boletim orcamento socioambiental 11

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Ano III • nº 11 • novembro de 2004 Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc 11 O governo sob a luz da justiça ambiental Justiça ambiental é uma idéia e uma luta que fazem sentido 1 . A seguir, entraremos numa deprimente viagem ao país da ausência de direitos, em que se verá que a “luz” da justiça ambiental não passa de uma mísera lamparina, já que ninguém a vê e a respeita, para terminar iniciando a busca de sinais positivos, de lampejos que talvez um dia mudem o quadro atual, mas deixando ao leitor a possibi- lidade de ir à cata de outras informações esperançosas. Faz tempo que organizações da sociedade civil brasi- leira, ambientalistas ou não, lutam por justiça ambiental e justiça climática. Essas ações começaram a se dar de O direito ao meio ambiente e acordo com a Constituição brasileira, o di- reito a um ambiente saudável é um direito fundamental, pois apesar de não estar inscrito no título dos direitos e garantias fundamen- tais é reconhecido como essencial à qualidade de vida, além de ser um princípio da ordem econômica que visa à justiça social e à digni- dade para todos. As dificuldades, no entanto, para colocar em prática o direito ao ambiente saudável, bem como ao desenvolvimento sustentável, leva-nos a uma discussão preocupante sobre o presente e o futuro dessa questão no Brasil. Para reali- zar uma reflexão sobre o tema, contamos com a contribuição do relator nacional para o di- reito humano ao meio ambiente, Jean Pierre, que analisa a situação brasileira a partir de exemplos emblemáticos verificados em todo o território nacional. Dada a importância do debate, o boletim do Inesc, cuja linha editorial é identificada pela análise de políticas públicas por meio da ótica orçamentária, apresenta, desta vez, uma exce- ção. Ao invés de números do orçamento pú- blico, esta edição elabora a análise a partir de um testemunho, quer nos mostra o que signi- ficam as cifras e as decisões políticas quando se chega lá no chão do país. E D I T O R I A L D www.inesc.org.br

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Boletim Orcamento Socioambiental 11

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Ano III • nº 11 • novembro de 2004Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc

11

O governo sob a luz dajustiça ambiental

Justiça ambiental é uma idéia e uma luta que fazemsentido1 . A seguir, entraremos numa deprimente viagemao país da ausência de direitos, em que se verá que a “luz”da justiça ambiental não passa de uma mísera lamparina,já que ninguém a vê e a respeita, para terminar iniciandoa busca de sinais positivos, de lampejos que talvez um diamudem o quadro atual, mas deixando ao leitor a possibi-lidade de ir à cata de outras informações esperançosas.

Faz tempo que organizações da sociedade civil brasi-leira, ambientalistas ou não, lutam por justiça ambientale justiça climática. Essas ações começaram a se dar de

O direitoao meio ambiente

e acordo com a Constituição brasileira, o di-

reito a um ambiente saudável é um direito

fundamental, pois apesar de não estar inscrito

no título dos direitos e garantias fundamen-

tais é reconhecido como essencial à qualidade

de vida, além de ser um princípio da ordem

econômica que visa à justiça social e à digni-

dade para todos.

As dificuldades, no entanto, para colocar em

prática o direito ao ambiente saudável, bem

como ao desenvolvimento sustentável, leva-nos

a uma discussão preocupante sobre o presente

e o futuro dessa questão no Brasil. Para reali-

zar uma reflexão sobre o tema, contamos com

a contribuição do relator nacional para o di-

reito humano ao meio ambiente, Jean Pierre,

que analisa a situação brasileira a partir de

exemplos emblemáticos verificados em todo o

território nacional.

Dada a importância do debate, o boletim do

Inesc, cuja linha editorial é identificada pela

análise de políticas públicas por meio da ótica

orçamentária, apresenta, desta vez, uma exce-

ção. Ao invés de números do orçamento pú-

blico, esta edição elabora a análise a partir de

um testemunho, quer nos mostra o que signi-

ficam as cifras e as decisões políticas quando se

chega lá no chão do país.

E D I T O R I A L

D

www.inesc.org.br

2 novembro de 2004

Grupos sociais sesentiam vítimas de

injustiças quejuntavam impactos

promovidos pelomodelo de

desenvolvimentodominante no meio

ambiente e naspessoas e

comunidades

modo mais coletivo e a permitir a construção deum corpo teórico com a criação, em 2001, da RedeBrasileira de Justiça Ambiental. Esta definiu comoinjustiça ambiental “o mecanismo pelo qual socieda-des desiguais, do ponto de vista econômico e social,destinam a maior carga dos danos ambientais do de-senvolvimento às populações de baixa renda, aos gru-pos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicio-nais, aos bairros operários, às populações marginali-zadas e vulneráveis”2 . Nãofoi difícil chegar a essa de-finição, pois no seminárioque deu início à Rede nãofaltaram exemplos de gru-pos sociais que se sentiamvítimas de injustiças quejuntavam impactos pro-movidos pelo modelo dedesenvolvimento domi-nante no meio ambiente enas pessoas e comunidades.

À experiência de boaparte da população brasileira corresponde umarcabouço teórico e legislativo referente ao direitoao meio ambiente, em particular na Constituiçãobrasileira de 1988 e nos documentos oriundos daConferência das Nações Unidas sobre o Meio Am-biente e o Desenvolvimento – Cnumad, realizada naRio 92. É esse o pano de fundo da nossa avaliação3 .

A Constituição Federal de 1988, chamada de“Constituição Cidadã”, já dava o quadro institucionale o substrato jurídico que permitem promover nopaís o direito ao meio ambiente. Há um amplo rol

de dispositivos constitucionais relacionados à maté-ria que, interpretados e aplicados conjuntamente, per-mitem a realização do direito humano ao meio am-biente, nos âmbitos econômico, social e cultural.

O capítulo sobre meio ambiente está incluído sobo Título VIII, Da Ordem Social, e dessa forma sub-mete-se ao disposto no artigo 193 (Tít. VIII, Cap. I:Disposição Geral): “A ordem social tem como base oprimado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e ajustiça social”. A dignidade humana e a cidadania sãotidas como fundamento da República já no artigo1º (incisos II e III). O artigo 3º coloca como objeti-vos fundamentais da República Federativa do Brasil“construir uma sociedade livre, justa e solidária; ga-rantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobre-za e a marginalização e reduzir as desigualdades soci-ais e regionais; promover o bem de todos, sem precon-ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer ou-tras formas de discriminação” (incisos I a IV).

O artigo 225 (Tít. VIII, Cap. VI) estabelece que“todos têm direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado, bem de uso comum do povo e essencial àsadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Públi-co e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lopara as presentes e futuras gerações”. Finalmente, noaspecto cultural, normas constitucionais reconhe-cem e impõem ao Estado o dever de proteger “asmanifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do pro-cesso civilizatório nacional”, garantindo o plenoexercício dos direitos culturais, apoiando e incenti-vando a valorização e a difusão das manifestaçõesculturais (art. 215, caput e parágrafo 1º).

Orçamento & Política Socioambiental: uma publicação trimestral do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, emparceria com a Fundação Heinrich Böll. Tiragem: 3 mil exemplares. INESC - End: SCS – Qd, 08, Bl B-50 - Sala 435 Ed. Venâncio2000 – CEP. 70.333-970 – Brasília/DF – Brasil – Tel: (61) 212 0200 – Fax: (61) 212 0216 – E-mail: [email protected] – Site:www.inesc.org.br. Conselho Diretor: Eva Faleiros, Gisela de Alencar, Iliana Canoff, Juraci de Souza, Mariza Veloso, NathalieBeghin, Neide Castanha, Paulo Calmon, Pe Virgílio Uchoa. Colegiado de Gestão: Iara Pietricovsky, José Antônio Moroni.Assessores: Alex Jobim, Edélcio Vigna, Francisco Sadeck, Jair Barbosa Júnior, Jussara de Goiás, Luciana Costa, Márcio Pontual,Ricardo Verdum, Selene Nunes. Assistentes: Álvaro Gerin, Caio Varela, Lucídio Bicalho. Instituições que apóiam o Inesc: ActionAid, CCFD, Christian Aid, EED, Esplar, Fastenoffer, Fundação Avina, Fundação Ford, Fundação Heinrich Boll, KNH, NorwegianChurch Aid, Novib, Oxfam e Solidaridad. Jornalista responsável: Luciana Costa (DRT 258/82)Esta publicação utiliza papel reciclado

1 Ver Acselrad, Henri; Herculano, Selene; Pádua, José Augusto. Justiça ambiental e Cidadania. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2004.2 Declaração de lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, 20013 A reflexão é extraída de Leroy, Jean-Pierre (relator nacional) e Silvestre, Daniel Ribeiro (assessor nacional). Direito Humano ao Meio Ambiente. In: RelatórioBrasileiro sobre Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais 2003. Plataforma brasileira DhESCs, Recife, Gajop, 2003.

3novembro de 2004

A Agenda 21 atribuiao mercado e à

liberalizaçãocomercial o papel

principal para reduzira pobreza e diminuiras pressões sobre o

meio ambiente. Aíestá o calcanhar deAquiles da Agenda

21, pois é pedir àonça para cuidar do

rebanho

Da forma como é colocado no texto constitucio-nal, o direito ao meio ambiente é um direito funda-mental, pois embora não esteja incluído no TítuloII, Dos Direitos e Garantias Fundamentais4 , é reco-nhecido como essencial à sadia qualidade de vida eé um princípio da ordem econômica, que busca ajustiça social e a existência digna de todos. Dessaforma, liga-se diretamente aos fundamentos e aosobjetivos fundamentais da República, inserindo-sena realização da dignida-de humana e da cidada-nia, tornando-se indispen-sável para a redução dasdesigualdades sociais, o de-senvolvimento nacional e aconstrução de uma socie-dade livre, justa e solidária.

O direito ao meio am-biente é um direito funda-mental que depende daparticipação do poder pú-blico (Executivos,Legislativos e Judiciários)para ter eficácia, assimcomo ocorre com os direitos econômicos, sociais eculturais, mas depende também da coletividade.Instâncias de participação do cidadão na definição,execução e fiscalização de políticas econômicas eambientais são essenciais para que toda a socieda-de, e não apenas a parcela minoritária detentora degrande poder econômico, possa manifestar seus in-teresses perante o Poder Público.

Por sua vez, a Conferência das Nações Unidassobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento -Cnumad - estabeleceu marcos e referências que per-mitem aprofundar o sentido do direito ao meio am-biente e fazer com que ele seja incorporado com maiorefetividade aos Direitos Econômicos, Sociais e Cul-turais. No preâmbulo do seu Capítulo 1, a Agenda21 salienta que a humanidade se defronta “com aperpetuação das disparidades existentes entre as naçõese no interior delas; o agravamento da pobreza, das do-enças e do analfabetismo; e com a deterioração contí-

nua dos ecossistemas de que depende nosso bem-estar”.E continua: “Não obstante, caso se integrem as preocu-pações relativas a meio ambiente e desenvolvimento e aelas se dedique mais atenção, será possível satisfazer àsnecessidades básicas, elevar o nível de vida de todos, obterecossistemas melhor protegidos e gerenciados e construirum futuro mais próspero e seguro”. A isso chama de“desenvolvimento sustentável” (1.1).

Vale notar que a Agenda 21 atribui ao mercadoe à liberalização comercial o papel principal parareduzir a pobreza e diminuir as pressões sobre o meioambiente e, assim, chegar ao desenvolvimento sus-tentável. Aí está o calcanhar de Aquiles da Agenda21, pois é pedir à onça para cuidar do rebanho.Aliás, não percebe a contradição, quando afirma,no seu capítulo 4: “Enquanto a pobreza tem comoresultado determinados tipos de pressão ambiental, asprincipais causas de deterioração ininterrupta do meioambiente mundial são os padrões insustentáveis deconsumo e produção, especialmente nos países indus-trializados. Motivo de séria preocupação, tais padrõesde consumo e produção provocam o agravamento dapobreza e dos desequilíbrios” (4.3).

A Convenção sobre Mudanças de Clima, por suavez, reconhece a responsabilidade dos países indus-trializados nas emissões globais de gases de efeito-estufa e reitera o direito das nações ao desenvolvi-mento sustentável, o que significa que se uns de-vem diminuir as suas emissões, as emissões de ou-tros crescerão “para que eles possam satisfazer as suasnecessidades sociais e de desenvolvimento” (Preâmbu-lo). No entanto, não os exime de uma atitude res-ponsável quando define as obrigações das Partes,tais como: “Promover a gestão sustentável, bem comopromover e cooperar na conservação e fortalecimen-to, conforme o caso, de sumidouros e reservatórios detodos os gases de efeito-estufa não controlados pelo Pro-tocolo de Montreal, inclusive a biomassa, as florestas eos oceanos, como também outros ecossistemas terres-tres, costeiros e marinhos” (Artigo 4 d).

O meio ambiente é visto, principalmente: i) comoprovedor dos recursos naturais para o desenvolvi-mento, renováveis e não-renováveis, sendo que a

4 A não ser a breve menção do inciso LXXIII do artigo 5º, que permite ao cidadão, por meio de ação popular, intentar a anulação de ato lesivo ao meio ambientee ao patrimônio histórico e cultural.

4 novembro de 2004

O direito ao meioambiente funde-se

aqui com o direito aum desenvolvimentosustentável: uma vidadigna para todos, em

especial para aspopulações pobres

dos países “emdesenvolvimento”

distinção feita aqui tende a se acabar, já que o pa-drão dominante de produção e consumo deve le-var também ao esgotamento dos recursos que seri-am renováveis; ii) como repositório dos rejeitos e dapoluição causados por esse mesmo padrão. Estepadrão de produção e consumo tende a reproduzira pobreza e a desigualdade que, por sua vez, geram,embora sejam secundários, na escala do planeta,maior pressão sobre os recursos e maiores impactossobre o meio ambiente.

O direito ao meio am-biente funde-se aqui como direito a um desenvol-vimento sustentável: umavida digna para todos, emespecial para as popula-ções pobres dos países“em desenvolvimento”,com acesso aos serviços es-senciais e um padrão deconsumo que preserve apossibilidade da humanidade futura garantir assuas necessidades. Ao conjugar o direito ao meioambiente com o direito ao desenvolvimento sus-tentável, reivindica-se o direito a um desenvolvi-mento próprio, que assegure uma vida digna paratodos e todas e garanta uma relação ética, sus-tentável e democrática com o meio ambiente.

A Constituição Brasileira de 1988, ao definir omeio ambiente como “bem comum”; a Convençãoda Biodiversidade, ao mencionar direitos coletivosde populações tradicionais sobre a biodiversidade;a Convenção sobre Mudanças de Clima, ao cha-mar as Partes à responsabilidade “para com o siste-ma climático em benefício das gerações presentes e fu-turas da humanidade” (artigo 3. 1) reconhecem,cada uma a sua maneira, que o direito ao meio am-biente é um direito difuso, comum a todos e todas,desde uma comunidade local até a humanidade noseu conjunto, e que, em tese, todas as estratégias dedesenvolvimento e todas as formas de apropriaçãodos recursos naturais e do meio ambiente devem sesubordinar a esse princípio. Além dos que são dire-

tamente atingidos, todos os habitantes de um de-terminado local, região, país ou do mundo são afe-tados no seu direito ao meio ambiente. As popula-ções da Amazônia que protestam contra as viola-ções ao seu direito ao meio ambiente, quando a flo-resta está sendo derrubada, defendem os direitosde todos os amazônidas e da população de umaparte ponderável das Américas, pois odesmatamento influencia o clima e o regime dechuvas nessas regiões.

Falamos de direito “difuso” no sentido de coleti-vo, e não no sentido de que não haveria sujeitosidentificáveis desse direito. O problema, como mos-tra o professor Carlos Marés, é que os sujeitos cole-tivos são freqüentemente “invisíveis”. Diz o autor:“os direitos coletivos são invisíveis ainda hoje. Cadavez que são propostos ou reivindicados, édesqualificado o seu sujeito... Sendo assim, no uni-verso do direito individual, tudo que seja coletivo éestatal, ou omitido, ou invisível”. Com a Constitui-ção de 1988, começa a haver mudanças: são reco-nhecidos os direitos coletivos dos povos indígenas,dos quilombolas. Marés afirma: “Talvez, de todos,o mais relevante direito coletivo criado foi o estabe-lecido ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do, elevado à categoria de bem jurídico e, portan-to, apropriável juridicamente de forma coletiva,conforme o artigo 225” 5 .

Perpetuação da injustiça ambientalConvém fazer uma advertência. Aqui, nos con-

centraremos na avaliação do Executivo federal, masressalvamos que a efetivação dos direitos humanos,econômicos, sociais, culturais e ambientais é umalonga marcha que envolve, como já dito, todos ossetores: Executivos, Legislativos, Judiciários e socie-dade; e essa efetivação se dá ao longo do tempo.Portanto, o atual Executivo federal não pode ser oúnico bode expiatório da profunda injustiça reinanteno país. Esperava-se dele, porém, mais sinaisanunciadores de novos tempos.

É uma crueldade lembrar que o plano de gover-no do PT previa “inclusão social com justiça

5 Marés de Souza Filho, Carlos Frederico. Os direitos Invisíveis. Texto preparado para o evento “Direitos Humanos no Liminar do Século XXI”, módulo III,realizado no Centro Cultural Maria Antônia, São Paulo, em 20 de maio de 1997.

5novembro de 2004

Exportar a qualquercusto para atender aos

imperativos do ajustemacroeconômico eproduzir a qualquer

custo para crescer eassim fornecerempregos sãocaminhos que

encontram-se nodesprezo pelascondicionantes

ambientais e sociais

5

ambiental”. E dizia: “O governo Lula trabalhará paraum novo padrão de desenvolvimento com crescimentoeconômico, inclusão social e justiça ambiental, demodo que, resguardando o direito das gerações futu-ras, todos tenham acesso justo aos recursos naturais”6 .Por isso, já que o governo não é só da coalizão quesubescreve o programa, e que os assinantes diriamque governo exige responsabilidade, é a definiçãode injustiça ambiental, colocada no início, que vaiservir de referência a nos-so panorama?7 . Portanto,desde já, vale reiterar quea enorme injustiçaambiental é oriundaprincipalmente do mo-delo de desenvolvimentodominante, combinadocom a tradição de 500anos de devastação do ter-ritório, associada à escra-vidão e perpetuada nodesprezo manifestado atéhoje para com as classessubalternas.

Num quadro mundial em que as grandes em-presas transnacionais e o mercado financeiro con-seguiram colocar a política a seu serviço, não é de seadmirar que o atual governo tenha colocado a esta-bilidade macroeconômica no centro da sua políti-ca. Dois elementos desta política têm um efeito de-vastador: as metas de superávit primário que limi-tam os investimentos, em particular os destinadosaos ministérios periféricos, como os do Desenvolvi-mento Agrário, da Cidade e do Meio Ambiente,levando a um catastrófico contingenciamento derecursos; e a total prioridade dada às exportações,em particular ao agronegócio.

No governo, coexiste com essa linha voltada para aestabilidade uma corrente, liderada pelo BNDES, queprivilegia o crescimento econômico e quer desenvol-ver para tal um projeto nacional. O Plano Plurianual

– PPA - seria a expressão desse setor. Porém, concor-damos com Henri Acselrad, na avaliação de que “umamesma lógica parece unir, no atual momento, essas duascorrentes no que diz respeito às estratégias produtivas - alógica da preferência por um crescimento centrado noagronegócio exportador”.8 Exportar a qualquer custopara atender aos imperativos do ajustemacroeconômico e produzir a qualquer custo paracrescer e assim fornecer empregos são caminhos queencontram-se no desprezo pelas condicionantesambientais e sociais. Repetidas vezes, o presidente ealtas figuras do governo e do PT afirmaram que o meioambiente não pode impedir o crescimento.

As consequências para a população rural e flores-tal são enormes. A mensagem do crescimento é cap-tada, seja pelo capital moderno ou pelos tradicionais“aventureiros” descritos por Sérgio Buarque deHolanda9 , como um sinal de que “liberou geral”.

As terras de posse de pequenos produtores e depopulações tradicionais e as susceptíveis de seremdestinadas a assentamentos voltados para a agricul-tura e agroflorestação sustentáveis tornam-se cobi-çadas e escassas. Pela primeira vez, reduzem-se ter-ras indígenas, como aconteceu com a reserva Baú,no Pará, e com a Terra Indígena - T.I. - Raposa Ser-ra do Sol. Dá-se um freio no reconhecimento dereservas extrativistas. São 17 reservas extrativistas comprocessos concluídos na Casa Civil da Presidência.É o caso da Reserva Extrativista “Sempre Viva”, lo-calizada no município de Porto de Moz, entre Xingue Amazonas. É certo que envolve o governo do Pará,mas o governo federal não manifesta a sua força.Apesar de existir um estoque importante de terraspúblicas no Mato Grosso, o Incra não consegueviabilizar os assentamentos necessários à “reformaagrária” no Estado; não mais do que, por exemplo,o Projeto de Assentamento Sustentável de Anapú(PA) ou o Assentamento Extrativista de SãoRaimundo das Mangabeiras (MA).

Visitei, em agosto passado, em Canabrava (MT),o que seria o “Assentamento Liberdade”. Os virtu-

6 Programa Coligação Lula Presidente PT/PC do B/PL/PMN/PCB.7 Os casos que circulam na Rede de Justiça Ambiental ( www.justicaambiental.org.br) e, em particular, as visitas realizadas pelo autor no quadro do seu mandatode relator nacional para o direito humano ao meio ambiente em 2003 e 2004 servem par ilustrar o texto, mas não permitem uma avaliação completa da situaçãono país.

8 Descaminhos da riqueza insustentável. Brasil de Fato, setembro de 2004.9 Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 26ª edição, 1995.

6 novembro de 2004

Poucas dezenas demilhares de famílias

estão sendoprecariamente

assentadas, e outras,mais numerosas,

continuam saindo docampo ou se vêemimpossibilitadas de

produzir

ais assentados - miseravelmente acampados - nãoconseguiram tomar posse da terra prometida, ocu-pada em particular por produtores de soja. Umdesses grileiros teria declarado a um acampadoque, enquanto o Maggi fosse governador, essa ter-ra nunca seria deles. O governador, aliás, já decla-rou que no Mato Grosso não há terras públicas,apenas terras de produtor. O governo federal assi-na embaixo quando exclui da Raposa Terra do Sola área grilada porarroizeiros, que a ocupa-ram depois da demarcaçãoda reserva. Os Xavantesre-ocuparam, em agosto,parte da sua terra ances-tral, Marãwatsede (MT),que se tinha tornado co-nhecida como fazendaSuia-Missú. Será que ospolíticos locais e os possei-ros (leia-se, fazendeiros)rebelados contra os Xavantes, a Justiça Federal e ogoverno federal se sentiriam tão seguros se não fosseo clima criado?

Frente à bandeira desfraldada do crescimentoe na ausência de políticas públicas que possamconfigurar uma alternativa real ao modelo deagricultura agroexportadora subordinado àagroindústria, poucas dezenas de milhares de fa-mílias estão sendo precariamente assentadas, eoutras, mais numerosas, continuam saindo docampo ou se vêem impossibilitadas de produzir.Lá onde predominam os empreendimentosagroexportadores, essas agressões se dão de modorápido e brutal. Em três anos, em Santarém (PA),onde se localiza o porto da Cargil para a expor-tação da soja, dezenas de comunidades rurais doplanalto santareno foram varridas do mapa coma chegada da soja. Bem perto, na Transamazônica,é grande a preocupação das lideranças das orga-nizações dos colonos, embora estejam se voltan-do para uma agricultura sustentável, menos de-pendente de insumos externos. Elas estimam que,se o governo não promover políticas públicas paraa agricultura familiar e o agroextrativismo na re-

gião a curto prazo, as famílias do interior não con-seguirão resistir à pressão dos grandes produto-res de grãos.

No norte de Minas Gerais, empresas de planta-ção de eucaliptos para a produção de carvão vege-tal destinado à siderurgia compram terra ou obtêmconcessões de terras públicas nas chapadas e estran-gulam comunidades, como pude observar em RioPardo de Minas e Curvelo. Não sobram terras sufi-cientes para esses “geraizeiros”, acostumados a com-binar a produção nas veredas com o extrativismo e/ou a criação de gado na chapada. As fontes de águasecam ou são poluídas. Encurralados, ou se tornamempregados dessas empresas ou vão se empregar nacolheita do café ou vão para a cidade.

O mesmo destino está se desenhando para co-munidades de pescadores artesanais e coletoresde mariscos do litoral, cuja sobrevivência depen-de de manguezais. A nova Secretaria de Pescaincentiva a aquicultura, área produtiva na qual oBrasil, deitado no leito esplêndido dos seus nu-merosos rios - e lagos - antigamente muitopiscosos, não se desenvolveu. Seria correto se aju-dasse a criar uma aquicultura baseada em em-preendimentos familiares e, ao mesmo tempo,desenvolvesse políticas destinadas à pescaextrativa. Mas priorizou a carcinicultura, produ-ção voltada para a exportação, bastante proble-mática quando deixada à livre iniciativa, como éo caso. São empresas que dominam a cadeia pro-dutiva, das quais dependem os pequenos produ-tores, que, aliás, são minoria. Os produtores decamarão ocupam áreas de coleta dos moradoreslocais, invadem apicums e manguezais, protegi-dos pela legislação, e, obcecados peloprodutivismo a tudo custo, poluem o ambiente.

Chegam denúncias de todo o litoral nordes-tino, da Bahia ao Maranhão. Impressiona a si-tuação dos moradores de Curral Velho (muni-cípio de Acarau, CE), vítimas, recentemente (se-tembro 2004), de violentas agressões por partede capangas (policiais em ação fora da sua juris-dição) de empresários, quando defendiam opatrimônio público que estava sendo apropri-ando. Os índios Tremembé, também localizados

7novembro de 2004

Os rumores sobre aretomada e a

expansão da energianuclear aumentam.

As grandesbarragens voltam a

ser prioridade dogoverno

no litoral oeste do Ceará, foram igualmente ví-timas de agressões, por parte de policiais que es-tavam a serviço de empresários da carciniculturaque desmata seus manguezais, carnaubais e co-queirais e lhes impede o acesso ao mar e aos rios.

O turismo, apresentado com razão como ati-vidade econômica de grande potencial, gerado-ra de empregos, é frequentemente tratado comoatividade “mineradora”, promotora de tal mo-dificação do meio ambi-ente que, a prazo maisou menos distante, tal outal região ou empreendi-mento perderão seu in-teresse. Conjuntamente,tende a deslocar popula-ções, lhes retirar seusmeios de subsistênciasem lhes garantir os pro-metidos empregos, como se verificou em váriosempreendimentos no Ceará. O Prodetur, emparticular, é freqüentemente associado a esse tipode problema.

Em Rio Formoso, Pernambuco, foiconstruído com recursos do Prodetur um siste-ma de saneamento urbano incompleto, que tevecomo resultado a destruição da fauna dosmanguezais e, conseqüentemente, retirou dascoletoras de mariscos e dos pescadores a sua sub-sistência. No município de Camocim, no Cea-rá, as comunidades de Tatajuba travam uma lon-ga batalha contra gri le iros. Um forteencorajamento para elas é o que ocorreu com avizinha comunidade de Jericoacoara, que ficoudesestruturada e perdeu o bem-estar que haviaquando vida e trabalho estavam integrados como meio ambiente. A perspectiva da construçãode um aeroporto internacional na região vai re-forçar essa tendência à expulsão e àmarginalização das comunidades litorâneas.

O PPA apresentado pelo governo Lula apre-sentava duas novidades: à diferença dos planosanteriores (Brasil em Ação e Avança Brasil), que-ria tratar obras de infra-estrutura dentro de umavisão de desenvolvimento nacional e não só den-

tro do marco da inserção do Brasil na economiamundial. Além disso, abria espaço para o deba-te democrático, com a participação da socieda-de. O tempo passou. A Inter-redes, que con-grega uma série de redes e entidades da socie-dade civil, afastou-se do processo por conside-rar que a sua participação era somente de enfei-te. E o PPA voltou à mesmice.

A ministra de Minas e Energia, DilmaRoussef, com a sua determinação firme de seadequar ao modelo de crescimento e desenvol-vimento promovidos pelo governo, conseguiuque recuássemos no plano energético em váriasfrentes. Os avanços verificados com o Proinfa,programa de incentivo às energias alternativas,ainda são tímidos pois o encorajamento à pro-dução descentralizada e democratizada da ener-gia é insuficiente para tal.

Os rumores sobre a retomada e a expansãoda energia nuclear aumentam. As grandes bar-ragens, excluídas de financiamento pelo BancoMundial depois de uma Comissão Mundial terdemonstrado que seus impactos sociais eambientais negativos ultrapassavam as vanta-gens, voltam a ser prioridade do governo. E,atrás disso, as médias e pequenas barragens, que,na escala do território, talvez não pareçam tãograndes e tão impactantes quanto são na reali-dade (muitas delas, em países europeus, apare-ceriam como monstruosas), se multiplicam. Aquitambém, está dito claramente que o crescimen-to não pode ser freado pelo meio ambiente. Em-presários e o Ministério de Minas e Energia –MME - se unem no protesto contra olicenciamento ambiental, reduzido por eles qua-se que à mera formalidade burocrática, comomostram inúmeros exemplos; e contra o Minis-tério do Meio Ambiente, “inimigo do progres-so”.

Antes mesmo que seja aprovada a barragemhidroelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, as co-munidades e as suas organizações locais, voltadaspara a agricultura e o extrativismo sustentáveis,sofrem discriminação por serem contra o progres-so, ao questionar a barragem por seus prováveis

8 novembro de 2004

Será que o MMEjoga no time dos

“interesseseconômicos”,reforçando a

dicotomia entreministérios

importantes para ocrescimento e outros

da periferia,destinados a

“enxugar o gelo” ?

efeitos devastadores sobre o meio ambiente locale regional, sobre a bacia do Xingu e sobre as suasvidas, como o mostram alguns estudos e o exem-plo de Tucuruí, não muito distante.

O Movimento dos Atingidos por Barragens –MAB - denuncia permanentemente e tenta aju-dar localmente as comunidades atingidas a resistirà multiplicação de obras no país e à maneira comoestão sendo conduzidas. A maioria das comunida-des é de famílias ribeiri-nhas que desenvolveram,ao longo de décadas emesmo de séculos, formasde vida e de reproduçãoem harmonia einterdependência com anatureza. O deslocamen-to dessas comunidadescorta as suas raízes e repre-senta uma violênciainimaginável; violênciacultural tão agressivaquanto a violência explíci-ta que frequentemente a acompanha. Entre deze-nas de casos, visitamos os atingidos pela barragemde Irapê, no rio Jequitinhonhas (MG) e os de Man-so, na Chapada dos Guimarães MT), onde Furnas,no caso de Manso, e a Cemig, no de Irapê, estãoformando uma grande clientela para o programaFome Zero e promovendo o que mereceria serchamado de genocídios culturais.

Poderia se responder que o governo federal nãoestá implicado diretamente em muitos desses em-preendimentos. O governo e, em particular aqui,o MME, é diretor de harmonia e compositor dosamba do “Brasil- grande-outra-vez”. É ele quepode e deve dizer qual é a importância dolicenciamento ambiental e o que deve ser. O Gru-po de Trabalho Energia, do Fórum Brasileiro deONGs e Movimentos Sociais para o meio ambi-ente e o desenvolvimento - Fboms , preocupadocom o grau de desinformação da sociedade sobreos licenciamentos, obteve a documentação sobrevários licenciamentos e os analisou. A conclusão é

a de que existem, sim, “atrasos excessivos nas delibe-rações do Ibama, principalmente por falta de qua-dros para analisar os estudos. Faltam também técni-cos para averiguar as dimensões dos impactos sobre apopulação a ser atingida pela obra. Mas também,há um clima de enfrentamento construído por inte-resses econômicos querendo fazer um curto-circuitonos legítimos processos em prol do meio ambiente enos direitos das populações locais.”10

Será que o MME joga no time dos “interesseseconômicos”, reforçando a dicotomia entre minis-térios importantes para o crescimento e outros daperiferia, destinados a “enxugar o gelo” ? Pois nãonos parece que, fora as questões burocráticas, olicenciamento ambiental seja exagerado. Pelo con-trário, faltam componentes ao licenciamentoambiental. As populações atingidas são considera-das quase que somente como proprietárias, sob umponto de vista produtivo, economicista. Não sãovistas como tendo direitos coletivos, sob o pontode vista socioambiental. Falta, para a tomada dedecisão sobre os empreendimentos, o que o pro-fessor Henri Acselrad chama de “avaliação deequidade ambiental”.

Outra obra extremamente preocupante do pon-to de vista socioambiental é a pavimentação da BR163, a Cuiabá-Santarém. Apesar da abordagemtransversal adotada pela ministra Marina Silva, en-volvendo em particular os ministros e ministériosda Integração Nacional e dos Transportes, e do di-álogo governamental com os setores sociais e em-presariais da região, a preocupação é grande. Aproposta do Grupo de Trabalho interministerial éde inscrever a estrada num “Plano de Desenvolvi-mento Territorial Integrado e Sustentável da Re-gião de Influência da BR 163”. A “Carta deSantarém”, fruto de quatro seminários que envol-veram mais de mil lideranças da região, priorizapara o Plano cinco linhas: Infra-estrutura e servi-ços básicos; ordenamento fundiário e combate àviolência; estratégia e manejo dos recursos natu-rais; fortalecimento social e cultural das popula-ções locais; garantia de proteção das áreas prote-gidas. Além disso, propõe “que a abrangência

10 Regis, Mayron e Switkes, Glenn. Anatomia de um licenciamento. E-mail do Grupo de Trabalho Energia, de 3 de setembro de 2004.

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Há a sensação de queo governo estásubestimandototalmente a

gravidade da situaçãode calamidade emque se encontra o

país, com as pessoase as comunidades

quase quetotalmente

desprotegidas

territorial de impacto da construção da BR 163 con-sidere como região de influência o Norte do MatoGrosso e o Oeste do Pará, incluindo as bacias doXingu, Araguaia, Teles Pires e Tapajós.”11

A situação atual da região é de calamidade. Éuma terra de ninguém, onde a vida e o meio am-biente não têm o menor valor. O bispo do Xingu,Dom Erwin Krautler, em carta às autoridades12 ,aponta como “delitos mais preocupantes...a ocupa-ção desordenada de terra(grilagem), o desmatamen-to ilegal, a exploração ile-gal da madeira, o trabalhoescravo, a superexploraçãode mão de obra”. O queprever para o amanhã,quando se observa o queestá acontecendo com oMato Grosso hoje e quese sabe que essa dinâmicaselvagem que está se repe-tindo; quando é lembra-da a “negociação” amigá-vel que permitiu reduzir a Terra Baú, como já men-cionado, e que o governo de Mato Grosso, comum certo sucesso, consegue promover a cultura dasoja em terras indígenas do estado; quando se vêgrileiros que destruíram ilegalmente a floresta egrilaram terras se apresentarem hoje como “legíti-ma” associação de produtores, habilitada a discu-tir o futuro da região? O Plano proposto pelo Gru-po de Trabalho Interministerial e a sociedade re-gional é factível?

O Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental- EIA/Rima - prévios ao asfaltamento da estrada,aos quais tivemos acesso, estão em contradição como Plano quando analisam somente a faixa da estra-da e consideram os habitantes da região somentesob sua condição de produtores. O bispo, na mes-ma Carta, afirma que a fiscalização do Ministériodo Trabalho e da Polícia Federal sobre o trabalhoescravo é insuficiente e que não existem meios detransporte adequados para intervir em época de

chuva. Quando se sabe a prioridade dada pelo go-verno ao combate ao trabalho escravo e o traba-lho pioneiro e abnegado das equipes de fiscaliza-ção das Delegacias Regionais do Trabalho, pode-se imaginar o que acontece em outras áreas vitaispara que os DhESCs sejam alcançados, particu-larmente o direito humano ao meio ambiente, ou,pelo menos, que as injustiças sejam combatidas.

De fato, o Incra, o Ibama, a Funai e a PolíciaFederal, instituições federais que estão presentesno campo, não conseguem defender, no âmbitodas suas responsabilidades, os direitos das popula-ções com as quais lidam. Além da corrupção fre-quentemente denunciada, afeta a sua capacidadede intervenção efetiva a falta de meios financeirose de recursos humanos. A impossibilidade, nãoraras vezes, de fazer valer a lei e as suas decisõesfragiliza o poder federal e o Legislativo. A ausên-cia ou omissão é interpretada como um sinal deque, de fato, tudo é permitido. A sua cumplicida-de, voluntária ou não, com a “bandidagem”, re-força o sentimento de um estado a serviço dos po-derosos e que todos os políticos se valem disso. Valeacrescentar a insuficiência de procuradores fede-rais, de fiscais do trabalho etc.

Há a sensação de que o governo está subesti-mando totalmente a gravidade da situação de ca-lamidade em que se encontra o país, com as pesso-as e as comunidades quase que totalmentedesprotegidas. Basta lembrar o trágico episódio domassacre de garimpeiros na terra indígenaRoosevelt, dos Cinta-Larga. Um povo que sofreugenocídio, espoliado das suas riquezas, acuado nassuas terras, acusado numa série de processos, fi-cou por um longo tempo totalmente desprotegidopelo poder público, à exceção de uns poucos ab-negados funcionários da Funai, no local.

A transposição do rio São Francisco será, se exe-cutada, inscrita no rol das maiores injustiçasambientais cometidas contra o povo do semi-ári-do nordestino. Nesses últimos 20 anos, foram cres-cendo e se consolidando centenas de experiênci-as, alcançando milhares de sertanejos e pequenos

11 Carta de Santarém, 31 de março de 2004.12 Carta do Bispo do Xingu às autoridades, denunciando a situação da região. Altamira, 1º de julho de 2004.

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produtores rurais que buscam assegurar a sobre-vivência das famílias no seu ambiente, numa pers-pectiva de convivência com este, tirando o foco daágua como questão única na produção a partir deuma abordagem agroecológica. Resistir a perío-dos de seca se tornou para muitos uma realidade.Tal movimento encontrou um grande reforço nacampanha iniciada por ONGs, ampliada pela Ar-ticulação do Semi-Árido - ASA, e assumida agorapelo governo com a construção de um milhão decisternas.

Com a transposição, obra digna dos faraós e dosimperadores chineses, enormes recursos serão sub-traídos da população pobre do sertão para benefi-ciar, além de poucos centros urbanos, indústrias eo “hidronegócio”, nas palavras de RobertoMalvezzi13 . Vale chamar a atenção para o que estáacontecendo na região de Petrolina, pólo de pro-dução de frutas com irrigação intensiva. Observa-dores locais notam um aumento considerável decâncer, atribuído ao uso descontrolado depesticidas.

Depois de mencionar vários empreendimentos,cabe aqui fazer uma distinção entre empreendi-mentos privados, em que a responsabilidade doEstado está em melhorar e fazer aplicar a legisla-ção, e empreendimentos públicos, em que a suaresponsabilidade está diretamente engajada. OEstado é, frequentemente, o primeiro violador dosDhESCs no Brasil. Além dos casos mencionados,vale lembrar os quilombolas de Alcântara (MA),deslocados das suas terras pela base aeroespacial,sem que fossem levadas em conta as característicassocioculturais, produtivas e extrativistas dessas co-munidades14 .

Mesmo atividades agrícolas consideradas porcertos setores e pela opinião pública como virtuo-sas do ponto de vista ambiental podem levar amaior injustiça socioambiental. É o caso da entra-da do Brasil na produção de energia de biomassa.O aumento do consumo de álcool combustível noBrasil e as perspectivas de exportação fazem com

que, possivelmente, tenhamos que assistir a umnovo ciclo de expansão da cana-de-açúcar basea-do sobre a grande propriedade; em detrimento,mais uma vez, da reforma agrária. Em particular,os usineiros falidos da Zona da Mata nordestina,de quem o Estado deveria faz tempo ter recupera-do as suas terras pelas dívidas públicas acumula-das, se vêem agora proclamados, ao lado dosplantadores de eucaliptos e de pinus, como salva-dores do clima.

Confunde-se energia renovável, a que pode serproduzida por longos tempos a partir da biomassa,com energia sustentável. De fato, não se leva emconta o uso de agrotóxicos, o desgaste dos solos, ouso das águas, etc. , nem o fato de que se forne-cem empregos sem qualificação e perniciosos à saú-de humana e que se concentra mais uma vez a pro-priedade da terra. Os trabalhadores rurais da Zonada Cana, que batalham por uma reforma agráriana região, diversificando a agricultura e produ-zindo a água (de qualidade) que começa a fazercruelmente falta, estão de novo - ou sempre - sen-do apontados como os bandidos.

Na mesma linha, a produção de biomassa parao biodiesel tem que ser vista com cuidado. Embo-ra o governo trabalhe para que seja baseada sobrea produção familiar e que não se tornemonocultura na propriedade familiar, há sinaispreocupantes, tais como a denúncia vinda deCáceres (MT). A Central de Compra de Mamona– CCM - distribuiria gratuitamente um agrotóxicoaltamente tóxico chamado Endosulfan aos produ-tores de mamona. Esse organoclorado é de usorestrito.

A questão dos agrotóxicos mereceria um trata-mento à parte, dada a sua importância. O profes-sor e médico Ângelo Trapé15 , da Unicamp, estimaque há 1,5 milhão de trabalhadores intoxicadosno país. Além de afetar a vida e a saúde, o efeitodo uso prolongado dos agrotóxicos sobre os solose as águas ainda é pouco analisado. Há muitasqueixas, mas as pessoas e as comunidades justamen-

13 Malvezzi, Roberto. Geografia da sede e hidronegócio. CPT nacional. Outubro de 2004.14 Ver Saule Jr, Nelson (relator nacional para o direito humano à habitação) e Osório, Letícia Marques (assessora nacional). Direito Humano à Moradia Adequada

e à Terra Urbana. In: Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, 2003. Plataforma brasileira DhESCs. Recife, Gajop, 2003.15 As vítimas do agrotóxico. O Globo, em 29 de agosto de 2004.

11novembro de 2004

Pela pressãoexercida para

descaracterizar edesqualificar olicenciamento

ambiental, pode-seter dúvidas se

empreendimentosindustriais garantirão

o direito ao meioambiente dos seustrabalhadores e da

população do seuentorno

te denunciam a dificuldade e, mais frequentemen-te, a impossibilidade de assegurar a realização deexames de saúde e de análises químicas e biológi-cas da poluição que as afeta. Ocorrem ondas desuicídio nas áreas de produção do fumo e mortan-dades de peixes em áreas de produção da soja, deplantação de eucaliptos, de poluição orgânica equímica de rios por cidades e indústrias que afe-tam ribeirinhos e pescadores.

A Defensoria das Águasmenciona os casos de umaunidade industrial daVotorantim, em TrêsMarias (MG); da FundiçãoTupi e da Indústria Schultz,na região de Joinville, queliberam fenol, e os casos deCataguases e daPetrobrás.16 A legislaçãoainda é às vezes insuficien-temente restritiva e, sobre-tudo, não há o necessáriomonitoramento e puni-ções. Falta entrosamentoentre a Federação e os Es-tados. Há vários casos emblemáticos: o passivoambiental deixado, na baía de Sepetiba, no Rio17 ,pela empresa falida Ingá; na Baixada Santista, pelaRhodia; em Paulínea, pela Shell, A respeito desteúltimo, a relatora nacional para o direito humano àsaúde, Eleonora Menicucci de Oliveira, denunciaa “ausência total de políticas públicas preventivas dedegradação ambiental e para remediação de áreas epopulações já contaminadas (...) Ausência de políti-cas públicas articuladas entre saúde e meio ambientepara resíduos, com destaque para resíduos hospitala-res. Ausência de política nacional em saúde dos/dastrabalhadores/as que especifique as atribuições do SUSnesta área, nas três esferas do governo, incorporandoas relações de gênero, raça/etnia.”18 .

Pela pressão exercida para descaracterizar edesqualificar o licenciamento ambiental, pode-se ter dúvidas se empreendimentos industriaisgarantirão o direito ao meio ambiente dos seustrabalhadores e da população do seu entorno.Tal questão já se coloca em relação, por exem-plo, à empresa Laminadora e GalvanizadoraVeja do Sul, em São Francisco do Sul (SC), eem relação aos empreendimentos siderúrgicose de gás-químico de Corumbá e Ladário (MS).A posição brasileira sobre o banimento doamiante 19 - criou-se uma comissãointerministerial em lugar de banir o produto(o asbesto já foi definitivamente banido de 42países) - é muito grave, pois afeta trabalhado-res que “vendem a sua saúde” e também inú-meras pessoas e famílias que têm contato como amiante ou com produtos em que o mesmoestá presente. No futuro, milhares de pessoaspoderão encaminhar ações de ressarcimentocontra o Estado, como no caso, por exemplo,da Cidade dos Meninos (RJ), e ainda na ques-tão do combate à dengue, efetuado com pro-dutos altamente tóxicos.

Enfim, convém lembrar que milhões de mo-radores urbanos e suburbanos enfrentam con-dições de vida social e ambientalmente profun-damente injustas. Moradias em áreas de riscode todo tipo, ausência de saneamento, favelase bairros sem a mínima infra-estrutura, polui-ção sonora, ilhas de calor, transporte inadequa-do, etc. compõem um quadro perverso, resul-tado de um processo histórico acelerado nos30 últimos anos. A União se omitiu e ainda seomite pois compete a ela “instituir diretrizespara o desenvolvimento urbano, inclusive ha-bitação, saneamento básico e transportes urba-nos. As diretrizes vão nortear as políticas urba-nas a serem implementadas pela União, Esta-dos e municípios.” 20

16 Defensoria das Águas. O estado real das águas do Brasil 2003/2004. 2/09/2004.17 Ver Mapa dos conflitos ambientais no Estado do Rio. Projeto IPPUR/Fase/Seema RJ. CD-Rom, Fase, 2004.18 Oliveira, Eleonora Menicucci de (relatora nacional) e Xavier, Lúcia Maria (assessora nacional). Direito Humano à Saúde. In: Relatório Brasileiro sobre Direitos

Humanos Econômicos, Sociais e Culturais 2003. Plataforma brasileira DhESCs. Recife, Gajop, 2003.19 Ver Rede Virtual-cidadã pelo banimento do amiante na América Latina e Carta ao Presidente da República e ao Ministro-Chefe da Casa Civil. Sindicato

Químicos Unificados (Campinas - Osasco - Vinhedo). 14 de setembro de 2004.20 Saule Jr, Nelson e Osório, Letícia Marques. Op.cit.

12 novembro de 2004

Poucos sinais positivosAo longo da leitura, o leitor poderia ter inda-

gado por que não se salienta tal ou tal coisa positi-va, para fazer justiça ao programa da coalizão. Pa-receu-me que o quadro não deveria ser ameniza-do com cores suaves que poderiam nos iludir. Exis-tem, de fato, múltiplos projetos e programas, al-guns até em fase de execução, que não reduzemem nada a injustiça ambiental reinante, mas po-dem ajudar a combatê-lano futuro.

Na área da moradia, acriação do Ministério daCidade e a orientaçãodada à sua ação represen-ta um presságio excelente.A criação do ConselhoNacional de Habitação,do Sistema Nacional deHabitação de InteresseSocial e do Fundo Nacio-nal de Habitação de Inte-resse Social representaminiciativas promissoras, a depender, porém, da efe-tiva mobilização e liberação dos recursos públicos.

O Ministério do Desenvolvimento Agrário, como incentivo à orientação para uma reforma agrá-ria e uma agricultura familiar sustentáveis, seguena boa direção do ponto de vista do direito huma-no ao meio ambiente. As compras públicas da pro-dução familiar, o seguro desemprego, a vontadede fortalecer a assistência técnica são exemplos po-sitivos, apesar de que também aqui faltam verbas.

O Ministério do Meio Ambiente elaborou ex-celentes planos, em particular para a Amazônia.Se a criação de reservas extrativistas está parada, atransformação do Centro Nacional das PopulaçõesTradicionais - CNPT - em diretoria do Ibama tal-vez dê um novo alento aos agroextrativistas. Te-mos o Plano Amazônia Sustentável, o de combateao fogo no arco do desmatamento e o plano dedesenvolvimento sustentável da BR 163. Seriaampliado o Pró-ambiente, programa de crédito eapoio aos pequenos produtores e agroextrativistas,que leva em conta os serviços ambientais que pres-

O Ministério doDesenvolvimento

Agrário, com oincentivo à

orientação para umareforma agrária e

uma agriculturafamiliar sustentáveis,segue na boa direçãodo ponto de vista do

direito humano aomeio ambiente

tam. O Programa Nacional de Florestas nasce coma preocupação explícita de assegurar um lugar paraas comunidades extrativistas da floresta. No entan-to, à exceção do último, novo demais para que sejaquestionado, embora já tenha sido violentamenteatacado, inclusive com má fé, o discurso parecemais bonito do que a realidade. Somente o suces-so da estratégia da transversalidade, defendida ecolocada inicialmente em aplicação pela ministrado Meio Ambiente, poderia modificar o quadroatual, à condição que envolve o núcleo duro dogoverno, os estados e a sociedade.

São duas condições relevantes. Tentou-se mos-trar aqui o papel da política de estabilidade e cres-cimento. Quanto à sociedade, é inquietante verque a maioria das organizações da sociedade ava-lia que a multiplicação de conselhos não resultaem influência real sobre as políticas em apreço.Não é por falta de boas idéias e experiência da partedas organizações. No Brasil de hoje, há milharesde iniciativas da sociedade que buscam de muitasmaneiras a realização dos DhESCs.

Convém fazer um melhor e mais completo le-vantamento das iniciativas governamentais existen-tes, para não ser injusto com os numerosos qua-dros e funcionários que, em muitos ministérios,tentam arrancar a camisa de força na qual foramcolocados. Mesmo afirmando aqui que os resulta-dos são poucos e muito setoriais, os mesmos nãodevem ser desprezados, pois são sementes, ao ladodas lutas da sociedade, para a constituição de umBrasil social e ambientalmente mais justo. Enfim,foi consciente a decisão de não mencionar aqui oLegislativo federal nem o Judiciário. Talvez sejamelhor, pois poderia acentuar um sentimento demelancolia do qual só se escapa com a forte con-vicção de que a história não terminou.

Jean Pierre Leroy Coordenador executivo do

Projeto Brasil Sustentável e Democrático/Fase,membro da Rede de Justiça Ambiental