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Bons Ares Crónicas de um português na Argentina

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Bons AresCrónicas de um português na Argentina

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Prefácio/Introdução

Apaixonado por viagens a primeira que fiz foi de Luanda a Lisboa, tinha então 14 dias. A viagem dura à 30 anos.

Licenciei-me em Administração e Gestão de Empresas pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa em 1999. Quatro dias depois comecei a estagiar na Multinacional Swedish Match em Budapeste. Completados os seis meses de estágio ingressei nos quadros desta empresa e fui trabalhar em Madrid. De regresso a Portugal trabalhei dois anos como Gestor de Produto na empresa Sumol Gestão de Marcas e na mesma semana em que passei para os quadros despedi-me para participar no Programa Contacto do Icep. Estas crónicas falam dos 9 meses em que estive em Buenos Aires no âmbito deste programa.

A minha paixão por viagens é antiga. Aos 19 anos fui passar férias a Londres e por lá fiquei oito meses. Interrompi o curso completado que estava o primeiro ano e sustentei-me a trabalhar no que pude, desde limpezas a serviço de mesas. Foi a minha primeira grande viagem e só agora compreendo que para mim menos que seis meses não é bem viagem. Mais do que tirar fotografias e visitar museus o que me fascina nas viagens é conhecer e viver outra cultura, outros hábitos, outras gentes e, com tudo isto, conhecer-me melhor. Estas crónicas retratam exactamente isso, o modus vivendus porteño1 que me foi dado a conhecer nos 9 meses em que trabalhei em Buenos Aires e a forma como tudo isso me mudou.

Falo no choque cultural de um Europeu numa Argentina a tentar sair de uma profunda crise económica e social. Falo de algumas idiossincrasias que me cativaram a atenção e me fizeram questionar a minha própria cultura. As diferentes maneiras de estar e de encarar a vida e pequenos pormenores que tantas vezes são a ponta do iceberg de grandes diferenças. Evidencio diferenças, ponho-me em causa e ponho culturas em causa; questiono a minha e a dos outros. E, acima de tudo, divirto-me com essas diferenças, alegro-me com as surpresas e vibro com a novidade. Retrato o que vejo com o mínimo de censura, limito-me a passar para o papel o que me capta a atenção e desperta a imaginação. Também dou opiniões e faço comentários, ou não fosse todo a crónica o espelho da subjectividade de quem observa, mas tento não ofender quem pensa diferente. Falo da falta de humanismo e do crescente consumismo que observo. Falo da guerra, da pobreza, da fome e da crescente avareza e consumismo que testemunho.

Também falo de mim. Falo do que estou a fazer e, muitas vezes, do que estou a sentir, não fosse esse o propósito inicial das crónicas. Falo dos meus objectivos, do meu dia-a-dia e dos meus hábitos, embora superficialmente. Na última Crónica falo do regresso e de como estou diferente passados 9 meses, mas agora num novo mundo: O meu mundo de sempre visto por um novo Augusto.

1 Porteños é como são conhecidos os habitantes de Buenos Aires, assim como, por exemplo, os Lisboetas são Alfacinhas.

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Musicamos com palavras o diálogo da vida e vamos indo sem rumo apesar da bússola. Mas apesar de tudo, mesmo assim, existe um caminho.

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ÍNDICE

I CRÓNICA DO NOVO MUNDO..................................................................................................1

18 Fevereiro 2003............................................................................................................................1

Primeiras impressões...................................................................................................................1Segundas impressões...................................................................................................................3

II CRÓNICA DO NOVO MUNDO.................................................................................................6

26 Marco 2003.................................................................................................................................6

O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem...........................................................6Os dois sagrados dias da semana.................................................................................................6La buena vida és cara. Hay otra..., pero no és vida......................................................................7La Revancha del Tango................................................................................................................8Don’t Cry for me ONU..............................................................................................................10

II CRÓNICA DO NOVO MUNDO...............................................................................................13

18 Maio 2003.................................................................................................................................13

Política e copos..........................................................................................................................13Conduzir em Buenos Aires - esquece o código da estrada e aperta bem o cinto.......................14Las Piedras Rolantes..................................................................................................................14Che Augusto na Argentina.........................................................................................................16

IV CRÓNICA DO NOVO MUNDO.............................................................................................18

8 Outubro 2003..............................................................................................................................18

A minha pátria é a minha língua................................................................................................19Meu Brasil Brasileiro.................................................................................................................20Bandeiras Céu e Sol...................................................................................................................20Fado Vadio.................................................................................................................................21Música, mais música!................................................................................................................22Dançar o Tango é que é Tanga...................................................................................................23Início da Crónica........................................................................................................................23Cursos, curso e mais cursos.......................................................................................................24Pátria Família e Fado.................................................................................................................24

V CRONICA DO NOVO MUNDO..............................................................................................27

31 Outubro 2003............................................................................................................................27

O melhor – a quota de bom humor............................................................................................27O pior – pobreza e a colonização...............................................................................................28E depois do começo o que vier vai começar a ser o fim............................................................29

I CRÓNICA DO NOVO MUNDO-CRÓNICA DO MUNDO NOVO.........................................33

Outubro 2004.................................................................................................................................33

Home sweet home?....................................................................................................................33A Grande Depressão..................................................................................................................34Isto é que vai uma Crise.............................................................................................................36Agora já vês o que é ser Português............................................................................................37A vida de um viajante diletante em casa....................................................................................37Cuidado! Viajar Causa Dependência!........................................................................................39...Liberdade para dentro da cabeçaaa.........................................................................................40Navegar é preciso, viver não é preciso......................................................................................41

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I CRÓNICA DO NOVO MUNDO18 Fevereiro 2003

Faz hoje precisamente um mês desde que aterrei nesta formosa cidade baptizada em 1536 de Puerto Nuestra Señora Santa Maria del Buen Aire.

Descobrir um sítio novo é ao mesmo tempo fascinante e difícil... mas, quando o sol brilha resplandecente e a gente é comunicativa, torna-se mais fascinante do que difícil.

Primeiras impressões

Fiquei num hotel quase duas semanas até encontrar um apartamento ao meu gosto. Com tanta coisa nova, tive pouco tempo livre para procurar casa, mas, sabendo a importância de escolher bem, vi e revi, andei e palmilhei meia cidade, consultei Gregos e Troianos e finalmente decidi.

O apartamento é uma delícia. Um quarto, sala, kitchnet com balcão para a sala e uma terraza com espaço para churrasco. É num 8º piso de um prédio moderno e está decorado ao estilo mediterrânico, com predominância de cores claras, principalmente azul e amarelo “sujo”. Está virado a Este o que quer dizer que apanho sol de manhã. Acordo com a sol a invadir delicadamente o meu sono. Um mimo.

Em relação ao emprego... bem, trabalho é trabalho e cognac é cognac... mas aqui cognac é o trabalho!!! Já trabalhei em alguns negócios, dos telemóveis aos isqueiros, passando por refrigerantes, bancos... e agora constato os atractivos do negócio dos vinhos. Já me estou a tornar um especialista na matéria – Branco, Verde, Rosé ou Tinto? Muito, desde que seja Finca Flichman2! Mas deixemo-nos de coisas sérias e vamos ao que interessa...

Nunca tinha estado na América do Sul e não sei o que esperava. Algumas vezes, parece que estou em Madrid... outras, muitas outras, não tenho a menor dúvida que estou num país do Novo Mundo descoberto por engano por Cristovan Colón, como aqui e conhecido o nosso (?) Cristóvão Colombo.

Paris da América do Sul acenta-lhe bem. A arquitectura do centro é imponente e imperialista e há um sem número de edifícios que lembram algumas cidades da Europa... muitas vezes de Leste! Tem edifícios trabalhados e cuidados ao estilo renascentista... mas, se não me falha a história... por essa altura eles ainda comunicavam através de sinais de fumo... mas que los hay, hay!

Cadê os moreninhos e mulatos que se viam nas novelas? Cadê os muleque de rua? As pessoas são bem ao estilo europeu. Há, isso sim, uma grande variedade de formas e formatos... do loiro ariano ao moreno indiano.. do alto ao baixo do gordo ao magro (se bem que mais magro que gordo que toda as pessoas cuidam muito a aparência...e quando digo muito é muito mesmo!). Desta mistura brotam espécimens... vá lá, interessantes... e mais não digo. Estranhamente, africanos não vi mais que um par. Com um bocado de jeito lá se encontram pessoas com traços indígenas (Querandí era o povo que habitava esta zona - as Pampas, quando os colonizadores invadiram) como por exemplo a minha empregada... o homem do lixo... as centenas de putos que pedem nas ruas... bem que los hay, hay, mas em vez de viverem na floresta como há alguns séculos, vivem na selva: os bairros de lata que aqui se chamam bichas. Andam pelas ruas e pedincham...2 Empresa em que trabalhei

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Ouviram falar da crise que a Argentina atravessa, não? Pois eu também... não a vejo em nenhum lado, mas que la hay, hay! Conto-vos resumidamente a história (se estiverem cansados podem passar esta parte). Há cerca de 10 anos, quando se estava sobre o governo de Menem (atenção... Menem é um dos principais candidatos à vitória nas eleições presidenciais de dia 27 de Abril. O dinossauro regressa!) implementou-se o sistema da paridade: 1 Peso Argentino = 1 Dólar Americano. O objectivo era controlar a inflação galopante... característica comum dos países da América do Sul. Foi tudo muito bonito durante 10 anos... tinham poder de compra, eram mais ricos que os vizinhos (Chile, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Brasil...) tinham nível de vida: fartavam-se de viajar tinham electrodomésticos roupa e bens de consumo importados... até que... um belo dia, na sequência de uma crise que já era mais que evidente....em Dezembro de 2001 aconteceu o que ficou conhecido como o curralito.

O Ministro da Economia decreta Estado de Sítio e apodera-se do dinheiro dos particulares que está no Bancos. A resposta da população em fúria foi o Cacerolaso. Cacerola é panela (caçarola), o povo em massa saiu à rua de panela e colher em riste manifestando ruidosamente o seu descontentamento com o governo em particular e com a situação em geral. Tão simplesmente o sistema da paridade havia terminado na sequência de uma crise gerada pela implosão da economia! Hoje parece óbvio que o sistema da paridade não era sustentável.

Hoje o Peso Argentino flutua consoante as leis de mercado e não e fixado artificialmente... neste momento vale 1/3 do USD. Imaginem que, de hoje para amanhã o Euro passa a custar 70 paus. Tudo o que têm aí em Portugal passa a valer imediatamente 3 vezes menos... a casa, o carro, as contas bancárias... Se só se consomem produtos nacionais é indiferente, mas como vivemos em economia aberta, em termos reais a grande maioria das coisas fica três vezes mais cara. Apenas se mantém barato o que é feito unicamente com matéria-prima nacional, como a comida e pouco mais. Tudo: o que é importado fica três vezes mais caro. Acabaram-se as idas ao estrangeiro, a roupa importada, os electrodomésticos... etc, etc. Por outro lado, os anos de paridade destruíram a indústria nacional. Durante dez anos era mais barato importar produtos do que os produzir internamente.

Ora bem... se há algo que já percebi nestas minhas 28 primaveras é que, sempre que há uma crise... há sempre quem lucre com ela. Lucrou que consegui colocar o seu dinheiro no estrangeiro ou quem tem rendimentos fora.... como eu!!! Reparem: a moeda vale três vezes menos... como eu recebo em Euros, o que se passa é que tenho três vezes mais dinheiro! Ok... lets cut the chase... sou rico! Várias vezes vou e venho de táxi para o emprego, almoço e janto quase todos os dias fora em bons restaurantes, compro CDs só porque achei piada à capa, inscrevi-me num Spa, comprei uma Mountain Bike muito fixe, uma máquina de barbear, etc, etc... tásse bemmmm! Só me falta comprar uma escova de dentes eléctrica. Entrei no novo milénio! Viva o consumo desenfreado, inútil e fútil! Viva as marcas de roupa com nomes tipo Italiano ou francês... que bom que eu sou... a minha camisa e mais cara que a tua nhaaa, nha, nha... Upsss, é melhor falar baixo porque afinal esta é a terra do Che Guevara.

Falando de crise fala-se de salários baixos. E os salários são tão baixos que por meia dúzia de tostões faz-se qualquer coisa.... qualquer coisa? Sim qualquer coisa, até se faz de poste humano. Passo a explicar. É mais barato pagar a uma pessoa para levantar um cartaz do que pagar o aluguer de um espaço para um cartaz. O marketing não pára, os sul americanos são prodígios da imaginação e um dos resultados é os postes humanos que se colocam diante dos carros enquanto o sinal está vermelho. Mal o sinal cai lá vêm eles organizadamente levantar uns muppies com propaganda. Mais uma vez os locais acham normal e quem vem de fora acha estranho. Mais estranho e

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ainda mais engraçado são as “meias-luas dançantes”. Chamam-se empanadas e são muito comuns na Argentina. São tipo os nossos panados; folhados em formato de meia-lua recheados de carne, de legumes, de queijo, de cogumelos, de fiambre, etc. Para além de haver em lojas próprias também se fazem entregas em casa tipo “Telepizza”. As mais conhecidas são as “Solo Empanadas” que, como querem manter-se as mais conhecidas tem também uma animação em semáforos. Nem mais nem menos que umas quantas empanadas humanas que dançam enquanto o sinal está vermelho. Mais uma vez os locais acham normal mas quem vem de fora acha estranho, mas muito engraçado!

Bom..., o que me parece mais difícil de descrever são as pessoas e a sua forma de estar na vida. Quanto a isso, não há dúvida que estou na América do Sul. Parece que na Europa poupamos palavras aqui esbanja-se! Fala-se sobre tudo e sobre nada; fala-se com quem se conhece e com quem não se conhece... cumprimenta-se toda a gente e toda a gente responde bem... por exemplo, entra-se num táxi e primeiro cumprimenta-se o motorista com um cordial Hola como lle vá, e a resposta é quase sempre cordial... pergunta-se pela mulher e pelos filhos... explica-se o que se esta a fazer na Argentina... fala-se do Eusébio do Figo e da Amália - se morrió? Díos mío que mujer que fué! E depois, só depois, se diz para onde é suposto o táxi levar-nos.

Outra experiência alucinante são os autocarros... param em todo o lado, basta carregar no botão que o condutor quando pode pára e abre a porta, se estiver no trânsito também se pode pedir que ele deixa entrar. Mas também pode ser que se esteja numa paragem e o autocarro simplesmente não pare porque não lhe dá muito jeito ou não lhe apetece. Os condutores costumam ser personagens caricáticas, normalmente ouvem o rádio ruidosamente enquanto fumam um cigarrinho mesmo em baixo do letreiro que diz em letras garrafais “Proibido Fumar”. Ahhh... e o mais giro é que, com um bocado de jeito, pode ser que ele mude o percurso para nos deixar noutro sítio... é absolutamente irreal! Conduz-se sem regras nas enormes avenidas, bem ao meu estilo, e aqui não fazem o teste do álcool!!!!! Mas não se preocupem... não conduzo a minha Mountain Bike bêbado nem planeio comprar carro...

Segundas impressões

Esta semana é a semana do Tango e há imensos eventos. E, felizmente é impossível esquecer, Buenos Aires é a capital do Tango, embora, e desculpem se vos desiludo, hoje o Tango é um produto que se vende aos turistas (grande parte de terceira idade) e visto pelos jovens como algo antiquado, triste e desgraçado... tipo o Fado para nós. De qualquer das formas... é liindo! É absolutamente fantástico ir ao Domingo à Plaza Dorrego em San Telmo ou a Caminito que fica no bairro La Boca (não vos diz nada... La Boca... Boca Juniors... Maradona. Pois é neste bairro que fica a “Bombonera” que é a “Cancha” do Boca Juniores3). Ok, é para inglesinho ver...mas vale mesmo a pena!

Algo que reparo é que se dorme muito pouco... a grande maioria das casa não tem as persianas a que estamos acostumados (aquelas que transformam um quarto numa caverna propícia à hibernação) e, como o sol nasce as 6h... às 7h já tá tudo a pé! Mesmo depois de uma noite de copos... com uma ou duas horinhas recupera-se energias e vamos nessa que se faz tarde à bessa! Se se está cansado, dorme-se na relva de um parque ou numa piscina. Muitos dos noctívagos recuperam energias em parques ao fim de semana... sim, nos parques porque estamos a 300/400 kms da praia e, para compensar a falta de areia (embora a praia 3 Traduzindo: É no Bairro de La Boca que fica a cancha (estádio, campo de futebol ou polidesportivo)

do Boca Juniores que é conhecida pelo adeptos por “La Bombonera”.

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seja absolutamente insubstituível) há muitas piscinas e parques onde o pessoal que fica em Buenos Aires de fim-de-semana vai apanhar sol... relembro que estamos em Fevereiro mas em pleno Verão. E os parques são mesmo uma característica da cidade... há imensos, super bonitos e super agradáveis.

Por falar em passear...há também muitas feiras de antiguidades e feiras tipo freak. São lindas e uma delícia para os estrangeiros... e também para os locais. Cafés imensos, esplanadas.... Puerto Madero (tipo docas), La Costonera - a costa. A costa? Sem praia? Pois é, Buenos Aires é banhada pelo Rio de La Plata. Do outro lado do Rio fica o Uruguai... mas não se vê a outra margem do rio... parece incrível mas está oculta pelo horizonte! É inacreditável, ou não fosse este um dos estuários mais largos do Mundo... embora não deixe de ser um dos mais porcos também. Argentina tem muitos recordes de grandeza, para além do maior rio também a avenida mais larga do mundo... e, a partir de agora, o maior e-mail do mundo: este! Ressalta a vista que espaço não lhes falta. As estradas são enormes e há bastantes avenidas com 8 ou 10 faixas todas no mesmo sentido, aliás, a única forma de transitarem os mais de 13 milhões de pessoas que habitam na grande Buenos Aires.

Com tudo isto tudo há o modos vivendus porteño (assim se chamam os habitantes de Buenos Aires). O primeiro que salta à vista e o gosto pelos assados à lá parrilla. Numa palavra, churrascos. Come-se tão, tão, tão bem... a carne é uma maravilha - ou não fosse considerada a melhor do mundo. É de comer e chorar por mais. O churrasco para um porteño é mais ou menos o feijão com arroz para o brasuca. O vinho,....o vinho... ai o vinho.... sem palavras... por falar nisso, vou ali dar um gole. Para rematar o Dulce de Leche que entra em quase tudo o que é doce (tipo leite condensado depois de ir ao forno)... bom a comida é uma perdição... tive de entrar para o ginásio para não ficar bola outra vez...

Música. Para além de Tango - belíssimo (ok, sou suspeito porque La Revancha del Tango dos Gotan Project é um dos meus álbuns preferidos) existem algumas manifestações locais interessantes. Charlie García é o grande ídolo/ícone local. Imaginem o Pedro Abrunhosa, o Rui Veloso, o Sérgio Godinho e o Jorge Palma tudo numa pessoa... pois é, agora ponham-lhe um pouco de Alice Cooper e conseguem imaginar o personagem. Acho que não há um Argentino que não o adore.

De outros cantores falarei mais adiante, agora queria ainda falar do Kevin Johansen. É um Argentino (aliás, meio Argentino meio Canadiano) que faz uma música que junta vários ritmos e sons, sabores e odores de vários países da América Latina, desde Cuba ao Brasil, com passagem na Argentina, Porto Rico ou Venezuela. Como se não bastasse também se inspira nos States ou em França, ou não fosse ele um cidadão do mundo. Canta em Argentino/Espanhol, Inglês e Francês, ... um pouco ao estilo Manu Chao, mas a música é um pouco diferente..., mais trabalhada e sóbria.... numa palavra: maravilhoso. Tenho ouvido diariamente o álbum Sur ou no Sur e vou ter o privilégio de o ver tocar ao vivo neste fim-de-semana... apesar de ainda desconhecido, é, desde já, um dos meus cantores preferidos.

Bueno, acho que por agora chega, não? Bom, com tudo isto queria apresentar-vos esta bela cidade vista pelos meus olhos de viajante diletante e, cada vez mais, cidadão do mundo mundial. Deixo-vos com saudades, espero que estejam bem e fico a aguardar notícias vossas. Quanto a mim, prometo continuar a escrever e na próxima Crónica prometo contar coisas sobre o Tango!

Beijos e abraços.... ahhh quase que me esquecia... cá os homens cumprimentam-se com um beijos na face..... por isso...

Beijos & Beijos deste vosso amigo

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II CRÓNICA DO NOVO MUNDO26 Marco 2003

Prometi voltar a escrever depois de dançar Tango. Como o prometido é de vidro, cá está a II Crónica do Novo Mundo. Quanto a fotos, só chegou a máquina fotográfica digital que comprei e por isso apenas tenho uma foto para mostrar: a da minha casa - humilde aposento à vossa disposição.

O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem

Acho que uma das muitas fantásticas sensações que viajar nos traz é perder a noção do tempo. Quando mudamos de sítio mudam algumas referências temporais e o tempo psicológico muda com elas. Pois bem, sinto-me como se estivesse por cá há um ano. Caminho pelas ruas, ando de um lado para o outro, vou de aqui para ali... vou visitar isto e aquilo, cumprimento vizinhos, empregados de lojas, empregados dos restaurantes, jogo a bola, apanho autocarros... de alguma forma sinto-me confortável no meio circundante o que faz psicologicamente distante dos primeiros dias em que tudo parecia estranho.

Ora esta sensação tem o seu revés. Apesar dos meus diversos projectos, sinto que ainda não fiz metade das coisas a que me tinha proposto; nem parece que cheguei há 2 mesitos... mas passemos à descrição que esta conversinha pseudo introspectiva dá vontade de ir logo ao delete e mandar o e-mail para o risaicablele bine ó lá como isso se chama.

Apesar de ter trabalhado sete meses em Madrid, tive problemas com o idioma. Estudar castelhano passou a ser uma prioridade. Bom para ser mais preciso, estudar porteño que é o idioma local. A diferença é em tudo parecida com a que vai do português de Portugau ao português do Brasiu. Trata-se toda a gente por você (vos) conjugado com a segunda pessoa do singular, por exemplo: “como estás vos”. Em contrapartida, muitas vezes utilizamos os verbos na terceira pessoa do singular com pessoas com quem temos intimidade e não a segunda. Uma das grandes diferenças fonéticas é que LL não se pronuncia LHE, como em Espana, mas sim CHE. Como te llamas ou cuando llegaste soa quase a português Por isso o idioma argentino é cheio de “che’s”. Há outros pormenores linguísticos curiosos... muito curiosos mesmo. Por exemplo, “levantar uma mina” quer dizer “engatar uma rapariga”, “boliche”, por muito estranho que pareça, quer dizer “discoteca”... ahhh e há uma coisa que convém manter bem presente, nunca dizer “já te ligo” ou “depois ligo-te” ou algo que tenha a ver com “ligar”, porque “ligar” significa entrar em intimidades físicas..., em linguagem C6 é o “safar-se”.... confundidos? Bom, confundido fiquei eu quando cheguei e por isso matriculei-me no curso intensivo da Castelhano da Universidade de Buenos Aires.

Provavelmente esta foi a causa de ainda não ter feito tudo a que me tinha proposto. Durante as últimas 5 semanas comecei o dia de trabalho uma hora mais cedo para poder sair uma hora mas cedo e ir ao curso. É estafante sair de casa às 7.30hs para só regressar pelas 23h ou 24h. O curso terminava às 20.30 mas, por mais cansado que esteja, há sempre uma energiazita de reserva para um geladito, uma cervejinha (ou, como se diz cá, um chop), um cineminha, uma passagem pelo ginásio... sei lá, qualquer coisa para espairecer um pouco, né? As semanas passaram, ou melhor, correram! Uns dias cheguei ao trabalho com mais olheiras e outros com menos. Alguns dias não me apeteceu nada ir ao curso de castelhano... muitos mais não me apeteceu ir trabalhar, bom, mas isto não conta porque é normal. Bom, o que é facto é que acabo de terminar o curso de espanhol nível intermédio alto... tává à ver que nunca mais!

Os dois sagrados dias da semana

Fim-de-semana é o deleite de qualquer prisioneiro do trabalho. Vistas bem as coisas até me posso considerar privilegiado porque, em primeiro lugar tenho trabalho (o que é obra num país

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com níveis de desemprego na ordem dos 55%) e, em segundo, porque só trabalho durante a semana. Isso das 35 horas semanais nem lhes passa pela cabeça, o normal é trabalhar também ao Sábado de manhã e o dia de trabalho ter pelo menos 9 horas... feitas as contas... voilá: 50 horas por semana. Sou ainda mais privilegiado por receber em Euros e não em Pesos Argentinos. Com quanto, o fim-de-semana é o deleite de qualquer prisioneiro do trabalho, mas mais ainda dos prisioneiros privilegiados...

Como qualquer país sul-americano que se preze, este é um país de discrepâncias sociais. É possível viver à grande e à Francesa porque aqui há de tudo para se desfrutar ao máximo, desde que se tenha uns tostões no bolso... e nem é preciso muitos tostões! Como disse alguém, “Na Argentina vive-se luxos Parisienses a preços Africanos”. Um jantar num sítio fashion pode custar...deixa lá ver... uhmmm.. 40 pesos e já inclui um delicioso Malbec Finca Flichman. Ora bem... 40 Pesos são pouco mais que 2cts, isto é, 10€, que é o que se paga hoje em dia por qualquer jantarzito em Lisboa. Melhor exemplo é uma cadeia de Tenedor Livre (não me lembro do nome em português mas é um restaurante em que se paga uma quantia fixa, vão havendo reposições e come-se o que se quer e quantas vezes se quer) em que por 600 paus come-se até rebentar.... e boa comida!

Voltando às discrepâncias. Existe muita gente com dinheiro. Bons carros, jóias..., boas casas..., quintas nos arredores da cidade com piscina, cavalos, vacas... etc. Para estas pessoas existem milhares de alternativas: jantares, festas, clubes, cinemas, teatros, viagens, cursos variados, piscinas, roupa e por aí em diante MAS, e aqui está a piada da coisa, também se pode disfrutar sem gastar muito! E é isso que o comum dos portenhos faz.

La buena vida és cara. Hay otra..., pero no és vida

Não podia estar mais desfasado da realidade este ditado popular espanhol. O sol quando nasce é para todos e é vê-los (e vê-las) a apanhar o belo solzinho ao fim de semana nos milhares de parques que existem pela cidade (na praia não porque, relembro, está a cerca de 350 kms). Um dos costumes mais tradicionais da Argentina é o MATE. Não, não se assustem que não e nenhuma palavra de ordem do Sr. Bush aos seus soldados. Mate é uma erva que se coloca num recipiente especial (alguns bem bonitos, por sinal), junta-se água quente e bebe-se por uma palhinha metálica – a bombilla. Chá! Dirão os mais atentos; sim um tipo de chá mas em que a proporção de erva é bastante superior à de agua. Há todo um ritual de partilha no momento do mate e é um privilégio ser-se convidado para tomar mate. Pois bem, há milhares de pessoas: grupos de amigos, famílias..., nos parques a beber mate, a ler, a jogar a bola, a fazer yoga, a passear os cães, a pescar nos lagos, a cansar os putos, a apanhar sol ou a observar os locais para depois fazer crónicas...hihihi4.

4 Não resisto a incluir este email “em massa” que descreve bem o que é o mate para um argentino: “El mate no es una bebida, corazones de otro barrio. Bueno, sí. Es un líquido y entra por la boca. Pero no es una bebida. En este país nadie toma mate porque tenga sed. Es más bien una costumbre, como rascarse. El mate es exactamente lo contrario que la televisión. Te hace conversar si estás con alguien, y te hace pensar cuando estás solo. Cuando llega alguien a tu casa la primera frase es "hola"y la segunda "¿unos mates?". Esto pasa en todas las casas. En la de los ricos y en la de los pobres. Pasa entre mujeres charlatanas y chismosas, y pasa entre hombres serios o inmaduros. Pasa entre los viejos de un geriátrico o entre los adolescentes mientras estudian. Es lo único que comparten los padres y los hijos sin discutir ni echarse nada en cara. Peronistas y radicales ceban mate sin preguntar. En verano y en invierno. Es lo único en lo que nos parecemos las víctimas y los verdugos. Los buenos y los hijos de puta. Cuando tenés un hijo, le empezás a dar mate cuando lo pide. Se lo das tibiecito, con mucha azúcar, y se sienten grandes. Sentís un orgullo enorme cuando ese enanito de tu sangre empieza a tomarlo. Que se te sale el corazón del cuerpo. Después ellos, con los años, elegirán si tomarlo amargo, dulce, muy caliente, tereré, con cáscara de naranja, con yuyos, con un chorrito de limón. Cuando conocés a alguien por primera vez, siempre decís, ...si querés venite a casa y tomamos unos mates. La gente pregunta, cuando no hay confianza: ¿Dulce o amargo? El otro responde: - Como tomés vos. Los teclados de las computadoras argentinas tienen las letras llenas de yerba. La yerba es lo único que hay siempre, en todas las casas. Siempre. Con inflación, con hambre, con militares, con democracia, con cualquiera de nuestras pestes y maldiciones eternas. Y si un día no hay yerba, un vecino tiene

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Depois há os Assados à lá Parrilla (o tão portuguesinho churrasco) com excelente carne e sempre regados com Quilmes (a cerveja nacional). Os que têm dinheiro desfrutam da parrillada (como são conhecidos estes tais churrascos) na casa de campo ao lado da piscina e antes de uma tarde de golfe ou pólo (para os mais desatentos é aquele desporto que se faz com cavalos e não pólo aquático que é jogado na água.. e sem cavalos). Os mais ajustaditos fazem a parrillada na rua a frente de casa ou nalgum pátio. Diferentes formas de partilhar um mesmo momento de combíbio. Gosto de ambos.

Há noite descobrem-se as mesmas discrepâncias. Uma bebida branca num bar ou discoteca pode chegar a custar 20 pesos (900 paus). Mais uma vez para um estrangeiro isso é normal, mas para um local e provável que esse o dinheiro que ele dispõe para os almoços de uma semana de trabalho. Mais uma vez, a falta de dinheiro não impede a diversão. Por todo o lado estão abertos toda a noite um género de quiosques que vendem uma Quilmes grande a um 1,5 pesos e todo o género de providências que a noite pode requerer (mate, whisky, tabaco, chicletes, acesso à Internet, chocolates, a bela da bifana...).

Assim, em lugares centrais tipo praças, parques, locais centrais, em cada bairro, etc; há milhares de jovens a conversar, a jogar a bola, a tocar guitarra, a andar de bicicleta, a olhar para as estrelas (normalmente estes são os que passaram um pouco da dose) às 5 DA MANHA COMO SE FOSSE 5 DA TARDE. Eu acho piada e parece-me uma excelente alternativa para os noctívagos. A acrescentar a isto, os autocarros não param durante a noite o que também ajuda a que a madrugada pareça final de dia. É o combíbio, bom de ver e melhor ainda de participar!

Já vai longa esta descrição e a pergunta ainda está no ar... e o TANGO?

La Revancha del Tango

O Tango, como falei no outra crónica, tem perdido adeptos entre os jovens; um pouco a imagem do fado em Portugal. O Tango é a voz do povo e, na sua génese é uma música triste e que fala de angústias e sofrimento. É sempre algo dramático e triste como o Fado o é. Ir a uma tradicional casa de Tango é uma experiência parecida com ir a uma casa de Fados. Dois ou três indivíduos à viola e uma/um cantor de bela voz. Com um pouco de sorte também um acordeonista. Gente mais velha, muitos turistas e todos com um ar nostálgico e melancólico... é sem dúvida bonito ou não fossem os locais de Tango sítios lindos. Amplos com grandes janelas e grandes cortinados, mesas bonitas, empregados vestidos a rigor, candelabros a iluminar em tons lusco-fusco e, sobretudo, a predominância do vermelho escarlate a fugir para o bordeaux que é, por excelência a cor do Tango - tipo cabaré ou os prostíbulos do início de século, que foram o berço do Tango. Vide por exemplo www.querandi.com.ar ou

y te la da, de onda o le pedís y está todo bien. La yerba no se le niega a nadie. Éste es el único país del mundo en donde la decisión de dejar de ser un chico y empezar a ser un hombre ocurre un día en particular. Nada de pantalones largos, circuncisión, universidad o vivir lejos de los padres. Acá empezamos a ser grandes el día que tenemos la necesidad de tomar por primera vez unos mates, solos. No es casualidad. No es porque sí. El día que un chico pone la pava al fuego y toma su primer mate sin que haya nadie en casa, en ese minuto, es porque ha descubierto que tiene alma. O estas muerto de miedo, o estas muerto de amor, o algo: pero no es un día cualquiera. Ninguno de nosotros nos acordamos del día en que tomamos por primera vez un mate solos. Pero debe haber sido un día importante para cada uno. Por adentro hay revoluciones. El sencillo mate es nada más y nada menos que una demostración de valores... Es la solidaridad de bancar esos mates lavados porque la charla es buena, la charla, no el mate. Es el respeto por los tiempos para hablar y escuchar, vos hablás mientras el otro toma y viceversa. Es la sinceridad para decir,"...cambiá la yerba, o arreglalo un poco!" Es el compañerismo hecho momento. Es la sensibilidad al agua hirviendo. Es el cariño para preguntar, estúpidamente, ¿está caliente, no? Es la modestia de quien ceba el mejor mate. Es la generosidad de dar hasta el final. Es la hospitalidad de la invitación. Es la justicia de uno por uno. Es la obligación de decir "gracias", al menos una vez al día. Es la actitud ética, franca y leal de encontrarse sin mayores pretensiones mas que compartir. Ahora vos sabes, un mate no es sólo un mate.......andá calentando el agua, que voy para allá!!

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www.esquinacarlosgardel.com.ar.

Isto e a génese do Tango, mas o existe a variante que é o Tango dançado, sendo a Miloga um dos géneros mais conhecido. Pus-me no outro dia a pensar como seria se o Fado também tivesse evoluído para uma vertente dançável... O Tango dançado é um misto de sensualidade e sedução. Há mesmo quem diga que dançar Tango é fazer amor em público. E eu já dancei uma 1 hora e meia seguidinha... hehehe...

O Tango dançado nasceu em prostíbulos nos finais XIX. A dança só tinha lugar em Casas de Passe porque não era permitido às senhoras expor-se da forma provocante a que o Tango convida, por isso o Tango era dançado com as prostitutas nas Casas de Luz Vermelha – daí advém toda a sensualidade e provocação da dança. Assim faz sentido que seja uma dança em que a mulher se deixe levar pela vontade homem. Em meados dos séc. XX a mulher finalmente queimou o soutien e a partir daí o Tango tornou-se uma dança tradicional. O Tangueiro é seguro e orgulhoso, por isso dança com o peito para fora e é com o peito que insinua e indica o passo. Primeiro tem de cativar a dama, depois a sua mestria é avançar convicto sobre o espaço que ela lhe oferece para avançar. Deste diálogo corporal resulta a harmonia, elegância e sensualidade da dança. Ahhh..., e há um pormenor importantíssimo... é fundamental a cara com que se dança Tango... o homem tem de ter um ar compenetrado e sério, bem másculo e superior, e mulher tem de olhar o homem com um olhar submisso, cativante e sedutor.

Entre 1 e 9 de Marco quem esteve em Buenos Aires foi brindado com o V Festival de Tango de Buenos Aires (www.festivaldetango.com.ar). Neste festival tive uma aula de conjunto para principiantes. Fui com uma alemã, um argentino e uma russa... bom, o resultado foi uma salada... argentina. No total éramos quase 100 pessoas num espaço amplo, todos a esforçar-se por seguir criteriosamente as indicações dos instrutores... uns melhor e outros pior, mas todos com o mesmo espírito. Adorei. Melhor só mesmo o que se seguiu. A Calle Corrientes (uma das avenidas principais e que é conhecida por ser a rua dos teatros, cine teatros, casas de tango, livrarias..) estava fechada para os concertos no âmbito do Festival. Para além de ver maravilhado os concertos deliciei-me a ver centenas e centenas de pessoas de todas as classes sociais, idades, credos e aparências... a bailarem pelas ruas ao som das orquestras. Não vou tentar descrever porque me faltariam as palavras, posso apenas dizer que é um espectáculo lindo de se ver... e que concordo: algumas vezes bailar Tango é fazer amor em público....

Para além deste festival, Buenos Aires respira Tango no seu dia a dia, mas restringido às Casas de Tango, algumas feiras semanais e praças centrais. E há de tudo; do mais turístico ao mais espontâneo e tradicional. Podem consultar alguns site como por exemplo www.todotango.com.ar ou www.abctango.com.ar se quiserem saber mais sobre Tango. Imperdível, verdadeiramente imperdível são espectáculo de Tango cantado da “Esquina Homero Manzi” e de Tango dançado no “El Viejo Almazén”. Para ver o Tango de rua basta ir à Plaza S. Telmo num Domingo de manhã. Ir a Buenos Aires e não ver estes três espectáculos atrevo-me a dizer que é o mesmo que não ir a Buenos Aires.5

5 Na sequência desta crónica o recebi este email do meu colega do programa contacto destacado para Barcelona: Magnífica crónica!!! Por momentos viajei até à Argentina e desfrutei de alguns dos

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Don’t Cry for me ONU

Bom, entretanto, vou iniciar este fim-de-semana as viagens pela Argentina. Começo, por El Calafate. El Calafate é uma zona de glaciares considerada pela UNESCO Património da Humanidade. É portanto área protegida para toda a Humanidade, a excepção feita, claro está para as Divindades. Esperemos que Presidente do Império da Nação dos Escolhidos não descubra petróleo no Glaciar Perito Moreno e o considere uma ameaça potencial para a liberdade de consumo e resolva atirar umas bombinhas. Bom... não me vou alongar muito neste tema porque, afinal de contas... nós (leia-se nos portugueses) legitimámos

pelo voto um governo que apoia genucídios e o desrespeito pelas Instituições Internacionais. O que, aliás, faz sentido, ou não descendêssemos nós de um povo que ficou conhecido para a História como os Bárbaros? Não encetamos no séc. XV chacinas em nome de Deus para salvar o povo Africano? Porque não neste novo milénio voltar às chacinas em nome do Deus Dólar e colonizar o Médio Oriente para alimentar o Dragão Consumista?

Bom, perdi-me um pouco nesta reflexão e aproveito para dizer que tento me manter actualizado sobre o que de importante se passa no mundo. Claro que eu sei que o Rui Costa pode regressar brevemente ao Benfica e que o Camacho vai continuar na Luz. E claro que sei que o Carlos Cruz foi de cana. Claro que sei que a Mafaldinha e a Luisinha estão cada vez mais lindas. Claro que não vou permitir que CAPRICHOS MATERIAIS me tapem os olhos ao que a potência dominante esta a fazer ao mundo com a nossa conivência. Claro que não deixo de me preocupar por o Ser Humano continuar a guiar-se pela ganância, avareza e prepotência e não por PRINCÍPIOS HUMANISTAS.

Ok, passei-me um pouco, mas não pude deixar de fazer este desabafo, e difícil alienar-me do que se passa no Iraque... e agora tá escrito tá escrito e não vou apagar. Peço desculpa se feri susceptibilidades...

Bom... ainda não programei o resto das viagens, mas aproveito para aconselhar a quem tem por ideia visitar Argentina um saltito ao seguinte sítio: www.sectur.gov.ar. É uma visão bem real e completa da enorme e variada República da Argentina. Dentro das minhas possibilidades vou viajar e descrever as viagens nas crónicas e através de fotos a começar por El Calafate, nos Andes a visitar o glaciar Perito Moreno!

Antes de terminar devo falar ainda um pouco da minha vivência social e do trabalho. O trabalho corre normalmente, demasiado normal até. Ainda não vi nem fiz nada de novo, assim que não

momentos fantásticos que tu tens vivido. Além disso, encontrei algumas semelhanças e curiosidades entre a tua vida e a minha, aqui no outro lado do Atlântico. Também eu estou a frequentar um curso de castelhano que me ocupa as horas livres que tenho. Ainda não o terminei, porque é um curso mais longo, já que quero melhorar a minha escrita. Foi engraçado falares de todas essas diferenças entre o castelhano e o porteño. Nas aulas tenho visto que o castelhano de Espanha é muito diferente de todos os outros que se fala na América do Sul. Cada um tem as suas particularidades, o seu sotaque, as suas expressões, etc. Aliás, foi por isso que as altas estâncias encarregadas da língua hispânica no mundo decidiram englobar todas estas línguas e defini-las como Língua Espanhola, que até há alguns anos atrás não existia. Outra das semelhanças é o Tango. Também aprendi várias coisas sobre essa dança sensual devido ao artigo que tive de escrever para o El Periódico. Claro que tive de pesquisar um pouco para não fazer figura de urso!!! A verdade é que não pescava nada da dança e tive de apreender algumas coisas. Não cheguei foi à parte de, efectivamente, dançar o Tango, mas não me importo de experimentar um dia. Aliás, se é como fazer amor, posso experimentar já amanha ;-)))) Um grande abraço e continua a mandar essas crónicas incríveis.

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há nada de muito excitante para contar.

De resto... como comecei por contar, tenho tido umas semanas bastante preenchidas com o curso de castelhano e os fins-de-semana têm sido aproveitados para conhecer a cidade. Foi no curso que fiz mais amizades, talvez por serem na maioria pessoas que, como eu, são de fora e não tem grandes rotinas e, como eu, tem vontade de conhecer pessoas e esta nova cultura. É com estas pessoas com quem mais tenho estado. De resto, e apesar do espírito aberto dos locais, a integração é sempre demorada e algumas vezes difícil.... algumas vezes lembro-me da letra de uma música do Sting: “I´m an alien, I´m a little alien, I´m an English man in New York”…, por vezes sou um extra-terrestre, sou um Tuga no Novo Mundo.

Deixo-vos com saudades e com a promessa de continuar a imiscuir-me, a misturar e pesquisar para que na próxima crónica tenha mais particularidades e fotos para partilhar convosco. Aos resistentes que chegaram até aqui os meus parabéns e guardem fôlego que a próxima crónica será maior!

Espero que tudo bem por aí, pelo menos tão bem quanto aqui na cidade baptizada em 1536 de Puerto Nuestra Senora Santa Maria del Buen Aire, no país do Che Guevara, do Maradona, do Jorge Luís Borges, do Astor Piazzola, do Quino e da sua Mafalda, do Carlos Gardel, da Evita Péron e do Carlitos, o encarregado do meu prédio com quem vou jogar à bola nas terças.

Beijos & Beijos deste vosso amigo,

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II CRÓNICA DO NOVO MUNDO18 Maio 2003

Faz agora 4 meses que aportei a esta bela cidade baptizada em 1536 por Pedro de Mendoza de Ciudad de Santa Maria del Buen Ayre. Reconquistada pelos aborígenes e fundada novamente por Juan de Garay em 1580.

Tenho de reconhecer que foi um parto difícil, mas estão reunidas as condições para me sentar um pedaço a escrever: é Domingo, chove, faz um frio de rachar e estou com uma ressaca que me limita a mobilidade, bem como a racionalidade.

Política e copos

Antes de mais, gracias Carlos Menem por teres desistido da segunda volta das eleições presidenciais e assim me teres permitido sair ontem.

Sim, por aqui, ao contrário do que, conforme nos relata o Elfo6, se passa na Finlândia, aqui as eleições não passam de forma alguma despercebidas, bem pelo contrário! São motivo de conversas empolgadas, a cidade está impregnada com propaganda política e os meios de comunicação seguem ao pormenor os passos dos candidatos. Vive-se a campanha ao rubro. Até aqui mais ou menos normal, o que já não é normal é que a partir das 24h do dia anterior a votação até ao encerramento das urnas seja PROIBIDO VENDER BEBIDAS ALCOHOLICAS, BEBER EM LUGARES PUBLICOS OU APRESENTAR INDICIOS DE ESTAR ALCOHOLIZADO.

Não deixa de ser piada recorrente que “nem assim os Argentinos votam bem”. E já votam desde 1983, aquando do fim da avassaladora ditadura militar. Quanto a mim, fiquei revoltado por me ser vetada de forma tão liminar a possibilidade de beber num sábado a noite... menos mal que aqui os governos são por 5 e não 4 anos. Não é que me preocupe não beber, o que me apoquenta e não ter a liberdade de poder ou não beber. Mas... tendo em conta que sou um trabalhador zeloso, Sábado é o único dia e noite que tenho só para mim (sexta é só a noite e Domingo só o dia porque a noite é já a pensar na Segunda). E só existe outro Sábado daqui a uma semana!

Já saberão certamente que ganhou o Kirschner por desistência do seu opositor Menem. Na primeira volta houve 5 candidatos, representando o espectro político com votos entre os 17% e os 24%. É evidente a grande repartição politica. Os dois primeiros foram então à segunda volta, mas o Menem desistiu, e sabem porquê? Porque em relação ao Menem ou se é a favor ou se é contra. Todos os que não votaram Menem iriam votar Kirschner e, para evitar uma avassaladora derrota, o cota (já a caminho dos 70 anos, dissimulados com constantes operações plásticas) desistiu.

Nas discussões políticas com locais manda a prudência não opinar, porque não haverá nenhum povo que aceite bem as opiniões de estrangeiros sobre a sua política interna. No enatnto posso dizer que torci para que ganhasse o Kirschner. Kirschner, juntamente com Lula 6 João Teixeira é o colega do programa contacto destacado para a Finlândia

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(os dois países mais importantes da América do Sul) querem avançar com o Mercosul para criar um segundo espaço económico-político forte no continente americano. O Menem baixa as calcas e oferece o rabinho ao Bush filho, como o fez ao Bush pai. Por isso teve uma avassaladora e muito bem montada campanha de marketing subsidiada pelos yankies colonalistas. Felizmente não conseguiu lubridiar o povo que, afinal, sempre aprendeu alguma coisa nestes 20 anos de democracia.

Como dizia, foi um parto difícil. Passaram 4 meses e já se foi o efeito novidade e o sentimento de descoberta constante. Se bem que a vida é uma constante descoberta, já não me sinto um diletante viajante mas um cidadão escravo do trabalho e respeitador das normas e regras socias mais evidentes. No entanto, para não tornar isto muito introspectivo e sem interesse, vou partilhar convosco algumas das muitas particularidades da cidade mais europeia da América do Sul.

Conduzir em Buenos Aires - esquece o código da estrada e aperta bem o cinto

O maior surto de imigração para a Argentina veio da Itália. Esta herança é por demais evidente na condução. As linhas, traços ou sinais que a muito custo, e com muito boa vontade, se conseguem identificar como “sinais de trânsito”, definitivamente não cumprem a sua função. Os únicos que se vêm e, mais ou menos, se cumprem, são os semáforos. E não é difícil perceber porquê...

Um dia reparei que, quando parava no trânsito, um taxista jovem lia algo que se assemelhava a um código da estrada. não me contive e perguntei meio a medo, – Estás a estudar para o exame de código? Ao que ele me respondeu que não, já tinha a carta e que para isso não era preciso estudar (não é preciso estudar!?!?). Perguntei-lhe então porque lia o código. - “É que isto é giro e descobre-se coisas engraçadas”. Não quis investigar mais porque receie uma resposta do género “vê lá que no outro dia descobri que se têm de se dar prioridade às pessoas nessas riscas brancas aí no meio da estrada”...

- Acho que a minha carta de Portugal não serve cá. Comentei um dia com um local.– Ai não? Inscreve-te numa escola de condução e em três dias tens a carta... se pagares um pouco mais nem tens de fazer exames.- O quê?? Pagar mais e não fazer exames??Três dias?? Eu demorei dois anos a tirar a carta!!!- Dois anos?? Eu tirei em DUAS horas, esta cena dos três dias foi coisa do anterior governo. Antes era no mesmo dia...

Ao comprar a bicicleta quis saber como funciona afinal isto das regras de trânsito. Fui prontamente informado que “as regras de trânsito não são para os veículos de duas rodas... as regras não se aplicam às motos e bicicletas”. Ok! Nem é preciso repetir. Ele é ruas em sentido contrário, passar vermelhos, andar em passeios e incluso em frente a polícia e NINGUEM SE CHATEIA. Pessoalmente isto não me perturba nada. Até agora só vi um acidente e a julgar pelo adiantado da hora foi resultado do álcool, mas nunca ninguém o saberá porque a polícia não mede o álcool?!?!

Las Piedras Rolantes7

Quando cheguei, pela minha forma de falar e pela minha aparência, pensavam que era da América Central.... o mais normal era julgarem-me por Porto-Riquenho, Dominicano ou algo 7 Rolling Stones

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que o valha. Agora toda, mas toda a gente me julga Brasileiro depois de meia dúzia de palavras. Os/As mais interessados perguntam de que parte do Brasil sou. Sou Português, digo orgulhoso. Ahhh português... que giro!.. E isso é no norte ou no sul do Brasil??

Superadas as dificuldades iniciais com o idioma com um curso intensivo... surgiram outras dificuldades difíceis de superar com cursos...

- Qual é o teu mail?- [email protected] a-u-g-u-s-t-o-f-e-r.. arroba... e o que vem depois?- Yahoo.com- IA o que?- Yahoo!..., não conheces????”- Não. Como e que isso se escreve?- Y-A-H-O-O.- ...Deixa ver... Humm.. Ahhhh: JAUU.COM!!!!

Pois então o meu mail passou a ser [email protected]. Sim, porque esquece dizer o mail do contacto. “FernandeSSSSS, com S e não com Z..... contacto tem um C antes do T.... não não, 6 e não SEIS... ICEP e com I latina e não I grega.... não, com um C e não um S... não C C..., eu disse C e não Z....não, não o C...C, o S era para FernandeS... braaahhh....esquece. O que é que bebes???

Claro que algumas vezes se pode obviar tudo isto com a “tirada executivo”. “Fernandes, Augusto Fernandes”. E lentamente levo a mão ao bolso interior do casaco e retiro o cartão do ICEP. Com um sorriso no canto da boca e olhar fixo ofereço o cartão. A presa recebe-o agradecida. Pergunto-lhe se bebe alguma coisa. “...Uhmm.. um Baileys, quero-me deixar guiar pelo instinto...” diz-me convidativamente. Chamo o barman e digo-lhe. “Para a dama um Baileys..., e para mim um whisky... um Juanito Andante Etiqueta Roja”8.

A Argentina surpreende culturalmente. Por um lado está completamente massificada pela cultura dominante – a americana, tal como a maioria do mundo civilizado (cada vez me custa mais chamar a este o mundo civilizado.... mas ok). Está completamente up-to-date fruto das Internets, dos JAUU!’s, das MTVs das CNNs, dos MacDonald’s, das Nikes, das Play Stations e aí por em diante.

Mas, ao mesmo tempo, existe muita gente mais culta que procura estar a par do que se passa no mundo para além do mainstream. Bibliotecas, livrarias, cinemas independentes, exposições de pintura, escultura, teatro, ballet, arquitectura, ópera... um sem número de oferta cultural de fazer inveja a qualquer uma das grandes capitais europeias. A Argentina é ávida de conhecimento, tem uma grande capacidade crítica e uma grande aptidão por eventos culturais alternativos e de vanguarda... quase me atrevo a dizer que os Argentinos são o povo mais culto do Continente Americano encontrando rival à altura apenas no Canadá... mas é só uma conjectura...

No entanto... existe a parte caricática. Uma das vertentes artísticas mais imediatos e massificados é, sem dúvida, a música. Se, por um lado, as top charts são cópia dos E.U.A., por outro os grupos preferidos dos argentinos são... os grupos dos 70s e 80s!! É incrível este paradoxo e desconfio que isto não é mais que uma estratégia das grandes multinacionais de continuar a vender discos antigos... ou será o revivalismo e saudosismo que tão bem caracteriza os argentinos? Não sei, o que constato é que existe um grande hiato temporal que faz com que mesmo os mais jovens e mesmo os mais vanguardistas em vários aspectos acabem por idolatrizar grupos de um período musical que já está mais que ultrapassado... será que não chegou aqui a revolução electrónica dos anos 90 que cortou com a piroseira dos anos 80 e tornou retro todo o pop e o rock que lhe foi anterior??8 Johnny Walker Red Label

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Os grupos mais em voga são os Stones e os Beatles, Pink Floyd, Led Zepling, David Bowie, Madonna.... e depois há o grande salto para as Shakiras, os Eminem, as Britney Spears... e por aí em diante. Até agora a explicação mais convincente foi “somos muy nostálgicos”. Acredito e, diga-se, às vezes é bastante mais agradável ouvir um good oldie do que alguma da muita porcaria repetitiva e pouco imaginativa que se faz hoje (fogooo, pareço um cota!!).

Che Augusto na Argentina

Bom, agora, e para os que resistiram até aqui... vou então falar um pouco de mim. Já passaram 4 meses e mantém-se a relatividade do tempo... às vezes parece uma eternidade e às vezes parece que o tempo passou num ápice.

Começo pelo trabalho. Mantém-se o grau de interesse e aprendizagem nulo. Quanto a aprendizagem..., algo sempre se aprende (ou não fosse a vida uma constante aprendizagem)... mas não podia estar a aprender mais qualquer coisinha? Quanto ao grau de interesse... depois de 4 anos de marketing começo a desconfiar que a cerne da questão está mesmo na temática. Interessante ao início mas depois um pouco repetitiva e vazia. Portanto: venha a cheta que a vida não é só trabalho!!

E vida não é mesmo só trabalho! Se há coisa que é barata (pelo menos para quem tem Euros) é a cultura, a diversão e... os cursos. Estou completamente viciado em cursos em que possa aprender algo um pouco diferente de “Gestão e Administração de Empresas”. Cinema, Web Design, Fotografia, Teatro... you name it... they have it… and I apply to it!

O futebol continua a ser a minha forma privilegiada de libertar a tensão que acumulo por passar a maior parte do tempo diante do computador. Como jogar à bola implica mobilizar mais nove bacanos também acaba por ser um bom momento de convívio. Para complementar estou também inscrito num ginásio embora “estar inscrito” e “ir” sejam duas coisas distintas. Bom, vou mas e despachar isto que já são quase 7H de Domingo e... não, não é hora de missa, é hora do jogo de fim-de-semana: Argentina vs Resto do Mundo!!

De resto, e com tantos cursos, cafezinhos e jogos de bola, fico com pouco tempo “livre”. Costumo ir ao cinema, de vez em quando surge um jantarzinho e uma voltita durante a semana. Sair all naite longue só mesmo um dia: Saturday é o dia de ir prá naite curtir! Tenho poucos mas bons amigos e amigas. Tásse bem. No entanto, as saudades de Lisboa são uma constante e as lembranças das pessoas queridas convivem comigo aqui em Buenos Aires, como em qualquer parte do mundo em que esteja.

Despeço-me com sinceros desejos que tudo esteja bem convosco em Lisboa ou, se for caso disso, em qualquer outra parte do Mundo Mundial.

Beijos & Beijos deste vosso amigo

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IV CRÓNICA DO NOVO MUNDO8 Outubro 2003

Passaram sensivelmente oito meses desde que cheguei a esta bela cidade baptizada em 1536 por Pedro de Mendoza de Ciudad de Santa Maria del Buen Ayre.

Oito meses?!?! Tchiiiiiii......, como o tempo passa!!!

Desde a última crónica a minha vida argentina correu a uma velocidade alucinante. Foi o trabalho que o trabalho me deu, e deu trabalho o raio do trabalho! Foram os relatórios para o ICEP. Foi o trabalho para o curso de Web Design, as aulas de fotografia, a noite de Buenos Aires, o convívio, as férias no Rio de Janeiro... bom a vida fluiu e o Inverno passou rápido como assim tem de ser.

Hoje vou mudar essa rotina... vou começar pelo lado que se termina

Não é de Buenos Aires que tenciono falar primeiro. É do Rio de Janeiro. Pois é, saquei dez diazitos de férias e fui ao Rio de Janeiro. Na cidade do Cristo Redentor fui acolhido pelo meu irmão Pedro (a fazer o 4º ano de Marketing no Rio), e nesta cidade celebrámos as minhas 29 primaveras e as 24 dele. 17 e 15 de Agosto respectivamente.

Adorei. Adorei. Amei. E difícil descrever o misticismo do Rio de Janeiro. Esta cidade musa de poetas e musicas imortais, esta cidade que viu nascer e crescer virtuosos da música e que foi berço do Bossa Nova e do Tropicalismo. Esta cidade que é a referência do Samba, esta cidade que tem o Pão de Açúcar, o Corcovado e o Cristo Redentor. Esta cidade que tem a garota e a praia de Ipanema, o Maracanã e o Sambódromo. Esta cidade que nasceu, cresceu e vive em perfeita simbiose com a natureza. Esta cidade que respira alegria de viver, que come feijão com arroz para matar a fome e bebe água de coco ou caipirinha para matar a sede... enfim, esta cidade que apaixona todos os abençoados que a visitam9.

E apaixonou-me. Eu sei que foram só umas feriazitas, só uns dias em que tudo é ilusão, mas mesmo assim deu para sentir o vibrar da cidade. Sentir o que é uma cidade rodeada por praias fantásticas e calçadões enormes, uma cidade que convive com a natureza e em que o povo é relaxado e desinibido, conversador e afável, irresponsável e divertido... tudo jóia meu irmão. Valeu cara!

Sinceramente dispenso o Inverno. Dispenso a chuva e o frio e vento. Ok, são essenciais para o ecossistema. Que existam, mas não mais de umas semaninhas por ano. Ahhhh... Nada como fazer uma prainha no pino do Inverno, nada como passear em Havaianas e calção de banho nos meses mais frios. Nada, mas mesmo nada como despertar com a esplendorosa luz do sol a iluminar a casa.

Não quero parecer ingrato para com a cidade que me acolheu. Eu sei que tenho a sorte de viver na cidade fantástica que é Buenos Aires, apenas fiquei deslumbrado com o Rio... mais a frente falo de Buenos Aires. Incluo no final um excerto do artigo do Miguel Sousa Tavares que tão bem descreve a cidade... eu é que só estou mesmo com vontade de falar do Rio... é que me fui envolvido pelo cheirinho a Samba, Bossa, Sol e Praia de Ipanema.

9 Vide música “Blessed to be a Witness” de Ben Harper

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A minha pátria é a minha língua

Devo dizer que se há coisa que me transtorna é ouvir um português dizer “Eu não gosto dos Brasileiros”. Antes de mais, é uma generalização e, como todas, e ridícula, mas o que me transtorna mais não é isso.

Considero o Brasileiro meu irmão. A minha pátria é a minha língua, a língua de Camões e de Fernando Pessoa. O que me faz irmão tanto do Cabo-verdiano, como do Brasileiro, como do Alentejano, como do Angolano. Quanto às Angolanas, às Alentejanas, às Brasileiras e às Cabo-verdianas o caso já muda de figura porque aí já seria incesto hihihihi. E a minha pátria é a minha língua, enquanto não conseguir me expressar tão naturalmente noutra língua... quiças algum dia o possa fazer na língua de Cervantes...

Não me sinto português no sentido fundamentalista, aliás, nem sei até que ponto será importante para mim ser português. O que me faz português? O local de nascimento? Se assim fosse seria angolano. A nacionalidade dos meus pais? Se assim fosse teria duas nacionalidades. O local onde estou, estive, cresci, estudei, estive mais tempo? Bom, eu nem falo do meu caso, mas por exemplo os filhos de diplomatas sofreriam de esquizofrenia pátrica. E os emigras que estão até aos 15 em Portugal e depois vivem até aos 60 noutro país serão portugueses? O que os faz portugueses? O que me faz português e o que nos faz a todos portugueses. Cultura? Não sei bailar, não tenho nem pança nem bigode, não aprecio música pimpa.... eu até nem gosto de caracóis!

Não será isto de ser português apenas uma ideia que, de alguma forma, que serve para abstractamente transmitir alguma segurança, algum sentimento de pertença? Não será o Hino um símbolo, a Bandeira um símbolo e não serão ambos uma representação de algo que eu não sei bem o que é? Será que me revejo nos governantes, será que estes expressam a minha vontade, a vontade do povo? Será que me identifico com a tal Cultura Portuguesa?

O que é um facto é que isto de ser português – isto de ter uma nacionalidade - está tão enraizado no nosso ser que parece inato, algo inquestionável. O que é facto é que isto de ter uma nacionalidade, pertencer a este local a que chamamos país desperta paixões e ódios, gera guerras e disputas... pela pátria tudo é permitido, pilhar, roubar, matar...

Reduzo ao absurdo e interrogo-me se estaria disposto a disponibilizar a minha vida, se eu estaria disposto a matar, pilhar ou roubar pela pátria. Não. A resposta é um redondo não... agora se me perguntam se alguma vez vou deixar de torcer pela Selecção das Quinas em qualquer campeonato... também digo que não... se me perguntam se alguma vez permito que falem mal de Portugal ou dos Portugueses, também não. Pois é... e é também por me virem as lágrimas aos olhos quando regresso, por conhecer as ruas, as cidades, as praias, as pessoas, as músicas, os livros, as histórias, as comidas, as anedotas, as tradições é por isto e muito mais que sou português. E digam lá que não é um privilégio ler Fernando Pessoa na versão original sem tradução... Pois é. Afinal até pode ser que goste deste sentimento de partilha de algo, mesmo que abstracto, infundamentado, intangível e algumas vezes ridículo... pode ser que este sentimento seja tão eu que não possa ser eu sem este sentimento... pode ser. Biba Portugal carago!10

10 Comentário do colega destacado para a Alemanha João Plantier: “Olá Che Augusto. Li a tua crónica e gostei. Gostava de te ajudar com a definição do português mas a verdade é que já o sou há 26 anos e ainda não percebi bem o que é. Não sei se para ser português é preciso torcer pelo porto, beber sagres, coçar o tomate e bater na gaja. Não sei se é preciso gostar de fado, de praia e de Bacalhau. A minha namorada é Alemã e não gosta de cerveja nem de salsichas. Eu não sou do Porto, não lhe bato e gosto de cerveja e de Currywurst. E no entanto ela não nasceu em São Sebastião da Pedreira e eu não passo férias em Maiorca. Sei que ser português é bom e não tem que haver uma razão objectiva para isso. Eu sou do Sporting e todos os fins de semana me pergunto porquê. Sabendo que és do Benfica e tens orgulho nisso deves conseguir seguir o raciocínio!! Gostei da tua crónica porque gosto de Tango. Gosto do Piazzolla, do Gardel e se soubesse dançar tango mudava-em para Buenos Aires e passava-me a chamar Juan. Como tenho dois calhaus como pés limito-me a ouvir.”

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Meu Brasil Brasileiro

Só na Argentina percebi a importância relevância e influência do Brasil fora de fronteiras.

Acostumado que estou a indiferença de outros povos para com o povo Tuga, surpreendi-me por nestas paragens dizer “sou português” ter uma reacção muito positiva.

Ao longo das minhas viagens habituei-me e conformei-me com a insignificância portuguesa no mundo, excepção feita aos Palop e aos feitos futebolísticos do Figo e companhia limitada.

Lembro de na Hungria a resposta a “Sou português!” ser um vago “ahhhh.... ok...”. Assim um “ahhhh... ok....” como quem diz “ahhhh.... ok.....”, isto é: fim de conversa. Acho que não vale a sequer a pena comentar a opinião que os nuestros hermanos ou franceses ou os alemães ou os nórdicos ou outros quaisquer têm de nós.... já e mais que sabido que ou não é nenhuma ou é má...

Nós sabemos os nossos feitos históricos e a grandiosidade da nossa História, independência de Castela, descobrimentos e tal. Sabemos e acompanhamos o fervilhar de acontecimentos (vide caso Casa Pia...) que é a nossa vida enquanto nação, mas o facto é que, na realidade, com Portugal só se preocupam mesmo os Portugueses.

Para quem não sabe, digo que uma das tarefas do Programa Contacto do ICEP e justamente contribuir para o melhoramento desta imagem, ou, em muitas situações, construir essa imagem. Eu e os meus companheiros do Programa estamos incumbidos da missão de ser embaixadores do nosso pais e de contribuir para pouco a pouco melhorar a nossa imagem no exterior. Não sei se serei a pessoa mais indicada para esta tarefa por não me considerar nada representante de um português, mas aparte disso acho que cumpro patrioticamente a tarefa, pelos menos tenho sempre em mente o objectivo de dignificar a imagem que Portugal no estrangeiro, especialmente junto do sexo feminino... e não quero deixar a nação mal vista!

Pois bem, cá na Argentina quando digo que sou português normalmente recebo como resposta a pergunta “Português de Portugal ou Português de Brasil?” Bom, pode variar, mas o facto e que ao contrário de ser “fim de conversa” é, bem pelo contrário, motivo de interesse e de conversa. Penso que tal deriva de dois motivos.

O primeiro é a predisposição natural para conversar dos Argentinos, qualquer assunto e motivo para começar uma alegre conversa. Um dia ei de dizer “Sou da Quirquízia” para testar a reacção. O segundo deriva da fama e influência do nosso Povo Irmão. O brasileiro é considerado uma pessoa divertida, simpática, conversadora e... que baila bem. Se em relação às primeiras características cumpro com o esperado, é neste último particular que se denota logo a minha origem: Tuga pé de chumbo.

Bandeiras Céu e Sol

Todos devem ter uma ideia da bandeira da Argentina. Umas faixas azuis claras e outras brancas com uma bolinha amarela no meio, rings a bell? Pois bem, essa faixas celestes e brancas representam o céu e no meio, bem no meio, a bola amarela é um sol radiante, com raios e tudo! Conta a história que quando os Espanhóis vieram colonizar estas paragens, olharam o céu e criaram a bandeira. Bonito, não acham?

Estou a imaginar a bandeira do Brasil, como haverá surgido? Bom, uma coisa é certa, devem ter-se engano quando escreveram “Ordem e Progresso”... acho que nunca passou de uma manifestação de vontades. O mesmo se passou com o “E Pluribus Unum” os mais cultos imediatamente identificaram onde está inscrita esta linda frase. Sim, exactamente, bem no centro da bandeira vermelha e branca, mesmo em baixo da águia no bandeira do Benfica...

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também aqui nunca passou de uma manifestação de vontades11.

Quanto à bandeira Portuguesa, fiz um esforço de memória, tentei lembrar-me das aulas de história; e nada, continuo sem saber qual a origem da bandeira portuguesa. Verde e grená porquê? Aliás, será mesmo grená ou encarnado a tirar pró bordeaux? Lembro-me de uns castelos, de uns escudos e de umas quinas... mas não sei qual a sua razão de ser... alguém me pode ajudar? Alguém pode ajudar este embaixador da cultura portuguesa no exterior a saber a razão de ser da sua bandeira12?

Fado Vadio

11 Como resposta a este comentário o colega destacado para Paris, o Rodrigo Rodrigues escreveu o seguinte email: “...já ninguém tem obrigação de saber Latim e por isso clubes mais sensatos têm lemas em Português, como "Esforço, Dedicação, Devoção e Glória", evitando erros de ortografia (nem sempre, mas vá...) e de interpretação. O pouco latim que me resta chega para entender que "e pluribus unum" não significa "um por todos e todos por um" nem "de todos o primeiro" nem "e muitas vezes o único" nem nenhuma dessas barbaridades que saem regularmente da boca de alguns lampiões mais preocupados com a emblemática do clube. Na verdade, "e pluribus unum" significa "a partir de muitos, um só", o que, convenhamos, não faz sentido nenhum como lema de um clube de futebol, mas também não se esperava outra coisa.Ora se não faz sentido num clube de futebol, porque raio é que foi escolhido? Vou contar um história. Quando eu era muito pequenino e os outros meninos queriam ser bombeiros e astronautas, eu queria ser capitalista. Com 5 ou 6 anos, os meus heróis eram o Tio Patinhas e o Alex do "Family Ties" (também achava piada à Mallory, mas na altura ainda não percebia porquê). Tal como os outros meninos, tinha uma colecção, só que a minha, claro, era uma colecção de dinheiro. Portanto desde tenra idade que estava habituado a ver dólares americanos (na altura cotados a 25 escudos, ai ai que saudades) e, nos dólares, aquela águia e aquele lema. No grande selo americano, (http://www.greatseal.com/mottoes/unum.html) criado pouco depois da independência e da união das 13 colónias, "a partir de muitos, um só" é um lema que faz sentido. Quando foi fundado o Sport Lisboa, antes de haver consultores de imagem e técnicas avançadas de branding, um presidente da junta manhoso com um primo na América decidiu que ao preço a que estavam os artistas, mais valia copiar a brasão e o lema e esperar que ninguém reparasse. E não é que resultou? Muito me surpreende que nenhum tubarão da advocacia americano tenha tido alguma vez a ideia de processar o Benfica. Ou talvez algum tenha tido, mas deu uma olhadela às finanças do clube e desistiu da ideia.”

12 Aqui ficam os esclarecimentos, opiniões e interpretações livres do Vasco Grilo, colega destacado para os Estados Unidos e do Tiago Correia, destacado para São Paulo:Vasco:”... Em relação à Bandeira aqui vai uma interpretação possível:-Verde e vermelho aparecem pela primeira vez na bandeira da Carbonaria (Associacao Sindico-Anarquista, que juntamente com a maconaria, esteve por tras do golpe de estado de 1910). O significado das cores na bandeira carbonaria costuma ser explicado como verde=florestas e vermelho=fogo, esta explicacao parece ter alguma lógica uma vez que a carbonaria foi criada em Itália pelos Carbonieri (Sandra [Italiana C6 na Alemanha] isto está bem escrito??) que eram os carvoeiros italianos. A aplicação das cores na bandeira nacional e exactamente idêntica à da bandeira da carbonaria portuguesa em 1910.;-esfera armilar representa o ideal republicano de imperio. Originalmente a esfera armilar enquanto simbolo representa o controlo sobre os mares, por isso é que foi a escolhida como símbolo pessoal de D. Manuel I no Sec. XV);-O escudo: O escudo evoluiu ao longo dos tempos e nao há certezas sobre o seu sigificado, no entanto sabe-se que os castelos foram adicionados pelo Rei D. Afonso III e representam Castela em homenagem a sua mae que era castelhana. O número de bezantes e o número de castelos mudou ao longo dos tempos ate ser sido fixado no numero actual por D. Sebastião no Sec. XVI.Espero ter ajudado...Para lançar a confusão e numa nota pessoal tenho a acrescentar que estou convencido que o real significado das cores da bandeira é:-verde e a esperanca de voltar a ser uma Monarquia;-vermelho e o sangue D'El Rei D. Carlos e do Príncipe D. Luis Filipe assassinados em 1908....”Tiago: “...aqui vai o que me lembro relativamente à bandeira portuguesa(corrigam-me se estiver errado):- o Verde é a esperança (há quem diga que tb é o verde dos campos);- Vermelho é o sangue derramado pela conquista do território;- os 7 castelos conquistados aos mouros;- a esfera armilar representa o mundo que Portugal descobriu ou ajudou a descobrir;- as 5 quinas representam os 5 reis mouros que D.Afonso Henrique venceu na batalha de Ourique;

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Já que estamos numa de símbolos nacionais, lembrei-me de um dos nossos símbolos por excelência. O Fado. Todas as novas gerações tem repulsa ao tradicional. Ainda bem que assim o é porque é assim que a cultura se reinventa e se mantém actual e representante das sociedades. Aqui na Argentina aprendi definitivamente a apreciar o Fado. Estranho, não é? Não, não são as tão famosas saudades, não é o saudosismo da vida Lisboeta – sim que tenho saudades, mas não é o Fado que me reconforta. Aprendi a gostar de Fado por duas razões.

A primeira tem a ver com o que tenho falado. Adoro o Tango em geral, gosto do Samba (música folclórica do interior Argentino) e amo o Bossa Nova e o resultado do Tropicalismo, e para qualquer destes tipos de música é difícil encontrar adeptos jovens nos locais donde emanaram. A reacção é normalmente que isso era coisa dos seus pais, ou é algo que lhes entrou pelo ouvido a dentro deste sempre e nunca lhe prestaram atenção... entre outros. Já em Portugal, graças a amigos de fora, me fui habituando a ouvir e apreciar o Fado Vadio13... mas aqui a Cristina convenceu-me definitivamente.

A Cristina? Sim, a Cristina Branco! Fadista portuguesa da nova geração que veio tocar à Argentina graças ao amável convite da embaixada portuguesa, por ocasião do 10 de Junho, dia de Camões, de Portugal e das Comunidades14. Tive então o prazer de assistir a um espectáculo que, visto o mais possível despido de preconceitos, foi simples maravilhoso15. Uma linda voz, a linda guitarra portuguesa tocada por um dos seus melhores interpretes – Custódio Castelo, versos portugueses portuguesinhos de Camões, Fernando Pessoa, David Mourão Ferreira ou Sérgio Godinho... Para além de um deleite foi um orgulho.... e foi com orgulho também que pensei em outros artistas portugueses que para além de nos presentear com a sua arte nos orgulham por elevar o nome de Portugal tais como a Teresa Salgueiro ou o Pedro Ayres Magalhães, ou o Rodrigo Leão, ou o Siza Viera... entre outros... E é com enorme regozijo que constato que o Fado está aí..., nas ruas, nas vilelas e nas casas, pujante e rejuvenecido por uma grande número de jovens e virtuosos intérpretes. Silêncio que se vai cantar o Fado.

Música, mais música!

Já gostava de Tango antes de vir para a Argentina (graças aos Gotan16 Project) e cá foi fantástico descobrir autores e a história. Carlos Gardel é o grande intérprete do Tango. Tango e Gardel são sinónimos. Piazzola a referência como compositor clássico (toca Acordeão), Héctor Salgado ao Piano, as orquestras clássicas como por exemplo a Camerata Porteña ou a Orquesta de Osvaldo Pugliese, mais recentemente, Hugo Diaz que interpreta magistralmente Tangos em harmónica. Para além destes, há a Mercedes Sousa, uma verdadeira diva da musica tradicional argentina – a Zamba, música do povo, música de intervenção tipo “festa do avante”. Depois a música Andina, celebrizada pelo fabuloso som do Charango – um género de cavaquinho, como por exemplo “Carnavalito Quebradeño” ou ainda “El Condor Pasa” ímpossível ignorar as interpretações de Jaime Torres que está para o Charango como Carlos Paredes para a Guitarra Portuguesa. Bom chega de música. Chega de música porque não tarda começo a falar de música Brasileira (sim porque esta crónica cheira a Brasil)... ainda começo práqui a falar do Samba e do Bossa Nova, do Vinícius, do João Gilberto, do Toquinho, do Caetano da Elis Regina, do Tom Jobim, de Stan Getz, do Jorge Ben, do Djavan ou, do novo novíssimo percursionador do Samba Raro, esse mesmo e magnífico Max Castro... e nunca mais me calo. Saravá!

- os pontos dentro das quinas representam as 5 chagas de cristo. Somando todos e multiplicando por 2 os pontos da quina do meio temos os 30 dinheiros com que Judas traiu Jesus...”

13 Por exemplo às terças e quintas na Tasca do Chico no Bairro Alto em Lisboa14 Uma curiosidade: segundo consta somos o único país que celebra o dia do pais no dia de um

poeta, normalmente são sempre dias de guerreiros, reis...15 Quase me fez esquecer que o Fidel de Castro estava nesse momento a discursar no Adro da

Faculdade de Direito de Buenos Aires...16 Descobri! Descobri! Descobri donde vem o nome Gotan. não, não tem nada a ver com Batman!

são as sílabas de Tango em ordem invertida... TanGo... GoTan... get it??

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Dançar o Tango é que é Tanga...

Eu tentei, garanto que tentei... no total foram 5 aulas, 5 semanas consecutivas em aulas de tango. Adorei. Gostei do professor, da turma, do meu par e do ritual de comer um pancho17 no Peter’s depois da aula, mas o Samba estragou tudo. Depois das férias no Rio perdi o ânimo para o Tango...

As aulas confirmaram algumas coisas que eu já sabia. É um baile elegante, sensual e cativante. Os passos são cuidadosamente desenhados por forma a que nunca se perca o supless. O Homem comanda completamente a dança a mulher segue consoante as “marcas” que o homem faz, isto é, enquanto dança o homem vai com a mão marcando na mulher o que ela deve fazer... não não e a brincar, é mesmo verdade!! E quando bem feito resulta... hihihihi. Não é que se fizer uns círculos abaixo da omoplata e simultaneamente pressionar levemente a dama faz um “ocho para delante”? E se colocar delicadamente a mão no abdómen ela faz um “ocho para trás”? Tem piada, muita piada, parece que se está a montar um cavalo, fazem-se os sinais e o animal obedece, hihihihi.

Início da Crónica

Agora, sim, vamos ao que seria a parte inicial, partilhar um pouco da minha vivência nesta mundo que continua a ser um Novo Mundo para mim.

Passados 8 meses a maioria das coisas já não são novidade. Algumas das coisas que tinham piada no início já não lhes acho tanta graça... aquilo que me perturbava um pouco ao início agora parece-me insuportável... enfim tudo o que era novidade e ilusão à chegada neste momento é o meu dia-a-dia. Terminou o estado de graça da paixão e agora vivo um relacionamento estável com a Buenos Aires. É esta a visão que posso neste momento transmitir: o dia a dia em Buenos de um emigra.

Bom, comecemos pelo pior: a humidade. Buenos Aires tem uma humidade média superior a 90%, o que na prática quer dizer que o ar praticamente é água. Quais as consequências disto? Quando está frio fica ainda mais frio... se lhe juntarmos a aragem fresca que vem da Antárctica temos o que realmente se pode chamar de “um frio de rachar”. No verão, em contrapartida, ao calor a humidade acrescenta a sensação de abafado, um bafo quente que nos faz sentir numa sauna. Para dar uma ideia, ao terminar um banho de água fria não e necessário enxaguar e ao sair da casa de banho já se está a suar... o normal é estar-se constantemente pegajoso.

O que também se altera muito com a humidade é o meu cabelo que se já e rebelde por natureza com a humidade torna-se indomável, selvagem... como eu gosto! Mas, para mim a mais indesejável das consequências é mesmo acitar as alergias. Esta estufa é um paraíso para os ácaros e um terror para os meus pulmõeszinhos... quer no Inverno quer no verão, quer no Outono quer na primavera estou constantemente alérgico. Para além de várias consequências negativas, teve uma positiva; finalmente comecei um tratamento definitivo à asma.

O que agradece toda esta humidade é a flora. Mesmo em plena cidade e incrível a beleza dos jardins, o conjunto de cores das plantas, a facilidade com que tudo floresce. Aqui descobri um novo verde, um verde-escuro, denso e ao mesmo tempo resplandecente. Vamos lá se é desta que consigo plantar, tratar, ver crescer, colher e secar a folha do Cânhamo, também conhecido por Cannabis.

17 Hot Dog

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Cursos, curso e mais cursos

Por falar em actividades interessantes... se há algo que considero de louvável nos argentinos em geral é a aptidão e avidez que tem pelo conhecimento.

O Argentino é curioso, gosta de saber mais, gosta de estudar de aprender... quer satisfazer a fome intelectual. Se conjugarmos esta vontade com a vontade de socializar percebemos porque existem tantos cursos pós-laboral. Proliferam em Buenos Aires cursos, os mais variados cursos. Desde a cursos de acupunctura a curso de piano, passando por cursos de tarot, de culinária, de dança, de futebol, de yoga.... e por aí em diante. A ideia que se fica é que qualquer coisa que se possa aprender há alguém disposto a ensinar. Ao mesmo tempo existe um incrível número de actividades em grupo, tipo grupos de teatro, grupos de reflexão sobre o eu, grupos de música, grupos de dança. A juntar a isso estão os diversos ginásios, escolas e instituições com o mais variado tipo de actividades. E as pessoas aderem!

Com isto tudo o que acontece e que as pessoas acabam por ter uma vida bastante activa, interessante e preenchida. As pessoas querem socializar, querem aprender, querem se divertir, querem manter a mente alerta, o corpo atraente... independentemente da idade!

Claro que muita gente prefere ficar em frente à televisão a carregar nos botões do telecomando como quem telecomanda alguma coisa... óbvio que sim. O que me parece interessante e a vontade que as pessoas tem de sair, de aprender de socializar, de viver! Estas são as virtudes que muitas vezes faltam ao Tuga. Para o Tuga ser jovem é uma coisa que se é enquanto se estuda. A partir do momento em que se começa a trabalhar terminou essa vida e ser jovem não é mais que uma cada vez mais ténue recordação... e nasce o consumismo, ter por ter... trabalhar para Ter e Ter cada vez mais... e Ser cada vez menos. Se há coisa que me fascina é uma pessoas adulta com espírito jovem, com vontade de aprender, sede de viver e fome de conhecer, mas com responsabilidades, maturidade e atitudes de “gente crescida”. Sim, é possível.

Pátria Família e Fado

O Argentino aprendeu a contar com ele. O Argentino não acredita no destino (que já lhe passou diversas rasteiras), não acredita em políticos (e com razão! Vocês alguma vez confiariam num Menem??) e não acredita que Deus por algum motivo lhe vai oferecer alguma benesse especial. O Argentino acredita em si e acredita no trabalho (atenção que roubar ou enganar também e trabalho, hihihi).

O Tuga é exactamente o oposto. Se vai abrir uma empresa espera pelo incentivo do Estado. Só compra casa com o apoio jovem. Tem um incêndio no quintal fica a espera que o Estado dê um subsídio por calamidade pública. Vai fazer um mestrado porque sacou uma bolsa. Só faz obras em casa para poupar no IRS. Para fazer um filme espera pelos fundos do ICAM, se tenho um qualquer grupo de teatro quero que o Estado me deu um espaço para ensaios e espectáculos.... e por aí fora...

O Português, afinal de contas nunca ultrapassou o Salazarismo. Vive constantemente a contar com o Estado Paternalista e encerrado em casa porque o Salazar não deixa sair, não deixa socializar.

Tudo isto me veio à mente a propósito dos espectáculos “a la gorra”. Gorra é chapéu, e um espectáculo “a la gorra” é um espectáculo grátis mas em que quem quiser contribuir contribui com o que achar justo ou com o que puder (põe dinheiro na gorra). Parece-me deveras interessante o conceito. Quem se sente impactado pela obra sente-se impelido a contribuir na medida monetária que considera justa. não há cá subsídios nem facilitismos ou clientelismos.... o artista oferece a sua arte e quem se sente tocado por ela participa com o apoio que todos

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precisam: dinheiro. Em Portugal havia muito artista que vive à custa de subsídios que teria de começar a pensar em trabalhar.

Normalmente estes espectáculos são apenas às sextas, sábados e domingos porque na realidade, a grande maioria destes artistas tem outro emprego, tem o emprego que lhes permite pagar a casa a comida, a roupa a escola ou médico para os filhos.

Ahhh...... a tristeza que é ver os Artistas Unidos pedincharem e fazerem figura de tristes porque a câmara decidiu que tinha de passar a pagar renda n’O Espaço a Capital”.... em relação ao cinema, eu nem imagino o que teria sido feito na Argentina com o dinheiro que foi desviado pelo João César Monteiro para diversão dele e de mais meia dúzia de perturbados como ele... sim, porque nem sou completamente contra subsídios e incentivos sejam eles a empresas, artistas associações ou o quer que seja, sou, isso sim, contra os métodos de atribuição de grande parte desses mesmos subsídios e contra os lobbies e clientelismos que se geram!

Bom... fico-me por aqui que esta crónica já vai mais que longa. Esta é provavelmente a minha última crónica, mais um mesito e termino o trabalho aqui na Finca Flichman. Depois tenho 7 semanas até ao Natal em que vou conhecer mais um pouco da Argentina, o Chile, a Bolívia e o Peru, terra do Manchu Picchu - Cidade Sagrada dos Incas.

Despeço-me com sinceros desejos que tudo esteja bem convosco em Lisboa ou, se for caso disso, em qualquer outra parte do Mundo Mundial!

Beijos & Beijos deste vosso amigo

Não resisto a colocar aqui um excerto de um artigo de Miguel Sousa Tavares sobre Buenos Aires publicado no jornal Público de 4 de Julho de 2003--------------------------“Buenos Aires é uma cidade que nos reconcilia com a condição urbana, que nos lembra que as cidades podem ser construídas para o serviço dos homens e que nos ensina que a dimensão e a beleza são conciliáveis, a monumentalidade e a escala humana podem conviver juntas, os serviços e o comércio podem-se conjugar de forma perfeita com o prazer e a arte de viver uma cidade. Ao contrário, por exemplo, do Rio de Janeiro, cujo enquadramento paisagístico natural não tem paralelo no mundo, Buenos Aires não dispõe de trunfos naturais: não tem costa marítima, nem um rio digno desse nome, não tem lagoas, nem enseadas nem montanhas, enquadrando-a. Não há um Cristo Redentor a quem dar graças por tanta fortuna. Aqui, tudo é obra dos homens e nada é acrescento divino. É uma cidade feita por homens e para os homens viverem. Por homens visionários e arrojados que ousaram pensar grande, que construíram a mais antiga e ainda hoje a maior e mais bonita ópera de todas as Américas - o Teatro Cólon, decorado com mármores de Carrara e de Estremoz -, que secaram pântanos para plantarem os mais fantásticos jardins públicos, que os semearam de uma profusão de estátuas de pedra e de bronze (tantas que, quando já não havia mais heróis nacionais para representar, foram dedicadas a Mozart ou a Verdi), que deitaram abaixo quarteirões inteiros para rasgarem algumas das mais largas avenidas do mundo (a 9 de Julho é mesmo a mais larga do planeta), que, de um canal vindo do Rio de La Plata, criaram umas maravilhosas docas de pequenos edifícios de tijolo vermelho, ao serviço do comércio, dos bares e restaurantes e da marinha de recreio, em pleno coração da cidade.

Em Buenos Aires convivem harmoniosamente os pequenos bairros populares antigos, território do tango e de uma certa rufiagem cativante, com os quarteirões de arranha-céus, sobrepostos por décadas sucessivas de arquitectura futurista, desde os anos 20 até à actualidade (foi a primeira cidade da América Latina a erguer um arranha-céus, a primeira a escavar um metropolitano, em...1910!). Convivem a zona tradicional de comércio da "Baixa" com a zona de

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serviços e escritórios, a zona de edifícios públicos em volta da Praça de Mayo e da Casa Rosada com as magníficas zonas residenciais, como Recoleta, com a sua profusão de antiquários, galerias de arte, livrarias (abertas até à meia-noite!) e, em cada esquina, o seu café, que é um verdadeiro café, local de estar, de ver e de conversar, sem fórmicas, nem alumínios nem plásticos, mas sim móveis de madeira antiga, tampos e balcões de mármore, fotografias gastas pelo tempo, homenageando os antigos frequentadores, de Borges a Fangio, de Gardel a Péron (e, de cada vez que pedir uma simples "bica", saiba que ela vem sempre acompanhada por um copo de água com gelo, dois biscoitos e um guardanapo de papel espesso). Por isso também, em homenagem à influência inglesa, Buenos Aires tem ainda, não na periferia, mas em pleno centro, milhares de hectares de relvados e jardins públicos a perder de vista, com três hipódromos, dois estádios de pólo, "country clubs", campos de futebol, de ténis, picadeiros e escolas de equitação, percursos pedonais, para cavalos e para ciclistas, jardins infantis e jardins japoneses, jardim zoológico e jardins para passear cães, marinas e até um aeroporto para voos internos em pleno centro. E todas estas zonas - a comercial, a de serviços, as residenciais e as de lazer - não funcionam por territórios estanques, mas sim interligados, integrados uns com os outros, de modo que não há zonas desertas ou abandonadas conforme os horários, antes uma cidade que é habitada, vivida e desfrutada na sua totalidade.”

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V CRONICA DO NOVO MUNDO31 Outubro 2003

Passaram sensivelmente nove meses desde que cheguei a esta bela cidade baptizada em 1536 por Pedro de Mendoza de Ciudad de Santa Maria del Buen Ayre.

Nove meses??? Épá, quer dizer que terminou o Programa Contacto.... putz grila tá na hora do pau (tradução: chegou a hora de ir embora).

Esta é a última crónica. Não é bem uma crónica, mais resumo subjugado ao tema “o melhor” e “o pior” do que por cá vi. A parte melo introspectiva da hora da despedida.

Sim, já estou de férias e de malas aviadas. Neste preciso instante estou com a mochila às costas para partir em direcção a Manchu Picchu. A viagem é de largos milhares de kms em autocarro e, apesar de ter como destino a Cidade Sagrada do Império Inca, terá várias paragens quer na Argentina, quer no Chile, quer no Peru, quer na Bolívia – ou não fosse o caminho mais importante que o objectivo. Na medida do possível vou enviando crónicas e fotos. O regresso a Lisboa e para o Natal.

Bom, comecemos então pelo melhor.

O melhor – a quota de bom humor

É mais que conhecida a crise argentina. De facto Argentina está em crise, e, segundo se diz em jeito de piada, a única saída da crise é o Aeroporto Internacional. Os níveis de desemprego são altíssimos, e os que trabalham trabalham de mais e recebem de menos. Um terço da população vive abaixo do nível de pobreza. Morre-se de fome, as pessoas não acreditam nos políticos, a classe trabalhadora não tem poder de compra... etc, etc, etc. No entanto, e apesar de tudo isto, querem aproveitar a vida ao máximo e mantém o que se pode chamar a “quota de bom humor”.

Ao longo das crónicas fui descrevendo um bocado disto, acho que ressaltou a vontade de viver dos Argentinos. não há dinheiro para ir a um bar junta-se em casa e divide-se a bebida, não há dinheiro para uma camisa importada compra-se uma argentina trucha18. Não há dinheiro para a moda da estação reinventa-se a moda da estação anterior... e tudo isto é feito com um sorriso nos lábios, com uma piada a mistura, com um sorriso aberto.

Se juntarmos a isto o “orgulho ou a vaidade argentina” o facto e que não se percebe que este país está em crise. Não se percebe que há menos de dois anos o estado “declarou falência” e apoderou-se da riqueza das famílias acumulado nos bancos. Bom, antes de mais aclarar o que eu chamo de “orgulho ou vaidade argentina”. O argentino gosta de se arranjar bem (então as argentinas.... uuuuhhhhmmm), gosta de ser sofisticado, de estar bonito, de ter a casa bonita, de ser requintado, é orgulhoso si e do seu país. Por isso não quer perder tempo com lamúrias, com tristezas, não quer ser um coitado.

E como é possível ser-se coitado na Paris da América do Sul? Num país com tanta diversidade geográfica. Num pais que tem o Glaciar Perito Moreno, as Cataratas do Iguazú, Puerto Madrín onde as baleias vão ter as crias, Bariloche e as suas estâncias de ski, os Andes e todas as suas lendas, história e mitos, Mendoza e os fabulosos vinhos, Salta, Jujuy, Córdoba, a Patagónia, Terras del Fuego, também conhecido como o “Fim do Mundo...”

Com e possível ser-se coitado na Terra do Tango e de todo o seu Glamour, na terra do melhor jogador de Futebol de todo o sempre, El Pibe de Oro el gran Maradona, na terra do homem cuja imagem é a imagem da Revolução – ele mesmo El Che; a terra da Evita Perón, do Astor 18 “da tanga”, isto é, falsa

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Piazzola, do Jorge Luís Borges, do Fangio, do Villas, da Valleria Mazza, da Gabriela Sabatini, do imortal Carlos Gardel. A terra da avenida mais larga do mundo, a terra com o teatro mais bonito do continente americano... e tanto mais, e tanto mais.

Por tudo isto o Argentino gosta de receber, gosta que as pessoas se sintam bem, que falem bem deles. Com tudo isto, o facto é que se respira uma forma diferente de estar na vida, uma forma diferente de lidar com os problemas. Tristezas não pagam dívidas. Obrigado Argentina,... acho que percebi o que significa o ditado popular.

O pior – pobreza e a colonização

Também o pior está relacionado com a crise argentina. A crise atingiu a quase totalidade da população e teve consequências dramáticas para a classe média, mas o que me chocou mais foram as consequências para as classes pobres. A pobreza em Buenos Aires é de partir o coração.

A crise trouxe para a cidade e para as ruas famílias inteiras. Vê-se famílias que vivem pelas ruas, que dormem em baixo de qualquer umbral, que se abrigam com qualquer trapo para sobreviver ao frio Inverno... crianças que nascem no meio de sacos do lixo, crianças que crescem no meio de sacos do lixo, crianças que aprendem a viver no meio de sacos do lixo. Algumas destas famílias estavam no campo mas, com a crise, viram-se obrigadas a vir para a cidade onde sempre há um pedaço de carne que sobra de uma refeição pronta a ser respigada nas traseiras das casas ou nas sobras dos restaurantes.

Reciclagem? Não é preciso, todos os restos, todos os sacos do lixo vão ser revolvidos durante a noite em busca de qualquer coisa de valor como uma garrafa de vidro vazia, ou o cartão, ou um par de sapatos, ou um brinquedo, ou uma lata de atum fora do prazo...

Depois há os que pedem nas ruas... e há de tudo. Corta o coração ver a velhota da cadeira de rodas que fica todo o dia envolta em xailes a dormir com uma caixa de esmolas diante, bem no centro da Calle Florida. Parte o coração ver crianças que constante e irritantemente dizem “una moneda por favor, una moneda por favor” dói ver bebés que servem para ser mais um motivo para pedir esmolas... bebés que vão ser crianças que um dia também vão repetir insistentemente “una moneda por favor... una moneda por favor” e que quando já não são tão crianças para receber moedas vão respigar nas traseiras dos prédios e depois vão ter filhos que possam ser motivo de uma esmola maior...

Sempre fui contra esmolas e raramente dou dinheiro, e que sempre acreditei no provérbio “se queres matar a fome por um dia dá uma esmola, se queres matar por toda a vida ensina a pescar”. Faz sentido num país europeu em que “só passa fome quem quer”, mas aqui..., aqui essas teorias não querem dizer nada. As pessoas são pobres e têm fome... fome! As pessoas têm fome e não têm o que comer nem forma de arranjar comida senão nos sacos do lixo... e sabendo isso não é nada fácil ouvir uma criança que pede insistentemente “una moneda por favor, una moneda por favor”...

E a sociedade vai vivendo com esta pobreza, algumas pessoas aprenderam a viver com tudo isto e a outras nem sequer lhes importa... viver na América do sul é conviver com as maravilhas mas saber que existe pobreza, enormes discrepâncias sociais, que a insegurança está em todo o lado, que muita gente tem os horizontes muito limitados... muito limitados mesmo, quais serão os sonhos de uma criança de uma bicha (e como aqui chamam as favelas), o que é o mundo para um bebé que chora sem que ninguém o acuda, o que será o mundo para uma

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criança que se habituou à agressividade, ao abandono, à dor. Viver na América do Sul é este paradoxo, é viver com do mais belo e do mais cruel da natureza humana.

Viver na América do Sul é conviver com o verdadeiro significado da palavra colonização. Há 500 anos portugueses e espanhóis descobriram uma terra que há muito estava descoberta. Tomámos pela força a terra aos seus legítimos donos e fizemos deste solo nosso. Fizemos desta terra a terra para realizar os nossos sonhos mesquinhos de riqueza, poder, luxúria... fizemos isso há 500 anos e continuamos a fazer. Na América do Sul Segurança Social é uma piada; reforma uma anedota. Os políticos roubam descaradamente, os ricos são cada vez mais ricos e querem ser ainda mais ricos, os pobres vão ser sempre pobres. Os pobres tem fome a mais e educação a menos, e ninguém se importa com eles.

Colonização é isto. É eu invejar a casa do meu vizinho e, como sou mais forte, faço minha a sua casa. Ignoro os seus direitos, as suas vontades e apenas me preocupo com a minha vontade de ter, de ter mais e mais, e os meus filhos vão ser ainda mais ricos e soberbos que eu e os filhos dele ainda mais pobres e resignados que ele. Fizemos isto há 500 anos e continuamos a fazer. Tentámos fazer em Angola mas o angolano não permitiu, tentaram os Indonésios fazer em Timor e o timorense libertou-se. Fazem os Americanos no Iraque com a nossa conivência, sim com a conivência do governo português, o que faz a mim e a ti responsável pelo sangue e pelas atrocidades que se passam no Iraque e pela espiral de ódio e violência...

E depois do começo o que vier vai começar a ser o fim19

Não quero ser muito pesado nesta última crónica e penso que a mensagem está clara, por isso, adiante.

Passados que estão os tão famosos 9 meses o sentimento que prevalece é a alegria..., contentamento. Quando embarquei nesta aventura que é o Programa de Estágios Internacionais do ICEP tinha vontade de voltar a viajar, vontade de voltar a trabalhar noutro país, vontade de sair, vontade de outras experiências, de outras vivências, de respirar de ser mais rico como pessoa, de crescer como Homem. Não hesitei em abandonar o emprego pelo qual lutei vários anos até chegar aos quadros de um grande grupo português, não hesitei em mudar hábitos e rotinas que de alguma forma incluíam em si alguma segurança e bem-estar. Não hesitei e embarquei na aventura.

Sei que houve muito que deixei de viver em Lisboa, muito se passou na minha ausência, a terra girou, Lisboa mudou, as minhas sobrinhas cresceram, os meus amigos e os meus irmãos ficaram mais gordos, o Bairro Alto foi fechado ao trânsito, a nova Catedral da Luz foi inaugurada... mas também sei que o Carlos Cruz continua a ser notícia nacional, que as minhas sobrinhas vão continuar a crescer, que os meus amigos e irmãos vão continuar a engordar, que o Durão continua no Poder, que o Benfica vai continuar a perder...

Mas agora, para mim Buenos Aires não e uma cidade distante. A América do Sul já não é uma terra do outro lado do Atlântico, mas uma imagem com contornos reais, muito reais e com lugar privilegiado no meu coração.

Afeiçoei-me a Buenos Aires. Na hora de mais uma partida sei que uma parte de mim vai sempre cá ficar. Apeguei-me às pessoas, aos hábitos à minha maravilhosa casa, aos amigos do bairro e a tantas outras coisas que quando cheguei me pareciam estranhas e agora são o meu habitat natural, a minha vida, a minha rotina que inclui em si mesmo alguma segurança e bem-estar. Já sei o nome de muitas ruas de cor, sei o nome de vizinhos e eles sabem o meu. Sei o estado de humor dos meus colegas simplesmente pela forma como dizem “buenos dias” e eles já se habituaram ao meu portunhol. Não preciso pedir o tabaco no quiosque ou o café na 19 Retirado da música “Desconexão Urbana” dos Legião Urbana

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pastelaria, tenho restaurantes e bares preferidos, amigos e amigas queridos... Buenos Aires foi a minha vida nos últimos meses. Aqui ri e aqui chorei, dancei, amei, joguei futebol, discuti, desesperei, jubilei, cantei, sonhei, escrevi, fui feliz, fui infeliz...fui infeliz, fui feliz...

Não estou nostálgico, não estou nostálgico nem triste, pelo contrário, estou alegre! É que o ser humano é mesmo um animal de hábitos, e o meu hábito e estar constantemente a mudar de hábitos.

Estou alegre porque, em primeiro lugar segui o plano, a ideia era mesmo ficar em Buenos Aires 9 meses, portanto esta despedida é a crónica de uma morte anunciada, o fim de uma etapa. Eu sabia que me ia e toda a gente sabia que eu me ia. E há também a excitação de começar uma nova etapa que, acredito vá ser ainda melhor do que as que já vivi.

Ganhei muito com o Programa Contacto. Conheci pessoas fantásticas e acredito que vão continuar a fazer parte e a enriquecer a minha vida. Passei por situações novas, conheci lugares novos, tive novos desafios, novas alegrias, novas tristezas. Enfim... vivi novas realidades, conheci novos mundos.

Tive também o gosto de partilhar algumas destas aventuras com quem teve interesse em conhecê-las. Para isso surgiram estas Crónicas do Novo Mundo e o site de fotos. Inicialmente só para família e amigos mais próximos, mas achei piada em alargar a um grupo mais alargado de pessoas – às pessoas que querem partilhar destas aventuras, as pessoas que, como eu, gostam de ler crónicas.

Bom, voltando à partida, a minha partida de Buenos Aires.

A imobiliária já alugou o meu apartamento e durante estas semanas andei a mostrar a casa aos interessados... estranho... tão estranha que foi a sensação real que ia partir. Sim, tem boa luz, os vizinhos são sossegados, os ares condicionados funcionam na perfeição... e sempre me saia um “voy a estranhar mucho este lugar, espero que lo desfruten tanto cuanto yo...”. Não fiz grandes alterações, está praticamente igual a como o encontrei, já há muito retirei os pequenos toques pessoais..., as fotos, os livros, as velas, os CDs... já há muito que me fui habituando à partida.

E as pessoas, as despedidas... cada vez mais menos me sei despedir...

Pela frente umas nada merecidas mas muito cobiçadas férias. Sim, nada merecidas porque afinal a sensação com que fico e que estive sempre em férias. Não, não digo isto por não ter trabalhado e por não ter tido alturas de aperto, mas sim porque como fora do trabalho a descoberta é constante o sentimento com que fico e que estive sempre em férias, sempre a descobrir, sempre a aprender. Todos os fins-de-semana havia algo novo por fazer, alguma coisa nova por conhecer... ao fim de semana fazia turismo.

Com tudo isto o que posso dizer é que foram 9 meses MUITO INTENSOS. Parece que vivi três ou quatro vidas! Tanta coisa sucedeu, tantos períodos diferentes, tantas descobertas, tantas sensações e emoções, tanta coisa nova que quando penso nos 9 meses parece pouco para tanta coisa! Uma eternidade. Ao que parece também fisicamente me alterei. Já não uso barbicha tipo mafioso, o cabelo cresceu, emagreci... quase que não me deixavam entrar na Argentina quando regressava do Uruguai porque não me reconhecerem através da fotografia do passaporte tirada há menos de um ano...

Houve outra coisa que se tornou interessante. Não é nada de novo, mas nunca como agora percebi o alcance da internet. O meu antigo mundo girou sem a minha presença e muita coisa mudou e só quando regressar me vou aperceber da verdadeira dimensão dessa mudança, mas muita dessa mudança pude observar ao vivo e a cores graças à magia da internet e de todos os apetrechos suplementares: as web cams, as fotos digitais, os messengers, os e-mails, os

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blogs, os fotologs... Pessoas houve que se aproximaram, pessoas houve que se distanciaram, pessoas houve que partilharam fortes emoções no momento em que sucederam apesar de estarem a milhares e milhares de kms de distância... o PC tornou-se definitivamente o meu melhor amigo por ser o meio de contacto com uma parte tão importante do meu mundo..., porque o meu mundo está mesmo espalhado pelo mundo.

Bom, mais não digo porque estou de partida para uma viagem que não é mais nem menos do que o realizar de um sonho sempre... outro sonho. Vou ao encontro da cidade perdida, vou ao encontro da Cidade Sagrada do Império Inca – Manchu Picchu. Convido quem quiser partilhar desta aventura a manter-se actualizado no meu site de fotos. Tenho a mochilita pronta e muitas alegrias por descobrir... alegrias por descobrir e que convosco quero partilhar. O plano é fazer um “Coast to Coast” até ao Santiago do Chile e, a partir daí subir pela costa do Pacífico até Lima. Depois desço pelo interior do Continente com passagem especial pelo Manchu Picchu até à Bolívia e regressar à Buenos Aires pelo Noroeste. No total devem ser cerca de 6.000 Kms totalmente percorridos em camionetas ao longo de seis semanas. Sim, porque “Quem viaja demasiado depressa perde a essência da Viagem”. Depois espera-me o Brasil e o regresso a Portugal é só mesmo para o Natal!

Despeço-me com sinceros desejos que tudo esteja bem convosco em Lisboa ou, se for caso disso, em qualquer outra parte do Mundo Mundial.

Beijos & Beijos deste vosso amigo

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I CRÓNICA DO NOVO MUNDO-CRÓNICA DO MUNDO NOVOOutubro 2004

Faz sensivelmente 9 meses desde que regressei a esta

formosa cidade sonhada por Ulisses, fundada por

Fenícios, ocupada por Gregos, Cartagineses, Romanos e

Muçulmanos e para nós conquistada por D. Afonso

Henriques em 1147. Para os Romanos era a Olissipo

banhada pelo Tagus. Lisboa é o seu nome actual e o Tejo

o seu companheiro eterno.

Ir para fora viver é construir uma história. Construir uma história a partir do zero. Regressar é

enfrentar essa mesma história. As histórias da ida ficaram as Crónicas, bem situadas no tempo

e nos espaço e que reflectiram o meu viver nesse Novo Mundo. Cá estou eu de regresso. Saí

do Novo Mundo para entrar num Novo Mundo para mim – o velho mundo no Velho Continente

observado por uma nova pessoa. É sobre isso que me proponho a escrever agora que faz

sensivelmente 9 meses desde que regressei, agora que faz sensivelmente 1 ano desde que

terminei o Programa Contacto do Icep... agora que faz sensivelmente 2 anos desde que

começou o Programa Contacto do Icep.

Home sweet home?

Dois tempos. Passados estes 9 meses consigo simplificar tudo em dois momentos distintos. O

primeiro é quando eu estou cá e a minha cabeça lá e o segundo é quando estou cá... ponto

final.

Voltar a casa é uma amálgama de sentimentos

desencontrados. O doce aperto no peito ao regressar

ao nosso quarto, ver livros antigos nas estantes, os

CD’s, as fotos de família na sala. Volto a sentir como

dantes ao ser confrontado com pessoas e vivências

anteriores à partida. De repente lembro-me de quem

sou. As gentes, as situações, os lugares, as

recordações que me fazem lembrar de mim. Saudades,

saudade deste viver que era o meu. A chegada traz à memória só as coisas boas, os nossos

hábitos e costumes que trazem conforto. A alegria de ver os nossos, esses que me fizeram

recordar de mim mesmo e que me fazem sentir feliz por existir com eles, esses que me

Page 39: Bons Ares - Crónica de um portugues na Argentina

conhecem antes, muito antes e que viram tudo; esses que observaram alegrias, tristezas,

fracassos, vitórias... aqueles que sabem quem somos e que contam conosco hoje amanhã

depois e depois. Aqueles que nos fazem feliz por existir, que fazem sentir rica esta passagem e

que nos fazem sentir importantes e parte de algo que em muito supera os nossos actos,

vontades e querer.

É assim como uma paixão, tudo é lindo, tudo traz luz e alegria, até as coisas chatas têm piada

e são motivo de alegria e satisfação.... ahhh, as saudades que eu tinha do meu irmão a

chatear-me por estar a tocar viola no quarto... vezes sem conta repito histórias... tias, primos,

amigos, conhecidos, vizinhos, até o senhor do café me diz que também ele esteve na

Argentina... repito as mesmas história sem perder a emoção... aprendo a repetir as mesmas

frases com a mesma entoação de novidade, apesar de ser a quinta vez no mesmo dia que digo

“Os Argentinos são super comunicativos!”. As saudades que eu tinha de deambular pelo Bairro

Alto com os meus amigos atrás da cerveja mais barata e de uma miuda simpática e engraçada

para dois dedos de conversa... Ahhhh as saudades que eu já tinha de estar num emaranhado

de gajos às 4 da matina a bater couro ao porteiro de uma qualquer discoteca “as minhas

amigas já entraram” e ter como resposta um ríspido – Só casais!

Depois.. um pouco depois e pouco a pouco as coisas vão tomando o seu rumo... tem piada

uma vez... duas, mas três??? Porra, vim sair com amigos e agora queremos ouvir mais música,

qual é a tua meu... queremos entrar!! Houve lá, tou a curtir berrar e tocar uns acordes...

importas-te? Meu, eu quero um café, não quero conversar sobre o quão as sul americanas são

boas!.... Sim, adorei estar na Argentina.... e sim, pela centésima vez, estou cá em Portugal

agora e não sei quando é que vou fazer outra viagem!!!!

Pior... não suporto o trânsito, não compreendo nem nunca compreenderei a inoperância e

estúpidez dos funcionários públicos, não percebo porque as pessoas se preocupam tanto com

coisas insignificantes como o corte de cabelo ou a marca da camisa ou a vida de uma qualquer

personagem que agora apresenta um qualquer programa de televisão...

Pois é, passámos fase dois. Estou cá e ponto final.

A Grande Depressão

Acabadinho de chegar repleto de aventuras e desventuras, sensações e emoções.... cheio e

rico de novas experiências para contar e partilhar, fosse eu onde fosse, falasse com quem

falasse a novidade durava um àpice. É incrível como tanto tempo pode desvanecer em tão

Page 40: Bons Ares - Crónica de um portugues na Argentina

pouco tempo...

Os Norte Americanos tiveram a Grande Depressão em 1929 na sequência do crash da bolsa.

Nós, pelos vistos, estamos a passar a nossa na sequência do crash da qualidade governativa e

pela falta de qualidade de vida. Não tivémos nenhuma Grande Depressão.... a Grande

Depressão é mesmo as nossas vidas20.

Sem querer parecer fatalista ou pessimista o facto é que ao regressar constatei que o povo

Português de uma maneira geral está deprimido, sem confiança em si nem no futuro. A questão

é... será que não fomos sempre assim?

“Espero que tenhas curtido muito porque agora é que vais ver como é que está cá a vida”...

“Isto aqui está muito mal... muito mal”... “Estamos numa crise enorme”... “Há imenso

desemprego”... “A vida está cara”... “Quem tem trabalho agarra-se a ele como pode e mata-se

a trabalhar até às tantas”... “Ganha-se mal em todo o lado”....

Família, amigos, conhecidos, jornais, televisão, rádio.... por onde quer que eu andasse, para

onde quer que me virasse, estes eram os comentários que eu ouvia. Eu sei, somos mesmo

assim, sempre fomos assim, se não fizermos nada sempre seremos assim... o fatalismo do

Fado bem enraizado na nossa cultura. “Cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas21“...

ahh pois é.... tudo na mesma, nada muda.

Regressei de Londres em 1994, no apogeu das contestações ao então Governo de Cavaco. O

discurso girava em torno de estarmos a atravessar um período de sacrifícios para apanhar o

comboio da então Comunidade Europeia. Quando regressei de Madrid em 2001 estava em

plena a contestação ao Governo de Guterres e ao que se chamava o despesismo social. Ao

regressar ouvi a Manuela Ferreira Leite e o Durão Barroso dizer que está difícil vestir o país...

que continuamos de tanga. Agora é o Governo do Santana Lopes que mete os pés pelas mãos

e é motivo da xacota popular...

Pois é, sempre fomos assim, mas tudo isto parece estranho e ridículo para quem esteve um

ano a viver, conviver, partilhar, imiscuir, saborear e sambar na América do Sul. Tudo parece

absurdo para quem esteve a compartilhar e a aprender a saborear a vida com quem tem

pouco, muito pouco de material, mas muito de espírito. Pois é, vim do outro lado do imenso

Atlântico, mas nem é preciso ir tão longe para conviver com outro estado de espírito, com outra

forma de encarar a vida. Basta atravessar a fronteira... basta atravessar a fronteira para

20 Adaptado de Taylor Durden no filme “Fight Club”21 Retirado de “O Coro das Velhas” música do Sérgio Godinho

Page 41: Bons Ares - Crónica de um portugues na Argentina

observar outra maneira de estar na vida diferente deste nosso triste Fado.

Isto é que vai uma Crise22

Voltando à crise, afinal o que é isto de “Crise”? Como me podem dizer que “estamos em crise”

pessoas que andam montadas em carros de milhares de contos, que usam roupa de marca e

que têm telemóveis com câmaras e toque poli-não-sei-quê, que jantam fora e gastam dinheiro

em copos com bastante regularidade, que têm casa própria e que vão passar férias a Palmas

de Maiorca ou às Repúblicas Dominicanas? Será que a crise não é mesmo e só de estado de

espírito? Será que o consumismo se come a si mesmo e nos torna insatisfeitos por natureza?

Será que o consumismo não nos leva a dar demasiado valor ao que não temos e nos impede

de gozar o que temos? Será que, afinal, tudo o que possuimos acaba mesmo por nos

possuir23? Será que nós gostamos de nos fazer de coitadinhos com receio de ferir ou de causar

inveja ao próximo24? Será que esta é realmente a nossa postura como povo, algo inato e

inerente a isso de “ser português” – o nosso “tipo ideal” tal como definido pelo sociólogo Max

Weber?

O que é facto é que se os Sul Americanos25 mantém o que chamei de “Quota de Bom Humor”26

que lhes permite viver a vida ao máximo apesar de várias vicissitudes, nós mantemos a “Quota

de Mau Humor” que nos impede de tirar o máximo partido da vida apesar das maravilhas que

nos são oferecidas.

No fundo, no fundo, até percebo esta ideia da crise, o que lamento é que só se fale de motivos

supérfluos dessa mesma da crise. Que estamos em crise é óbvio. Ou não é sinal de crise a

Ministra da Educação ir à Assembleia afirmar que o processo de colocação de professores

correu “muitíssimo bem” depois da colocação ter atrasado o início do ano lectivo mais de uma

semana – facto inédito na nossa história e apenas concebível em países subdesenvolvidos.

Não será também sinal de crise o vergonhoso estado da Justiça? Não é um evidente sinal de

crise a vergonha de Serviço Público de Saúde que temos? Não é sinónimo de crise pairarem

dúvidas sobre termos um Governo que censura opiniões incómodas – facto indicador de

autismo político e que, por si só, põe em causa a própria democracia. Não será crise ninguém

22 Retirado da Série Poruguesa “As aventuras de Camilo”23 Também retirado de Taylor Durden no filme “Fight Club”: “What you own end up owning you”24 Lembrei-me agora de um anúncio do Connect Card da Vodafone em que dois empresários falam ao telefone lamentando-se de quão duro é o seu emprego... só que um está numa piscina e outro numa esplanada ambos a acederem à net no seu portátil...25 Refiro-me em particular aos Sul Americanos do MercoSul e mais em particular ainda aos

Argentinos e Brasileiros26 Vide V Crónica do Novo Mundo

Page 42: Bons Ares - Crónica de um portugues na Argentina

se importar com a mais que inevitável insustentabilidade da Segurança Social? Não é crise

lidarmos diariamente com toxicodependentes a arrumar carros nos escassos lugares de

estacionamentos das grandes cidades. Não é crise não termos uma rede de transportes

públicos que possa servir de alternativa para deslocações nas cidades?

Agora já vês o que é ser Português

O Programa Contacto não acaba com o estágio. Há pomposos encontros e conferências com o

intuito de manter viva e potenciar a rede. Ouvi com atenção o Dr. Pinto dos Santos dizer, com

conhecimento prático e teórico, que depois de voltarmos aprendemos o que é “Ser Português”

porque ao vivenciarmos uma outra cultura passamos a ter ponto de comparação com a cultura

que melhor conhecemos e a única que realmente vamos conhecer – a nossa. Falou-nos de uns

“óculos” que a partir de agora nos vão acompanhar sem nunca mais nos abandonar... pois

esses tais “óculos” permitem relativizar coisas que antes se nos apresentavam como verdades

únicas e absolutas. São esses tais óculos que nos permitem, em última análise, perceber o que

é “Ser Português”.

Concordo no mais profundo concordar que uma constatação empírica pode comprovar. Já

antes tinha vivenciado retornos, mas este teve outra relevância. Teve outra relevância porque

não foi o primeiro, porque a minha vivência nunca tinha sido tão intensa e porque antes não

tive a capacidade que hoje vou tendo de “dar nomes” ao que comigo se vai passando. E agora,

graças ao Dr. Pinto dos Santos, agora sei que o que se passa é que tenho uns óculos que me

acompanham e que me permitem ter uma posição crítica sobre o que muita gente considera

uma “verdade absoluta”. Estes óculos permitem “ver fora do Matrix27”... às vezes sinto-me a vou

acompanhar o Orpheus, o Neo e a Triniti numa visita ao mundo dentro do Matrix... estou

consciente de outras realidades, ponho em causa o que vejo, as atitudes, as opções, as

reacções e os sentimentos como que vendo “de fora”. A diferença é que eu faço parte de este

mundo, deste Matrix... eu tomei o comprimido azul, mas, mesmo assim, estou dentro deste

Mundo... faço parte deste mundo da “Alice no País das Maravilhas”... hihiihihi.

A vida de um viajante diletante em casa

Passados estes nove meses já não sei, ou ainda não sei, até que ponto é que realmente faço

parte desse mundo. Por vezes riu-me comigo mesmo a lembrar-me da célebre frase do

27 Do filme Matrix

Page 43: Bons Ares - Crónica de um portugues na Argentina

Cypher... “Ignorance is blessed” quando este, mesmo sabendo que o caviar que está a comer

não é real, mas uma criação do Matrix, opta por ignorar e simplesmente apreciar.

Sou um perfeito marginal, no sentido em que vivo à margem do “normal”. Tenho o cabelo

crescido e revolto. Faço a barba quando já não suporto a comichão, visto a primeira coisa que

me aparece à frente. Mal lavo a minha roupa, por isso a primeira coisa que me aparece à frente

bem pode ser as calças que uso insistentemente há mês e meio. O microfone do meu

telemóvel não funciona e só me restam mesmo os sms. Ando de metro sem pagar... já sei

todos os truques para lubridiar fiscais e torniquetes. Não tenho nenhum trabalho regular e não

procuro... como o que me aparece à frente e quando me aparece à frente, vivo de biscates –

animações com crianças e sacar cafés no snack do meu irmão quando falta algum empregado.

Toco viola, escrevo, sou treinador de futebol dos infantis d’Os Torpedos Futebol Clube”,

distribuo comida aos Sem-Abrigo e faço do Bairro Alto o meu espaço de convívio, diversão e

desvairo... acompanho as actividades da “PédeXumbo – associação para promoção da música

de dança” sempre que há baile lá estou a tratar das bebidas. Tudo o que é festa Freak estou lá

a dançar ao som de Djambés e Didgeridoos como o do Renato Oliveira28 e dos seus

Rootscaravan, ao som de Terrakota, One Love Family... Não vejo televisão, não uso relógio,

não me importo com marcas de carros, nem de roupa nem de telemóveis...

Assumo que vivo num misto de contentamento e alegria, frustração e tristeza. Tudo ao molho,

tudo ao molho e fé em Deus, Alá, Buda ou seja lá quem ou o que for...

A parte da tristeza tem mais a ver com os outros. A frustação tem a ver comigo.

A frustração é perceber que depois de tantos e tantos anos a investir na minha carreira e em

conhecimentos com ela directamente ligados, dificilmente consigo encontrar um emprego que

me possa satisfazer. Para me sentir satisfeito preciso de estar a trabalhar com gente

interessante, isto é gente que me possa ensinar alguma coisa, e competente, isto é, virada

para objectivos, progresso e para o afincado desempenho da sua função e, também, que este

emprego me permita viver a vida na plenitude, ou seja, ter tempo livre e disponibilidade mental

nesse tempo livre e uma retribuição monetária compensatória. A frustração é perceber que o

mercado de trabalho me quer para escravo, no sentido de repetir tarefas, trabalhar fora de

horas e, pior que tudo, lidar, suportar e aturar pessoas desinteressante e ainda mais frustradas

que eu. Essa é a minha frustração.

A tristeza está em aperceber-me que raras são as pessoas que compreendem e apoiam a

minha decisão... A tristeza também é constatar a facilidade com que as pessoas se conformam.28 Colega destacado para Manchester

Page 44: Bons Ares - Crónica de um portugues na Argentina

A parte boa, o tal contentamento e alegria, é eu sentir-me bem com as minhas opções. Alegro-

me por conseguir estar bem comigo mesmo sendo marginal e ser igualmente feliz agora que

sou pobre e o ano passado em que era rico. A parte boa é conseguir viver sem estar

dependente de, nem escravizado, por principios materiais, esses mesmo que levam tantas e

tantas vezes as pessoas do mundo ocidental a abdicarem de outros princípios bem mais

profundos no nosso ser para satisfazerem o seu ávido consumismo. A parte boa é eu sentir-me

humano e por conseguir reger-me em larga medida pelos meus princípios humanistas no

respeito por mim e pelos outros.

Cuidado! Viajar Causa Dependência!

Também com a segurança de quem sabe o que está a dizer o Professor Pinto dos Santos diz-

nos que estudos comprovam que a maioria dos Executivos que foram expatriados quando

regressam se demitem no prazo de 6 meses. Acho que este número comprova em parte o

difícil que é regressar à nossa história depois de ter vivido outra história.

E assim tem sido parte da minha vida. Quando regressei de uma fuga para Londres por 7

meses decidi com toda a certeza que iria terminar a licenciatura e logo de segui embarcar

numa nova experiência internacional. Assim foi, Budapeste e Madrid foram os destinos dessa

aventura que decidi um dia terminar. Terminei e voltei para Portugal... dois anos depois a minha

dependência da viajem acabou mesmo por falar mais alto e embarquei de novo, agora para

Buenos Aires.

Faz 9 meses que regressei e tenho de confessar que várias vezes me senti fortemente

impelido para ir outra vez... para onde? Não sei. Para Angola – a minha terra natal? Para o

Brasil com todo o seu Sol, Samba, Bossa Nova e mulheres quentes? Para outro país no centro

da Europa? Não sei... não sei...

Olhando para trás, posso definir em traços muito largos os últimos 10 anos da minha vida como

“estando fora de Portugal” e “estando a pensar numa forma de estar fora de Portugal”. De facto

acho que nunca soube regressar muito bem, nunca devo ter conseguido conviver muito bem

com esse “óculos” que permitem ver para além das evidências e por detrás das fachadas... Por

outro lado, também acho que nós portugueses não sabemos muito bem receber pessoas de

fora. Recebemos de forma primorosa quem vem fazer turismo, isto é, quem está numa breve

passagem, mas que recebemos muito mal que vem para aqui “desfazer as malas”.

Page 45: Bons Ares - Crónica de um portugues na Argentina

Somos um povo de hábitos e seguranças e rotinas e nessas rotinas dificilmente encaixa algo

de novo. Acho que somos um povo tradicionalista e conformista... gosta das coisas como estão

mesmo sabendo que não estão bem ou que poderiam estar melhor. Encerramo-nos nas

seguranças do conhecido e não estamos abertos ao que de novo nos pode trazer o

desconhecido. Estamos habituados às nossas rotinas e não temos vontade de as mudar.

Quem vem de fora trás o seu Novo Mundo na bagagem, as novas ideias, costumes, maneiras

de estar, sentir, viver. Mas a nossa sociedade tem uma certa dificuldade em assimilar essas

novidades, é bastante mais simples manter o modus operando, mesmo suspeitando que possa

não ser o melhor... numa palavra, o conformismo é mais forte...

Percebi o alcance do conformismo com um Sem-Abrigo. O objectivo da distribuição de comida

aos sem-abrigo pela Comunidade Vida e Paz é levá-los a integrar uma quinta de reinserção

social para que possam sair da rua e voltar a uma vida mais confortável e socialmente aceite.

Disse-me nos olhos e pleno de sinceridade um Sem-Abrigo que estava bem assim, que estava

habituado e não tinha vontade de mudar... que se sentia bem. Incrível como o nosso cérebro

está minado com ratoeiras que nos levam a aceitar, viver e conviver com realidades

miseráveis. Até numa situação limite o cérebro humano consegue encontrar formas de reduzir

a dissonância, contornar e realidade e encontrar conforto no conformismo.

...Liberdade para dentro da cabeçaaa...29

Muitas vezes somos assim como sociedade, aceitamos o inaceitável. Aceitamos as horas

parados no trânsito ou aceitamos estar num transporte público como sardinha em lata.

Aceitamos a arrogância e falta de educação de um colega, chefe ou amigo repetidas vezes

porque “no fundo até é boa pessoa...”. Aceitamos a hipocrisia e falta de competência de grande

parte dos nossos governantes. Aceitamos a fuga aos impostos como normal e recorrente.

Aceitamos a morosidade da justiça, aceitamos os preços exorbitantes da Portugal Telecom...

aceitamos o IVA sobre a cultura ser 12%. Aprendemos a aceitar a guerra do Iraque mesmo

estando positivamente seguros do rol de mentiras que a gerou e o caos que provocou... Ahh

pois, sabemos que está errado, sabemos o que está errado, mas convivemos e aceitamos

esse mesmo errado...

O ser humano é um animal de hábitos, não há dúvida. Vivemos numa grande cidade mas

fazemos sempre os mesmos caminhos, falamos sempre com as mesmas pessoas, tomamos o

29 Título de uma música dos Natiruts – banda brasileira de reagge

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café na mesma pastelaria, há mesma hora e com a mesma quantidade de açúcar. Bebemos as

cervejinhas nos mesmos bares, vemos os mesmos programas de televisão e, muitas vezes o

que sai da rotina assusta-nos.

Tinha constatado isso enquanto Gestor de Produto. É algo que qualquer marketeer sabe, nada

é mais difícil que levar uma pessoas a experimentar um novo produto, nada mais difícil que

levar uma pessoa a mudar de hábitos, a experimentar algo novo, a tomar uma atitude, a fazer

uma determinada acção...

Por um lado é normal e até bom que assim seja porque, no limite, seriamos todos

esquizofrénicos, com maneiras de ser absolutamente distintas e sem personalidade definida ou

qualquer tipo de previsibilidade. Mas por outro lado e no outro lado temos a rigidez, a

monotonia, a obsessão...

Navegar é preciso, viver não é preciso30

No meio está a virtude, lá está. Esse meio permite manter a nossa personalidade, a nossa

maneira de ser e estar, mas esse mesmo meio também permite manter o cérebo aberto e

disponível para a novidade, para novas maneiras de ver o mesmo, novos pontos de vista. O

meio é a virtude que nos permite sair dos nossos mundinhos, dos nossos ego e etnocentrismo

no meio está a tão apregoada e em voga “open mind” – a mente aberta.

Mas o regresso faz-nos esbarrar com “narrow minds” – mentes limitadas, as tais conformistas e

altamente resistentes à mudança...

Pensamos em viagens a lugares distantes, exóticos, queremos visualizar novas paisagens,

tirar fotos e fazer gravações para mais tarde recordar. Vemos tudo pela rama e esquecemo-nos

do mais importante... esquecemo-nos de viajar. Seguimos horários rígidos, tarefas, hábitos,

rotinas e mantemo-nos alteráveis no comportamento e no ser quer na nossa cidade, quer em

Bangkok, Katmandu ou Suriname. Vamos lá mas nunca lá estivemos...

Fechamo-nos sobre os nossos mundos, as nossas rotinas, os nossos hábitos, os nossos

problemas, o nosso umbigo e perdemos a Grande Viagem, essa que nunca tem fim. Essa que

é uma permanente descoberta, um constante aprender, uma contínua feira de novidades,

sentimentos, sensações e emoções. Essa viajem que muita gente sem ter viajado a faz e que

muita gente que muito viajou nunca fez. Essa viagem em que o Caminho é mais importante 30 Música do Caetano Veloso

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que a chegada. Essa viagem sem rumo nem direcção predefinida, essa mesma que nos leva

ao nosso Encontro... seja ele onde for, seja ele o que for ou como for. Essa viagem que não

existe em nenhum roteiro e em que só nós podemos ser os nossos guias. Essa viajem a um

mundo tão vasto e desconhecido como o próprio Universo... a viagem ao nosso Mundo Interior.

E com isto encerro as Crónicas do Novo Mundo. Depois de tudo o que vivi e aqui escrevi estou

convicto que tenho diante de mim um Novo Mundo, um Mundo Novo já não como Augusto,

mas como Che Augusto...

Despeço-me com sinceros desejos que tudo esteja bem convosco em Lisboa ou, se for caso

disso, em qualquer outra parte do Mundo Mundial.

Beijos & Beijos deste vosso amigo,

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VII CRÓNICA DO NOVO MUNDO – CRÓNICA DO VELHO MUNDOOutubro 2005

Faz sensivelmente dois anos e nove meses que aportei a esta formosa baptizada em ... de e,

desde 1988 apadrinhada pela Unesco como Património da Humanidade.

Sento-me de novo em frente ao computador impelido pela vontade de escrever e, de alguma

forma, encontrar um fio condutor nestas constantes mudanças na minha vida.

Vivo em Évora e, pela primeira vez em 15 anos estou na mesma cidade há mais de dois anos e

na mesma casa há mais de um ano. Um ano e meio para ser mais preciso. Parece de alguma

forma o meu corpo e a minha mente buscam um poiso, um lugar de pertença. E escolhi – ou fui

escolhido por esta pacata cidade capital do Alentejo.

Vim para cá na sequência de um convite para trabalhar na Associação PédeXumbo,

associação subsidiada pelo Ministério da Cultura/Instituto das artes e entre diversas outras

actividades de promoção da música e dança de cariz tradicional, responsável pelo Festival

Andanças na aldeia de Carvalhais, concelho de S. Pedro do Sul.

Trabalhei durante dois anos como programador cultural do Espaço Celeiros – um local cedido à

PédeXumbo para dinamizar actividades de cariz cultural. Foram dois anos intensos e em que

estive em contacto com a animação cultural, área que muito me interessa e cativa. Em

Dezembro despedi-me para pensar na vida pôr em prática algumas ideia minhas – ideias essas

que nem eu sei muito quais são. Mas já lá vamos, primeiro vou tentar recuar ao momento da

última crónica e chegar a hoje.