros credores do garante, isto é, a sua primazia na afetação do produto da liquidação do bem à satisfação da obrigação garantida.

De um ponto de vista negativo58 contribui para a delimitação dos poderes do benefi ciário da garantia, em relação ao objeto que constitui a sua garantia real. Se a função das garantias especiais é proporcionar ao credor garantido um meio de satisfação alterna-tiva do seu crédito garantido incumprido, afi gura-se essencial que o credor garantido só utilize os seus poderes (convencionais ou legais, para se satisfazer em alternativa) se o seu crédito garantido não é cumprido. Tem o dever de afetar o valor da liquidação do bem à satisfação do crédito garantido, atendendo ao nexo de dependên-cia funcional da situação jurídica de garantia em relação ao crédito

57 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit.,131 ss..58 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit.,134 ss..

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garantido. O eventual saldo que resulte da diferença entre o valor da liquidação do bem afeto em garantia e o crédito garantido deve ser entregue ao prestador da garantia, caso o primeiro valor exceda o segundo. Esta situação resulta de um princípio geral de neu-tralidade patrimonial das garantias especiais, na medida em que o resultado fi nal da operação (ou saldo exauriente) não pode con-substanciar um locupletamento injustifi cado do credor garantido. Caso contrário, assistir-se-ia, as mais das vezes, ao enriquecimento injustifi cado59 do credor garantido e essa situação não é compagi-nável com a causa-atribuição de garantia de uma garantia espe-cial do cumprimento das obrigações. A situação inversa, quando o produto do bem afeto em garantia não é sufi ciente para satisfazer o credor garantido pode resultar em duas situações: o credor garan-tido transformou-se em credor quirografário quanto ao crédito insa-tisfeito remanescente ou, por convenção, estipulou-se que o credor garantido só podia ser satisfeito com o produto do bem afeto em garantia, não se facultando a possibilidade de exigir o montante do crédito não cumprido (art. 602.º).

O nexo de dependência estrutural60 é uma consequência do nexo de dependência funcional porque, se um dos corolários do nexo de dependência funcional é a neutralidade patrimonial da garan-tia especial, o conteúdo da situação jurídica de garantia é confor-mado pelas vicissitudes da situação jurídica garantida. Caso não se repercutissem as causas constitutivas, modifi cativas e extinti-vas da situação jurídica garantida na situação jurídica de garantia, existiria um locupletamento injustifi cado do credor garantido que não podia ser atribuído à função que preside às garantias especiais. Este nexo de dependência estrutural61 pode resultar da lei (no caso

59 Note-se que não nos referimos ao enriquecimento sem causa previsto nos art. 473.º e ss., atenta a natureza subsidiária da obrigação de restituição prevista neste instituto.60 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit., 371 ss..61 Na nossa opinião, o que distingue as garantias acessórias e as garantias não acessórias é que, nas primeiras, a conformação da situação jurídica de garantia pelas vicissitudes da situação jurídica garantida sucede ex lege, enquanto nas segundas tendencialmente essa conformação é mediada pelo negócio jurídico. Por isso, somos da opinião que a alienação em garantia é uma garantia não acessória. E o que distingue as garantias acessórias e

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das garantias especiais acessórias sucede uma conformação ipso iure) ou de um comportamento que é devido pelo credor garantido (nas garantias não acessórias). O nexo de dependência estrutural não se identifi ca com a acessoriedade. A acessoriedade é uma espé-cie em relação ao género da dependência estrutural. A ligação entre a situação jurídica de garantia e a situação jurídica garantida pode não se manifestar através da acessoriedade, mas de uma relação de

as garantias não acessórias face às garantias autónomas é que, nas primeiras, a situação jurídica garantida é uma obrigação garantida, enquanto nas segundas é um evento (v.g., ofensa de um direito absoluto) e ainda que haja referência ao não cumprimento de uma obrigação, não é necessário um juízo de incumprimento para espoletar defi nitivamente os efeitos da garantia.A acessoriedade é uma técnica de ligação da situação jurídica de garantia à situação jurí-dica garantida (nas garantias reguladas por lei), mas é uma técnica que apenas revela uma especial relação de dependência qualifi cada da situação jurídica de garantia – que é conformada – pela situação jurídica garantida. É, não obstante, uma técnica que coexiste com outras técnicas de ligação da situação jurídica de garantia à situação jurídica garan-tida. O elemento que sempre se verifi ca na relação entre a situação jurídica de garantia e a situação jurídica garantida é a dependência da primeira face à segunda. Essa dependência (que se identifi ca como nexo de dependência estrutural) pode não ser realizada por meio da acessoriedade. Esta última é apenas uma especial forma de ligação do crédito principal ao direito acessório que se traduz – de um ponto de vista dinâmico – numa modelação auto-mática do direito acessório (direito dirigido) pelo direito principal (direito dirigente), que se manifesta no nascimento, âmbito, manutenção, consecução e extinção, enquanto moda-lidades da acessoriedade. Para Costa Gomes, Assunção fi dejussória de dívida cit., 116, nas garantias pessoais, em especial na fi ança, o “âmago da acessoriedade […] encontra-se, a um tempo, na invocabilidade das exceções derivadas da obrigação principal (n.º 1 do art. 637.º) e no âmbito da responsabilidade (n.º 1 do art. 631.º e 634.º). A ver bem, outras manifestações de acessoriedade na fi ança […] não deixam de ter expressão noutras garantias tidas como não acessórias. […] Nestes casos, o que há a questionar é o grau de dependência” porque a acessoriedade, não acessoriedade e a autonomia apresentam diversas gradações, não sendo possível afi rmar que a acessoriedade atinge o seu zénite na fi ança, nem a autonomia na garantia bancária autónoma. Na fi ança, Paulo Manuel Leal Lacão, A prescrição da obri-gação de indemnizar: notas sobre o artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, FDUNL (teses de mestrado), (2017), 11-12, o fi ador fi ca sujeito a um prazo de prescrição próprio, no entanto, pode opor ao credor a prescrição da obrigação principal (art. 637.º), funcionando como meio de defesa comum do devedor principal e devedor acessório. Supostas manifestações da acessorie-dade na fi ança (especialmente, nas suas causas extintivas) não deixam de se verifi car nas garantias bancárias autónomas e, portanto, não se podem inscrever como consequências da acessoriedade.

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dependência que não pode ser qualifi cada como acessória porque não alcança essa intensidade na dependência (sucede nas garan-tias não acessórias e autónomas). O princípio subjacente a todas as garantias especiais é o princípio da dependência estrutural, e não o princípio da acessoriedade que apenas é uma técnica, entre outras, de conformar a situação jurídica de garantia pela situação jurídica garantida. O nexo de dependência funcional é um pressu-posto do nexo de dependência estrutural, não se admitindo a cons-tituição de garantias abstratas (independentes), isto é, garantias em que inexistisse uma qualquer relação entre a situação jurídica de garantia e a situação jurídica garantida atento ao princípio da causalidade no direito português. O nexo de dependência estrutural tem como conteúdo mínimo a imposição da devolução de qualquer enriquecimento do credor garantido para o garante (como já vimos, um dos corolários da dependência funcional é o princípio da neutra-lidade patrimonial), para além do necessário à satisfação do crédito garantido (a afetação do bem é funcionalizada apenas para satisfa-zer, em alternativa, o credor garantido, e não para enriquecê-lo de algum modo), assumindo esta situação especial importância para as garantias reais legalmente atípicas. O conteúdo máximo do nexo de dependência estrutural refl ete-se na repercussão das vicissitudes (as causas constitutivas, modifi cativas e extintivas) que a situação jurídica garantida possa sofrer na situação jurídica de garantia, atendendo aos elementos que apresentem uma relação de depen-dência (e do grau de intensidade da dependência) desta perante aquela.

Do ponto de vista externo, a função económico-social de garan-tia constitui um pressuposto essencial da declaração negocial (ade-mais, a classifi cação do contrato nos tipos contratuais com função económico-social de garantia permite descobrir a causa- atribuição de garantia do contrato), sob pena da sua inexistência, implicando uma relação entre a situação jurídica de garantia e a situação jurí-dica garantida.

A função económico-social da garantia real constitui, também, uma situação jurídica ativa para o garante designada por “situa-ção jurídica residual”, cujo conteúdo é “coincidente com o apro-veitamento das limitações temporais e materiais que a função de

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garantia prosseguida impõe à situação jurídica de garantia”62 e das vicissitudes (causas constitutivas, modifi cativas e extintivas) decor-rentes da situação jurídica garantida (e que conformam a situação jurídica de garantia) que podem ser aproveitadas pelo garante. Ins-creve-se, igualmente, nesta situação jurídica do garante o direito de crédito de exigir os bens transmitidos em garantia, em caso de cum-primento da obrigação garantida e, assim, recuperar a plenitude dos poderes que se inscreviam no conteúdo da situação jurídica, antes da sua afetação em garantia (os poderes inerentes à titulari-dade do direito) ou, em caso de incumprimento da obrigação garan-tida, o direito de exigir a devolução do montante que corresponde à diferença entre o valor do bem no momento do incumprimento e o valor do crédito garantido incumprido. Durante a execução do con-trato, o seu conteúdo revela a obrigação do credor garantido de não frustrar a prossecução da função de garantia inerente à transmis-são daquele acervo patrimonial. Nos direitos reais de garantia, a situação jurídica residual (situação jurídica ativa do garante) apre-senta-se como a mesma situação jurídica que existia previamente à constituição da garantia real, mas com um conteúdo distinto porque limitado por um direito real menor de garantia. Nas garantias reais atípicas, a situação jurídica residual é constituída ex novo na esfera jurídica do garante.

2.5. Natureza fi duciária da alienação em garantia. Crítica

A maioria da doutrina portuguesa moderna63 defende que o negócio fi duciário (e, por inerência, a alienação em garantia) é construído geralmente com base num negócio legalmente tipifi cado (neste caso, a compra e venda), mas é um negócio legalmente atípico devido às cláusulas que se inserem no contrato (o pacto fi duciário) para cumprir os fi ns prosseguidos pelas partes.

62 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit.,122-123, 147 ss..63 Em sentido concordante, Carvalho Fernandes, A admissibilidade cit., 247-248, 267-268; Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos cit., 262; Lorenzo González, Alienação fi duciária em garantia e negócios afi ns: delimitação de fronteiras, 10 L.D., Série II, (2012), 51-138, 119.

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Não nos parece decisivo para excluir esta posição da maioria dos autores portugueses a existência da fi dúcia estática e, por isso, a desadequação da adoção de um tipo contratual legal (compra e venda ou doação) de base (ou tipo de referência) ao negócio fi duciá-rio64. A fi dúcia estática podia ser construída com base no mandato sem representação, enquanto modalidade de negócio fi duciário para administração.

O que é decisivo para subtrair a alienação em garantia dos tipos contratuais translativos previstos na lei constituindo-se como um contrato legalmente atípico e misto, com vários tipos de referên-cia, são as diferenças estruturais e funcionais que apresenta (e que foram analisadas). Se o critério para a escolha do tipo de referência fosse o efeito transmissivo, resultaria indiferente o tipo concreto de referência desde que fosse adequado para esse efeito. Seria arbitrá-rio escolher a compra e venda, mútuo ou a doação porque as partes adaptariam o contrato às fi nalidades pretendidas através do pacto fi duciário. A independência da alienação em garantia, perante os outros negócios translativos causais tipifi cados, revela-se pela sua estrutura e função económico-social e admite-se pela inexistência de um princípio da tipicidade dos negócios jurídicos com efi cácia real.

Podia ser alegado que a causa de garantia (causa enquanto atribuição patrimonial) não é adequada à transmissão da titulari-dade de direitos. Esta posição não pode ser sufragada, quando mais não seja, perante o direito positivado. De facto, encontra-se positi-vada a alienação em garantia no quadro dos acordos de garantia fi nanceira65, evidenciando a aptidão da causa de garantia para a transmissão da titularidade de direitos e constituição de situações

64 Barreto Menezes Cordeiro, Do trust cit., 918.65 Cfr. Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de maio, que transpõe a Diretiva n.º 2002/47/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de junho. O título III do Decreto-Lei nomina o contrato como alienação fi duciária em garantia, conforme veremos essa designação não é, na nossa opinião, adequada e refi ra-se que a Diretiva utiliza o termo neutro de “acordo de garantia fi nanceira com transferência de titularidade” na alínea b), do n.º 1 do art. 2.º, ao invés, de alienação fi duciária em garantia.

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jurídicas de garantia66. Ademais, como vimos na secção dedicada às origens da alienação em garantia, historicamente as garantias reais constituíam-se através da transmissão da propriedade67.

A autonomização de uma causa fi duciae (enquanto causa-fun-ção) subjacente aos negócios fi duciários consistia na transmissão da titularidade plena de um direito, mas subordinada obrigacional-mente às fi nalidades das partes. Essa seria a pedra de toque da causa fi duciae que a distinguia da causa-função de outros negócios jurídicos68. Diferenciava-se da causa-função da compra e venda e da doação porque a transmissão não era defi nitiva. Essa autonomiza-ção redundaria em imprevistos, se aprofundada. Não pensamos que exista uma alteração da causa-função de um contrato legalmente tipifi cado quando as partes subordinam a utilização do objeto do contrato para uma certa fi nalidade porque a função económico--social não se confunde com o conteúdo do contrato, sob pena de existirem tantas causas-funções quanto contratos. A causa-função representa uma síntese objetiva dos fi ns comuns das partes, não se confunde com o conteúdo do ato.

A existência de uma causa fi duciae implica, pelo menos, a sua autonomia em relação às restantes causas-funções. Salvo melhor opinião (e classifi cação69), essa autonomia inexiste ou, pelo menos, não pode ser fundada (como até hoje) nas limitações obrigacionais à titularidade de um direito em virtude da celebração de um negócio jurídico translativo. Na alienação em garantia, a sua causa-função é

66 Em sentido próximo, Werner Flume, El negocio juridico. Parte general del derecho civil, II, 4.ª ed., trad. José María Miquel González e Esther Gómez Calle, Fundación Cultural del Notariado: Madrid (1998), 196-197, refere que a causa-atribuição nos negócios jurídi-cos de garantia acessórios e não acessórios é a garantia de um crédito. Cfr., igualmente, Alessandro Bertini, I negozi fi duciari di preparazione dell’ adempimento, Giuffré Editore: Milão (1940), 19 ss..67 Cfr., igualmente, Ludwig Enneccerus/Theodor Kipp/Martin Wolff, Tratado de derecho civil. Derecho de cosas, II, tomo III, trad. Blas Pérez González e José Alguer, Bosch: Bar-celona (1936), 166. 68 Orlando de Carvalho, Negócio jurídico indirecto em Escritos. Páginas de Direito, I, Alme-dina: Coimbra (1998), 124-125.69 Seguimos, por entendermos ser a mais explicativa, a classifi cação de Ferreira de Almeida, Texto e enunciado, II, cit., 496 ss..

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a garantia porque esta representa a síntese que unifi ca os fi ns obje-tivos das partes: garantir o cumprimento de uma obrigação.

Desprovida de uma causa fi duciae devemos questionar-nos o que sobeja para reconduzir a alienação em garantia na categoria de negócio fi duciário. Refutada a teoria dualista pela aceitação da fi dú-cia estática, negada a desproporção dos meios jurídicos utilizados em relação aos fi ns económicos prosseguidos e superada a questão do risco fi duciário; os únicos elementos jurídicos de ligação da alie-nação em garantia ao tipo do negócio fi duciário são a causa fi duciae e a obrigação de retransmissão.

A obrigação de retransmissão do acervo patrimonial não apre-senta os mesmos traços na alienação em garantia e no negócio fi du-ciário para administração. No primeiro, essa obrigação decorre da causa-função das garantias reais: o princípio da neutralidade patri-monial, enquanto corolário da dependência estrutural da situação jurídica de garantia em relação à situação jurídica garantida, sub-jacente ao regime das garantias reais, implica que o adquirente reverta para o alienante os bens transmitidos em garantia quando cumprida essa função e que, em caso algum, a garantia real pode servir de meio para o locupletamento injusto do credor garantido. Esta situação decorre daquilo que designámos por situação jurídica residual do garante sobre o bem que é objeto da garantia. No negó-cio fi duciário para administração, a obrigação de retransmissão decorre, por um lado, da imputação dos benefícios resultantes da gestão do acervo patrimonial ao benefi ciário da relação fi duciária e, por outro, de um vínculo de afetação funcional puramente obriga-cional que condiciona o exercício dos poderes do fi duciário ao fi m de satisfazer uma necessidade do benefi ciário porque estamos perante um negócio realizado por conta e no interesse de outrem.

Esta situação permite reconduzir o negócio fi duciário para administração, pelo menos parcialmente, para o regime do man-dato70 porque o que é característico do mandato é a alheamento

70 Inserindo o mandato sem representação na categoria de negócio fi duciário para admi-nistração, Carvalho Fernandes, A admissibilidade cit., 238-239; Galvão Telles, Manual dos contratos em geral cit., 190-191; André Figueiredo, O negócio fi duciário cit., 83; Pes-soa Jorge, O mandato sem representação cit., 328-329, diz que os negócios fi duciários não

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do interesse71 que determinou e impulsionou a contratação, sujei-tando o mandatário à prossecução do plano de gestão traçado pelo mandante e explica a possibilidade de uma revogação ad nutum do mandato por parte deste. No mandato conferido também no inte-resse do mandatário ou de terceiro (n.º 2 do art. 1072.º), o critério para a determinação do interesse é estrutural72: revela-se pela exis-tência de um direito subjetivo do mandatário ou terceiro, inerente à situação jurídica de gestão, que revela um interesse deste nesta situação jurídica, relevante para a não verifi cação dos requisitos para a revogação ad nutum do mandato por parte do mandante. No negócio fi duciário para administração, tipicamente, não existe qualquer interesse relevante do fi duciário nos objetos que compõem a situação jurídica de gestão em que é investido. A remuneração, as mais das vezes, auferida por este, não é critério para considerar a existência de um interesse do fi duciário. O interesse do fi duciário não incide sobre os bens fi duciários em si mesmo considerados, mas sobre a remuneração que obtém por administrá-los. Por outro lado, na situação jurídica em que fi ca investido o mandatário verifi ca-se uma atuação por conta do mandante porque o destinatário fi nal dos efeitos jurídicos ou, mais rigorosa e amplamente, o destina-tário das consequências económicas fi nais (resultados económicos vantajosos e desvantajosos) é o mandante73. Estas características da atuação do mandatário verifi cam-se na relação fi duciária para administrar.

O negócio fi duciário para administração apresenta uma carac-terística essencial que não é elemento caracterizador da alienação em garantia: a prossecução, por parte do fi duciário, de um interesse

são admissíveis, mas refere que “o fi m de administrar ou de realizar um ato jurídico, a que corresponde a fi ducia cum amico, pode alcançar-se através do mandato sem representa-ção [...]”. Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil. Contratos em especial, XII, 2.ª parte, Almedina: Coimbra (2018), 511-512, afi rma que os negócios fi duciários e o mandato não se confundem, embora identifi que semelhanças entre os dois negócios, especialmente, na característica comum da atuação por conta.71 Costa Gomes, Em tema de revogação do mandato civil, Almedina: Coimbra (1989), 91.72 Costa Gomes, Em tema de revogação cit., 148-149.73 Costa Gomes, Em tema de revogação cit., 93-94 (na esteira de Luminoso).

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subjetivo74 do benefi ciário relativamente ao acervo patrimonial com fi m de gestão que constitui a situação jurídica fi duciária em que é investido. Enquanto na alienação em garantia o interesse subje-tivo radica no adquirente ser satisfeito, em alternativa, através da imputação dos montantes decorrentes da liquidação do bem, que é o objeto da garantia real, à satisfação do crédito garantido. O bem representa para o credor realmente garantido o objeto da sua situa-ção jurídica de garantia, não lhe é indiferente o seu valor económico. A titularidade da situação jurídica de garantia e interesse no apro-veitamento do bem pertencem à mesma pessoa. Inversamente, no negócio fi duciário para administração75 sucede uma rutura entre a titularidade de uma situação jurídica fi duciária e o alheamento do interesse no aproveitamento do bem que é objeto da situação jurí-dica do fi duciário (o interesse é afetado ao benefi ciário).

Pode ser invocado que o alienante tem interesse na situação jurídica residual que incide sobre os bens transmitidos em garan-tia, na medida em que o adquirente se obriga a retransmitir os bens transmitidos em garantia após a satisfação do seu crédito garantido ou a devolver o montante necessário para impedir o seu enriqueci-mento. Não podíamos, no entanto, estar mais afastados do regime do mandato. A situação jurídica residual cuja titularidade pertence ao alienante é uma consequência da dependência estrutural da situação jurídica de garantia em relação à situação jurídica garan-tida, comum à função económico-social das garantias reais e reve-ladora que a causa da atribuição patrimonial de garantia do cum-primento das obrigações não é adequada a deslocações patrimoniais que enriqueçam o credor garantido. No mandato sem representação para adquirir, a obrigação de retransmissão do mandatário é uma consequência da atuação de gestão (da situação jurídica em que é investido o mandatário) por conta do mandante.

74 O conceito de interesse que utilizamos é subjetivo: interesse é a relação que existe entre um sujeito e um bem apto para satisfazer uma necessidade daquele. Sobre a distinção entre interesse subjetivo e interesse objetivo, Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, I, Coimbra Editora: Coimbra (2008), 495-497.75 André Figueiredo, O negócio fi duciário cit., 88.

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O negócio fi duciário de gestão pode ser descrito76 como o “con-trato do qual resulta, direta ou indiretamente, uma atribuição plena e exclusiva (ainda que temporária) de um bem ao fi duciário – maxime, de um direito de propriedade sobre uma coisa –, gravada porém por um vínculo funcional de natureza obrigacional que ins-trumentaliza a situação jurídica em que fi ca investido o fi duciário à prossecução de um interesse alheio – pertencente ao fi duciante –, e que impõe, nos termos estipulados, a (re)transmissão daquele acervo patrimonial e respetivos frutos para a esfera do fi duciante”. Embora alguns autores admitam que existem negócios fi duciários que divirjam desta descrição (incluindo o negócio fi duciário para garantia) “quer na sua estrutura, quer na sua causa”77 porque se afastam do mandato sem representação (enquanto modalidade de negócio fi duciário), não podemos concordar com esta posição. É, precisamente, por a alienação em garantia não partilhar os traços estruturais e funcionais do negócio fi duciário (em que o mandato sem representação se apresenta como uma modalidade legalmente típica de negócio fi duciário78) que não podemos inseri-la nesta última categoria jurídica 79.

76 André Figueiredo, O negócio fi duciário cit., 83-8477 André Figueiredo, O negócio fi duciário cit., 93.78 Embora não seja única. A substituição fi deicomissária é uma modalidade de negócio fi duciário para administração legalmente típica. As diferenças residem (em relação ao man-dato sem representação) na situação jurídica real em que é investido o fi duciário. Neste instituto jurídico sucessório, a lei consagra um regime semelhante àquele que é plasmado no art. 1184.º. Os bens cuja titularidade temporária pertencem ao fi duciário, em virtude da substituição fi deicomissária, são bens substancialmente alheios porque se encontram funcionalizados à prossecução de um interesse alheio (do fi deicomissário que é titular de uma expetativa jurídica sucessória), não revelando um acréscimo patrimonial na esfera jurídica do fi duciário, por isso, estão imunes à penhora por parte dos credores pessoais deste (com exceção dos frutos originados por aqueles bens, cujo poder de disposição é de exercício livre). Cfr. arts. 2286.º ss..79 De um ponto de vista jurídico atual, Barreto Menezes Cordeiro, Do trust cit., 955-959, considera que o critério que distingue o negócio fi duciário para administração e o negócio fi duciário para garantia é a natureza das obrigações assumidas pelo fi duciário. No negócio fi duciário para administração constituem-se especiais deveres de lealdade e cuidado quanto aos bens que constituem a situação jurídica em que fi ca investido o fi duciário, enquanto no negócio fi duciário para garantia não existe, em princípio, qualquer atividade de adminis-

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2.6. Conclusões sobre a natureza jurídica da alienação em

garantia

Depois de analisar a natureza das garantias especiais e, em especial, das garantias reais, é-nos permitido inserir a alienação em garantia nesta categoria jurídica. A alienação em garantia é um contrato que cumpre os requisitos que se encontram em qualquer garantia especial. A situação jurídica de garantia em que fi ca inves-tido o credor garantido apresenta uma individualidade estrutural em relação à obrigação garantida. Essa individualidade estrutural é evidente quando se considera a causa-atribuição de garantia nas garantias especiais do cumprimento das obrigações: estas não são adequadas à constituição de obrigações garantidas, mas à constitui-ção de uma situação jurídica de garantia funcionalizada à satisfação do credor, em alternativa, em caso de incumprimento da obrigação garantida.

Examinámos o conceito de garantia real e descobrimos três notas que sempre se verifi cam: o bem objeto de uma garantia real é sem-pre um bem patrimonial cujo destino é satisfazer, em alternativa, o cumprimento de uma obrigação; a situação jurídica de garantia em que fi ca investido o credor garantido deve contar com os pode-res necessários para a liquidação do bem se a obrigação garantida não for cumprida e respetiva imputação do montante à satisfação da obrigação garantida, seja porque esses poderes resultam da garantia geral das obrigações ou foram estipulados, explícita ou implicitamente (neste último caso, atenta a utilidade da função económico-social do contrato para interpretação complementadora da declaração do garante) por convenção; e a situação jurídica de garantia deve contar com um mínimo de oponibilidade aos credores comuns do garante porque o bem afeto em garantia já não responde nos termos do princípio do par conditio creditorum, mas com pre-

tração do fi duciário e, por outro lado, não existem os mesmos complexos deveres de lealdade e cuidado subjacentes ao negócio fi duciário para administração. Contudo, o A. rejeita que se abandone o termo fi dúcia para a alienação em garantia, embora assuma que não mere-cem tratamento unitário.

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ferência ou primazia relativamente aos credores do garante e ten-dencialmente (no caso da alienação em garantia, plenamente) pelo valor da obrigação garantida.

Verifi cámos a sobreposição sobre o mesmo bem afeto em garan-tia de duas situações jurídicas diferentes: uma situação jurídica de base constituída pelos poderes e faculdades que surgem da afetação do bem à satisfação, em alternativa, do credor garantido; e uma situação jurídica residual cujo conteúdo são os poderes e faculda-des que sobejam para o garante, que não são atribuídos ao credor garantido porque ultrapassam a medida do necessário à função de garantia que presidiu à constituição da garantia.

Na alienação em garantia, o adquirente é o titular da situação jurídica de garantia e ao alienante é atribuída a situação jurídica residual, nos termos que descrevemos acima. Esta descoberta de duas posições jurídicas sobre o mesmo bem é importante para afi r-marmos que a situação jurídica de base na alienação em garantia, não é uma titularidade plena ou absoluta, isto é, sem qualquer limite. Os limites à titularidade do adquirente encontram-se na causa objetiva do contrato: a garantia. Esses limites não são opo-níveis erga omnes, a sua efi cácia é meramente obrigacional, porque resultam da função económico-social do contrato de alienação em garantia, e não de uma qualquer alteração aos poderes que, em abs-trato, a titularidade absoluta de um direito acarreta.

A função económico-social do contrato de alienação em garantia é inequivocamente a função de garantia. Esta função económico--social assume especial importância na conformação da declaração negocial do garante, nos termos em que já analisámos os nexos de dependência funcional e estrutural.

Podemos descrever a alienação em garantia como um contrato com função económico-social de garantia, que se qualifi ca como garantia real do cumprimento das obrigações, nos termos do qual o alienante transmite a titularidade de um direito para o adqui-rente, prevendo-se em caso de incumprimento da obrigação garan-tida a faculdade de o adquirente alienar os direitos transmitidos em garantia para terceiro ou apropriar-se destes, obtendo satisfação do seu crédito garantido. Se a obrigação garantida é cumprida o adquirente obriga-se a retransmitir a titularidade do direito para o

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alienante80. Esta obrigação de retransmissão radica na função eco-nómico-social de garantia e tem lugar através da celebração de um novo negócio jurídico translativo.

Atente-se que o adquirente aliena a situação jurídica de garan-tia cuja titularidade lhe pertence, funcionalizada à satisfação da obrigação garantida. Não se pode dizer que o credor garantido pode dispor de uma situação jurídica alheia, especifi camente da situa-ção jurídica residual81. A disposição de uma situação jurídica alheia celebrada em nome próprio pelo credor garantido é inadmissível porque o poder de disposição de um direito tem como pressuposto que o disponente seja o seu titular82.

80 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit., 468, 501, que se debruçou especifi camente sobre a cessão de créditos em garantia sufraga a inexistência de uma obrigação de retrans-missão dos créditos cedidos em garantia, e nota que não se pode, igualmente, subscre-ver uma obrigação de devolução da diferença entre o montante necessário à satisfação do crédito garantido e os bens transmitidos em garantia. O que existiria seria a cessa-ção da causa justifi cativa da atribuição patrimonial de garantia com o cumprimento da obrigação garantida, que importaria o efeito automático de cessação da manutenção da titularidade dos créditos cedidos na esfera jurídica do credor garantido. Esta posição só merece acolhimento na alienação em garantia sujeita a evento resolutivo com o cumpri-mento da obrigação garantida porque a cessação da causa da atribuição pela verifi cação da condição implica a retroatividade dos efeitos à data da conclusão do negócio (art. 276.º). O regime subsidiário aplicável com a cessação da causa-atribuição de garantia não pode ser semelhante àquele que é estabelecido apenas por convenção na propriedade reservada ou que resulta da natureza provisória do direito de propriedade em que é investido o fi du-ciário na substituição fi deicomissária, constitutivos de expetativas jurídicas de aquisição. Nestes negócios não é necessária uma nova declaração de vontade para suceder a trans-missão do objeto, basta que se verifi que o evento necessário para operar a transmissão subjacente ao negócio. Na alienação em garantia não é possível arguir que o alienante tem uma expetativa jurídica de (re)aquisição porque não se sabe a priori qual é o destino do bem: liquidação para imputar o montante na satisfação da obrigação garantida ou constituição de um direito de crédito à retransmissão do bem ao alienante com o cumpri-mento da obrigação garantida. De um ponto de vista funcional, o contrato aproxima-se mais daquela do que desta.81 Em sentido contrário, Pereira das Neves, A cessão de créditos cit., 490-491.82 Embora muito discutida, na nossa opinião, e por este motivo, o mandato sem represen-tação para alienar pressupõe a transmissão fi duciária da propriedade para o mandante, não vigorando a teoria da projeção imediata.

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Se o produto da alienação dos direitos é superior ao valor do crédito garantido, o adquirente obriga-se a devolver a diferença ao alienante, atento ao princípio da neutralidade patrimonial das garantias reais. Se o adquirente se recusar a retransmitir os bens, o alienante só pode fazer uso de ações pessoais e não reais (v.g., de reivindicação) porque o direito do alienante tem natureza creditícia cujo conteúdo é uma prestação de facere que consiste na celebração de um novo negócio jurídico translativo.

A inserção do contrato na categoria das garantias reais permi-te-nos procurar pelos princípios e normas injuntivas que regulam as últimas e procurar saber se o contrato é admissível. As próxi-mas páginas procuram responder a esta questão, analisando os pro-blemas que a doutrina aponta como relevantes para averiguar a admissibilidade da alienação em garantia, no quadro das garantias reais. Por outro lado, a exclusão da alienação em garantia da cate-goria dos negócios fi duciários ajuda-nos a evitar conclusões precipi-tadas sobre uma potencial adaptação das soluções jurídicas que a doutrina moderna encontrou para o negócio fi duciário para admi-nistração, sobretudo na sua vertente externa.

3. Problemas de admissibilidade da alienação em garantia

3.1. A proibição do pacto comissório

A questão da admissibilidade da alienação em garantia deve ser perspetivada à luz das normas injuntivas que regulam as restantes garantias reais. Como afi rmámos, a alienação em garantia é um contrato legalmente atípico e misto, com vários tipos de referên-cia. Esses tipos de referência consagram normas injuntivas que têm de prevalecer perante a vontade das partes. A norma do art. 694.º é especialmente relevante porque é transversal às garantias reais previstas no Código Civil e prevê a hipótese de o garante alienar a coisa onerada ao benefi ciário da garantia (credor da relação princi-pal). O percurso para saber se é admissível a alienação em garantia deve iniciar-se com o fundamento da proibição do pacto comissório, isto é, por que é proibido ao garante transmitir o bem que é objeto

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da garantia real ao benefi ciário da garantia83-84, situação que se verifi ca na alienação em garantia.

Alguma doutrina tradicional aponta que a proibição do pacto comissório se destina a proteger o devedor que pela necessidade de obter crédito, facilmente consentiria na alienação da coisa que é objeto da hipoteca ao seu credor, em caso de não cumprimento do crédito85. Esta situação resultaria no locupletamento injusto do cre-dor porque, em boa razão, a coisa que este adquirira tinha um valor económico superior ao crédito garantido incumprido. O art. 694.º representaria um corolário de uma condenação (mais geral) da lei em relação aos negócios usurários (art. 282.º)86. O pacto comissório real resulta expressamente proibido por lei.

O pacto comissório obrigacional não está expressamente proi-bido. Mas se é proibido o pacto real pelos motivos apresentados, o pacto obrigacional (o credor tem um direito de crédito à transmissão

83 Costa Gomes, Assunção fi dejussória cit., 90-92; Orlando de Carvalho, Prefácio em Escri-tos. Páginas de Direito, Almedina: Coimbra (1998), 27-28; Monteiro Pires, Alienação em garantia cit., 251 ss.; Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de cum-primento, 5.ª ed., Almedina: Coimbra (2006), 247; 84 Não há nada que impeça o devedor de extinguir a sua obrigação através de dação em cumprimento, eventualmente, através do objeto onerado com a garantia. Esta situação distingue-se do pacto comissório porque na dação em cumprimento (art. 837.º) o devedor entrega um aliud, com o assentimento do credor para extinção imediata da obrigação (solvendi causa). Naquela estabelece-se um meio alternativo de satisfação do credor cuja causa da atribuição patrimonial é a garantia de um crédito e, em princípio, só extingue a obrigação garantida se o credor é totalmente satis-feito. Em sentido semelhante, Franco Anelli, L’alienazione in funzione di garanzia, Giuffrè: Milão (1996), 89, refere que a estipulação comissória pode sintetizar-se numa modalidade de extinção alternativa e secundária do crédito mediante a transferência da propriedade do objeto da situação jurídica de garantia ao credor garantido. Este efeito transmissivo é estabelecido in funzione satisfattiva, antes de se verifi car o incumprimento, no momento em que é constituída a situação jurídica de garantia. Igualmente, Andrea Sassi, Garanzia del credito e tipologie commissorie, Edizioni Scientifi che Italiane: Nápoles (1999), 209 ss.. Argumentando que a estipulação comissória tem uma função solutória, Nicola Cipriani, Patto commissorio e patto marciano. Proporzionalità e legittimità delle garanzie, Edizioni Scientifi che Italiane: Nápoles (2000), 116 ss..85 Adriano Vaz Serra, Penhor. Penhor de coisas, penhor de direitos, 58 BMJ, (1956), 205.86 João Antunes Varela, Das obrigações em geral, II, 7.ª ed. (reimpressão), Almedina: Coim-bra (2012), 554-555; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria geral do direito civil, 8.ª ed., Alme-dina: Coimbra (2018), 569-570.

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da coisa) é, também, proibido porque o resultado é semelhante atra-vés da execução específi ca da obrigação.

É discutido se a proibição do pacto comissório é circunscrita aos casos estipulados na lei ou se é aplicável a todos os negócios jurí-dicos em que as partes pretendem contornar a proibição legal87. Na nossa opinião, a aplicação é direta no caso de uma garantia real, sem prejuízo da sua aplicação analógica quando o negócio celebrado pelas partes revele um fi m de garantia que visa afastar a razão da proibição legal88.

A questão subjacente é determinar o âmbito de aplicação da norma e harmonizar a estrutura do preceito com a razão da proibi-ção. Parece evidente que a razão da proibição deve ser privilegiada na descoberta do âmbito de aplicação89, atendendo que o pacto obri-gacional deve ser proibido (embora não resulte expressamente do art. 694.º) porque a razão de ser da norma não deixa de se verifi car. O resultado seria semelhante ao que as partes conseguiriam com o pacto real proibido e a disparidade de regimes difi cilmente podia ser justifi cada. Semelhante ideia que ajuda a rejeitar uma conce-ção meramente estrutural do pacto comissório é aquela que fi rma a distinção da alienação em garantia na estrutura do pacto comis-sório: na última, a transmissão do objeto está sujeita a condição suspensiva do incumprimento do crédito; naquela a transmissão não está sujeita a este requisito. A conceção estrutural seria facil-mente ultrapassada pelas partes, bastava que convencionassem um evento suspensivo distinto do incumprimento do crédito garantido

87 O problema é vetusto, Vaz Serra, Penhor cit., 208. O A. defende que a norma é aplicável a outros contratos em que os contraentes podem obter o mesmo resultado, mencionando, como exemplos, a venda com pacto de resgate e o pacto obrigacional de venda a retro.88 Em sentido semelhante, Costa Gomes, Assunção fi dejussória cit., 95-96; Ramos Alves, Dação em cumprimento cit., 654; Ana Filipa Morais Antunes, O contrato de locação fi nan-ceira restitutiva, UCP: Lisboa (2008), 37-38.89 Costa Gomes, Assunção fi dejussória cit., 91-92; Morais Antunes, O contrato cit., 37; Francesco Macario, Il divieto del patto commissorio e la cessione dei crediti in garanzia” em Diritto Civile. Attuazione e tutela dei diritti. L’attuazione dei diritti. IV, tomo II, coord. Nicolò Lipari/Pietro Rescigno, Giuffrè: Milão (2009), 205. Adotando uma posição estru-tural, Maria João Vaz Tomé/Diogo de Leite de Campos, A propriedade fi duciária (trust). Estudo para a sua consagração no direito português, Almedina: Coimbra (1999), 214-215.

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para operar a transmissão. A invocação dos diferentes momentos estruturais da transmissão do objeto para distinguir as duas fi gu-ras “soa mais a alibi do que a argumento”90, mister é analisar a validade da alienação em garantia à luz da ratio da proibição do pacto comissório.

A doutrina italiana91 invocou que a razão de ser da proibição não podia somente ser alicerçada na proteção do devedor porque este motivo não era sufi cientemente explicativo. Se a razão de ser da norma é a proteção do devedor, estamos perante uma contradição valorativa no ordenamento jurídico. Enquanto os negócios usurá-rios são anuláveis (art. 282.º), a lei comina com a nulidade a cele-bração do pacto comissório. Por outro lado, o art. 694.º pode suscitar o problema da cominação com a nulidade de pactos comissórios que, em concreto, até se podem manifestar favoráveis ao devedor. O bem que é o objeto do pacto comissório pode ser menos valioso que o cré-dito garantido e os contraentes podem convencionar a limitação da responsabilidade patrimonial àquele objeto (art. 602.º).

Proliferaram as teses sobre os motivos subjacentes à proibição92. Alguns autores alegaram que a proibição do pacto comissório é um corolário de um princípio geral que proíbe a autotutela e autossatis-fação do credor93. Outros alegaram que existe um interesse geral em evitar o alastramento deste pacto porque causa um prejuízo social no regular desenvolvimento das relações jurídicas pelo maior peso negocial do credor94. Ademais, há quem radique na tutela conferida aos credores comuns do alienante pelo princípio do par conditio cre-ditorum a razão da proibição. Para outros o problema reside na des-proporção entre o valor patrimonial do objeto onerado e o montante

90 Costa Gomes, Assunção fi dejussória cit., 91-92.91 Cfr. a doutrina citada por Ugo Carnevali, Patto commissorio em Enciclopedia del diritto, XXXII, Giuffrè: Milão (1982), 500.92 Sobre os vários fundamentos do pacto comissório, Andrade de Matos, O pacto comissório cit., 58-73; Feliu Rey, La prohibición del pacto comisorio y la opción en garantía, Editorial Civitas: Madrid (1995), 66 ss..93 Esta teoria não pode ser aceite perante o direito português. Desde logo, pela convenção de venda extraprocessual do penhor prevista no n.º 1 do art. 675.º.94 Cesare Massim Bianca, Il divieto del patto commissorio, Giuffrè: Milão (1957), 216 ss..

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do crédito garantido, locupletando injustamente o credor. Final-mente, a razão de ser subjacente à proibição pode ser complexa: por um lado, a proteção do devedor perante negócios que locupletariam o credor, por outro, a necessidade de acautelar a posição dos credo-res do alienante e não desfi gurar o regime aplicável aos credores garantidos através da concessão de privilégios convencionais para alguns credores95.

A teoria que fundamenta a proibição do pacto comissório na pro-teção do alienante enfrenta problemas. Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que não é apoiada no texto do preceito legal (n.º 2 do art. 9.º); ao invés, fundamenta-se numa perspetiva histórica de proteção do alienante. Este, necessitado de crédito, podia alienar aquilo que, em boa verdade, não desejava. Em segundo lugar, se a razão de ser do art. 694.º é proteger o alienante de um negócio usurário, estamos perante (supostamente) uma norma especial porque o seu âmbito de aplicação é totalmente preenchido pelo art. 282.º. Este refere no seu n.º 1 que “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade […] de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustifi cados”. As duas normas têm consequências jurídicas distintas. O negócio usurário é anulável, o pacto comissó-rio é nulo. Esta situação representaria uma contradição valorativa particularmente impressiva porque resulta de normas presentes no mesmo diploma e que vigoram concomitantemente desde o início da vigência do Código Civil. Se o valor protegido pelas duas normas radica na reprovação da usura (no sentido axiológico, não de vício do consentimento e conteúdo) para tutela da liberdade contratual do devedor, as distintas consequências jurídicas não têm aparente explicação. A existência de uma contradição valorativa é gravosa

95 Esta última posição é a que reúne maior consenso entre a doutrina moderna e foi acolhida por Costa Gomes, Assunção fi dejussória cit., 94; Andrade de Matos, O pacto comissório cit., 73-75; João Remédio Marques, Locação fi nanceira restitutiva (sale and lease back) e a proibição dos pactos comissórios – negócio fi duciário, mútuo e ação executiva, 77 BFDUC (2001), 607; João Calvão da Silva, Banca, bolsa e seguros. Direito europeu e português, tomo I, 5.ª ed., Almedina: Coimbra (2017), 314; Ramos Alves, Dação em cumprimento cit., 650; Morais Antunes, O pacto comissório cit., 34-35.

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porque é um desvio ao princípio de igualdade de tratamento (coro-lário de uma ideia de justiça) do que é, segundo as valorações do ordenamento jurídico, igual ou idêntico. Evitar estas contradições valorativas é um dever para o intérprete, embora não signifi que que a contradição tenha necessariamente de ser eliminada96.

Seguindo a diferença de consequências jurídicas que resultam dos dois preceitos legais, devemos questionar-nos se estamos verda-deiramente perante uma contradição valorativa ou, na realidade, na presença de dois valores distintos prosseguidos por aquelas normas.

Para concluirmos que estamos perante um negócio usurário é necessário que o negócio seja viciado por usura (em sentido de vício do conteúdo e do consentimento) que representa simultaneamente um vício da vontade e uma lesão97. Para verifi carmos que estamos perante um negócio usurário é necessário que se verifi quem dois elementos: subjetivo e objetivo. O elemento subjetivo diz respeito ao lesado e ao usurário, o elemento objetivo refl ete-se no conteúdo do negócio jurídico. O elemento subjetivo refl ete uma situação de infe-rioridade do lesado que é aproveitada conscientemente (não é neces-sário que aproveite intencionalmente) pelo usurário. O elemento objetivo consiste numa lesão excessiva e injustifi cada causada pela celebração de um negócio jurídico.

Com este pano de fundo compreende-se por que a lei sancionou o negócio usurário com a anulabilidade. A sanção da anulabilidade é harmoniosa com os casos, previstos no Código Civil, em que o inte-resse tutelado é a contratação livre de vícios.

A inserção sistemática do art. 694.º, no capítulo VI, relativo às garantias especiais das obrigações merece que se faça uma análise garantística do preceito procurando pelos princípios que regem os capítulos relativos à garantia geral e garantia especial. A leitura conjugada do art. 694.º com o n.º 1 do art. 605.º, na nossa opinião, permite concluir que o fundamento (ratio) do pacto comissório não é tutelar o alienante ou o devedor. A tese de que o fundamento do art.

96 Repare-se que estamos perante uma contradição de valorações, e não perante uma con-tradição de normas, Karl Larenz, Metodologia da ciência do Direito, 7.ª ed., trad. José Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa (2014), 471-472.97 Pedro Camargo de Sousa Eiró, Do negócio usurário, Almedina: Coimbra (1990), 19 ss..

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694.º reside na tutela do devedor necessitado de crédito pressupõe que o devedor e o alienante são a mesma pessoa. No entanto, pode assim não suceder. De facto, o alienante podia ser terceiro à relação principal (v.g., um mútuo), mas parte na relação de garantia que estabeleceu com o credor da relação principal. Esta situação não se pode dizer estranha se atendermos à localização sistemática do art. 694.º; este encontra-se no capítulo dedicado às garantias especiais das obrigações, cuidando a lei de esclarecer que as garantias reais podem ser constituídas por terceiros à relação principal (n.º 2 do art. 658.º; n.º 1 do art. 666.º e n.º 1 do art. 686.º). O art. 694.º não faz referência explícita à qualidade do alienante porque pode ser o devedor ou terceiro apenas refere que é nula a convenção pela qual o credor adquire a coisa onerada, em consequência do não cumpri-mento do devedor. A sanção prevista pelo art. 694.º procede ainda que o devedor e o alienante sejam pessoas diferentes e, assim é, porque o interesse tutelado pela norma não radica no devedor da relação principal. Não se pode afi rmar que o interesse tutelado pela norma se destina prima facie à proteção do devedor porque pode não contratar em “situação de necessidade” (n.º 1 do art. 282.º) para a obtenção de crédito porque, em primeiro lugar, pode não ser parte na relação de garantia e, em segundo lugar, ainda que fosse o pacto comissório não tem que lhe ser desfavorável.

Outra corrente na doutrina alega que o pacto comissório e o negócio usurário têm âmbitos de aplicação distintos e aquele não tem o elemento subjetivo do negócio usurário98. Argumentam que a proibição do pacto comissório encontra o seu fundamento na des-proporcionalidade das atribuições patrimoniais quando a relação de

98 Alguma doutrina, porventura aquela que dominou o pensamento sobre o pacto comissó-rio no séc. XX, não menciona a usura (nem o negócio usurário) ou eventual debilidade do devedor, mas a desproporção existente, normalmente, entre o valor do bem e o montante do crédito. Assim, Guilherme Moreira, Instituições, II, cit., 336-337; Paulo Cunha, Da garantia das obrigações, II, cit., 215-216; Pestana de Vasconcelos, A cessão de créditos em garantia e a insolvência: em particular da posição do cessionário na insolvência do cedente, Coimbra Editora: Coimbra (2007), 626-627; Contra, Ramos Alves, Dação em cumprimento cit., 642-643, que refere que não existe qualquer elemento no texto da norma que permita aferir a ilicitude do pacto comissório pela desproporção entre o valor do bem alienado e o valor do crédito garantido.

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garantia está sobreposta à relação principal e na tutela da parte mais débil. Tipicamente, a coisa alienada tem um valor patrimonial superior ao crédito garantido. O pacto comissório visaria tutelar o alienante que perderia um bem, sem restituição da diferença entre o valor deste e o valor do crédito, provocando um locupletamento do credor. Esta ideia não pode ser aceite. Em princípio, a desproporcio-nalidade do valor patrimonial das atribuições patrimoniais não é, por si só, tutelada pelo direito. V.g., na compra e venda pode ocor-rer que a prestação do preço seja signifi cativamente mais elevada que o valor de mercado da coisa vendida, locupletando o vendedor. Esta situação não desencadeia quaisquer consequências jurídicas per se. A liberdade contratual possibilita que o vendedor estabe-leça o preço que melhor lhe aprouver e a mesma liberdade goza o comprador de aceitar o preço99. Veja-se igualmente o art. 837.º, em secção dedicada à dação em cumprimento, que refere que “a pres-tação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento”. Neste instituto, a lei valida uma situação clara de desproporcionalidade entre o valor patrimonial da prestação devida e o valor patrimonial do aliud. A proibição do pacto comissório não pode residir somente na desproporcionalidade do valor patrimonial das atribuições ine-rente à natureza do pacto comissório por respeito ao princípio da liberdade contratual100.

Se o fundamento da proibição não se encontra no alienante (ou devedor da relação principal) devemos ponderar o interesse dos credores do alienante que através do pacto comissório observam a transmissão da titularidade de um direito para garantia de uma obrigação de um credor específi co.

99 Sobre as exceções à liberdade de estipulação de preço para os profi ssionais, Jorge Morais Car-valho, Direito do consumo, 5.ª ed., Almedina: Coimbra (2018), 80-82.100 Sobre a liberdade de estipulação de preço, Paolo Greco/Gastone Cottino, Della vendita (art. 1470.º-1547.º), Commentario del Codice Civile a cura di Antonio Scialoja e Giuseppe Bianca, Livro IV, Delle obbligazioni, 1.ª ed. (reimpressão), Nicola Zanichelli Editore, Società Editrice del Foro Italiano (1964), 92-94.

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3.2. O pacto marciano e a sua inserção no quadro dos efeitos

jurídicos da situação jurídica residual

Devemos saber se é admissível a convenção através da qual o alienante transmite a propriedade da coisa para o credor da relação principal (adquirente na relação de garantia) em caso de incumpri-mento da obrigação garantida, fi cando este obrigado a restituir ao alienante a diferença entre o valor do crédito garantido incumprido e o valor do bem, se o último é de valor superior em relação ao pri-meiro. Esta convenção é denominada por pacto marciano e a sua distinção em relação ao pacto comissório é a não verifi cação de um locupletamento do credor da relação principal. O pacto marciano não é expressamente proibido no Código Civil e a sua admissibili-dade depende da posição que seja assumida perante o fundamento da proibição do pacto comissório101.

O pacto marciano é uma consequência da causa da atribuição patrimonial de garantia na alienação em garantia, nessa medida não é necessário que o pacto seja expresso no texto do contrato. Conforme aduzimos, a função económico-social das garantias reais conforma a declaração do garante, assim (após a qualifi cação do contrato) a causa-atribuição de garantia destes negócios não é apta a realizar atribuições patrimoniais que locupletam o credor garan-tido, ao invés, regem-se pelo princípio da neutralidade patrimonial. O que se impõe questionar é a validade da alienação em garantia quando está pressuposto o pacto marciano. O pacto marciano é uma consequência da causa-atribuição de garantia que se constitui na situação jurídica residual em que está investido o garante com o incumprimento da obrigação garantida após a execução da garantia.

O efeito jurídico de constituição de um direito de crédito à devo-lução do montante desnecessário à satisfação da obrigação garan-tida é um efeito possível da causa-atribuição de garantia que se constitui na situação jurídica residual cuja titularidade pertence ao

101 Costa Gomes, Assunção fi dejussória de dívida cit., 95 ss..O pacto marciano foi expres-samente admitido para os contratos de alienação em garantia, no quadro dos contratos de garantia fi nanceira, que se regem pelo Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de maio, no seu art. 11.º.

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garante. Caso a obrigação garantida seja cumprida, o efeito jurídico espoletado por esse sucesso e justifi cado pela causa-atribuição de garantia é a constituição de um direito de crédito do alienante à retransmissão dos concretos bens alienados em garantia.

A maioria da doutrina102 pronuncia-se favoravelmente sobre a admissibilidade do pacto marciano, por não se verifi carem os peri-gos usurários e/ou de desproporcionalidade das atribuições patri-moniais que, supostamente, o pacto comissório acarreta.

Esta posição parte de um fundamento da proibição do pacto comissório que recusámos por inadequada a proporcionar uma explicação satisfatória da norma. Os autores justifi cam a validade do pacto marciano pressupondo que o desvalor do pacto comissório radica na desproporcionalidade do valor das atribuições patrimo-niais quando a relação de garantia e relação principal estão sobre-postas. A reprovação da usura seria aqui perspetivada no prisma axiológico, proibindo uma convenção adequada à criação de uma lesão enorme para o garante. Conforme aludimos, essa não é a nossa posição.

As consequências do pacto marciano devem ser ponderadas à luz da proteção dos restantes credores do alienante. O pacto marciano representa um desvio à tutela que o ordenamento jurídico providen-cia aos credores garantidos por uma garantia real103. Estes credores em caso algum previsto no n.º 2 do art. 604.º subtraem a situação jurídica de garantia ao concurso de credores. V.g., o credor hipote-cário não tem prioridade perante o credor que benefi cie de um privi-

102 Costa Gomes, Assunção fi dejussória cit., 95; Luís Menezes Leitão, Garantias das obriga-ções, 6.ª ed., Almedina: Coimbra (2018), 267-268; Tiago Soares da Fonseca, O penhor de acções, Almedina: Coimbra (2007), 137-138; Ramos Alves, Dação em cumprimento cit., 659-662; Remédio Marques, Locação fi nanceira restitutiva cit., 607-608; Júlio Vieira Gomes, Sobre o âmbito da proibição do pacto comissório, o pacto comissório autónomo e o pacto marciano, 8 CDP (2004), 55-72, 71-72; Carvalho Fernandes, A admissibilidade cit., 250-251; Pestana de Vasconcelos A cessão de créditos cit., 285, 633-642. Anelli, L’alienazione cit., 453. Contra, Vaz Serra, Penhor cit., 219, argumenta que o credor adquiria uma coisa que o devedor, se não fosse a necessidade de crédito, não lhe queria alienar. 103 No mesmo sentido, Morais Antunes, O pacto comissório cit., 38-43. Embora admita a validade do pacto marciano em “relações jurídicas caracterizadas por um equilíbrio de posições contratuais”.

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légio imobiliário especial (art. 751.º) ou sobre o credor que benefi cie de direito de retenção nos termos do n.º 2 do art. 759.º. Ademais, o produto da liquidação do objeto que constitui uma garantia real legalmente típica pode suportar a totalidade das dívidas da massa insolvente desde que essa situação seja indispensável à satisfa-ção integral das mesmas e na respetiva medida (n.º 2 do art. 172.º CIRE). O pacto marciano representa um desvio para os credores do alienante devido à subtração do adquirente às regras que dominam a satisfação dos credores garantidos e restantes credores consoli-dando um afastamento do princípio da igualdade dos credores (n.º 1 do art. 604.º) porque o bem que é objeto da situação jurídica de garantia não se encontra no património do alienante.

A subtração da situação jurídica de garantia ao concurso de cre-dores deve ser analisada em dois momentos. Em primeiro lugar, as consequências para os credores do alienante durante o tempo que medeia entre a constituição da garantia real e o cumprimento ou incumprimento da obrigação garantida. Em segundo lugar, quais são as consequências para os credores do alienante com a declara-ção de insolvência do adquirente.

O art. 601.º consagra o princípio de que o património do deve-dor é a garantia geral dos credores. A transmissão da titularidade dos direitos do alienante para o adquirente tem uma consequência jurídica durante a pendência da garantia: a impossibilidade para os credores do alienante de executarem uma situação jurídica que é alheia ao património do devedor104.

Os credores comuns podem penhorar o bem onerado com um direito real de garantia que se encontra no património do devedor105, citando-se v.g., o credor hipotecário para reclamar o pagamento do seu crédito (alínea b), n.º 1, do art. 786.º do CPC). A penhora do bem hipotecado implica que o credor hipotecário tenha que recla-mar um crédito (que pode ser vincendo) sujeitando-se a que o paga-mento seja realizado com o desconto correspondente ao benefício da

104 Pestana de Vasconcelos, A cessão de créditos cit., 204.105 Repare-se que entre os titulares de direitos reais de garantia não se estabelecem rela-ções de incompatibilidade, mas de coexistência através da respetiva graduação de créditos. Augusta Ferreira Palma, Embargos de terceiro, Almedina: Coimbra (2001), 94-95.

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antecipação (n.º 3 do art. 791.º CPC)106. Esta situação difi cilmente ocorre na alienação em garantia devido ao caráter oculto do con-trato. A situação jurídica de garantia não está sujeita a qualquer publicidade, ao invés das garantias reais convencionais tipifi cadas no Código Civil que publicitam as situações jurídicas de garantia, ainda que com diversos graus de intensidade.

A falta de publicidade da situação jurídica de garantia é deter-minante para desconsiderar a possibilidade de execução dos bens alienados por parte dos credores do alienante, sobretudo para aque-les autores que consideram que a transmissão que sucede na alie-nação em garantia não é plena e exclusiva, mas apenas tenden-cialmente plena e exclusiva. Esta situação abre a possibilidade aos credores do alienante de penhorarem a situação jurídica de garan-tia. O credor garantido deveria ser satisfeito de forma semelhante a qualquer credor que benefi cie de uma garantia real, não podendo deduzir embargos de terceiro por ações executivas movidas pelos credores do alienante.

A transmissão seria tendencialmente plena e exclusiva107 porque o acervo patrimonial transmitido materialmente pertence ao alie-nante, apenas formalmente o seu titular é o adquirente108. O credor garantido não benefi ciaria de oponibilidade absoluta da situação jurídica de garantia face aos credores do alienante. Atendendo às consequências jurídicas que a lei estabelece para os credores que benefi ciam de garantias reais, em caso de penhora dos bens que são objeto dessas garantias (antecipação do momento do cumprimento para o devedor e desconto pelo benefício da antecipação para o cre-dor), nenhuma das partes tem interesse na publicidade da situa-ção jurídica de garantia. A alienação em garantia é um contrato hábil para contornar o princípio da publicidade dos direitos reais de garantia que, com maior ou menor intensidade, se verifi cam nas situações jurídicas de garantia constituídas por garantias reais con-vencionais legalmente típicas.

106 Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias cit., 231-232. 107 Pereira das Neves, A cessão de créditos cit., 568.108 Sobre a distinção entre titularidade material e formal. Monteiro Pires, Alienação em garantia 222 ss..; André Figueiredo, O negócio fi duciário cit., 172 ss..

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Ademais, na nossa opinião, embora a distinção entre titulari-dade formal e titularidade substancial seja adotada no art. 1184.º109 e justifi que a separação de patrimónios em caso de execução movida pelos credores do mandatário ou insolvência deste, esta norma deve ser lida à luz das considerações que tecemos sobre a relevância do interesse no tipo contratual do mandato sem representação. Embora o mandatário seja titular formal dos bens que são objeto do contrato de mandato sem representação para adquirir, o interesse sobre o destino dos bens radica no mandante que é o seu titular substan-cial, isto é, em termos económicos as perdas decorrentes de uma execução movida pelos credores do mandatário seriam imputadas ao mandante, atendendo que aquele atua por conta deste.

Situação distinta nas garantias reais porque inexiste uma dis-sociação da titularidade de uma situação jurídica de garantia e imputação do interesse nos bens em sujeitos distintos. Esta posi-ção é corroborada pelo art. 701.º sobre a substituição ou reforço da hipoteca. A redação do artigo alude à hipótese de perecimento ou insufi ciência da coisa hipotecada para garantia do cumprimento da obrigação garantida, por causa não imputável ao credor, facul-tando ao credor garantido a possibilidade de exigir a substituição ou reforço da coisa hipotecada ao devedor. Este artigo é demonstrativo da simbiose entre titularidade e interesse nas situações jurídicas de garantia. O credor garantido pode exigir a substituição ou reforço da coisa hipotecada ao devedor porque não lhe é indiferente a perda ou insufi ciência dos objetos que constituem a sua garantia real e funcionam como meio de satisfação alternativa da obrigação garan-tida, ao invés do que sucede no mandato sem representação na rela-ção entre o mandatário e os objetos do contrato. Devemos rejeitar a aplicação analógica do art. 1184.º para o contrato de alienação em garantia por insufi ciência do juízo valorativo de ocorrência de um caso análogo ao contrato de mandato sem representação, atendendo às diferenças estruturais e funcionais apresentadas nos dois casos.

109 Sobre o art. 1184.º, André Figueiredo, Mandato sem representação, segregação patrimonial e concurso de credores em Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, I, coord. Armando Marques Guedes/Maria Helena Brito/Rui Pinto Duarte/Mariana França Gouveia, Coimbra Editora: Coimbra (2013), 193-236, 197 ss..

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A rejeição da aplicação analógica do art. 1184.º ao contrato de alienação em garantia tem consequências importantes. Se os credo-res do alienante não podem penhorar a situação jurídica de garan-tia, os credores do adquirente não têm qualquer obstáculo para requerer em execução os objetos que constituem a situação jurídica de garantia, fundando a sua pretensão na regra geral que o patri-mónio do devedor é a garantia geral dos credores (art. 601.º).

Clarifi cando as premissas do nosso juízo nas linhas anteriores, as conclusões em caso de insolvência são claras. Se o adquirente é declarado insolvente durante a execução do contrato, os bens trans-mitidos são integrados na massa insolvente para satisfação dos cre-dores no processo insolvencial. A obrigação garantida vence-se com a declaração de insolvência, obrigando o devedor a prestar. Os bens transmitidos em garantia devem ser liquidados para pagamento dos credores comuns do adquirente, encontrando-se o alienante como credor comum da insolvência. Se o devedor incumpre a obrigação garantida, na situação jurídica residual do alienante deve consti-tuir-se um direito de crédito à devolução da diferença entre o valor do acervo patrimonial transmitido e o valor da obrigação garantida incumprida. Se o devedor cumpre a sua obrigação, na situação jurí-dica residual constitui-se um direito de crédito no valor dos bens transmitidos (atendendo ao princípio da neutralidade patrimonial inerente à causa-atribuição de garantia) e, entretanto, liquidados para satisfação do seu crédito e dos restantes créditos comuns. Esta situação, mais uma vez, representa um desvio signifi cativo em rela-ção às garantias reais legalmente típicas. Nas últimas, os credores comuns do credor garantido insolvente não se satisfazem direta-mente com o montante da liquidação da titularidade absoluta dos bens que são objeto da situação jurídica de garantia.

No entanto, a situação jurídica residual pode aproximar-se a uma tutela absoluta (real) quando a situação jurídica de garantia está, convencionalmente, sujeita a evento resolutivo com o cum-primento da obrigação garantida (por aplicação analógica do art. 276.º previsto para os negócios condicionais) porque a verifi cação do evento resolutivo implica que os efeitos do evento se retrotraem à data da conclusão do contrato de alienação em garantia. Esta prote-ção é extensível à situação de alienação a terceiro dos bens que são

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objeto do contrato de alienação em garantia (art. 274.º) por parte do adquirente, ressalvando as normas registrais. É importante frisar que essa proteção só se verifi ca com o cumprimento da obrigação garantida porque esse é o evento resolutivo que espoleta a efi cácia retroativa da alienação. Não se verifi cando o cumprimento da obri-gação garantida, inexiste qualquer proteção absoluta da situação jurídica residual cuja titularidade pertence ao alienante.

As situações elencadas representam uma degradação da garan-tia geral para os credores do alienante e um risco contratual para o alienante que, na nossa opinião, não harmoniza o princípio da auto-nomia privada para a constituição de garantias reais convencionais com a tutela do interesse creditório previsto em vários institutos jurídicos.

É comum dizer-se que o princípio do par conditio creditorum só opera em concurso de credores e só releva quando o património do devedor não é sufi ciente para o pagamento de todos os créditos do insolvente. Convém notar que, efetivamente, o processo de insol-vência não visa a satisfação do direito individual de cada credor, pelo contrário, visa o tratamento igualitário de todos os credores do devedor nos termos do par conditio creditorum porque é um pro-cesso de execução coletivo110, embora surja inicialmente como pro-cesso declarativo que visa declarar e apreciar a situação de insol-vência111. Enquanto na execução individual domina o princípio do vigilantibus et non dormientibus jura subveniunt porque não são prejudicados os restantes credores do devedor, porquanto o patri-mónio é, pelo menos, aparentemente solvente para a satisfação de todos os créditos. Se o devedor é incapaz de cumprir as suas obriga-ções, seja por ausência de liquidez momentânea ou, em certos casos, porque o total das suas responsabilidades excede os bens que pode dispor para as satisfazer pode ser declarado insolvente. Já não rege o princípio do vigilantibus et non dormientibus jura subveniunt, mas o princípio do par conditio creditorum porque, neste caso, a execução individual importa um tratamento desigual dos credores,

110 Luís Menezes Leitão, Direito da insolvência, 8.ª ed., Almedina: Coimbra (2018), 18-19.111 Rosário Epifânio, Manual de direito da insolvência, 6.ª ed., Almedina: Coimbra (2014), 15.

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visto que seriam pagos primacialmente os credores que se adian-taram na execução112 e o devedor podia continuar a dispor do seu património, podendo onerá-lo ou dissipá-lo113.

As garantias reais só relevam se o património do devedor não é sufi ciente para a satisfação de todos os créditos (se o patrimó-nio do devedor é sufi ciente para a satisfação de todos os créditos é irrelevante qualquer garantia especial porque a garantia geral é bastante), portanto o princípio do par conditio creditorum, na sua vertente de partilha proporcional das perdas entre os credores, opera na sua plenitude precisamente no mesmo momento em que as garantias reais relevam: em concurso de credores quando o patri-mónio do devedor é apreciado como insufi ciente para a satisfação de todos os créditos.

Conclusões

O fundamento da proibição do pacto marciano é um refl exo da proibição do pacto comissório. A nulidade é imposta para tutela de terceiros (credores do alienante) por violação do princípio do par conditio creditorum. Nas duas situações, se admissíveis, seriam adequadas à criação de uma preferência legalmente atípica porque o credor do pacto marciano seria satisfeito pela imputação do mon-tante da liquidação dos bens transmitidos em garantia à satisfação da obrigação garantida, com primazia em relação a todos os credo-res do devedor através da subtração da situação jurídica de garan-tia ao concurso de credores, situação que é proibida pelo n.º 2 do art. 604.º que estabelece a tipicidade legal das causas legítimas de preferência.

112 Na execução singular só os credores titulares de uma garantia real são chamados ao processo, se o bem onerado é penhorado por outros credores do titular do direito real de gozo sobre aquele bem, por outro lado, vigora o princípio da prioridade. Miguel Teixeira de Sousa, A verifi cação do passivo no processo de falência, 36 RFDUL (1995), 353.113 Pedro de Sousa Macedo, Manual de direito das falências, I, Almedina: Coimbra (1964), 13.

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Por causa legítima entende-se que os institutos jurídicos hábeis à atribuição de preferência a uma situação jurídica devem estar legalmente tipifi cados114.

Quanto às garantias reais, por preferência deve entender-se que consiste na atribuição legal à situação jurídica de garantia legal-mente típica, estabelecida a favor de determinado credor de afetar o produto da liquidação do bem (objeto da situação jurídica de garan-tia) à satisfação da obrigação garantida com um certo grau de opo-nibilidade a terceiros (mormente, aos credores comuns do devedor). A situação de preferência de que é dotada a situação jurídica de garantia consiste na atribuição de primazia à satisfação do credor preferido em relação aos credores não preferidos sobre o montante da liquidação de um bem. Em caso de concurso de créditos sobre o mesmo bem, a lei estabelece uma graduação entre credores garan-tidos pelo mesmo objeto, determinando que uns se satisfazem com primazia em relação aos outros e abona pelo rateio proporcional em caso de crédito graduados na mesma posição.

A transmissão da titularidade de direitos para constituição de uma situação jurídica de garantia (ainda que acompanhada de publicidade no caso das garantias reais típicas) é nula por viola-ção do princípio do par conditio creditorum que está subjacente à proibição do pacto comissório, transversal à tutela do interesse dos credores após a insolvência do devedor. A cominação da nulidade do pacto, independentemente das suas características, é uma medida preventiva para a tutela do interesse dos credores na conservação da máxima amplitude do património do devedor permitido por lei para satisfação dos seus créditos sobre o património remanescente do devedor.

Esta situação é clarividente se se atentar que no processo de insolvência do alienante os bens que constituem a situação jurídica de garantia não são liquidados em concurso de credores porque são bens alheios à massa insolvente, ao invés do que sucede com as garantias reais típicas. O credor garantido subtrai-se à satisfação em concurso de credores, executando a situação jurídica de garan-

114 Ana Prata, O contrato-promessa e o seu regime civil, Almedina: Coimbra (1999), 337.

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tia com o incumprimento da obrigação garantida (apropriando-se dos bens ou alienando-os a terceiro, extinguindo a situação jurídica de garantia) devendo apenas restituir o montante que consiste na diferença entre o valor da obrigação garantida e os bens transmi-tidos ao devedor, quando o valor dos últimos é superior, nos ter-mos da situação jurídica residual. A oponibilidade da titularidade da situação jurídica de garantia aos credores do alienante é de tal forma ampla que o credor garantido pode opor a situação jurídica de garantia a qualquer credor com pretensões no processo insolvencial do alienante, situação que não ocorre nesses termos com as garan-tias reais legalmente típicas.

A questão que deve levantar-se é se a transmissão da titulari-dade de direitos com função de garantia é uma causa legítima de preferência, em geral. A sanção para a atipicidade legal da causa da preferência deve ser, pelo menos, a inoponibilidade aos credores do garante da situação jurídica dotada de preferência legalmente atípica. Atendendo ao conteúdo do n.º 2 do art. 604.º, devemos con-cluir negativamente quanto a esta questão porque a lei não prevê como causa legítima de preferência a transmissão da titularidade de direitos para a constituição de uma situação jurídica de garan-tia115, não lhe atribuindo qualquer regulação que limite a amplitude da oponibilidade da situação jurídica de garantia aos credores do alienante.

A constituição de uma garantia real legalmente atípica que recorra à transmissão da titularidade de direitos é genericamente inadmissível, como refl ete a proibição do pacto comissório que san-ciona com a nulidade a transmissão da titularidade de um direito do garante para o credor garantido em prejuízo dos credores do garante. Esta norma é diretamente aplicável a todas as garantias reais, incluindo o contrato de alienação em garantia. Tomando em consideração que o conteúdo da norma se destina a proteger os cre-dores do devedor, conforme anteriormente se defendeu, as partes

115 Carlos Ferreira de Almeida, Alienação da propriedade em garantia – uma perspectiva prudente em Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, I, UCP (2011), 311-328, 328.

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não conseguem suprir adequadamente a proteção que a lei projeta através da regulação por lei das situações jurídicas de garantia. Nomeadamente, a não participação da situação jurídica de garantia em concurso de credores do alienante; a inexistência de proteção do bem alienado em garantia perante a penhora por parte dos credo-res do adquirente durante a pendência do contrato de alienação em garantia; a impossibilidade de os credores do alienante penhorarem a situação jurídica de garantia; a liquidação do bem alienado em garantia em concurso de credores do adquirente para satisfação dos credores deste; e a falta de procedimentos que se destinam, pelo menos, a evitar a clandestinidade da situação jurídica de garan-tia constituída pelo contrato de alienação em garantia. As precau-ções de publicidade das situações jurídicas de garantia constituídas através da transmissão da titularidade de direitos e a defi nição da posição do credor garantido em concurso de credores do alienante são refl etidas no direito comparado116 e nacional117 não servindo como lugar de apoio a favor da admissibilidade do contrato.

116 Repare-se que, no direito inglês, as Bill of Sales Act de 1878 e 1882 (secção IX) exigem o registo da convenção nominada bill of sale nos termos daquelas leis, sem o que será nulo. No direito norte-americano, o capítulo IX do UCC exige o registo (fi ling) de todos os atos aptos a servirem uma função de garantia. No direito alemão, o titular da situação jurídica de garantia que tenha por objeto bens móveis ou direitos de crédito participa no concurso de credores do alienante (§51/1 InsO), aplicando-se diretamente o regime das garantias reais.117 A alienação em garantia, no quadro das garantias fi nanceiras (Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de maio), está sujeita ao princípio da publicidade (n.º 2 do art. 6.º).

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Notas sobre o Anteprojeto de Transposição

da Nova Diretiva dos Direitos dos Acionistas

Remarks on the Transposition Project of the New Shareholders’ Rights Directive to Portuguese Law

Palavras-Chave: sociedades cotadas, direitos dos acionistas, transações com partes relacionadas, direito europeu; diretiva

SUMÁRIO: Introdução. 1. Enquadramento. 2. O Anteprojeto de Transposição do CNSF: 2.1. Introdução. 2.2. Identifi cação dos Acionistas. 2.3. Investido-res Institucionais, Gestores de Ativos e Consultores em Matéria de Votação. 2.4. Política Remuneratória. 2.5. Transações com Partes Relacionadas. Súmula Conclusiva

Introdução

A 17 de outubro de 2018, o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (“CNSF”) publicou um comunicado1 relativo à consulta

* As opiniões expressas no trabalho são exclusivas do autor. [email protected] Consulta Pública do CNSF Relativa ao Anteprojeto de Transposição da Diretiva (UE) n.º 2017/828, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2017 (o “Comunicado

do CNSF”), disponível, entre outros, em http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/ConsultasPublicas/ConselhoNacionalDeSupervisoresFinanceiros/Paginas/20181017a.aspx.

ANTÓNIO GARCIA ROLO*

Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Investigador no Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Jurista no Banco de Portugal

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pública sobre a transposição da Diretiva (UE) n.º 2017/828, do Par-lamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2017 (doravante a “Nova Diretiva dos Direitos dos Acionistas” ou “Nova Diretiva”), que altera a Diretiva 2007/36/CE, relativa ao exercício de certos direitos dos acionistas de sociedades cotadas (doravante, a “Dire-tiva dos Direitos dos Acionistas” ou “Diretiva de 2007”) convidando todos os interessados a pronunciarem-se sobre o anteprojeto de diploma de transposição da Nova Diretiva anexo ao comunicado (o “Anteprojeto”).

O presente texto tem como objetivo apresentar uma breve sín-tese informativa das principais alterações da Nova Diretiva refl e-tidas no Anteprojeto e da sua proposta transposição para a ordem jurídica nacional.

1. Enquadramento

A Nova Diretiva dos Direitos dos Acionistas, publicada a 17 de maio de 2017, veio introduzir algumas disposições à Diretiva de 2007, disposições essas que deverão ser transpostas pelos Estados--Membros até 10 de junho de 2019.

A Diretiva de 2007 surgiu com o objetivo assumido de incenti-var a participação dos acionistas das sociedades cotadas na vida social destas, através da criação e do aprofundamento de normas relativas à igualdade de tratamento, deveres de informação, prin-cípios de organização de assembleias gerais, participação por meios eletrónicos, direitos de interpelação, votos por procuração e for-malidades associadas e votos por correspondência2. A Diretiva de

2 A propósito da Diretiva de 2007, cf., entre outros: António Menezes Cordeiro, A Directriz 2007/36, de 11 de Julho (Accionistas de Sociedades Cotadas): Comentários à Proposta de Transposição em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, III, coord. Jorge Miranda/António Menezes Cordeiro/ Eduardo Paz Ferreira/José Duarte Nogueira, Almedina: Coimbra (2010), 33-70, 49 e ss.; André Figueiredo, Notas sobre o exercício de direitos de voto nas sociedades cotadas: breve balanço da vigência da Dire-tiva 2007/36/CE e perspetivas de revisão em III Congresso Direito das Sociedades em Revista, coord. Rui Pinto Duarte/Pedro Pais de Vasconcelos/J. Coutinho de Abreu, Alme-

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2007 foi transposta para a ordem jurídica nacional pelo Decreto-Lei n.º 49/2010, que procedeu a alterações cirúrgicas ao Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) e que incorporou grande parte da transposição no Código dos Valores Mobiliários (“CVM”)3, através do aditamento dos seus artigos 21.º-B, 21.º-C, 23.º-A, 23.º-B e 23.º-C, tendo também procedido a alterações na redação dos artigos 23.º e 249.º do mesmo diploma4.

Por sua vez, a Nova Diretiva dos Direitos dos Acionistas veio aditar à Diretiva de 2007 disposições agrupáveis em quatro blocos essenciais: (i) facilitação da identifi cação dos acionistas; (ii) regras de transparência relativas a investidores institucionais, a gesto-res de ativos e a consultores em matéria de votação; (iii) regime de maior controlo acionista sobre a política remuneratória dos admi-nistradores das sociedades cotadas; e (iv) introdução de um regime de controlo acionista sobre transações relevantes com partes rela-cionadas. Tais disposições têm como objetivo colmatar insufi ciên-cias no governo das sociedades cotadas na União Europeia – tais como o short-termism, a falta de transparência ou a letargia acio-nista –, através da criação de um ambiente atrativo para tais acio-nistas, assegurando e facilitando o exercício dos seus direitos, o seu envolvimento na vida societária numa lógica de sustentabilidade e a longo prazo5.

dina: Coimbra (2014), 41-66; e António Garcia Rolo, As alterações à Diretiva dos Direitos dos Acionistas das Sociedades Cotadas: novidades e perspetivas de transposição, 9 RDS (2017) 557-585, 558-562.3 Sem prejuízo do debate em torno da sede indicada para a transposição de tais normas, se o CVM ou se o CSC. Cf., pela transposição destas normas no CSC, António Menezes Cordeiro, O CSC e a reforma de 2010: gralhas, lapsos, erros e retifi cações, 3 RDS (2010) 509-528, 517.4 A propósito das alterações e do regime dos direitos dos acionistas das sociedades abertas e cotadas do CVM, cf., entre outros, António Menezes Cordeiro, Novas regras sobre assem-bleias gerais: a reforma de 2010, 2 RDS (2010) 11-33; João Labareda, Sobre os direitos de participação e de voto nas assembleias gerais de sociedades cotadas, 5 DSR (2011) 98-127; Figueiredo, Notas cit.; Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 3.ª ed. Almedina: Coimbra (2016) 552-560; José Ferreira Gomes/Diogo Costa Gonçalves, Manual de Sociedades Abertas e de Sociedades Cotadas, I, AAFDL: Lisboa (2018) 135-138.5 Em geral, a propósito da Nova Diretiva ou dos seus trabalhos preparatórios, cf. Rui Pinto Duarte, As alterações à Diretiva dos Direitos dos Acionistas (Apresentação com algumas opiniões heréticas) em O Novo Direito dos Valores Mobiliários: I Congresso sobre Valores

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2. O Anteprojeto de Transposição do CNSF

2.1. Introdução

Em opção semelhante à exercida pelo legislador nacional aquando da transposição da Diretiva de 2007, o Anteprojeto estatui que a transposição da Nova Diretiva terá assento essencialmente no CVM, e ainda, quanto a alguns preceitos, no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, (“RGOIC”) e no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro (“RGICSF”).

O Anteprojeto prevê ainda a revogação da Lei n.º 28/2009, de 19 de junho, que revê o regime sancionatório no setor fi nanceiro em matéria criminal e contraordenacional, contendo, essencialmente, normas materiais e de divulgação relativas à política de remunera-ção em entidades de interesse público, bem como a respetiva tutela contraordenacional.

2.2. Identifi cação dos Acionistas

O primeiro bloco normativo em análise no presente trabalho diz respeito ao capítulo aditado pela Nova Diretiva à Diretiva de 2007, com várias disposições relativas à identifi cação de acionis-

Mobiliários e Mercados Financeiros, coord. Paulo Câmara, Almedina: Coimbra (2017) 73-90; Garcia Rolo, As Alterações cit., 563-585; Laura Abreu Cravo, Publicação da alteração à Diretiva dos Direitos dos Acionistas de Sociedades Cotadas [Diretiva (UE) 2017/828], 9 RDS (2017), 729-731; Ferreira Gomes/Costa Gonçalves, Manual cit., 137-138; Andrew Johnston/Paige Morrow, Commentary on the Shareholder Rights Directive (Novembro de 2014), Uni-versity of Oslo Faculty of Law Research Paper No. 2014-41; Nordic & European Company Law Working Paper No. 15-13. Acessível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=2535274; Andrew Johnston/Paige Morrow, The Revised Shareholder Rights Directive 2017: Policy Implications for Workers (Abril de 2018), ETUI Research Paper – Policy Brief 2/2018. Acessível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3179973; Iris H-Y Chiu, Learning from the UK in the Proposed Shareholders’ Rights Directive 2014? European Corporate Governance Regulation from a UK Perspective, ZVgIRWiss, 114 (Novembro de 2014) 121-125.

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tas, fl uxo de transmissão de informação, facilitação do exercício dos direitos dos acionistas e deveres reforçados para os intermediários fi nanceiros6.

No que diz respeito à identifi cação de acionistas, o Anteprojeto propõe o aditamento de um novo preceito ao CVM, o artigo 93.º-A, com a epígrafe “Identifi cação dos Acionistas”. Nele se assegura, conforme determinado na Nova Diretiva, que as sociedades cotadas têm direito a solicitar à entidade gestora do sistema centralizado onde as suas ações se integrem informações relativas à identidade dos seus acionistas, o número de ações por si detidas e desde quando o são. O Anteprojeto não exerceu a opção de limitar o exercício des-ses direitos aos acionistas detentores de ações acima de uma deter-minada percentagem7.

Propõe-se ainda a alteração da al. c) do artigo 85.º, n.º 1 do CVM (relativo à prestação de informações das entidades registadoras de valores mobiliários) e o aditamento de uma nova alínea ao artigo 93.º (al. c)) do CVM (relativo às informações a prestar pela enti-dade gestora de sistema centralizado ao emitente) fi cando prevista a inclusão de informações relativas à identifi cação dos titulares dos respetivos valores mobiliários.

Quanto ao fl uxo de transmissão de informação, o Anteprojeto prevê (no proposto novo artigo 93.º-B do CVM) um mecanismo de fl uxo de informação entre as sociedades cotadas e os seus acionis-tas em ambos sentidos, ao obrigar os intermediários fi nanceiros que prestem serviços de registo e depósito das ações por estas emitidas a: (i) transmitir imediatamente aos acionistas as informações que a sociedade é obrigada a fornecer aos acionistas para o exercício dos direitos inerentes às ações; e (ii) transmitir sem demora à sociedade a informação transmitida pelos acionistas no exercício dos seus direitos.

6 Cf., Garcia Rolo, As Alterações cit., 566; e Peter Böckli/Paul Davies/ Guido Ferrarini/José Garrido/Klaus J. Hopt/Alain Pietrancosta/Markus Roth/Rolf Skog/Stanislaw Soltysinski/Jaap Winter/Eddy Wymeersch, Shareholder engagement and identifi cation, European Company Law Experts Paper, (Fevereiro de 2015). Acessível em SSRN https://ssrn.com/abstract=2568741, 7-10.7 Comunicado do CNSF, 4.

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No que respeita à facilitação do exercício dos direitos dos acio-nistas, consagra-se, no proposto novo artigo 93.º-C do CVM, uma obrigação dos intermediários fi nanceiros relevantes de tomarem as medidas necessárias para que os acionistas da sociedade cotada possam exercer os direitos inerentes às suas ações, incluindo par-ticipar e votar em assembleias gerais. O Anteprojeto optou, ainda, por consagrar um novo preceito que regulamenta o exercício de votos expressos por via eletrónica, bem como um mecanismo da respetiva confi rmação no proposto artigo 22.º-A do CVM, prevendo que, quando os votos sejam expressos dessa forma, será enviada uma confi rmação eletróncia da receção dos votos ao acionista que o expressou.

O Anteprojeto optou, no âmbito da transposição do artigo 3.º-D da Nova Diretiva, relativo a deveres de não discriminação, proporcio-nalidade e transparência de custos dos intermediários fi nanceiros, por consagrar a publicidade dos encargos aplicáveis pelos serviços prestados ao abrigo do novo regime de identifi cação de acionistas, encargos esses que não podem ser discriminatórios e que devem ser proporcionais aos custos reais decorrentes da prestação de serviços (n.ºs 1 e 2 do proposto artigo 93.º-D do CVM), optando ainda por proibir a cobrança de comissões pela prestação de tais serviços.

Ainda a este respeito, o Anteprojeto propõe ainda que a cobrança de comissões proibidas constitua contraordenação muito grave (no proposto novo artigo 397.º, n.º 2, al. p) do CVM) ou contraordenação grave (no proposto novo artigo 392.º, n.º 4, al. c) do CVM).

2.3. Investidores Institucionais, Gestores de Ativos e Consulto-

res em Matéria de Votação

Quanto à transposição dos artigos 3.º-G, 3.º-H, 3.º-I e 3.º-J adi-tados pela Nova Diretiva, relativos a deveres aplicáveis aos investi-dores institucionais, gestores de ativos e consultores em matéria de votação, o Anteprojeto optou por propor o aditamento de cinco novos preceitos ao CVM, os artigos 251.º-A, B, C, D e E, bem como alte-rações ao RJOIC e ao RGICSF. Os novos artigos do CVM integram uma nova secção, a secção III-A do capítulo II, do Título IV, sob a

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epígrafe “Transparência dos intermediários fi nanceiros que prestam o serviço de gestão de carteiras por conta de outrem, dos investidores institucionais e dos consultores em matéria de votação”.

Note-se que esta nova secção do CVM, contrariamente à Nova Diretiva, não emprega a expressão “gestores de ativos”, porquanto a este conceito são reconduzíveis (i) o intermediário fi nanceiro que preste os serviços de gestão de carteiras (expressão utilizada nos propostos novos preceitos do CVM); (ii) as entidades responsáveis pela gestão de organismos de investimento coletivo em valores mobiliários; e (iii) os gestores de fundos de investimento, e estes dois últimos fi cam sujeitos a propostas novas disposições a aditar ao RJOIC8 (os artigos 92.º-A, B e C). No entanto, os preceitos aditados ao RJOIC remetem essencialmente para os preceitos do CVM men-cionados abaixo, pelo que existe uma dispersão sistemática mas uma unidade substantiva entre os vários tipos de gestores de ativos.

O Anteprojeto prevê que os investidores institucionais e os ges-tores de ativos9 fi quem adstritos a (i) uma obrigação ex ante de elaboração e divulgação anual de uma política de envolvimento que descreva de que forma integram o envolvimento dos acionistas na sua estratégia de investimento (proposto artigo 251.º-B do CVM e 92.º-B do RJOIC); e (ii) a uma obrigação ex post de divulgação anual da forma de aplicação da política de envolvimento, incluindo des-crição geral do sentido de voto, explicação das votações mais impor-tantes, bem como explicações sobre a utilização de consultores em matéria de votação. Prevê-se ainda a divulgação ao público do seu sentido de voto nas assembleias gerais de sociedades onde dete-nham ações (proposto artigo 251.º-B, n.º 3 do CVM).

Propõe-se ainda o aditamento de outro preceito ao CVM (o artigo 251.º-C, n.º 1 CVM) que prevê que os investidores institucionais que invistam através de um gestor de ativos em ações negociadas em mercado regulamentado estejam sujeitos a um dever de divulgação ao público dos principais elementos da sua estratégia de investi-

8 Comunicado do CNSF, 8-9.9 Garcia Rolo, As Alterações cit., 568-572; Böckli et al., Shareholder cit., 4-5; Johnston//Morrow, Commentary cit., 6-8.

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mento em ações e de que forma são coerentes com o perfi l e dura-ção dos seus passivos, em particular os de longo prazo, e de que forma contribuem para o desempenho de médio a longo prazo de tais ativos. Prevê-se também que, se um gestor de ativos investir em nome de um investidor institucional, deve proceder à divulgação ao público de uma série de informações sobre o seu acordo, infor-mações essas cujo conteúdo é detalhado no n.º 2 do proposto artigo 251.º-C do CVM.

Quanto aos gestores de ativos, o Anteprojeto propõe o adita-mento de novos preceitos – 251.º-D do CVM e 92.º-C, n.º 1, do RJOIC – nos quais se prevê que os gestores de ativos que invistam em ações negociadas em mercado regulamentado em nome de investidores informem anualmente o investidor institucional com o qual tenham celebrado os acordos mencionados no parágrafo anterior sobre a forma como a estratégia de investimento e a execução respeitam tal acordo, informações divulgadas juntamente com as comunicações periódicas previstas no artigo 323.º CVM, relativo à divulgação de informação contratual dos intermediários fi nanceiros.

Quanto aos consultores em matérias de votação (os proxy advi-sors)10 – cuja atividade não se encontra regulada no ordenamento jurídico português – o Anteprojeto prevê a sua sujeição ao dever de divulgação pública de um código de conduta por si adotado (tendo a opção de não o fazer desde que apresentem uma explicação clara e fundamentada para tal), bem como de relatórios relativos à aplica-ção do mesmo e ainda à divulgação pública anual de outro relatório com informações relativas à preparação dos seus estudos, pareceres e recomendações de voto.

Quanto aos investidores institucionais, gestores de ativos e con-sultores em matéria de votação, o Anteprojeto optou por uma trans-

10 Sobre os consultores em matéria de votação: Juliano Ferreira, Proxy Advisors: os Con-sultores em Matéria de Votação em A Designação de Administradores, AAVV., Almedina: Coimbra (2015); e Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, Alme-dina: Coimbra (2017), 126-128. Sobre a sua consagração na Nova Diretiva, Garcia Rolo, As Alterações cit., 572-573.

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posição essencialmente holística11, ou seja, pela transposição das normas relevantes da Nova Diretiva para uma nova secção do CVM, ao invés de as dispersar por vários diplomas. Faz sentido – as obri-gações referidas nos parágrafos anteriores têm o intuito de proteger as sociedades cotadas participadas ou relacionadas com as entida-des em análise no presente capítulo, e este regime só é aplicável aos investidores institucionais e gestores de ativos que invistam, direta ou indiretamente, em ações negociadas em mercado regula-mentado, não se tratando de uma alteração transversal ao estatuto jurídico dos mesmos.

2.4. Política Remuneratória

Outra das novidades da Nova Diretiva foi o aprofundamento do controlo acionista sobre as políticas remuneratórias12 dos titulares de órgãos de administração das sociedades cotadas13. O Anteprojeto propõe o aprofundamento desta temática através do aditamento de novas disposições ao CVM – os artigos 26.º-A a 26.º-F – que inte-gram a proposta nova secção III-A do capítulo IV do título I, com a epígrafe “Política de Remuneração”, fi cando sistematicamente localizadas próximo das disposições do CVM já em vigor e relativas ao funcionamento de assembleias gerais e exercício de direitos dos acionistas das sociedades abertas e cotadas (e, em larga medida, sede de transposição de muitas normas da Diretiva de 2007).

O proposto artigo 26.º-A prevê a obrigação de as sociedades cota-das adotarem uma política de remuneração relativa aos membros

11 Garcia Rolo, Garcia Rolo, As Alterações cit., 571-572; em sentido contrário à sua inserção na Nova Diretiva, Böckli et al., Shareholder identifi cation cit., 4-5.12 No geral, a propósito de políticas de remuneração, cf. Paulo Câmara, Say on pay: o dever de apreciação da política remuneratória pela assembleia geral, em Revista de Concorrência e Regulação, n.º 2 (2010), 321-344.13 A propósito das soluções da Diretiva, cf. J. M. Coutinho de Abreu, Remunerações dos Administradores e Transações com Partes Relacionadas na Diretiva dos Direitos dos Acio-nistas II, em Direito das Sociedades em Revista, 10 19 (2018) 13-26, 14-16; Garcia Rolo, As Alterações cit., 573-576.

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dos órgãos de administração e fi scalização, sendo que a redação do proposto artigo 26.º-A enfatiza o caráter vinculativo de tal política, retirando-se da mesma que as sociedades cotadas apenas podem remunerar os membros dos seus órgãos de administração e fi sca-lização de acordo com tal política (“as sociedades [cotadas] remu-neram os membros dos órgãos de administração e fi scalização em conformidade com uma política de remuneração...”).

Tal política deverá ser submetida à aprovação da assembleia geral sob proposta da comissão de remunerações (se existente) ou do conselho de administração (proposto artigo 26.º-B do CVM).

O conteúdo da política de remuneração é detalhado no proposto artigo 26.º-C do CVM, devendo tal política ser clara e compreensível e contribuir para a estratégia empresarial, para os seus interesses a longo prazo e para a sustentabilidade da sociedade, devendo expli-car como acautela tais interesses. Relevante é, também, a previsão expressa, no proposto artigo 26.º-C, n.º 3 do CVM, da explicação dos critérios, métodos e períodos relevantes para a atribuição de remu-neração variável. A política de remuneração é publicada no sítio de internet da sociedade relevante.

O Anteprojeto propõe o exercício de uma opção concedida aos Estados-Membros14 pelo artigo 9.º-A, n.º 4 da Nova Diretiva, no sentido de prever a possibilidade de as sociedades derrogarem tem-porariamente a política de remuneração, caso esta revogação seja necessária “para servir os seus interesses a longo prazo” e desde que as condições processuais e materiais de tal derrogação estejam previstas na própria política de remuneração.

Propõe-se a introdução de uma disposição – artigo 26.º-F do CVM – nos termos da qual as práticas remuneratórias existentes em momento anterior à aprovação de uma política de remunera-ção permanecem em vigor até à aprovação desta; e uma política de remuneração aprovada pela assembleia geral permanece em vigor até nova aprovação pelo mesmo órgão.

Prevê-se ainda o aditamento de um preceito que prevê uma obri-gação de elaborar um relatório sobre remunerações, encontrando-se

14 Comunicado do CNSF, 6.

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tal preceito em local do CVM dedicado às obrigações de transpa-rência impostas às sociedades abertas e cotadas (proposto artigo 245.º-C do CVM,). Tal relatório sobre remunerações, cuja elabora-ção vincula os órgãos de administração das sociedades cotadas, deve proporcionar uma “visão abrangente” das remunerações do último exercício a cada membro dos órgãos de administração e fi scalização em conformidade com a política de remuneração. O relatório é sub-metido a votação na assembleia geral anual seguinte ao exercício a que diz respeito e pode ser substituído por um capítulo no relatório anual sobre governo societário.

No âmbito do tema da política de remuneração, propõe-se ainda o aditamento de uma alínea ao artigo 211.º do RGICSF, que liste infrações especialmente graves, puníveis com coima até 5 milhões de euros, e que passará a contar com o incumprimento das regras relativas às práticas e políticas remuneratórias, por o Anteprojeto entender que não se encontra prevista no RGICSF uma contraorde-nação específi ca relativa ao incumprimento das normas relativas às práticas e políticas remuneratórias previstas em tal diploma15.

A esse propósito, o Anteprojeto propõe a previsão de uma con-traordenação grave (no proposto novo artigo 390.º, n.º 2, al. f) do CVM) para a omissão de submissão a votação em assembleia geral de sociedade cotada da proposta de política de remunerações e da proposta de relatório sobre elas.

Também se procedeu à revogação da Lei n.º 28/2009, de 19 de junho, que já previa um regime de aprovação e divulgação de polí-tica de remuneração dos membros dos órgãos de administração e de fi scalização das entidades de interesse público, por se entender essencialmente redundante face ao novo regime proposto e, natu-ralmente, por razões de segurança jurídica e clareza emergentes da concentração sistemática das normas relevantes16.

É importante reter que, sem prejuízo de uma eventual onerosi-dade do regime imposto pela Diretiva, não se impôs aqui nenhum

15 Comunicado do CNSF, 12.16 Idem; e, entendendo que da Lei 28/2009 apenas se pode retirar um mero dever de apre-ciação pela assembleia, não havendo consequência jurídica em caso de não aprovação, Câmara, Say on pay cit., 32.

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teto quantitativo à remuneração de acionistas, tão-só reforçando-se uma competência que já reside genericamente nos acionistas.

2.5. Transações com Partes Relacionadas

Uma das grandes novidades da Nova Diretiva, devidamente refl etida no Anteprojeto, são as normas aplicáveis às transações com partes relacionadas17, que impõe um regime de aprovação e de divulgação de certas transações com partes relacionadas tidas como relevantes.

Para que compreendamos a proposta do Anteprojeto dever-se-á começar pela defi nição de partes relacionadas, cujo preenchimento é feito através de remissão para o Regulamento (CE) n.º 1606/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, que, por sua vez, nos remete para as Normas Internacionais de Contabilidade (IAS)18, remissão

17 Consultar, a este propósito e geralmente em sentido crítico: Pinto Duarte, As Alterações cit., 85-88; Coutinho de Abreu, Remunerações cit., 17-23; Luca Enriques, Related Party Transactions: Policy Options and Real-World Challenges (With a Critique of the European Commission Proposal), European Corporate Governance Institute Law Working Paper n.º 267/2014 (Outubro de 2014). Acessível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=2505188, 6-7; Kristinn Már Reynisson, Related Party Transactions: Analysis of Proposed Art. 9c of the Shareholders’ Rights Directive, 13 ECL (2016) 175-182; Garcia Rolo, As Alterações cit., 576-584; cf. também, para uma perspetiva mais geral, Luca Enriques/Tobias Tröger, The Law and (Some) Finance of Related Party Transactions: an Introduction, European Corporate Governance Institute Law Working Paper No. 411/2018. Acessível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3214101.18 Os pontos 9 a 12 da IAS 24 listam em detalhe o que serão consideradas partes relaciona-das, começando por dizer que serão “pessoas ou entidades relacionadas com a entidade que está a preparar as suas demonstrações fi nanceiras”, prevendo-se a (a) possibilidade conside-rar uma pessoa ou um membro íntimo da família parte relacionada se detiver controlo ou controlo conjunto da entidade em questão, tiver uma infl uência signifi cativa na mesma ou for membro do pessoal-chave da gerência da entidade em causa ou de uma sociedade-mãe sua; (b) que uma entidade é relacionada com uma entidade em causa se, alternativamente, (i) a entidade e a entidade em causa forem membros do mesmo grupo; (ii) a entidade for associada ou constituir um empreendimento comum da outra entidade; (iii) se ambas as entidades forem empreendimentos comuns da mesma parte terceira; (iv) se uma entidade representa um empreendimento comum da entidade terceira; (v) se a entidade for um plano de benefícios pós-emprego a favor dos empregadores da entidade em causa ou de uma enti-

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feita também pela Nova Diretiva. Assim, falamos, essencialmente, de “transações” (não sendo claro que negócios jurídicos se encon-tram abrangidos por tal locução) celebradas entre a sociedade e os seus gestores, administradores, entidades de controlo, acionistas ou outras entidades assim listadas nas IAS.

No âmbito do Anteprojeto, nem todas as transações com par-tes relacionadas entram no âmbito deste regime. De facto, se as transações com partes relacionadas forem realizadas no âmbito da atividade corrente e em condições de mercado, não fi cam sujeitas ao regime dos propostos novos artigos 249.º-A a D do CVM. O Antepro-jeto prevê, no proposto novo artigo 249.º-A, n.º 1, do CVM, que as sociedades cotadas disponham de um procedimento interno estabe-lecido pelo respetivo órgão de fi scalização para que este verifi que, periodicamente, se as transações que a sociedade efetua com partes relacionadas são realizadas no âmbito da sua atividade corrente e em condições de mercado.

Assim, as transações com partes relacionadas que não sejam realizadas no âmbito da atividade corrente e em condições de mer-cado fi cam sujeitas a um regime especial de aprovação e a divulga-ção pública pela sociedade.

Quanto à aprovação, as transações com partes relacionadas relevantes são objeto de deliberação pelo conselho de administra-ção, ou quando exista, pelo conselho de administração executivo, precedida de um parecer do órgão de fi scalização da sociedade. A Nova Diretiva dá a opção aos Estados-Membros de impor a apro-vação das transações relevantes pela assembleia geral, pelo órgão de administração ou pelo órgão de fi scalização, mas o Anteprojeto optou por não sujeitar a deliberação dos sócios das transações com partes relacionadas relevantes pois tal poderia criar cenários de desresponsabilização dos administradores (vide a norma do artigo 72, n.º 5, do CSC, relativa à exclusão da responsabilidade dos mem-

dade relacionada com a entidade em causa (e, se a entidade em causa for ela própria um plano desse tipo, os empregadores promotores serão também relacionados com a entidade em causa); (vi) se a entidade for controlada ou conjuntamente controlada por uma pessoa em (a); e (viii) uma pessoa identifi cada em (a)(i) detiver uma infl uência signifi cativa sobre a entidade ou for membro do pessoal-chave da gerência da entidade.”.

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bros da administração quando o ato ou omissão tenha subjacente uma deliberação dos sócios), por se considerar que os acionistas não estão geralmente habilitados para tomar decisões conscientes nes-tes casos (ao contrário dos órgãos de administração e fi scalização) e também por poucos Estados-Membros terem demonstrado inte-resse em exercer tal opção19.

O Anteprojeto parece ter posto de parte a consagração expressa de uma norma relativa a um eventual impedimento de algum admi-nistrador na deliberação de aprovação da transação (ao contrário do que faz relativamente aos membros dos órgãos de fi scaliza-ção no âmbito da sua competência de verifi cação da natureza da transação)20.

Estabelece-se ainda, em conformidade com a Diretiva, um dever de divulgação pública de transações relevantes com partes relacio-nadas (proposto novo artigo 249.º-B do CVM) cujo valor seja igual ou superior a 2,5% do ativo consolidado da sociedade.

O conteúdo mínimo da divulgação inclui a identifi cação da parte relacionada, informação sobre natureza da relação com as partes relacionadas, data e valor da transação, fundamentação quanto ao caráter justo e razoável da transação, do ponto de vista da sociedade e dos outros acionistas e o sentido do parecer do órgão de fi scaliza-ção, caso este tenha sido negativo.

Exerceu-se a opção de incluir neste dever de divulgação transa-ções celebradas entre uma parte relacionada da sociedade e uma fi lial da sociedade21.

O Anteprojeto propõe ainda, no proposto novo artigo 249.º-C do CVM, isentar do regime de aprovação e de divulgação de transa-ções com partes relacionadas as seguintes situações: (i) transações entre a sociedade e as sociedades por ela totalmente detidas; (ii) as transações relativas à remuneração dos administradores ou a deter-

19 Comunicado do CNSF, 7.20 O que não é necessariamente problemático, atento a indicação do artigo 410.º, n.º 6, do Código das Sociedades Comerciais, que indica que “o administrador não pode votar sobre assuntos em que tenha, por conta própria ou de terceiro, um interesse em confl ito com o da sociedade…”.21 Comunicado do CNSF, 8.

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minados elementos desta; (iii) as transações relacionadas por insti-tuições de crédito com base em medidas destinadas a garantir a sua estabilidade adotadas pela autoridade competente; e (iv) transações propostas a todos os acionistas nos mesmos termos por se entender que a igualdade de tratamento de todos os acionistas está assegu-rada e tutelada.

As transações com a mesma parte relacionada celebradas durante o mesmo exercício e que não tenham sido sujeitas às obri-gações previstas nos artigos anteriores são agregadas para efeitos deste regime (proposto novo artigo 249.º-D do CVM).

O Anteprojeto propõe ainda a previsão de uma contraordenação muito grave (proposto novo artigo 390.º, n.º 1, al. b) do CVM) rela-tiva à realização de transações com partes relacionadas não permi-tidas ou em condições não permitidas.

O Anteprojeto coloca este regime na proposta nova secção III-A, do capítulo II, do Título IV do CVM, junto de outros deveres de informação e transparência impostos às sociedades cotadas.

Súmula Conclusiva

Em suma, o Anteprojeto propõe a transposição das disposições relevantes da Nova Diretiva através (i) da introdução dos propostos novos artigos 22.º-A, 26.º-A a 26.º-F, 93.º-A a 93.º-D, 245.º-C, 249.º-A a 249.º-D, 251.º-A a 251.º-E ao CVM e dos propostos novos artigos 92.º-A a 92.º-C ao RGOIC; (ii) da alteração da redação dos artigos 85.º, 93.º, 359.º, 390.º, 392.º, 394.º, 397.º e 400.º do CVM e do artigo 211.º do RGICSF; e (iii) da revogação da Lei n.º 28/2009, de 19 de junho.

Materialmente, e sem prejuízo de divergências formais e de redação, as normas previstas no Anteprojeto mantêm-se em linha com o conteúdo da Diretiva, exercendo as opções por ela permitidas.

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Súmula Jurisprudencial(nov. e dez. 2018)

1. Direito Bancário

STJ 8-nov.-2018 (Abrantes Geraldes)

I. O acórdão da Relação que aprecia a impugnação da decisão da maté-ria de facto não pode gerar uma contradição entre o que se considere “pro-vado” e “não provado” que inviabilizem a aplicação do direito.

II. Verifi ca-se essa contradição quando a Relação, alterando a decisão da matéria de facto, considerou “provado” que “o BPN garantia o paga-mento destas obrigações da SLN”, mantendo intacto o segmento no qual se considerava “não provado” que “antes de o A. subscrever a obrigação, o funcionário do BPN disse-lhe que a aplicação tinha capital garantido pelo BPN”.

III. A decisão da matéria de facto deve retratar, de forma clara, a rea-lidade que se considera provada, o que designadamente fi ca prejudicado com a utilização de expressões polissémicas, geradoras de obscuridade, por falta de contextualização.

IV. Num contexto em que, além do mais, se alegou que o “gerente do Banco R. disse ao A. que tinha uma aplicação em tudo igual a um depósito a prazo e com capital garantido pelo BPN e com rentabilidade assegurada” e que o que “motivou a autorização, por parte do A., foi o facto de lhe ter sido dito pelo gerente que o capital era garantido pelo Banco R.”, atuando “convicto de que estava a colocar o seu dinheiro numa aplicação segura e com as características de um depósito a prazo, por isso, num produto com risco exclusivamente do Banco R.”, é defi ciente, por obscuridade decorrente da falta de contextualização, a decisão de facto que, a esse respeito, se limita a considerar provado que “o BPN garantia o pagamento destas obri-gações da SLN”.

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108 | Revista de Direito Financeiro e dos Mercados de Capitais

STJ 6-nov.-2018 (Pedro de Lima Gonçalves)

I – Por força do disposto no art. 90.º e no n.º 3 do art. 128.º do CIRE (aplicáveis por força do disposto no n.º 1 e no n.º 2 do art. 8.º do DL n.º 199/2006, de 25-10), o crédito detido contra um Banco que haja entrado em liquidação deve ser reclamado no respectivo processo de liquidação judicial, pelo que, por força do princípio da universalidade do processo de insolvência, a ação autónoma deixa assim de ser o espaço adequado para apreciar a responsabilidade contratual assacada ao Banco B….

II – Pretendendo o recorrente obter, por via da invocação do incumpri-mento de deveres de informação inerentes ao contrato de intermediação fi nanceira e, subsidiariamente, por via da invocação da respetiva nulidade, o pagamento de uma quantia pecuniária a título de indemnização, é de concluir que a sua apreciação terá consequências na verifi cação do passivo do Banco B…, justifi cando-se assim a aplicar a orientação jurisprudencial fi xada no AUJ n.º 1/2014 e declarar a inutilidade do prosseguimento da lide.

III – O Juízo do Comércio onde pende o processo mencionado em I, mercê do cariz universal do processo de reclamação de créditos, absorve a competência material dos tribunais onde pendem os litígios atinentes aos créditos que devem ser reclamados na insolvência.

IV – A aplicação da orientação jurisprudencial mencionado em I não pressupõe que se tenha declarado aberto incidente de qualifi cação de insolvência com carácter pleno, o qual, em todo o caso, sempre deveria ser considerado como incompatível com as normas privatísticas do pro-cesso de liquidação judicial de instituições de crédito, já que, por um lado, não é o juiz do processo que declara a insolvência – tal é determinado pela revogação da autorização para o exercício da atividade bancária por parte do BCE – e, por outro, por força da deliberação do BCE, o Banco B… fi cou impedido de exercer a atividade bancária e de, como tal, recuperar o direito de dispor dos seus bens e de gerir os seus negócios, o que lhe seria assegurado pelo encerramento do processo de insolvência por insufi ciên-cia da massa.

V – Permitindo a lei que, no processo de liquidação judicial do Banco B…, sejam apreciadas as razões de facto e de direito que sustentam o direito creditício exercido, a conclusão exposta em II não cerceia o direito de acesso aos tribunais.

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Súmula Jurisprudencial (nov. e dez. 2018) | 109

REv 6-dez.-2018 (Tomé de Carvalho)

A garantia on fi rst demand é imediatamente exequível mediante sim-ples, imotivada ou potestativa comunicação, pelo benefi ciário, do incum-primento da obrigação (principal) do mandante.

RCb 28-nov.-2018 (Alberto Ruço)

I – Nos termos do n.º 4 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, que instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regulariza-ção de Situações de Incumprimento (PERSI), a instituição de crédito deve informar o cliente bancário da sua integração no PERSI, através de comu-nicação em suporte duradouro.

II – O envio de uma carta, desacompanhada de aviso de receção, na ausência de prova sobre o efetivo recebimento da carta, é insufi ciente para provar que a mencionada comunicação do banco ao cliente foi feita.

RCb 28-nov.-2018 (Carlos Moreira)

I – Em processo de inventário os interessados não são, na relação jurí-dica de depósito entre banco e o de cujus, terceiros, sendo, assim, a recusa de informação impetrada ao banco, relativa a contas bancárias formal-mente tituladas pelos mesmos, ilegítima.

II – Em todo o caso, o sigilo bancário não é um direito absoluto, devendo, se ao interessado na sua quebra não for possível ou razoavelmente exigí-vel operar a prova dos factos pertinentes por outro meio probatório, ceder perante outros interesses ou direitos axiologicamente mais relevantes como seja a descoberta da verdade e a realização da justiça.

III – Ocorre tal situação quando, em processo de inventário para sepa-ração de meações, está em causa apurar qual o saldo de contas bancárias tituladas em nome dos interessados, maxime do interessado que, versus o outro, se recusa a dar o seu consentimento para a informação sobre as mesmas.

RGm 8-nov.-2018 (José Dias Cravo)

I – A recorrente celebrou com o Banco A um contrato de investimento directo, através do preenchimento de uma ordem de compra de valores mobiliários.

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110 | Revista de Direito Financeiro e dos Mercados de Capitais

II – Com a medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal ao Banco A, em que ocorre a transferência parcial da actividade deste para o Banco B, o qual sucedeu ex lege nas relações jurídicas transmitidas, excluiu dessa transferência o produto fi nanceiro adquirido pela A.

III – O Banco B não titula qualquer vinculação originária ou superve-niente com a relação contratual exarada entre a A. e o Banco A.

IV – O regime de responsabilidade da sociedade cindida previsto no CSC, não tem aqui aplicabilidade, já que a resolução bancária é uma fi gura específi ca do Direito Bancário, regulada por lei especial, que em nada se confunde com a cisão prevista no CSC e que não reúne sequer a totalidade dos elementos característicos daquela operação societária.

V – Não tendo a A. cumprido o ónus que lhe assistia nos termos do dis-posto nos arts. 5.º/1 e 552.º/1, d) do CPC, não é devida a intervenção do juiz com vista ao suprimento de defi ciências na alegação de facto quando esteja em causa a falta de alegação de factos essenciais que integrem a causa de pedir, mas apenas para suprir insufi ciências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.

VI – Ao falar na alteração anormal das circunstâncias em que as par-tes fundaram a decisão de contratar, a norma do artigo 437.º do CC quer, manifestamente, aludir às modifi cações contra as quais, pelo seu carácter imprevisto, as partes não possam e não devam acautelar-se, já que este instituto situa-se no ponto de encontro entre a segurança na estabilidade das relações contratuais com o princípio da boa-fé que domina o direito das obrigações.

RGm 8-nov.-2018

2 – Tendencialmente, no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os côn-juges com infl uência na partilha do património comum, designadamente a liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da res-ponsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles.

RLx 6-nov.-2018 (Ana Pessoa)

No âmbito do contrato de “homebanking” a responsabilidade por opera-ções de pagamento não autorizadas incumbe, em princípio, ao prestador de serviços de pagamento, conforme resulta da regra estatuída no artigo 71.º

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Súmula Jurisprudencial (nov. e dez. 2018) | 111

do Dec. Lei n.º 317/2009, de 30 de outubro, cabendo ao ordenante nas con-cretas situações previstas nos n.ºs 1 a 3 do artigo 72.º do mesmo diploma, designadamente em caso de negligência grave do ordenante.

Não se tendo apurado ter o cliente permitido, ainda que de forma não intencional, o acesso de terceiros às suas credenciais, não se pode con-cluir ser imputável a este a quebra da confi dencialidade dos dispositivos de segurança.

RPt 5-nov.-2018 (Augusto de Carvalho)

I – O artigo 14.º, n.º 4, do DL n.º 227/2012, de 25 de outubro, exige que a instituição de crédito informe o cliente bancário da sua integração no PERSI, através de comunicação em suporte duradouro.

II – O artigo 3.º, alínea h), do DL n.º 227/2012, defi ne o suporte dura-douro como qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fi ns a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informa-ções armazenadas.

III – Ao Exigir-se como forma da declaração uma comunicação em suporte duradouro, uma carta pode ser entendida como tal, pois, possibi-lita reproduzir de modo integral e inalterado o seu conteúdo.

IV – Se a intenção do legislador fosse a de sujeitar as partes do proce-dimento extrajudicial de regularização das situações de incumprimento a comunicar através de carta registada com aviso de receção, tê-la-ia consa-grado expressamente.

2. Direito dos Seguros

STJ 27-nov.-2018 (Cabral Tavares)

I – Perante um contrato de seguro do ramo automóvel, na modalidade de danos próprios/seguro facultativo, situando-se a questão suscitada – dano de privação do uso, em substituição da viatura furtada e não recupe-rada – no domínio da responsabilidade contratual, é essencial determinar se as pretensões do tomador de seguro correspondem ou não a obrigações assumidas pela seguradora.

II – O seguro de danos celebrado entre as partes, previsto nos arts. 123.º e ss. do Regime Jurídico do Contrato de Seguro – RGCS, aprovado

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pelo DL n.º 72/2008, de 16-04, não cobria o valor de privação de uso (art. 130.º, n.º 3 do mesmo diploma legal).

III – Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrên-cia ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.

IV – A indemnização por privação de uso do veículo não pode, todavia, radicar no imputado retardamento da realização da prestação, tendo a responsabilidade que ao segurador pudesse ser exigida pelo verifi cado incumprimento – ainda que com base em factos que àquele não fossem estranhos, nem ocasionais, e causadores de mais elevados danos – fi cado exaurida pelo pagamento dos juros de mora (n.ºs. 1 e 2 do art. 806.º do CC).

V – O RJCS é de todo omisso quanto ao procedimento de regularização do sinistro e, no que respeita ao prazo para a realização da prestação pelo segurador (arts. 102.º e 104.º), sujeita-o a um termo inicial, suspensivo e incerto, condicionado à iniciativa do próprio obrigado.

VI – Na formação e execução do contrato de seguro, a observância do princípio da boa-fé, genericamente determinada no n.º 2 do art. 762.º do CC, é elevada a supremo patamar, de uberrimae fi dei.

VII – A seguradora Ré, ao proferir decisão infundada de recusa da realização da prestação, nos termos transmitidos à Autora, sem que, atra-vés da prévia investigação, que a lei com autonomia lhe faculta (RGCS, art. 102.º, n.º 1, 2.ª parte), tenha para tanto procurado adequadamente habilitar-se, procedeu com violação dos deveres de boa-fé e de atuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado.

VIII – Deve, além disso, concluir-se, relativamente ao exercício do direito de recusa da realização da prestação, em vista dos limites impostos pela boa-fé e pelo fi m social e económico de tal direito, pelo seu ilegítimo exercício (art. 334.º do CC).

IX – Violação e ilegítimo exercício, esses, consequentemente geradores do dever de indemnizar a Autora pelos danos causados.

X – O dano de privação de uso de bem constitui dano autónomo indem-nizável, bastando-se com a prova genérica que o lesado utilizava a viatura para os fi ns de lazer/trabalho e, consequentemente, por via daquela priva-ção deixou de poder fazê-lo; não podendo ser averiguado o valor exato do dano, e dentro dos limites do que for provado, será ele determinado pela equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC).

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Súmula Jurisprudencial (nov. e dez. 2018) | 113

XI – Estando em causa apenas a reparação da natureza patrimonial do dano, considerando, para tanto, que a autora teve de se socorrer de meios alternativos nas suas deslocações, nomeadamente a boleias de amigos e colegas de trabalho, táxis, ou usando a viatura automóvel do fi lho, será adequada a fi xação da indemnização no montante de € 10 080,00.

STJ 13-nov.-2018 (Fátima Gomes)

I – A celebração de contrato de seguro de colheitas pelo facto de a ré seguradora ter silenciado, por período superior a oito dias, à proposta de seguro apresentada pela autora, prevista no art. 17.º, n.º 2 da apólice uni-forme aplicável ao ano de 2012 (aprovada pela norma regulamentar do ISP n.º 2/2012-R, de 23-03), não dispensa o acordo das partes quanto a todos os elementos essenciais do contrato.

II – Se a autora não prova, como era seu ónus, que tenha havido con-senso, expresso ou tácito, relativo ao valor do prémio do seguro, elemento essencial do negócio, não se pode concluir pela celebração entre as partes de um contrato de seguro, nos termos referidos em I., que cubra os danos do sinistro em causa.

STJ 13-nov.-2018 (Alexandre Reis)

I – Na situação em apreço nestes autos, ambos os então cônjuges, a autora e o falecido seu ex-marido, que se haviam obrigado a celebrar e a manter seguro de vida para garantia do cumprimento de mútuo outorgado com o banco – que destinaram a aquisição do prédio em que instalaram a sua casa de morada de família –, uma vez aceites pela seguradora as propostas de adesão que lhe apresentaram, concluíram o contrato a cuja outorga ambos se encontravam adstritos.

II – Independentemente do nomen que os contraentes possam reputar como atribuível a cada um dos dois subscritores dessas propostas de ade-são – em que os mesmos apuseram as suas assinaturas, ele, nos locais des-tinados à 1.ª pessoa segura e ao tomador de seguro, e ela, (apenas) no local destinados à 2.ª pessoa segura – resulta das circunstâncias que rodearam a celebração do contrato que ambos, mediante tais propostas, expressa-ram a sua vontade de o outorgar e informaram a seguradora do risco que pretendiam segurar, pelo que, ambos se tornaram na realidade parte no contrato individual de seguro celebrado, qualquer deles como titular da

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cobertura ou pessoa no interesse da qual era feito o seguro e não por conta de uma terceira pessoa (“segura”), sobre quem recaísse o risco segurado e cuja vida ou integridade física (capacidade) se segurava, e daí que a autora não se tenha limitado a satisfazer o requisito do consentimento a que o contrato fosse celebrado pelo seu marido (cf. art. 43.º, n.º 3 da LCS).

III – Portanto, tanto o falecido marido da autora como esta própria, preenchendo e entregando uma declaração individual (proposta) de adesão ao contrato-quadro que lhes foi apresentado pela predisponente/segura-dora, celebraram o seguro, enquanto pessoas seguras mas também como tomadores-segurados e, nessa qualidade, com toda a proteção que desse estatuto lhes adveio, como iguais titulares de todos os direitos e deveres nascidos com a celebração do contrato, designadamente o do pagamento dos prémios de seguro estipulados.

IV – Tratando-se de um contrato celebrado com o propósito de o dar em garantia ao banco mutuante e em que a proposta de adesão corres-ponde a declaração negocial mediante a qual cada um dos participantes se torna parte no respetivo contrato individual de seguro cujo conteúdo não foi objeto de negociação individual, valem aqui, com especial saliência, as exi-gências decorrentes, tanto das regras da boa-fé, como da intenção há muito concretizada pelo legislador em várias áreas do nosso ordenamento jurídico de garantir a proteção do consumidor, pela confi ança que a parte mais fraca investe no comportamento da outra no âmbito dos negócios ora em causa, a que tudo acresce o interesse público da manutenção do seguro de vida, por merecer mais ampla proteção legal do que a generalidade dos seguros.

V – Assim, em caso de mora no pagamento dos prémios de seguro de vida conexo com o contrato de mútuo bancário, uma vez que quem contra-tou o seguro foram ambos os cônjuges e só os dois devedores, os deveres que oneravam a ré seguradora obrigavam-na a remeter também à autora a notifi cação admonitória para efetuar a pagamento dos prémios em dívida, bem corno a comunicar-lhe a intenção de resolução do contrato, na medida em que esta, sendo um meio de extinção do vínculo contratual por declara-ção unilateral (receptícia) de uma das partes, deve ter como destinatários todos os intervenientes no contrato de seguro.

VI – A jurisprudência deste Supremo Tribunal relativa à resolução de um contrato de seguro que tenha como aderentes ambos os cônjuges sem-pre foi no sentido de reputar como indivisível a obrigação do pagamento dos prémios e, por isso, exigível que as referidas comunicações (admonitó-ria e resolutiva) sejam dirigidas a ambos os segurados.

VII – Embora o art. 6.º do DL 72/2008, que aprovou a lei do seguro em vigor, tenha revogado o art. 33.° do Decreto de 21-10-1907 – que estabele-

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Súmula Jurisprudencial (nov. e dez. 2018) | 115

cia expressamente que o segurado deveria ser avisado, por meio de carta registada, de que se não satisfi zesse os prémios em dívida o contrato seria considerado insubsistente – não se vislumbra na LCS qualquer regra que imponha a reversão daquela fi rme orientação jurisprudencial em casos – como é o ora em apreço – em que ambos os cônjuges celebraram o contrato, não sendo qualquer deles, tão-somente “pessoa segura”, pois nele partici-param como tomadores-segurados, não obstante a (ou independentemente da) terminologia usada pelos contraentes. O que, aliás, seria incongruente com a lógica de proteção do aderente do contrato, inerente as preocupações que fi caram bem explícitas no preâmbulo do diploma com que foi operada a reforma da lei de dar «particular atenção à tutela do tomador do seguro e do segurado – como parte contratual mais débil (...)», com vista a «alterar o paradigma liberal da legislação oitocentista (...)», com «uma solução de proteção do consumidor, quando o tomador tenha esta natureza».

STJ 8-nov.-2018 (Oliveira Abreu)

IV. O segurado do contrato de seguro facultativo por danos, deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato, constituindo o interesse segurável, um dos princípios fundamentais do direito do contrato de seguro.

V. Se o tomador e segurado por conta própria, no contrato de seguro facultativo, não é proprietário ou sequer detentor, do objecto do contrato de seguro, não tem interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, uma vez que o próprio, não corre qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil em caso de sinistro do veículo objecto do contrato, importando que o contrato de seguro seja nulo.

VI. Se o veículo segurado é conduzido, habitualmente, por pessoa diversa do tomador e segurado, impõe-se à seguradora, enquanto conhe-cedora deste facto, colher do tomador e segurado, elementos sobre quem é o proprietário do veículo segurado, qual o seu interesse na celebração do contrato de seguro, e, ao constatar o desencontro entre a identidade do proprietário do bem a segurar e o tomador do respectivo seguro, outrossim, que informe o tomador e segurado da pertinência em considerar o proprie-tário do veículo objecto do contrato de seguro, como segurado, sendo que a omissão deste dever, por parte da seguradora, encerra violação do princi-pio da boa-fé, não lhe sendo legítimo poder eximir-se ao cumprimento do contrato de seguro, quando o desconhecimento das circunstâncias relevan-tes para apreciação do risco, resultou da sua falta de diligência.

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VII. A concretização dos riscos cobertos resultará de os mesmos serem indicados na apólice, integrada por condições gerais, especiais e particu-lares, ou de, pelo contrário, se evidenciarem na apólice os riscos excluídos, caso em que se considerarão cobertos todos os restantes.

VIII. Impõe-se à seguradora que aja com a possível prontidão e diligên-cia nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinis-tro e à avaliação dos danos, pelo que o atraso injustifi cado da seguradora na gestão célere e efi ciente dos processos de sinistro, poderá responsabi-lizar a seguradora no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo, sendo que o dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo, quando o proprietário do veículo danifi cado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art. 1305.º do Código Civil, com violação do respectivo direito de propriedade.

REv 20-dez.2018 (Maria Domingas Simões)

O questionário é uma forma da declaração inicial do risco pelo candi-dato tomador do seguro ou pessoa segura, em ordem a permitir à segu-radora uma ponderação dos riscos que vai assumir com a celebração do contrato; não tendo a natureza de cláusula geral, a seguradora não se encontra vinculada aos deveres de comunicação e esclarecimento decor-rente do regime do DL 446/85, de 25 de Outubro.

REv 6-dez.-2018 (Vítor Sequinho)

Estando provado que, com vista à celebração do contrato de seguro, a recorrente lançou um concurso público nos termos da legislação sobre contratação pública e que tal o impunha o Código dos Contratos Públicos, é quanto basta para concluir que a competência material para dirimir o con-fl ito que opõe uma Administração dos Portos e uma seguradora pertence aos tribunais administrativos e fi scais.

RLx 5-dez.-2018 (Celina Nobrega)

Não tendo a Ré provado que as hérnias inguinais diagnosticadas ao sinistrado pré-existiam à data do acidente e que não resultaram do esforço

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que este realizou ao puxar a âncora do barco, não pode considerar-se excluída a sua responsabilidade nos termos da al. e) do n.º 1 da Cláusula 5.ª da Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Traba-lhadores Independentes.

RLx 5-dez.-2018 (Albertina Pereira)

No contrato de seguro de acidentes de trabalho, é de considerar ter sido transferida a retribuição líquida auferida pela sinistrada, se em parte alguma da apólice de seguro se faz menção a que o sobredito salário se referia uma quantia ilíquida, nem quanto se indica o salario mensal, nem quando se indica o anual, sendo que assim podia ter ocorrido, caso tivesse sido essa a intenção da ré seguradora, tanto mais que, as partes conven-cionaram condições contratuais bem mais favoráveis do que aquelas que resultam do regime decorrente da Lei 98/2009 de 4 de Setembro e a segu-radora se encontra dotada dos correspondentes meios técnicos e humanos, com sobejo conhecimento dos termos legais e contratais aplicáveis a tal tipo de situações.

RLx 29-nov.-2018 (António Valente)

1 – Em sede de proposta de adesão de um contrato de seguro do recheio da habitação, foi estabelecido que deveria ser elaborada uma listagem com os objectos “especiais”, ou sejas, os mais valiosos.

2 – Contudo, nada foi dito sobre as consequências da não elaboração de tal lista.

3 – Não tendo fi cado provado que a Seguradora tivesse entregue aos tomadores do seguro cópia das condições gerais e nomeadamente da cláu-sula que limitava o valor a indemnizar pela seguradora em caso de sinistro, sempre que não tivesse sido elaborada tal lista e provando-se igualmente que esta cláusula foi incluída no contrato anos depois da sua celebração sem que tivesse sido comunicada aos segurados, a mesma deverá conside-rar-se excluída do contrato.

REv 29-nov.-2018 (João Nunes)

I – Não se encontra abrangido pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho, na modalidade de seguro genérico agrícola, o sinistrado, traba-

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lhador permanente do empregador, se tendo entre este e a seguradora sido celebrado um seguro de acidentes de trabalho, na referida modalidade, que de acordo com as condições especiais da apólice abrangia trabalhado-res permanentes e eventuais, devendo em relação àqueles indicar-se no mapa de inventário que faz parte integrante da apólice uma relação do pessoal permanente do tipo de função principal e respetivas retribuições, o empregador não fez constar do referido mapa de inventário o trabalhador sinistrado em causa.

II – Não confi gura abuso de direito a invocação pela seguradora da não abrangência no contrato de seguro do trabalhador sinistrado, por nunca lhe ter sido enviado qualquer mapa de inventário com trabalhadores per-manentes, se da matéria de facto não resultam quaisquer elementos que permitam concluir que a seguradora tinha conhecimento que o emprega-dor tinha ao seu serviço não só trabalhadores eventuais como também tra-balhadores permanentes e que face ao comportamento do referido empre-gador ao longo dos anos de vigência do contrato de seguro (desde 1986) resultava do mesmo a intenção de abranger no contrato de seguro todos e quaisquer trabalhadores que tivesse ao seu serviço, independentemente dos mesmos constarem ou não de qualquer inventário anexo à apólice.

RLx 22-nov.-2018 (Teresa Prazeres Pais)

– Provado que a R, na qualidade de tomadora, aquando da contratação do seguro, declarou ser a condutora habitual do veículo seguro, quando a verdadeira condutora habitual do veículo seguro era, e sempre foi, a sua fi lha, o que fez para conseguir um prémio de seguro mais barato, não res-tam dúvidas que à A Seguradora assistia o direito de anular o contrato, tal como o fez.

– Tendo em conta que o contrato de seguro foi anulado pela A., por falsas declarações da R, esta responde perante aquela a título de respon-sabilidade pré-contratual.

RLx 22-nov.-2018 (Pedro Martins)

I – O segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado, mas para tal basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança. É depois à segu-

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Súmula Jurisprudencial (nov. e dez. 2018) | 119

radora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela participação.

II – As declarações prestadas perante um averiguador pago por uma seguradora, sem a presença da parte contrária nem o controlo do juiz, não valem como elementos de prova utilizáveis no tribunal, sejam elas corpori-zadas por um escrito feito na sequência das mesmas ou transmitidas pelo averiguador como testemunha (art. 421 do CPC, a contrario).

III – A prova de que o valor real do veículo não coincide com o valor pelo qual ele foi segurado cabe à seguradora, como facto impeditivo do direito do autor ao recebimento do valor acordado (art. 342/1 e 2 do CC).

IV – O valor dado a um veículo automóvel para efeitos de seguro que possa ser imputado à organização de meios de uma seguradora, designada-mente pela introdução de dados do veículo num sistema informático utili-zado pela mesma, precedida de uma vistoria, e que é aceite pelo segurado, corresponde ao valor real do veículo e/ou pode ser considerado como sendo um valor obtido por acordo antecedido de uma perícia (um sucedâneo do acordo previsto no art. 131 da LCS), pelo que, por regra, não tem razão de ser a invocação de falta de coincidência entre o valor seguro e o valor real ou de falta de acordo quanto ao valor (sendo que essa invocação, pela seguradora, nestas circunstâncias, sempre se poderia dizer manchada pelo abuso de direito: art. 334 do CC).

RPt 15-nov.-2018 (José Manuel Araújo de Barros)

I – A cobertura prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do Regime Jurí-dico do Seguro Desportivo Obrigatório, aprovado pelo DL 10/2009, de 12 de Janeiro, relativa ao pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, decorrente de sinistro no âmbito de activi-dade desportiva, abrange também os danos morais sofridos pelo segurado.

II – O artigo 16.º do mesmo diploma que, sob a epígrafe «coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo», dispõe na alínea d) que este garante «invalidez permanente parcial – 25.000,00€, ponderado pelo grau de incapacidade fi xado», deve ser interpretado como garantindo o paga-mento daquela quantia sempre que os danos decorrentes da incapacidade, total ou parcial, ultrapassem o valor da mesma, que não pelo resultado da aplicação àquele capital da percentagem de incapacidade fi xada.

III – A obrigação que, nos seguros de grupo, nos termos primitiva-mente estabelecidos no artigo 4.º, n.º 1, do DL n.º 176/95, de 26 de Julho, e ora constantes do artigo 78.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril,

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impende sobre o tomador, de informar «os segurados sobre as coberturas contratadas e as suas exclusões, as obrigações e os direitos em caso de sinistro, bem como sobre as alterações ao contrato, em conformidade com um espécimen elaborado pelo segurador», tem uma efi cácia confi nada às relações deste com o tomador, não valendo como uma transferência de tal dever, que desresponsabilize o segurador perante os segurados, impedindo estes de lhe oporem a exclusão de cláusula não informada.

RPt 15-nov.-2018 (José Manuel Araújo Barros)

I – A cobertura prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do Regime Jurí-dico do Seguro Desportivo Obrigatório, aprovado pelo DL 10/2009, de 12 de Janeiro, relativa ao pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, decorrente de sinistro no âmbito de activi-dade desportiva, abrange também os danos morais sofridos pelo segurado.

II – O artigo 16.º do mesmo diploma que, sob a epígrafe «coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo», dispõe na alínea d) que este garante «invalidez permanente parcial – 25.000,00€, ponderado pelo grau de incapacidade fi xado», deve ser interpretado como garantindo o paga-mento daquela quantia sempre que os danos decorrentes da incapacidade, total ou parcial, ultrapassem o valor da mesma, que não pelo resultado da aplicação àquele capital da percentagem de incapacidade fi xada.

III – A obrigação que, nos seguros de grupo, nos termos primitiva-mente estabelecidos no artigo 4.º, n.º 1, do DL n.º 176/95, de 26 de Julho, e ora constantes do artigo 78.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, impende sobre o tomador, de informar «os segurados sobre as coberturas contratadas e as suas exclusões, as obrigações e os direitos em caso de sinistro, bem como sobre as alterações ao contrato, em conformidade com um espécimen elaborado pelo segurador», tem uma efi cácia confi nada às relações deste com o tomador, não valendo como uma transferência de tal dever, que desresponsabilize o segurador perante os segurados, impedindo estes de lhe oporem a exclusão de cláusula não informada.

RCb 13-nov.-2018 (Vítor Amaral)

1 – O art. 78.º do RJCS é claro, em matéria de contrato de seguro de grupo, no sentido de ser o tomador do seguro – e não o segurador – o vin-culado, salvo convenção em contrário, ao dever de informar os segurados/

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aderentes sobre as coberturas contratadas e as suas exclusões, as obri-gações e os direitos em caso de sinistro, bem como sobre as alterações ao contrato, tratando-se, assim, de regime legal especial deste tipo de seguro, afastando, neste âmbito de prestação informativa, o regime geral diverso resultante da LCCG.

2 – Tais alterações ao contrato podem ser livremente promovidas pelo segurador (no quadro da sua relação com o tomador) sem assentimento dos segurados, que apenas têm de ser informados e esclarecidos acerca do seu conteúdo.

3 – Compete também ao tomador do seguro provar que forneceu as informações a que está obrigado.

4 – O incumprimento desse dever de informar faz incorrer o tomador em responsabilidade civil (art. 79.º do RJCS).

5 – Neste âmbito, pode o segurador opor aos segurados e aos bene-fi ciários uma cláusula de exclusão da cobertura do seguro, mesmo que objeto de alteração por aquele, no caso de a omissão do dever de informa-ção e esclarecimento junto dos segurados ser exclusivamente imputável ao tomador de seguro.

6 – Porém, exigindo essa cláusula, para exclusão da cobertura, que se trate de “ações ou omissões praticadas pela pessoa segura”, cuja morte violenta foi devida a intoxicação medicamentosa por sertralina, o não apu-ramento da concreta causa do sinistro (homicídio, acidente ou suicídio) determina a operância da garantia do seguro.

REv 8-nov.-2018 (Francisco Matos)

Provando a seguradora a onerosidade excessiva da reparação do veí-culo sinistrado, em função da desproporção entre o valor desta e o valor de substituição do veículo, incumbe ao credor provar que o concreto valor patrimonial do veículo não coincide, por superior, com o seu valor de subs-tituição no momento anterior ao acidente.

RLx 8-nov.-2018 (Farinha Alves)

Um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, que foi celebrado para a prova desportiva “SUPER ESPECIAL CID PRAIA DA VITÓRIA”, garantindo, nos termos dos DL 291/2007 de 21-08, bem como das Condições Gerais Uniformes da Apólice do Seguro Automóvel Obriga-

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tório, a responsabilidade civil automóvel do Segurado, dos proprietários dos veículos, seus detentores e condutores, emergente de eventuais aci-dentes que venham a ocorrer durante a realização dessa prova, não foi, nem podia ter sido, limitado aos veículos dos concorrentes, abrangendo também os veículos da organização e, no que agora releva, o veículo que, nos termos da matéria de facto provada, desempenhava a função de carro de segurança, tendo o número 00, cabendo-lhe percorrer cada troço antes da passagem dos veículos em competição para verifi car se o mesmo estava desimpedido e se era seguro continuar com a prova.

Assim sendo, e porque este é um seguro celebrado ao abrigo do n.º 5 do art. 6.º do DL n.º 291/2007 de 21-08, é sobre esta Seguradora que recai, em primeiro lugar, a responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pelo Apelante em consequência do acidente dos autos, nos termos do art. 23.º do mesmo diploma legal.

RPt 8-nov.-2018 (Fernanda Soares)

I – Está abrangido pelo regime legal de reparação dos acidentes de trabalho – Lei n.º98/2009 de 04.09 – o sinistrado que, como trabalhador autónomo, se encontra na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços.

II – O sinistrado só está obrigado a celebrar contrato de seguro de aci-dente de trabalho, nos termos do DL n.º159/99 de 11.05, se se provar que à data do acidente era trabalhador independente, ou seja, sem subordinação jurídica nem subordinação económica à pessoa em proveito da qual pres-tava serviços.

3. Direito dos Valores Mobiliários

STJ 11-dez.-2018 (Ana Paula Boularot)

I. Os intermediários fi nanceiros encontram-se sujeitos a um conjunto de princípios gerais atinentes ao exercício e à organização da sua activi-dade, os quais decorrem directamente do preceituado no artigo artigo 304.º do CVM

II. O princípio dos princípios orientadores da actividade de interme-diação, reside, indubitavelmente no n.º 1 daquele normativo ao impor aos

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intermediários fi nanceiros que orientem a sua actuação no sentido da pro-tecção dos interesses legítimos dos seus clientes.

III. Tal princípio mais não é do que a imposição da expressão da Direc-tiva 2004/39/CE de 21 de Abril, da qual decorre uma vinculação dos inter-mediários fi nanceiros a orientar a sua actividade no sentido de assistir os seus clientes ao nível do seu plano de investimentos, informando-os e alertando-os para os possíveis riscos e chamando-lhes a atenção para even-tuais prejuízos que deles possam advir; mais do que meros executantes formais dos serviços disponibilizados e/ou contratados, os intermediários fi nanceiros devem funcionar em relação aos seus clientes/investidores, como verdadeiros garantes e guardiões dos réditos investidos zelando pela sua valorização.

IV. Viola tal princípio a entidade bancária que no exercício da interme-diação fi nanceira não apresenta ao seu cliente de forma clara, esclarecida e fi el, o produto proposto, não obstante soubesse que este não tinha conhe-cimentos que lhe permitissem aferir do alcance da aplicação na aquisição das obrigações da PT, em causa, bem sabendo que o Autor não tinha qual-quer intenção em investir o seu dinheiro em produtos que implicassem qualquer risco para o capital, sendo certo que lhe foi até assegurado que «o produto em questão era idêntico a um depósito a prazo, por quatro anos, sem qualquer risco de capital ou juros e susceptível de ser movimentado quanto o autor quisesse».

V. O Réu/Recorrente, com a sua conduta, desafi ou todos os deveres de protecção da integridade pessoal e patrimonial do Autor, tendo-lhe apre-sentado como realidade, uma situação que à partida sabia que não era aquela (não se tratava de um depósito a prazo, mas sim da aquisição de um produto de risco), o que conduziu, não a uma frustração das expectativas daquele, mas antes, à frustração da sua confi ança, porquanto as repre-sentações e as disposições efectuadas em função das mesmas, lhe foram indevidamente transmitidas, o que conduz, inexoravelmente à obrigação de reparação, colocando o sujeito na situação em que se encontraria se não tivesse acalentado aquelas expectativas.

STJ 8-nov.-2018 (Olindo Geraldes)

II. Em ação de efetivação da responsabilidade civil emergente de inter-mediação fi nanceira, não se tendo extinguido o sujeito, o objeto e a causa da relação jurídica material controvertida, não se verifi ca a situação de impossibilidade superveniente da lide, quanto a um dos réus, nomeada-

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mente por efeito das deliberações do Banco de Portugal, de 29 de dezembro de 2015.

RLx 20-dez.-2018 (Ana Paula Albarran Carvalho)

I – Não se provando que o autor fi cou convencido de que estava a «reno-var» um depósito a prazo nem o demais alegado, inexistem os pressupostos necessários para a constituição do réu na obrigação de indemnização como intermediário fi nanceiro, pois o artigo 314.º n.º 2 do C.V.M. não implica presunções de ilicitude e/ou de causalidade.

RGm 17-dez.-2018 (António Figueiredo de Almeida)

1) A condenação em objeto diverso do pedido não se confunde com uma diversa fundamentação jurídica da condenação;

2) Embora a comercialização de produto fi nanceiro com informação de ter capital garantido responsabilize em primeira linha a entidade emi-tente do produto, não signifi ca que essa responsabilidade não se estenda também ao intermediário fi nanceiro, se no relacionamento contratual que desenvolve com o cliente, assumir em nome desse relacionamento contra-tual também o reembolso do capital investido;

3) A responsabilidade do intermediário fi nanceiro, in casu um Banco, a que alude o artigo 314.º do CVM, é uma responsabilidade contratual, cujos pressupostos estão defi nidos pelo artigo 798.º do Código Civil;

4) Os intermediários fi nanceiros são obrigados a indemnizar os danos causados a qualquer pessoa em consequência da violação de deveres res-peitante ao exercício da sua atividade, que lhes sejam impostos por lei ou por regulamento emanado de autoridade pública;

5) Na presença de um acordo entre o banqueiro e o seu cliente a falta do resultado normativamente prefi gurado implica presunções de culpa, de ilicitude e de causalidade;

6) Salvo dolo ou culpa grave, a responsabilidade do intermediário fi nanceiro por negócio em que haja intervindo nessa qualidade prescreve decorridos dois anos a partir da data em que o cliente tenha conhecimento da conclusão do negócio e dos respetivos termos;

7) Não resultando dos factos provados, em que momento é que o autor teve conhecimento dos exatos termos e condições do produto por si adqui-

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rido através do réu, esta ausência de prova funcionará contra o réu, bene-fi ciário do invocado prazo de prescrição, como exceção ao direito do autor.

RLx 11-dez.-2018 (Gabriela de Fátima Marques)

I – A alegação do A. como tendo o Banco intervindo na compra de obrigações em seu nome sem sua autorização, consentimento ou conheci-mento determina que não estejamos perante o contrato de intermediação fi nanceira.

II – Não constitui “non liquet” a circunstância de não se ter dado como provado factos relativos ao eventual incumprimento do contrato de inter-mediação fi nanceira, pois é o próprio Autor que nega a sua existência e este não resulta da prova produzida.

III. Tendo o A. conhecimento da operação fi nanceira de aquisição de títulos obrigacionais em seu nome em 2008 e intentado a acção em 2017, a actuação do mesmo poderia determinar a verifi cação da concretização do instituto da boa fé na categoria de suppressio que se reconduz à surrectio, sendo que na primeira o exercente deixa passar um tal lapso de tempo sem exercer o seu direito que, quando o faça, contraria a boa fé, e na segunda por força da boa fé, o exercente vê, contra ele ou em termos que ele deva respeitar, formar-se um direito que, de outro modo, não existiria.

IV. Na ausência de outros factos além da repercussão do tempo e a falta do exercício do direito por parte do Autor apenas poderá ser apre-ciada em termos de factos extintivo da obrigação tendo por base a prescri-ção do direito.

REv 8-nov.-2018 (Francisco Matos)

Os deveres de informação do intermediário fi nanceiro não se esgotam no plano meramente formal da enunciação do produto fi nanceiro e suas características, mais ou menos detalhadas, apreensível pelo homem médio, exigindo-se uma informação que, em substância, surja como apreensível pelo concreto cliente investidor, em função do seu grau de conhecimentos e experiência.

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institucional; e (iii) regulatória.

A RDFMC assume-se como uma publicação crítica, prática, dogmática e

multidisciplinar.

Crítica: os avanços legislativos impõem, à Ciência Jurídica, uma

avaliação profunda do caminho percorrido nas últimas décadas;

Prática: o Direito Financeiro é, por essência, um Direito iminentemente

prático e de pormenor, discutido nos nossos tribunais e junto das entidades

de supervisão;

Dogmática: e no caso concreto que o Direito assume o seu mais perfeito

estado de concretização e é nessa condição que as construções jurídicas devem

ser sustentadas;

Multidisciplinar: o Direito contemporâneo rompeu as suas fronteiras

clássicas e assume hoje a importância das demais Ciências: Economia,

Sociologia, Estatística, Informática ou Medicina.

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artigos doutrinários, anotações jurisprudenciais, recensões e notas

legislativas e doutrinárias.

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