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BOLETIM CEDES – ABRIL-JUNHO 2013 – ISSN 1982-1522
Separação de Poderes no Brasil Contemporâneo
Gisele Cittadino*
Helena Colodetti**
No Brasil contemporâneo, o clássico tema da separação dos poderes está imperiosamente
associado à discussão relativa ao grau de controle exercido pelos juízes sobre as questões
políticas vinculadas aos atos dos poderes Executivo e Legislativo. É exatamente por isso que, nos
últimos quinze anos, temas como “judicialização” da política, “judiciabilidade” de atos políticos,
ativismo judicial ou governo dos juízes tanto têm frequentado não apenas os textos acadêmicos
como, especialmente, as páginas dos jornais. Não resta dúvida que a Constituição de 1988,
representando aquilo que já foi designado como a “força do direito”1, exerce um papel
significativo nesses processos na medida em que viabiliza uma cidadania juridicamente
participativa, que provoca o Poder Judiciário no sentido de buscar a efetivação das normas
garantidoras dos direitos fundamentais2. No entanto, não podemos deixar de igualmente
considerar aquilo que Rachel Nigro3, de maneira muito apropriada, designou como a “maldição
de Garapon”4, ou seja, como o Poder Judiciário pode ser responsável pelo enfraquecimento da
democracia quando pretende exatamente atenuar as falhas do sistema representativo.
* Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ (1998) e Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-
Rio. **
Doutoranda em Direito pela PUC-Rio e Professora da PUC-Rio. 1 Ver, a respeito, Pierre Bouretz, La Force du Droit: panorama des débats contemporains (Paris: Éditions Esprit,
1991). Bouretz aborda nesse texto aquilo que designa como “movimento de retorno ao direito”, no sentido de que os
ordenamentos normativos podem deixar de ser vistos ou como instrumentos de dominação da classe dominante ou
como mecanismos disciplinadores de forças sociais potencialmente desestabilizadoras. 2 Luis Felipe Salomão, ministro do Superior Tribunal de Justiça, em recente artigo (“Juízes eficientes?”) publicado
(25.11.2012) no O Globo nos informa – não sem antes afirmar que na avaliação de muitos estudiosos, “o século XXI
é do Judiciário” – que em 1988 foram ajuizadas cerca de 350 mil novas ações em todos os níveis do sistema
judiciário. Depois de 24 anos da promulgação da “Constituição Cidadã”, esse número foi multiplicado mais de 75
vezes, o que, sem dúvida, representa um crescimento vertiginoso. No ano de 2011, 26 milhões de novas ações
ingressaram em nosso sistema judicial e está correto o ministro ao afirmar na conclusão do seu texto que sem
democracia não haveria possibilidade do Judiciário vicejar. Acrescentou ainda que o assunto é amplo e complexo e
que não teve a pretensão de esgotá-lo. De nossa parte, gostaríamos apenas de considerar o crescimento econômico
experimentado pelo país na última década como uma das chaves interpretativas desse processo. 3 NIGRO, Rachel. A decisão do STF sobre a união homoafetiva: uma versão pragmática da linguagem
constitucional, in Revista Direito, Estado e Sociedade, n° 41, agosto-dezembro de 2012, PUC-Rio. 4 Ver GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. O guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
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A interligação entre autoritarismo e juridificação, como representação de um déficit
democrático, é um fenômeno presente na história brasileira notadamente nas pautas
modernizadoras e autoritárias tanto no Estado Novo como ao tempo da Ditadura Militar. O
Estado reformador organizado nesses períodos de nossa trajetória política utiliza instrumentos de
engenharia social em que o direito aparece como um mecanismo eficaz de assédio da sociedade
por uma racionalidade tecnocrática, cujo objetivo é dar rumo e definição ao projeto nacional
engendrado por elites iluminadas. Queremos aqui ressaltar o nosso processo histórico marcado
pelo já consagrado termo das “revoluções pelo alto”. Não estamos a afirmar, no entanto, que no
Brasil não conseguimos escapar de alguma espécie de sina ou destino trágico em que a
sociedade, por um lado, não consegue levar adiante seus impulsos de auto-organização
provenientes da periferia do poder e o Estado, por outro, é o exclusivo intérprete da vontade
nacional. Para usar outra máxima do pensamento social brasileiro, somos capazes, por vezes, de
“tirar vantagem do atraso”, quando, mesmo no autoritarismo, movimentos de inclusão, ainda que
sejam provenientes do voluntarismo estatal, acabam por gerar cidadania.
Com a promulgação da Constituição de 1988, representando a retomada do direito como
instrumento de consolidação da cidadania, que, ao mesmo tempo, exclui o modelo das inclusões
autoritárias e transfere para o povo as decisões políticas sobre os modos de constituição do seu
próprio futuro, podemos identificar tanto o “movimento de retorno ao direito”, como a
reanimação da arena republicana. Não é por outra razão que a luta pela redemocratização
significou no Brasil a reconquista da capacidade da sociedade de ativamente refundar uma nova
comunidade jurídico-política, eliminando seus velhos e malfadados prepostos e estabelecendo o
fim de uma regência desempenhada por elites vanguardistas. A nossa Constituição, impregnada
de princípios de moralidade política e vista como um plano de ação para a efetiva implantação
dos valores democráticos que previu, não apenas lista de direitos, mas também define políticas
públicas e mecanismos processuais capazes de garanti-los e realizá-los na experiência
republicana.
É precisamente esse fortalecimento do discurso dos direitos implementados através dos
procedimentos de acesso à justiça que pode explicar a ampliação da esfera de ação do Poder
Judiciário nesse novo rearranjo republicano, o que termina por revelar porque o Legislativo
perde a exclusividade nas vocalizações dos anseios da sociedade. Mais do que isso, há um
cenário de descrença na capacidade do Parlamento de gerar virtudes cívicas atrelado à descoberta
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pelas forças sociais de que novos canais de ação política podem passar ao largo do Legislativo ou
do Executivo. A criação desse novo “espaço público judicial”5 revela um movimento que vem de
baixo, da sociedade para o Estado. As consequências desse processo traduzem aquilo que boa
parte da literatura especializada reconhece como a dimensão positiva da “judicialização da
política”, não apenas em face do reforço dos direitos fundamentais e do surgimento de uma nova
arena pública, mas sobretudo da fratura na dimensão aristocrática da justiça e do empoderamento
do cidadão na busca, individual ou coletiva, da concretização dos seus direitos6. Estamos diante,
nesses casos, de uma cidadania que, no anseio de implementar uma Constituição repleta de
princípios de moralidade pública, instrumentaliza – ela mesma, e não mais, como no passado, o
Estado – uma nova concepção de direito interventor.
Não sejamos, todavia, ingênuos a ponto de confundir essa “judicialização da política”
com uma espécie de “judicialização” distorcida, não mais vinculada a altos índices de controle
da constitucionalidade das leis – afinal, não há problema quando uma Corte é ativa porque revisa
sistematicamente os atos legislativos, sendo pouco deferente às instâncias majoritárias. Mas
quando essa mesma Corte se torna capaz de estabelecer e ditar o ritmo da agenda política
nacional, seja porque se considera o principal intérprete do compromisso constitucional, seja
porque acredita que tem a tarefa de dar “a última palavra”7 sobre o tipo de sociedade que
queremos ser, essa distorção da judicialização revela-se nos traços autoritários do chamado
“ativismo judicial”. Para além dos pudores da clássica teoria da separação dos poderes ou da
afronta ao princípio majoritário, uma Corte ativista desapega-se da sua função de promoção e
salvaguarda da deliberação democrática e passa a atuar como elite do saber jurídico, quando
automaticamente assume o papel de regente de uma soberania infantilizada8. Em outras palavras,
o Poder Judiciário hipertrofia seu aspecto gerencial de resolução de contingências, isto é, sua
dimensão de “administração da justiça” e se transforma em meio de controle social, através da
hermenêutica constitucional. Entretanto, a faticidade do seu domínio não aparece como
5 Ver Luiz Werneck Vianna, “Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes”, in
A democracia e os três poderes no Brasil, Luiz Werneck Vianna (Org.). Belo Horizonte: UFMG, 2002. 6 Como exemplo do empoderamento do cidadão que luta pela garantia de seus direitos no âmbito de um novo
“espaço público judicial”, podemos citar o julgamento, por parte do Supremo Tribunal Federal, da Adpf 132 (Ação
de descumprimento de preceito fundamental), cuja decisão foi favorável ao reconhecimento da união homoafetiva
como entidade familiar. 7 Ver, a respeito, Conrado Hubner Mendes, Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo:
Editora Saraiva, 2012. 8 Ver, a respeito, Jürgen Habermas, Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and
democracy. Cambridge: MIT Press, 1996.
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voluntarismo político, mas sim como técnica jurídica aplicada por uma elite de experts da ciência
do direito. A consciência tecnocrática revisitada e radicalizada nos tribunais constitucionais usa
com maestria a ideologia da isenção da norma para estabelecer, para além do fórum de discussão
pública, uma agenda política contra-majoritária. Como instituição que atribui a si própria a
última palavra sobre a validade das ações executivas e sobre as deliberações legislativas, os
tribunais invertem o fluxo deliberativo e impõem à sociedade os novos “valores constitucionais”
que não são fruto de uma autocompreensão republicana, mas, inversamente, de uma tutela
autoritária que reifica e enrijece as interações políticas espontâneas. O cerne antidemocrático não
está no conteúdo regulado, mas na sua forma: ao subtrair do público de cidadãos a tarefa de
decidir por si só os rumos sociais, os tribunais tecnocráticos ferem o que deveriam defender.
Como consequência, o argumento contra-majoritário sofistica-se para além da ausência do
critério eletivo para a escolha do juiz constitucional. Não é porque os juízes não são eleitos que a
jurisdição pode vir a ser antidemocrática, mas sim porque exercem a administração da justiça de
costas e na contramão do público deliberativo. É notável como o direito pode ser usado, mais
uma vez, como instrumento de dominação sistêmica. Ao atribuir a si própria um mandado de
gestão política por se considerar melhor habilitada para definir os rumos da sociedade, a Corte
ativista não promove o “retorno do direito” como instrumento de emancipação, mas repete a
cena do aprisionamento da vontade coletiva no privatismo das instituições, agora de toga.
No Brasil contemporâneo, estamos diante de uma encruzilhada entre “judicialização”
como “movimento de retorno ao direito” e ativismo judicial como crescimento da visibilidade
republicana da jurisdição constitucional. A soberania popular retomará a condução dos seus
projetos emancipatórios – que vai depender, sem dúvida, de algum modelo de equilíbrio entre os
poderes da república – e o nosso Supremo Tribunal Federal, na condição de vértice do Poder
Judiciário e guardião da Constituição, facilitará a condução desse encargo, ou, diversamente,
dele se apropriará? Não podemos esquecer que no país o autoritarismo costuma ganhar força
revelando-se como o único caminho possível para nossa libertação do atraso e essa lógica
civilizatória elitista tem recentemente conduzido o STF, que por vezes atua como agente
privilegiado, exatamente por se considerar dotado de uma cognição superior ao Parlamento, ao
Executivo e a própria sociedade.
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Quando o Ministro Celso de Mello afirma que “quem tem o monopólio da última palavra
é o Supremo e ninguém mais”9, ou quando o Ministro Cezar Peluso faz referência expressa a um
certo “ativismo a convite”10
, reivindicam para o STF o posto de único guardião da Constituição.
Com tal reivindicação, apropriam-se dos valores constitucionais, sequestrando do grande público
seus conteúdos, e entregando de volta uma pauta pré-selecionada dos rumos da comunidade
política. Não haveria, portanto, esvaziamento dos conteúdos normativos dos princípios
constitucionais, como aconteceu, por exemplo, nas Cartas de 1937 e 1967, mas uma
“densificação dirigida” pela cognição da Corte, o que reforçaria sua emblemática posição
política de oráculo da República. Nessa hipótese, estaríamos diante de um divórcio entre
democracia e constitucionalismo. Afinal, quando uma Corte tem não apenas o controle do seu
out put, mas também do seu in put, desmistifica-se a máxima da dogmática constitucional
segundo a qual os tribunais atuam apenas quando provocados.
Não temos aqui nenhuma pretensão de definir de maneira peremptória o caráter
democrático ou antidemocrático do nosso Supremo Tribunal Federal. Além do mais, a riqueza
dos processos históricos reais está no fato de que eles apenas nos fornecem contornos cinzentos,
muito distantes das polarizações próprias das construções de tipos ideais que os conceitos de
“judicialização da política” ou “ativismo judicial” representam. No jogo real da democracia
brasileira, temos tanto ativismo quanto judicialização, numa interação ambígua. Não resta
dúvida, no entanto, que a lógica do ativismo é incompatível com o modelo de separação de
poderes que o Brasil necessita e almeja para, de modo republicano e deliberativo, reafirmar sua
cidadania.
9 Ver O Estado de São Paulo, 05/10/2007, p. A5.
10 Ver Valor Econômico, Entrevista, 03/10/2011.