biodanza e arte terapia: caminhando de mãos dadas | por maria beatriz machado rubião
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INTERNATIONAL BIOCENTRIC FOUNDATION
ASSOCIAÇÃO ESCOLA DE BIODANZA ROLANDO
TORO DO RIO DE JANEIRO
Monografia visando Titulação
BIODANZA E ARTE TERAPIA: CAMINHANDO DE MÃOS DADAS
por
Maria Beatriz Machado Rubiäo
Orientador
Maria Lúcia Pessoa Santos
RIO DE JANEIRO
2001
BRASIL
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“Estamos convidando os professores e alunos de
biodanza a expressarem-se artisticamente em cerâmica, pintura,
poesia, música e demais formas de arte; a ampliar sua cultura,
aprender idiomas e desenvolver sua sensibilidade. Mediante
atividades extraprogramáticas poderão elevar a qualidade de sua
comunicação e sua maturidade pessoal.”
Rolando Toro
“Neste tempo e lugar singulares, Criações, Criadores e Criaturas
vão dançar a dança de Shiva, celebrando o TODO CRIATIVO, que poderá
assim viver e se multiplicar em cada um de nós... ontem, hoje e sempre.”
Ângela Philippini
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, meus primeiros e eternos facilitadores, presenças amorosas e
generosas que me estimularam e encorajaram a dançar a vida de uma forma
colorida e harmoniosa.
Ao meu amigo e parceiro de tantos momentos ao enfrentarmos os desafios de
nossos minotauros encontramos o fio condutor do amor com o qual tecemos um
caminho de cumplicidade.
Aos meus alunos/clientes o meu mais afetuoso obrigado pela confiança em
compartilhar suas danças e artes.
Ao Alberto Tavares meu primeiro facilitador de biodanza por ter me apresentando
novas formas de sentir a vida.
A minha professora e terapeuta Ângela Philippini pelas possibilidades que me
oferece de criar e recriar caminhos em busca das „ chaves perdidas das portas dos
meus aposentos trancados”.
Ao Antonio Sarpe por me facilitar o passo no compasso das minhas aulas de
biodanza.
A Maria Adela que com sua mão na “massa” fez ressurgir de um bloco de argila a
construção da Escola de Biodanza do Rio de Janeiro, onde constantemente
modela-se novos facilitadores.
A Maria Lucia Pessoa, amiga de tantas danças e desafios, que me conduziu a
enfrentar os meus medos e redescobrir nos meus retalhos a obra que sou.
A todos os facilitadores que contribuíram para minha formação em especial ao meu
grupo de Biodanza e Arte Terapia por todos os ritmos, eutonias, traços e encontros
que vivemos juntos.
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SUMÁRIO
Página 1) INTRODUÇÃO .................................................................................................... 1 2) BIODANZA + ARTE TERAPIA: RESPOSTAS A NOSSA ÉPOCA .................... 5 2.1 – Biodanza 2.1.1 – História da Biodanza 2.1.2 – Definição, Paradigmas e Princípios da Biodanza 2.1.3 – Vivência 2.1.4 – Modelo Teórico da Biodanza 2.2 – Arte Terapia 2.2.1 – Uma Trajetória Criativa 2.2.2 – O Fascinante Mundo dos Contos de Fada 2.2.3 – Caminhando pela Abordagem Junguiana em Arte Terapia 3) BIODANZA E ARTE TERAPIA – CAMINHOS QUE SE ENCONTRAM .............. 35 3.1 – Território Sagrado 3.2 – O Facilitador – Braços Abertos 3.3 – Enfoques Teóricos e Metodológicos 4) CONTOS, CASOS, DANÇAS E CAUSOS .......................................................... 45 4.1 – Caso Clínico 5) CONCLUSÃO, OU MELHOR, DESCONCLUSÃO. A VIAGEM CONTINUA... 70 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 73 ANEXOS ................................................................................................................... 76
1
1) INTRODUÇÃO
“O Coelho Branco colocou os óculos e perguntou:
Majestade, por favor, por onde eu começo?
Comece pelo começo – disse o Rei solene – e
continue até o fim. Quando acabar, pare.”
Lewis Carroll
O tempo passava, e era necessária a escolha de um tema para minha
monografia. O que escolher? Quanto mais eu estudava a Biodanza, mais essa dúvida se
fazia presente: o que escolher dentro deste universo tão vasto, criativo e maravilhoso que
ela propõe? Eu me sentia como uma criança frente a uma grande mesa de doces e
guloseimas, não sabia o que escolher frente a tantas coisas deliciosas. Muitas me
seduziam, outras me faziam salivar de desejo.
O tempo, este não estava sendo o meu melhor amigo, ele passava por mim que
nem o sentia. Percebi que precisava acompanhá-lo, sintonizar com ele, isto era agora de
suma importância para que o encontro se desse. Resolvi fluir, então o nascimento
surgiu, primeiro como uma semente que foi plantada e agora começa a romper a terra em
busca da luz do conhecimento, aquecida pelo calor da busca e refrescada pela água da
serenidade, crescendo com o desejo de florescer.
Decidi escrever sobre Biodanza e Arte Terapia – Caminhando de mãos dadas.
Começou como um desejo à distância, aos poucos foi se aproximando e hoje me
sinto em êxtase, ao ver tantas mudanças se processando, obviamente não somente
neles, alunos e pacientes, mas principalmente em mim.
Sempre acreditei na linguagem psicoterapêutica, mas confesso que na minha
trajetória como psicóloga sentia a falta de algo mais. A linguagem verbal é rica e
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profunda, mas muitas vezes limitadora. Se não estivermos muito atentos ela é
reforçadora de patologias. Discursos montados, pré-concebidos, defendidos,
aparentemente arrojados, escondem, na maioria das vezes, emoções genuínas.
A linguagem fluente, corticalizada, oferece recursos cada vez mais sofisticados
para reforçar patologias e criar um estilo tóxico de viver.
Este discurso, aparentemente arrojado, pode favorecer o distanciamento de nós
mesmos, de nossos desejos, de nossas disponibilidades e, principalmente, de nossas
potencialidades.
Durante os meus vinte e um anos de prática terapêutica, recorri a outros estudos,
além dos da psicologia clássica, tradicional, ortodoxa. Em minha caminhada, muitos
autores contribuíram para o meu crescimento pessoal e profissional, e hoje, atingindo a
maioridade, me encontro casada com a Biodanza e com a Arte Terapia de base analítica
junguiana.
Penso que este seja um casamento duradouro, capaz de formar uma família.
Estou neste casamento com o peito aberto, sem nenhuma outra pretensão que
não seja uma pequena contribuição para este encontro. Biodanza e Arte Terapia, a
poética do encontro. Uma podendo conceder presença à outra, e as duas se
enriquecerem. Como bem o diz Rolando Toro, trata-se de uma presença que concede
presença.
Ambas percebem o indivíduo como um todo, e não como um sintoma ou uma
coleção deles; elas oferecem e estimulam vivências criativas e integradoras, não se
detendo em diagnósticos e rótulos que, decerto, reduzem o potencial criador e
transformador do homem, fazendo-o estacionar no mesmo lugar.
Elas são evolutivas e propõem que o indivíduo se mova diante da sua existência,
que ele dance a dança da vida.
Dance no seu próprio corpo, com seu próprio ritmo cardíaco, sua pulsação, seu
ritmo biológico.
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Dance com sua musicalidade interior; que a dance no lápis, nas tintas que
percorrem o papel.
Que dance ao modelar a argila, nos recortes e colagens da vida.
Que dance nas vibrações das cores e das formas.
Que dance no continente afetivo, na dança das estações, no crescer de uma flor.
Que dance na chuva que toca o chão com seu próprio bailado.
Que dance a dança vital dos astros, em frente a uma caixa de sucata ou na dança
da semente, até que surja uma obra de arte.
A obra de sua arte, dançando sua própria dança, A VIDA.
A VIDA que é sem dúvida sagrada, e que na comunhão consigo, com o outro e
com o universo, vivencia a suprema GRAÇA.
A Biodanza e a Arte Terapia usam o símbolo para deflagrar a vivência que se
encontra por trás ou além do próprio símbolo, a caminho do arquétipo. Ambas
possibilitam o movimento desse símbolo, seja através dos gestos, das danças, das
esculturas dançadas ou modeladas, das poesias, dos retalhos costurados, dos ritos e
mitos vivenciados. Portanto, são práticas que abandonam o discurso que tem como
palco as falas vazias, e adotam uma metodologia vivencial integradora, reintegrando a
pessoa à totalidade do seu ser. Como o ser total é um ser universal, a vinculação
consigo mesmo já não lhe é mais suficiente, não o nutre. Então, somente lhe resta um
caminho a seguir: reafirmar ou reinventar a importância do outro, sendo este outro todo
ser vivente. O vínculo se faz com toda forma e expressão de vida. É um vínculo vital em
sua expressão mais pura.
No desenvolvimento deste trabalho foram percorridas as seguintes etapas:
Capítulo 2 descreve, em linhas gerais, a história da Biodanza, seus
paradigmas, princípios e modelo teórico; a trajetória da Arte Terapia aparece a seguir,
adentrando o mundo dos contos de fada e apresentando alguns conceitos junguianos.
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Pode-se observar que a teoria junguiana mereceu inserções mais demoradas, visto que
os caminhos da Biodanza são amplamente dominados pelo público alvo deste trabalho;
Capítulo 3 procura estabelecer os pontos de contato existentes entre as duas
práticas, através de seus enfoques teóricos;
a possibilidade de entrelaçamento da Biodanza com a Arte Terapia é
demonstrada concretamente no Capítulo 4, através da apresentação de um caso clínico,
com ilustrações das atividades desenvolvidas; um depoimento livre do próprio punho
deste aluno/cliente, relatando suas vivências mais marcantes, é apresentado na seção de
Anexos, que também traz trechos de depoimentos produzidos por outros alunos do grupo
regular de Biodanza, além de fotos e outros materiais que ilustram a dinâmica de nosso
trabalho;
na Conclusão são desenvolvidas as considerações finais desta monografia.
Espero por parte do leitor um olhar crítico construtivo, analítico e apaixonado, pois
é este o olhar que tenho dessas práticas terapêuticas e daqueles que compartilharam
suas vivências e me permitiram essas reflexões.
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2) BIODANZA + ARTE TERAPIA: RESPOSTAS A NOSSA ÉPOCA
“O planeta Terra vive um período de intensas transformações
técnico- científicas. [...] As redes de parentesco tendem a se reduzir
ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo
da mídia, a vida conjugal e familiar freqüentemente „ossificada‟ por
uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de
vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre
expressão. [...] A questão será reconstruir literalmente o conjunto
das modalidades do ser em grupo. E não somente pelas
intervenções comunicacionais, mas também por mutações
existenciais que dizem respeito à essência da subjetividade.”
Félix Guattari
2.1 – Biodanza
2.1.1 – História da Biodanza
Rolando Toro, antropólogo nascido no Chile em 1924 e criador do Sistema de
Biodanza, iniciou sua jornada na década de 60, como membro do Centro de Estudos de
Antropologia Médica da Universidade do Chile. O ponto de partida foram os trabalhos
desenvolvidos com pacientes psiquiátricos no Hospital de Santiago do Chile, inspiração
que é bem retratada no seguinte fragmento escrito pelo autor:
“Observei que certas músicas tinham efeitos contraproducentes, pois conduziam com facilidade a estados de transe. Nesses casos, as alucinações e delírios acentuavam-se. [...] Selecionei músicas e danças que pudessem reforçar a identidade. Propus exercícios de contato para dar limite corporal e coesão. Muitos enfermos elevaram seu juízo de realidade. [...] Ficou assim desenhado o primeiro eixo do modelo teórico, que com o tempo foi se aperfeiçoando.” (Rolando Toro, s.d., p.5)
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As investigações científicas das respostas neurovegetavivas mostraram que
certos exercícios tinham uma ação reguladora a nível visceral, ativando o sistema
simpático-adrienérgico e o parassimpático-colinérgico. Por outro lado, certos exercícios
deflagravam vivências específicas, cujos efeitos sobre a percepção de si mesmo e do
outro eram altamente significativos.
A partir dessas experiências, Rolando Toro estende a prática da Biodanza a todos
que desejavam vivenciá-la. Na década de 70 aprofundou seus trabalhos em Buenos
Aires, e em 1976 os divulgou em várias capitais do Brasil. A partir da década de 80
divulgou a Biodanza na Europa.
O método por ele criado possuiu varias denominações, até chegar ao nome de
hoje. Primeiramente foi batizado como Antropodança, depois foi conhecido como
Sociodança, Psicodança, Biodança, e no presente momento denomina-se Sistema de
Biodanza Rolando Toro. A mudança de nomes ocorrida representa, antes de tudo, uma
dinâmica de mudança e evolução na relação criador / criatura, sendo coerente com a
afirmação de Toro de que a Biodanza é um sistema vivo ainda em criação e
desenvolvimento.
À medida que o pensamento de Rolando Toro se enriquecia com outras
informações e reflexões, mais perto se chegava da expressão bio, que deriva do grego
bios (que significa vida) e dança, que na concepção francesa significa movimento
integrado pelo sentido. Como tudo se origina na vida e pela vida, sem dúvida esta
denominação é a que melhor representa o sistema idealizado pelo autor: Biodanza, a
dança da vida.
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2.1.2 – Definição, Paradigmas e Princípios da Biodanza
“Biodanza é um sistema de integração afetiva, de renovação orgânica e
aprendizagem das funções originais da vida. Baseia-se na indução de vivências
integradoras através da musica, da dança, do canto e de situações de comunicação em
grupo.” Toro 1969
Rolando Toro entende por integração afetiva o restabelecimento da unidade
perdida do homem conectado à natureza. O núcleo integrador é a afetividade, que
influencia os centros límbicos-hipotalâmicos. Neste conceito, a renovação orgânica é
induzida, principalmente, por estados de transe que ativam o processo de revigoração
celular e de regulação das funções biológicas, favorecendo uma melhor qualidade de
vida.
Aprender a viver a partir dos instintos é, sem dúvida, a maneira mais sábia e
coerente de viver. Através dos instintos atingimos os objetivos primários de todo ser vivo:
conservação da vida e evolução da espécie humana.
Viver conectado aos instintos primários significa estar conectado ao universo pela
sua razão mais nobre, que é viver. Isto independe de educação, situação econômica,
cor, credo ou situação geográfica. Isto é a simples e intuitiva conexão do ser vivo
consigo mesmo e com todo o meio que o rodeia.
A Biodanza é uma prática vivencial que visa o autoconhecimento, o
desenvolvimento e a preservação da qualidade de vida no planeta.
Rolando Toro traz a proposta de dançar a vida, pois no universo tudo dança.
A teoria e a metodologia da Biodanza se pautam em sete paradigmas e alguns
princípios, que são os pensamentos chave que lhe dão estrutura operacional e coerência
sistêmica, favorecendo uma visão de unidade e integração. Os paradigmas nortearão
como sinais luminosos o caminho que devemos percorrer para não nos perdermos e/ou
nos afastarmos do objetivo principal.
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Os principais princípios que norteiam a Biodanza são descritos sucintamente a
seguir:
Principio biocêntrico. Este princípio é a própria Biodanza, sua razão de existir,
pois propõe uma absoluta prioridade para a vida, inspirando-se nas leis universais que
conservam os sistemas viventes e tornam possível sua evolução. Quando assumimos o
principio biocêntrico, temos a oportunidade de refletir sobre o real papel da vida. No
mundo atual, globalizado de forma generalizada, onde a comunicação rápida impera,
precisamos questionar se temos consciência da relevância da vida frente a
manifestações culturais, econômicas e sociais que nos são impostas pela mídia
avassaladora. Todo ecossistema deve se basear na preservação da vida. A proposta do
princípio biocêntrico é ter como ponto de partida a vivência de um universo organizado
em função do respeito à vida.
Principio negentrópico de amor e iluminação. Este princípio postula que o
sistema vivente humano é capaz de auto-regulacão, autonomia, e também de auto-
evolução. O sistema vivente humano possui potenciais de criatividade capazes de
favorecer o próprio processo evolutivo. A via de acesso a este estado é o amor, que
possibilita a elevação da qualidade de vida e a condição para seu esplendor e plenitude,
segundo palavras de Rolando Toro.
Expansão da existência a partir do potencial genético. A Biodanza centra sua
atenção na origem genética e na potencialidade humana. Estes potenciais são altamente
diferenciados, e desde o início se manifestam através de estruturas funcionais, instintos e
vivências, quando encontram condições ambientais favoráveis (cofatores e ecofatores).
Quanto mais favoráveis forem essas condições, maior será sua expansão.
Progresso biológico auto-induzido. Segundo Rolando Toro, o sistema vivente humano
pode induzir processos de altíssima diferenciação, mediante a produção de estados
de regressão. A partir desta afirmação, Toro propõe exercícios, desafios e cerimônias de
regressão para favorecer a homeostase e os processos de auto-regulação.
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Pulsação da identidade. Para Toro, a identidade tem uma gênese biológica,
não possuindo uma estrutura cultural. Ela é pulsante, podendo regredir ou se expandir
em movimentos de sístole e diástole.
Permeabilidade da identidade. De acordo com Rolando Toro, a identidade é
permeável à música e à presença do outro. A Biodanza, por crer no potencial expressivo
da nossa identidade frente aos estímulos musicais em situações de encontro, propõe um
trabalho de integração entre música, movimento e vivência.
O ponto de partida auto-regulador é a vivência. A vivência é a percepção
intensa e apaixonante de estar vivo aqui e agora. Assim, o ponto de partida em
Biodanza é a vivência, e não a consciência; os exercícios estão destinados a vivenciar.
A vivência tem em si um poder auto-regulador. A consciência, por sua vez, é um espelho
que registra e denota os novos estados de integração, regulação e otimização.
Nos parágrafos abaixo são resumidos outros norteamentos básicos do Sistema
Biodanza.
A Biodanza está voltada para possibilitar a expressão da identidade. Sua tarefa
consiste em criar condições para que esse potencial genético, originalmente em forma de
semente, desabroche e manifeste-se em sua plenitude.
A Biodanza respeita os princípios de progressividade e reciprocidade, sabedora
de que cada indivíduo tem seu próprio ritmo. Propõe uma técnica onde se gradua a
seqüência, a duração e a intensidade de cada exercício, para que estes possam gerar
vivências de homeostase e possibilidade de mudanças no estilo de vida.
A Biodanza, como já foi citado anteriormente, é uma técnica vivencial, auto-
reguladora e integradora, que oferece condições para o acesso à identidade, à renovação
existencial e a vivências plenas de sentido.
A Biodanza não tem caráter religioso, dogmático ou ideológico. Ela integra em
seu convívio todo ser humano, independente de sua condição sociopolítica, econômica e
religiosa. É uma técnica essencialmente grupal, o grupo sendo visto como matriz,
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continente de proteção, aceitação e acolhida afetiva para as mudanças que cada um
necessita e deseja alcançar.
A Biodanza não se restringe a uma investigação de ordem pessoal e/ou familiar.
Não lhe é suficiente rever os mandatos parentais recebidos na infância, ela se propõe ir
além, ela se preocupa e se interessa pelos valores e conceitos produzidos e estimulados
por uma sociedade muitas vezes patológica, buscando transvalorização cultural, e não
somente uma reparentalização.
Os “scripts” que construímos são orientados por uma história pessoal, familiar e
cultural. O favorecimento de um referencial informativo de caráter antropológico,
psicológico, artístico, é fundamental para desenvolvermos um olhar mais amplo e global.
A Biodanza propõe vivências que procuram integrar o indivíduo consigo mesmo,
com o outro e com a natureza. Oferece um terreno propício para potencializar os
aspectos saudáveis, valorizando os impulsos de liberdade e auto-estima. Agindo na
parte sã, trabalha com a grandeza do homem e suas infinitas possibilidades.
A Biodanza se baseia no principio de ressonância musical, na ação autoplástica,
tendo em si a capacidade de se amoldar. Cada indivíduo poderá torna-se aquilo que é,
ou transformar-se no que deseja ser.
Cada vivência, cada movimento em Biodanza tem significado real. Esta prática
nos remete para o sentir, para o vivenciar, o experimentar através dos movimentos
corporais... o prazer de viver.
Garantindo a prática destes princípios, a Biodanza vivencia com êxito e plenitude
o princípio do movimento para o amor, onde o movimento corporal, afetivo e social estará
interligado com a idéia de amor. O amor e o respeito pela vida são os princípios básicos,
são os que oferecem suportes para as mudanças que necessitamos realizar.
Para conseguirmos um estilo de vida centrado na saúde e na harmonia, a
Biodanza nos convida à responsabilidade de encontrar o nosso próprio caminho;
precisamos ter uma participação ativa em nosso próprio processo de “cura”. Não há
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espaço para responsabilizarmos o outro, esteja ele representado pela figura do pai, da
mãe, do Estado ou da cultura. Somos agentes de nossa própria mudança, e cabe a cada
um de nós dançar a dança da vida; ninguém a dançará por nós.
2.1.3 – Vivência
A unidade do trabalho em Biodanza é a vivência que é induzida através da música
e de movimentos em situação de encontro.
O conceito de vivência em Biodanza se baseia em Dilthey, que a define como
instante vivido. Rolando Toro nos diz que podemos considerar a Biodanza como um
sistema de desenvolvimento e integração humana que estimula a produção de vivências
integradoras mediante exercícios de comunicação e contato. “A vivência é reveladora e
formadora da identidade, ela nos remete à nossa singularidade.” As vivências, ainda
segundo Toro, teriam suas raízes nas sensações biológicas primitivas dos organismos
vivos; ativá-las é a possibilidade de resgatar a nossa memória filogenética e simbólica
(arquetípica da espécie humana).
2.1.4 – Modelo Teórico da Biodanza
Não se poderia falar sobre Biodanza sem citar o seu modelo teórico. A
representação gráfica proposta por Rolando Toro, com muita imaginação e criatividade,
consegue representar todo um conjunto de conceitos relacionais interligados no tempo e
no espaço.
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De maneira simples, pode-se dizer didática, o modelo teórico contextualiza o
homem no universo de forma ampla, deixando de cair em jargões reducionistas, muito
em voga.
Ao incorporar a filogenia no seu modelo teórico, a Biodanza claramente insere no
homem atual toda a experiência acumulada pelos nossos antepassados, nossos
ancestrais.
Ela reconhece no homem não uma essência, mas um sistema homo-
multidimensional resultante de interações relacionais em constante complexidade de
ordem/desordem evolutiva.
Com este potencial genético trazido para sua ontogênese, o homem poderá
desenvolver, a partir de suas protovivências, uma identidade territorializada pelos
diversos canais de influência externa e interna ao longo de sua vida.
Base para a formação da identidade, as protovivências irão ser efetivamente
praticadas nas cinco linhas de vivência1 trabalhadas na Biodanza:
Vitalidade
Sexualidade
Criatividade
Afetividade
Transcendência
Essas cinco linhas de potencial humano são influenciadas pelos ecofatores
externos e internos, e se influenciam mutuamente. A combinação de todos estes fatores,
mais o inconsciente coletivo, o inconsciente vital, faz com que cada indivíduo humano
tenha sua subjetividade como marca pessoal e indelével.
1 Em nosso dia-a-dia nas aulas de Biodanza, utilizamos o termo “linhas de vivência”, porém prefiro
quando Rolando Toro as trata como “linhas de potencial humano”, por acreditar que esta última denominação exprime melhor a dinâmica do processo da Biodanza.
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O modelo é circundado por um circulo aberto, representando a totalidade e sua
abertura para novas integrações.
Através de exercícios realizados, orientados pelas linhas de vivência, a Biodanza
oferece ao homem a possibilidade de reviver e restaurar suas protovivências.
O trabalho grupal tem uma capacidade articuladora que leva à articulação e
harmonização dos três aspectos ecológicos citados por Félix Guattari (2001): ecologia
mental, ecologia social e ecologia do meio ambiente. O modelo teórico deixa bem claro
que a Biodanza habita as três ecos.
Na próxima página é apresentada a expressão gráfica do modelo teórico.
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Modelo Teórico
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2.2 – Arte Terapia
2.2.1 – Uma Trajetória Criativa
Apresentar e conceituar a Arte Terapia é uma tarefa bastante complexa, pelo
vasto e rico material que a própria conceituação de arte nos oferece. Relacioná-la com
uma ação terapêutica também é de uma riqueza inesgotável. Tentarei fazê-lo de uma
forma clara e objetiva.
Lendo Ângela Philippini, em Cartografias da Coragem (2000), reencontro tudo
aquilo que creio, penso e comungo sobre o oficio da Arte Terapia. Em uma linguagem
profunda e poética, os textos me emocionam e dirigem minha escrita. Sem dúvida o meu
desejo é mencioná-los em cada par de parágrafos, para poder expressar a profundidade
e a riqueza do mundo da Arte Terapia.
Poderia, pela vastidão acima citada, percorrer vários caminhos; eu escolhi esta
trilha.
A Arte Terapia é a possibilidade, através da expressão artística, de revelar o
nosso mundo interior.
A arte em Arte Terapia deve ser entendida como um processo expressivo; não se
abordam valores de ordem estética, técnica ou acadêmica, não se vincula o processo
criativo a uma escola artística e nem se enfatiza uma única modalidade de expressão.
A Arte Terapia não está a serviço de uma formação de artistas plásticos, mas sim
de criar e recriar canais para expressão das emoções, oferecendo ao homem meios para
lidar com os seus conteúdos internos, seu material inconsciente e seus desejos
reprimidos.
A Arte Terapia é um processo terapêutico que utiliza várias modalidades
expressivas. As atividades artísticas utilizadas promovem uma produção simbólica, e esta
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produção oferecerá informações de níveis mais profundos da psique, que
progressivamente chegarão à consciência.
O processo de autoconhecimento na abordagem junguiana é orientado por
símbolos emanados do self, representante da totalidade da psique; portanto, eles têm
um valor inestimável, pois são eles que assinalam e informam os estágios da jornada de
individuação. Conhecê-los, compreendê-los, é a possibilidade garantida de nos
conhecer e transcender. A Arte Terapia não poupa esforços e materiais para a
descoberta gradual dos significados desses símbolos até então obscuros.
O objetivo da Arte Terapia, através das atividades expressivas, é desbloquear,
revitalizar, restaurar a energia psíquica e iluminar os aspectos sombrios, oferecendo
possibilidades de estruturação da personalidade.
A Arte Terapia deve ser vista como um território criativo e singular, onde cada um,
através de sua livre expressão e criação, tem a possibilidade de construir suas trilhas.
Esse espaço criativo conta com uma diversidade de modalidades expressivas:
desenho, pintura, modelagem, recorte e colagem, retalhos, construção de maquetes, de
personagens, tecelagem, atividades com tecidos, contos de fada, enfim, tudo que se
possa criar em nome da arte e da ação para a saúde é bem-vindo e aproveitado no
mundo da Arte Terapia. Movimentando-se pelo universo dos matizes, cores, texturas,
linhas, formas, volumes, ocupação no espaço, ela resgata e amplia as possibilidades de
mergulharmos nas camadas mais profundas do inconsciente, proporcionando insight,
transformação, expressão e expansão da estrutura psíquica.
Em Arte Terapia, a forma permite que surja a compreensão dos conteúdos
inconscientes, os quais vão gradualmente emergindo e clareando a luz da consciência. A
energia psíquica contida nestes conteúdos do inconsciente é então liberada, iluminando
os espaços sombrios da psique.
A Arte Terapia, assim como a Biodanza, respeita o princípio da progressividade.
As primeiras experimentações plásticas devem proporcionar uma sensação prazerosa,
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oferecendo materiais de fácil operação, evitando assim qualquer desconforto, diminuindo
as defesas e resistências ao processo.
Inicialmente, pode-se solicitar a atividade de exploração com gravuras; elas, por
si sós, já oferecem símbolos bem configurados, a expressão ocorrerá pela escolha.
Posteriormente, podemos sugerir uma atividade de recorte e colagem com as
gravuras escolhidas anteriormente. A forma que se recorta, as posições nas quais são
coladas na superfície, a maneira como são organizadas, são expressões singulares que
já revelam aspectos psicodinâmicos presentes naquele momento.
Destas primeiras experimentações emergem dados mais relevantes para melhor
compreensão do processo, os quais deverão ser gradualmente amplificados pelas
estratégias de transposição de modalidades expressivas. Um símbolo poderá ser
explorado e elaborado por diversos materiais expressivos. Ele percorrerá um longo
caminho, desde uma simples rabiscação, passando por várias modalidades
expressivas, que podem ser uma gradação do plano bidimensional ao plano
tridimensional, ou o aprofundamento de uma modalidade, que vai se intensificando à
medida que se consegue explorar, com mais facilidade, esse determinado material
plástico.
Este processo será ainda enriquecido com a obtenção de um rastreamento
cultural: ver e rever os símbolos nos mitos, nos contos de fada, nos ritos de passagem,
nos registros alquímicos e nas tradições religiosas, compreendendo os significados
coletivos para aqueles símbolos pesquisados.
O símbolo tem uma função integradora e reveladora entre o que é
desconhecido e a consciência. Durante a trajetória de nossa vida, um símbolo poderá
ser a nossa “imagem guia”, a nossa bússola, nos favorecendo no caminho da
individuação. Vários outros símbolos poderão surgir a partir deste, registrando os
estágios do nosso processo.
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Em Arte Terapia, como em Biodanza, toda expressão aflorada pela emoção é
acolhida com respeito, desde um simples traço ou um simples movimento. Ela é a
possibilidade segura de uma vivência criativa e singular. Na realidade, bastam formas e
gestos muito simples, que não requerem habilidades específicas, para que o processo
seja ativado, ressurgindo com ele o nosso “EU NATURAL”.
“Muitas vezes impõe-se a necessidade de esclarecer conteúdos obscuros, imprimindo-lhes uma forma visível. Pode-se fazer isto desenhando-os, pintando-os ou modelando-os. Muitas vezes as mãos sabem resolver enigmas que o intelecto em vão tentou compreender.” (C. G. Jung, 1971, p.19)
2.2.2 – O Fascinante Mundo dos Contos de Fada
A Arte Terapia, como anteriormente visto, se utiliza dos contos de fada, dos
mitos e dos sonhos. Penso ser de grande valia mergulharmos na função dos contos de
fada, tema que me fascina e seduz, e que muitas vezes são esquecidos ou
desqualificados por nós.
Os contos de fada são a expressão mais genuína e mais simples dos processos
psíquicos do inconsciente coletivo. Eles representam os arquétipos na sua forma mais
plena e concisa. Cada arquétipo é, na sua própria essência, somente um aspecto do
inconsciente coletivo, ao mesmo tempo em que representa, também, o inconsciente
coletivo com um todo.
Os contos de fada foram resgatados e considerados um instrumento
terapêutico por facilitarem a compreensão do psiquismo humano em sua caminhada de
aperfeiçoamento e individuação. Faremos aqui um breve passeio pela historia da
ciência dos contos de fada.
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Etimologicamente, a palavra fada vem do latim faltem, que significa destino,
fatalidade, oráculo. Assim, os contos de fada são os contos do destino da vida.
Desde sempre o homem se fascina com essas narrativas. Histórias de
enfrentamento de bruxos, dragões aterrorizantes, confrontos e superação dos perigos,
busca de tesouros perdidos, o acordar de princesas, o final feliz, enfim, toda uma
trajetória com a qual, sem dúvida, o homem contemporâneo se identifica e vivencia.
Resgatar essas antigas histórias é oferecer ao homem moderno a possibilidade
de mergulhar em sua própria história e na história da humanidade, vivenciando uma
imersão na memória humana ancestral.
Em várias épocas e lugares os contos de fada se fizeram presentes, e pode-se
notar que os temas básicos não mudaram muito ao longo dos tempos.
A informação mais antiga que se tem data de aproximadamente 3000 anos atrás:
os contos de fada foram encontrados nas colunas e papiros egípcios, um dos mais
famosos sendo o dos irmãos Abes e Bata. Outros textos foram localizados na Índia, na
Palestina Antiga, no Velho Testamento, na Grécia Clássica, no Império Romano, na
Pérsia, Irã e Turquia.
O significado primordial dos contos de fada estava relacionado à aventura do
viver. Chegou-se a dizer que eram uma espécie de ocupação espiritual.
Até os séculos XVII e XVIII, os contos de fada eram contados para crianças e
adultos. Eles eram a forma principal de entretenimento para as populações agrícolas na
época do inverno.
A partir do século XVIII, os contos de fada deixam as rodas agrícolas e começam
sua trajetória acadêmica. Primeiramente ganham uma interpretação poética, em seguida
surge um interesse histórico, posteriormente uma proposta de investigá-los a partir de um
visão estritamente literária e, mais à frente, surgem os primeiros estudos pelo viés
emocional dos contos.
20
Com o aparecimento da teoria junguiana, trazendo os conceitos de arquétipo,
inconsciente coletivo, processo de individuação, self, persona, os contos de fada foram
resgatados como possibilidade de interpretação científica do psiquismo humano. Sua
característica integradora de pessoas, lugares e tempos possibilitam o conhecimento da
trajetória humana.
Algumas citações ilustram a grandiosidade da função dos contos de fada:
“O conto de fada é em si mesmo a sua melhor explicação, isto é, o seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da história. {...] Os contos de fada espelham mais claramente as estruturas básicas da psique.” (Marie Louise von Franz, 1990, p.9)
“O conto de fada tem função terapêutica, porque possibilita ao paciente encontrar sua própria solução através da contemplação do que a história parece implicar acerca de seus conflitos internos neste momento da vida.” (Ângela Philippini, 1992, p.14)
“Mitos e contos de fada dão expressão ao processo inconsciente, e sua narração provoca a revitalização desses processos, restabelecendo assim a conexão entre consciente e inconsciente.” (C. J. Jung apud Nise Silveira, 1981, p.120)
2.2.2.1 – Estruturação dos Contos de Fada
A estruturação básica dos contos de fada refere-se ao processo de individuação.
No decorrer da história, o herói se defronta com os perigos e obstáculos que precisam
ser superados, vencidos, para que ele encontre sua realização existencial. No decorrer
do percurso ele pode encontrar bons aliados, como uma fada, um animal falante, um
gnomo. Eles se aliaram para garantir o sucesso desta trajetória. Enfim, o encontro do
príncipe ou princesa, símbolos de polaridade oposta que precisam ser conhecidos,
confrontados e harmonizados.
21
Nos contos de fada nos deparamos com nossa anima ou animus, com nossa
sombra; nós os identificamos e os integramos.
Todo conto de fada percorre alguns passos:
Inicio (restrição e desconhecido)
Ruptura (desligamento de um estagio de vida)
Confronto e superação de obstáculos
Inicio do processo de descobrir o novo
Florescimento, colheita
Transcendência
Ao ler H. Dieckmann, em Contos de Fadas Vividos (1986), fui levada a refletir
sobre o valor dos contos de fadas em nossas vidas:
“Todos os dias aparece na sala de audiências do rei um mágico que lhe entrega uma linda maçã. Distraído, o rei a remete ao seu ajudante de ordens, que, por sua vez, manda jogá-la em um quarto distante. Assim faz durante um ano inteiro, até que um dia o macaco da rainha, que tinha se soltado, pula dentro da sala de audiências, pega a maçã e morde. Quando faz isso, todos vêem com grande admiração que esta maçã contém em seu interior uma pedra preciosa muito bela. Aí o rei, naturalmente, investiga às pressas o lugar onde estavam as outras maçãs. De fato, encontra-se debaixo da polpa apodrecida das frutas um monte de pedras preciosas de grande valor, cujo número corresponde aos dias do ano.” (p.11)
Muitas vezes jogamos fora nossos contos de fada, como se não tivessem
valor, os desqualificamos. Uma vozinha diz: “É apenas um conto de fada, não tem
valor algum, só vai ocupar lugar no seu universo de saber; jogue-o fora.” “Não,
não, não faça isso”, grita outra vozinha fina, mas muito segura, surgindo lá do fundo.
“Não o jogue fora, guarde-o, mesmo que seja em um sótão empoeirado ou em um porão
antigo. Ele lhe será muito útil lá na frente. Em algum momento, por uma razão muito
própria, você abrirá este aposento e, no interior dele, o encontrará empoeirado, debaixo
das teias, da polpa apodrecida, mas vivo, vigorosamente vivo, basta sacudi-lo para ver
22
o brilho da pedra preciosa que ele guarda em si. Nela a imagem guia reluz a
sabedoria, símbolo e motivo não somente de nossos próprios contos, mas dos contos de
toda a humanidade.”
Por mais que nos esforcemos para esquecer os contos ou adormecê-los como
princesas encantadas, lá estarão eles, vivos no nosso inconsciente pessoal e no
inconsciente coletivo da humanidade, esperando por um momento próprio para se
revelarem.
Eles surgem muitas vezes como imagens confusas, insólitas, .surreais, vestidas
de forma estranha e bizarra. Apresentam-se como um desconhecido, mas gradualmente
vão oferecendo pistas claras para encontrarmos nossas pedras preciosas.
Em nosso “Era uma vez”, povoamos nossas histórias de heróis, bruxas, monstros,
sapos que viram príncipes, princesas adormecidas, enfim, em devires diversos, em
cenários e tempos distintos. Lá estão os contos, mergulhados em um universo mágico e
fantástico, oferecendo-nos informações úteis do nosso processo interior.
Escutá-los é permitir que a voz da sabedoria nos fale.
Entrar nesse mundo fascinante, onde o extraordinário está presente, permitir sua
emersão, resgatá-lo dos porões empoeirados, nos facilitará a compreensão da dinâmica
do psiquismo humano.
Talvez por essas razões, entre tantas outras, Lewis Carrol chama os contos de
fadas de “um presente de amor”.
2.2.2.2 – Conto do Meu Próprio Conto
Lendo e escrevendo sobre os contos de fada, eis o que surge:
Como acordar do sono profundo onde repousava como bela adormecida?
Ela nem se dava conta de quão distante estava de si e do mundo,
23
Quando durante um sonho vislumbrou a possibilidade de criar a sua própria
dança.
Aos poucos seu corpo em sonho se movimentava.
Movimentos simples, ritmados. Tingidos de tons pastéis.
Ela se encantava com a cena que vivia.
Passo a passo, no compasso da vida, seus movimentos cresciam, se
mostrando mais flexíveis e criativos.
Ousava experimentar cores como o verde-limão e o azul-piscina.
Ela crescia, já não pertencia mais ao mundo encantado,
Mas tudo ainda lhe parecia rosa.
Havia um frescor no ar, um cheiro de goiaba doce.
Desperta para o mundo, entra em cena de verdade.
Já não dorme, mas ainda sonha. Faz planos.
Com os seus retalhos, rendas e fios, tece sua vida.
Mesmo com retalhos simples, ela lhes dá um acabamento precioso.
Entusiasma-se diuturnamente pela forma que ganha sua vida.
Em algumas manhãs, outonais, as cores pastéis voltam ao centro do palco.
Em outras manhãs, discretamente se reservam e recolhem-se à coxia.
Mas a dança continua.
Um bailado, às vezes solo, de sapatilhas ou descalço.
A graça continua.
Acordada, de olhos abertos, muitas vezes arregalados, como se não quisesse
perder nada de vista.
Quero aproveitar todo o meu tempo.
Quero dançar frevo e polca.
Quero me sentir preto e branco.
Quero viver os meus contrastes.
Quero ter medo.
Quero subir na árvore do alto, me lambuzar de alegria.
Quero ver Tom e Jerry, mesmo sabendo o final da história.
Quero me ver no final de uma rua sem saída, mesmo assim me cantarolarei
uma música.
Quero isso e aquilo, mesmo que digam que não se deve.
Quero abrir a janela dos meus olhos e me deparar com todas as mulheres
que existem em mim.
Quero me desvendar, abrir as cortinas.
24
E depois de tanto querer, me sinto mais eu.
Menos esquecida, menos adormecida.
Pulso em direção à vida.
Mesmo que ela se encontre eternamente adormecida, eu não mais estarei.
Estarei sempre dançando em algum lugar, mesmo que distante, mas decerto
com cores vibrantes e cintilantes.
Em ritmos fortes, no movimento continuo e firme vou traçando novas
trajetórias, Onde já não sinto mais o meu corpo, somente o prazer que ele me
oferece,
Movimentando-se no fascinante vai e vem do meu sentir a vida.
2.2.3 – Caminhando pela Abordagem Junguiana em Arte Terapia
Para que possamos estudar as nossas plantas, as nossas flores, é necessário
estudar os solos onde elas enquanto sementes foram plantadas.
Passearemos rápido pelos profundos terrenos da teoria junguiana, para que mais
tarde possamos desfrutar dos lindos jardins floridos construídos pela Arte Terapia e pela
Biodanza.
A Arte Terapia pode ser fundamentada em algumas abordagens teóricas. Escolhi
a junguiana, pois na minha compreensão é a que melhor oferece suporte para o homem
refletir, sentir, transformar, viver e transcender. Para minha alegria e conforto, muitos dos
conceitos junguianos são respeitados e utilizados por Rolando Toro.
Falar em Arte Terapia sem abordar os conceitos junguianos torna-se missão
impossível. Passear pelo universo dos conceitos da teoria junguiana é algo prazeroso e
infinitamente estusiasmante. Sua riqueza e magia nos fascinam. O desejo de
aprofundar, de mergulhar neste oceano de saber não caberia neste momento, nem na
proposta deste trabalho. Uma das formas de não nos perdermos é iniciar pelo conceito
25
nuclear desta teoria. Assim como a Biodanza se baseia fundamentalmente no principio
Biocêntrico, Jung nos fala sobre o processo de individuação.
2.2.3.1 – O Processo de Individuação
A individuação é um conceito central na teoria junguiana. O processo não se
desenvolve linearmente, é o movimento de circunrevolução que conduz a um novo centro
psíquico. Este novo centro psíquico foi denominado por Jung de self, símbolo da
totalidade, o núcleo mais profundo da psique.
“Emprego a expressão individuação para designar o processo pelo qual um ser torna-se um indivíduo psicológico, isto é, uma unidade autônoma e indivisível, uma totalidade.” (C. G. Jung apud Elie G. Humbert, 1985, p.116)
Ao descrever as principais etapas do processo de individuação, Jung traçou um
itinerário seguro para nossa chegada. Ele utiliza determinados termos para descrever as
diferentes partes da psique. Estes conceitos são oriundos de observações ocorridas
durante seu trabalho clinico.
Jung se utiliza de duas divisões, chamadas por ele de topográficas, básicas:
Consciente
Inconsciente, que subdivide-se em inconsciente pessoal e inconsciente
coletivo.
Para Jung, existem quatro níveis da psique:
Consciência pessoal
Inconsciente pessoal
Inconsciente coletivo
O mundo exterior da consciência coletiva; o mundo cultural dos valores.
26
Dentro da divisão topográfica básica existem estruturas gerais e especificas.
As estruturas gerais são subdivididas em:
Imagens arquetípicas
Complexos.
As estruturas especificas se subdividem em:
Ego
Persona
Sombra
Anima ou Animus.
Resumidamente, correndo o risco de sermos reducionistas, tentaremos conceituar
algumas das subdivisões acima.
Jung entende por imagens arquetípicas os conteúdos básicos do inconsciente
coletivo. O arquétipo é em si mesmo uma tendência para estruturar as imagens de nossa
experiência de maneira particular, mas ele não é a própria imagem. De acordo com
James Hall (1983),
“As imagens arquetípicas são imagens profundas que se formam pela ação dos arquétipos sobre a experiência que vai se acumulando na psique individual.” (p.15)
As imagens arquetípicas que são significativas para um grande número de
pessoas durante um longo período de tempo tendem a se inserir no inconsciente coletivo.
Complexos, segundo a teoria junguiana, são agrupamentos de imagens afins que
se conservam juntas por meio de um colorido emocional comum. Os complexos são
conteúdos básicos do inconsciente pessoal.
Articulando estes dois conceitos, cada complexo na esfera pessoal consciente ou
inconsciente é formado a partir de uma matriz arquetípica; portanto, no interior de todo e
qualquer complexo reside um arquétipo.
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O ego (como veremos adiante) se forma a partir do núcleo arquetípico do self, e a
camada arquetípica da psique tem capacidade de formar símbolos. Jung denominou
esta capacidade para formar símbolos reconciliatórios de função transcendente, porque
pode transcender a tensão de opostos.
Grande parte das produções expressivas em Arte Terapia reside em ampliar
imagens para que o ego experiencie sua conexão com o mundo especifico.
2.2.3.2 – Estrutura da Identidade: Ego e Sombra
A estrutura do ego se forma muito cedo, inicialmente alimentada pela relação
mãe / filho, depois ampliada pela unidade familiar, e ainda mais tarde pelo meio, a
cultura.
No processo de formação do ego a família exerce uma forte influência. Ela
desempenha um papel determinante no desenvolvimento da identidade do ego da
criança, moldando-o muitas vezes pelas suas próprias preferências e aversões, abafando
assim as tendências inatas. Sorte que este material abafado pela família não se perde,
nem mesmo é jogado fora: ele tende a se aglomerar, a buscar um lugar no inconsciente
pessoal para residir, por vezes por longos e escuros anos. Jung nos diz que, quando
uma parte de um par oposto é trazido à luz da consciência, outra parte é rejeitada,
metaforicamente recai na sombra.
Os conteúdos e qualidades da sombra que acompanham o ego em
desenvolvimento se encontram vivos, e grande parte do processo de analise é criar um
lugar seguro para que se possa reexaminá-los e integrá-los.
A sombra é a morada de todos os aspectos inaceitáveis de nós mesmos: os
desagradáveis, os repugnantes, os intoleráveis, os negligenciados. Ela é nossa parte
inferior, a que rejeitamos e reprimimos, guardando-a a sete chaves no porão de nossa
28
alma, com a fantasia de não nos depararmos mais com ela. No máximo a vemos
projetada no outro, fora de nós.
Projeções de toda espécie turvam nossa visão do outro, oferecendo-nos uma
percepção e um sentir estéril, vazio, destruindo qualquer possibilidade de um
relacionamento humano autêntico.
A sombra, para Jung, é um aglomerado de pequenas fraquezas, complexos,
imaturidades, todos os aspectos que rejeitamos. Muitas vezes ela se apresenta com um
ato impulsivo ou inadvertido e torna-se hostil quando é ignorada ou incompreendida.
Mas a sombra não guarda somente estes aspectos tenebrosos, ela também
é residência dos potenciais criativos, dos traços positivos, de qualidades e valores que
não tiveram espaço para se desenvolver, devido às adversidades e a condições
externas desfavoráveis.
A sombra contém valores necessários à nossa consciência. Iluminá-la, colocar
focos de luz em diversos cantos e recantos dessa casa, que vive na penumbra, é uma
tarefa que precisamos assumir para seguirmos nossa jornada em direção à individuação.
Aquele que se aventurar a seguir este rumo percorrerá trilhas difíceis, incertas,
com subidas e descidas, curvas fechadas, paisagens turvas, outras jamais percebidas.
Enfrentando obstáculos, e com coragem, atravessamos toda a estrada, mesmo
com mau tempo e todos os demais contratempos.
A sombra pode se colocar à nossa disposição como excelente aliada, basta não a
ignorarmos. Perceber sua existência e compreendê-la são atitudes que nos facilitarão
chegar ao grande continente de nós mesmos.
A escuridão da sombra nos guiará como uma lanterna luminosa, clareando as
pulsões reprimidas, os valores rejeitados, a parte que falta à personalidade para que a
mesma possa completar-se, evoluir e individuar-se.
“O confronto com a sombra é para a consciência uma necessidade terapêutica e, na verdade, o primeiro requisito de qualquer método psicológico completo. Ao final, isto deve levar a algum tipo de união,
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embora a princípio a união consista em um conflito declarado que pode assim permanecer por longo tempo.” (C. G. Jung apud Daryl Sharp, 1991, p.150)
2.2.3.3 – Estruturas Relacionais: Persona, Anima ou Animus
A identidade realçada do ego manifesta-se mais claramente quando se relaciona
com os outros. As duas formas estruturais facilitadoras desta tarefa são: persona e
anima ou animus.
Persona
O ego em desenvolvimento escolhe vários papéis, para integrá-los na
identidade do ego dominante. Quando refletem verdadeiramente as capacidades do ego,
esses papéis facilitam a interação social sem trazer maiores transtornos. O ego
saudável pode adotar diferentes papéis de persona, de acordo com as
necessidades de uma determinada situação. Em muitos momentos da vida, o homem
assume uma aparência que em geral não corresponde ao seu modo de ser autêntico,
mas pensa que necessita fazê-lo. Buscando se adaptar às exigências do meio em que
vive, na fantasia de pertencer a este, desempenha, representa uma serie de papéis, que
sem dúvida o afastam de si mesmo, direcionando-o para as expectativas sociais. O
homem passa então a se apresentar ao mundo mais como este espera do que como ele
mesmo o é, ou como desejaria sê-lo.
A esta aparência artificial Jung chamou de persona. Interessante lembramos, em
caráter ilustrativo, que os antigos gregos usavam esta expressão para denominar a
máscara que o ator vestia para o papel que iria desempenhar.
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A persona representa um sistema útil de defesa, o qual pode ser tão
valorizado e estimulado que o ego enfraquecido acaba identificando-se de tal forma,
que se confunde com a persona, distanciando-se largamente do seu verdadeiro
núcleo, que é o self.
Um dia, ao acordarmos por alguma aventurança, somos indagados: Quando esta
máscara for retirada, que rosto aparecerá? Esta é uma pergunta difícil e incômoda de se
responder.
Nos distanciamos tantas vezes de nós mesmos que corremos o risco de não nos
reconhecermos mais, não sabermos o que é verdadeiro, o que é emanado do nosso
interior, da nossa natureza intrínseca.
Podemos nos deparar com uma face desconhecida, alguém estranho, um
estrangeiro ou mesmo um forasteiro da alma.
Despir a persona é permitir a emersão de sua identidade mais autêntica, é poder
olhar e se reconhecer, perceber cada traço e expressão de sua face.
Recuperar a nós mesmos em geral significa conhecer, aceitar nossos opostos,
aceitar nossos vários ângulos, mesmo aqueles que não sejam os mais favoráveis, mas
que são nossos.
“Em algum lugar, lá no mais profundo de nós mesmos, em geral sabemos aonde ir e o que fazer. Mas há ocasiões em que o palhaço a que chamamos ‟eu‟ age de modo tão irrefletido que a voz interior não se consegue deixar ouvir.” (Marie Louise von Franz, 1964, p.176)
Anima ou Animus
Em um dos seus “Diálogos” – O Banquete –, Platão apresenta o mito dos
andrógenos, na voz de Aristófanes. Os andrógenos eram bissexuados, redondos, ágeis,
tão possantes que Zeus se aterrorizou e, para reduzir-lhes a força, os dividiu em duas
metades: Masculino e Feminino. Desde então, cada um procura a sua metade. Os
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humanos até hoje sofrem este sentimento de estarem incompletos quando se encontram
sozinhos.
“Anima e Animus são entendidos por Jung como um complexo funcional que se comporta de forma compensatória em relação à personalidade externa, de certo modo uma personalidade interna que apresenta aquelas propriedades que faltam à personalidade externa, consciente e manifesta. São características femininas no homem e masculinas na mulher que normalmente estão sempre presentes em determinada medida, mas que são incômodas para adaptação externa ou para o ideal existente, não encontrando espaço algum no ser voltado para o exterior.” (Emma Jung, 1967, p.15)
Jung afirma que a anima é a natureza feminina que reside no inconsciente do
homem e que corresponde ao Eros materno. O animus na mulher corresponde ao Logos
paterno.
A anima oferece ao homem um caráter emotivo e sensível; em contrapartida, o
animus oferece à mulher capacidade de reflexão, de autoconhecimento. A anima é a
personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem. Jung
aponta quatro estágios principais da anima ao longo do desenvolvimento psicológico de
um homem. Ele as personificava como Eva, Helena, Maria e Sofia. James Hall (1983)
as descreve muito bem.
No primeiro estágio, Eva, a anima está completamente ligada à mãe, à imagem de
mãe provedora de alimento, segurança e amor. O homem com a anima estacionada
neste primeiro estágio poderá sentir dificuldades de manter uma conexão vital com a
mulher, freqüentemente sofrerá de impotência ou de completa falta de desejo sexual.
Deverá ser facilmente controlado e subjugado por ela.
No segundo estágio, Helena de Tróia, a anima é a imagem sexual coletiva, ela se
estende a ídolos, artistas, figuras eróticas femininas. O homem que se encontra neste
estágio freqüentemente corresponde à figura de um Don Juan, que se entrega a
inúmeras e repetidas aventuras sexuais. Nenhuma mulher real pode atender suas
expectativas, seu coração será volúvel, não haverá espaços para enraizar-se.
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No terceiro estágio da anima surge a personalidade de Maria. O homem que tem
sua anima morando neste estágio é capaz de ver uma mulher como ela é, constituir laços
de amizade entre os sexos, sua sexualidade está integrada com sua vida. O homem
neste estágio de anima conhece a diferença entre o objeto de seu desejo e sua imagem
de mulher interior, e é capaz de estabelecer relacionamentos duradouros.
No quarto estágio – Sofia (sabedoria) – a anima funciona como uma lanterna,
guiando o homem para a vida interior. Sofia, mediadora dos conteúdos do inconsciente
para a consciência, estimuladora das questões filosóficas, é a companheira natural do
velho sábio, é a musa criativa na vida do artista. A sexualidade de um homem neste
estágio é exuberante, pois a dimensão espiritual se faz presente.
O homem percorre estes vários estágios durante sua vida. Na medida em que
novas necessidades surgem, a psique estimula a transposição dos estágios.
Analogamente, o animus em uma mulher também segue os estágios que a anima
percorre.
Primeiro ele aparece como uma encarnação do poder físico. Para a mulher com
tal animus, o homem é um falo, e serve para fertilizar a fêmea.
No segundo estágio, o animus possui iniciativa e capacidade para a ação
planejada. Ele se manifesta pelo desejo da mulher de ser independente, ter uma carreira
e vida própria, mas a mulher ainda se relaciona com o homem no nível coletivo: ele é
pai, marido, ainda é o provedor e mantenedor da casa.
No terceiro estágio, o animus é a palavra. A mulher neste estágio respeita o
aprendizado, produz trabalhos criativos, exercita a mente, exercita sua produção
intelectual. Ela é capaz de relacionar-se, de casar-se com o homem no nível individual,
de vê-lo com possibilidades de amor, e não mais como fecundador ou provedor.
No quarto estágio, o animus é encarnação do significado espiritual, servindo de
mediação entre o consciente e o inconsciente da mulher. A sexualidade está imbuída de
significação espiritual.
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O modo usual de experimentarmos a anima ou o animus é através das projeções
em uma pessoa do sexo oposto. Mesmo em projeção, sua função é ampliar a esfera
pessoal da consciência, estimulando e impelindo o ego para questões que não foram
integradas.
A retirada da projeção, quando acompanhada pela integração dos conteúdos
projetados, oferece maior consciência de nós mesmos, ampliando nossos horizontes e
facilitando nosso relacionamento com os outros e com as outras partes de nossa própria
psique.
A dinâmica do relacionamento da anima ou do animus sofre uma influência direta
ou indireta de como eles vivenciaram sua primeira morada. No animus, o pai é o primeiro
receptáculo, e na anima, a mãe. Também são influenciados, direta ou indiretamente,
pela forma como cedem seu lugar, se é que o fizeram. Se esta movimentação não é
realizada com êxito, a anima é transportada, sob a imagem da mãe, para a namorada, a
esposa, a amante, acontecendo o mesmo caminho com o animus.
Na primeira metade da vida, segundo Jung, a anima é projetada de preferência
no exterior, sobre seres reais; já na segunda metade, é o feminino do homem, durante
anos reprimido, que entra em cena, mesmo não sendo chamado e desejado. Isto
também ocorre com o animus.
A anima, segundo Marie Louise von Franz, tem como uma de suas funções
sintonizar a mente masculina com seus valores interiores positivos, abrindo um caminho
mais vasto e longo para um mergulho interior mais profundo. Quando integra sua anima,
o homem a convida a voltar ao que era inicialmente, “a mulher no interior do homem”,
transmitindo-lhe as imagens vitais do self.
O mesmo pode ocorrer com o animus. Ele pode tornar-se um companheiro
interior precioso que vai presentear a mulher com várias qualidades masculinas, tais
como iniciativa, coragem, objetividade, sabedoria e, na sua forma mais elevada, uma
espiritualidade profunda.
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O “demaquilar” da persona,
A iluminação dos aspectos sombrios,
O desmoronamento das projeções,
O reconhecimento da natureza feminina no inconsciente do homem,
O reconhecimento da natureza masculina no inconsciente da mulher,
A conjunção dos opostos,
O encontro do self,
Todos esses são passos indiscutíveis e imprescindíveis para quem desejar
ganhar o passaporte para chegar ao seu núcleo central.
Neste momento o ego deixa de coincidir com o centro de nossa identidade,
oferecendo este lugar ao seu único e legítimo proprietário: o self.
O processo de individuação é longo e árduo, muitas vezes nebuloso, mas à
medida que evolui, fortalece, clareando as trilhas de nossa jornada, nos estimulando a
prosseguir em nossa completude.
Podemos com alguma freqüência nos perguntar: e se não prosseguirmos?
Se optarmos por não prosseguir, precisaremos de mais energia e coragem para
enfrentarmos as tramas das projeções, as fusões e confusões com o outro, a
deformação, o desacordo do eu.
Um caminho escuro e espesso nos aguarda.
“A incompatibilidade do indivíduo com o mundo interior tem conseqüências tão nefastas quanto o desconhecimento e a falta de aptidão com o mundo externo.” (C. G. Jung apud Elie G. Humbert, 1985, p.89)
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3) BIODANZA E ARTE TERAPIA – CAMINHOS QUE SE ENCONTRAM
“Será possível que a humanidade, tendo conquistado todos
os ambientes da terra (inclusive o espaço extraterrestre),
possa estar chegando ao fim, enquanto nossa civilização se
vê diante do risco real de extinção, só porque o ser humano
ainda não conseguiu conquistar a si mesmo, compreender
sua natureza e agir a partir deste entendimento?”
Humberto Maturana e Francisco Varela
A Biodanza e a Arte Terapia oferecem fios para uma grande tapeçaria. Acolhem
cada máscara que cai, até que por fim se vislumbra a beleza da face escondida e, ao vê-
la, se depara com a obra-prima do criador.
Seja qual for nossa história, seja qual for nossa dança, com certeza não
precisaremos mais escondê-la, ou caminhar solitariamente, pois já nos teremos como
presença vitalícia.
Não precisaremos da aprovação ou aceitação do outro, não necessitaremos mais
projetar no outro o que é nosso, não nos assustaremos tanto, ou mais, com a
manifestação de nossos aspectos sombrios, personificação da anima ou do animus em
determinados momentos de nossas vidas, pois o facho de luz atravessou a nossa
máscara e iluminou nossa verdadeira face.
Percorrer o valor estético de nossa arte não nos algema mais; a nossa produção
é bela, pois é nossa; reconhecer e aceitar o que somos é a grande arte magna.
Nesta tentativa de aproximação entre Biodanza e Arte Terapia, mergulhei em
reflexões sobre as influências das sessões de Psicoterapia e das aulas de Biodanza
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sobre um grupo de clientes/alunos. As transformações ocorridas, as mudanças de estilo
de vida, a relação com eles mesmos e a nova maneira de se relacionarem com o mundo
foram evidenciando o grande potencial da utilização simultânea das duas técnicas.
Uma imagem subitamente se desenhou à minha frente, reportando-me ao tempo
em que cursava o ginásio, decerto uma aula de matemática. O tema deveria ser teoria
dos conjuntos.
Esta era a imagem a que as duas práticas apaixonantes me remetiam. Em
seguida, outra imagem surge, representando fielmente o titulo provisório que havia dado
a este trabalho – Caminhando de mãos dadas.
Tanto o conceito de interseção como a imagem de entrelaçamento das mãos nos
remetem a um lugar comum, que é o território dos elementos que pertencem
simultaneamente às duas técnicas (dois ou mais conjuntos). Duas técnicas que guardam
e respeitam suas singularidades e, numa atitude de afeto e respeito à vida, elas se
unem, dão-se as mãos, criando um espaço comum para a transformação.
A partir deste momento, passearemos pelo espaço criado pela interseção,
desfrutando as belas paisagens presenteadas por essa união.
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3.1 – Território Sagrado
O espaço em que tudo isso ocorre é um espaço sagrado, um verdadeiro templo,
um grande útero, onde se gesta, com respeito e amor, a vida.
O setting terapêutico e/ou a sala de aulas de Biodanza é um território sagrado, um
local de germinação e colheita de potenciais criativos, do revelar e des-revelar
sentimentos, um território de encontros, fonte inesgotável de nutrição, continente seguro
para aportarmos nossas histórias, nossas pinturas e danças da alma.
É um espaço claro, limpo, efetivamente ecológico e cosmológico. Nesta
atmosfera o facilitador exercerá o oficio da arte, respeitando, estimulando e celebrando,
com cada um dos seus participantes, o nascimento de uma imagem, de um movimento,
enfim, de suas vivências.
Em um movimento de escuta, acolhemos o que nos é dito em palavras, em
gestos, imagens e danças. Criamos assim um espaço, uma casa, para as partes sem lar
que existem dentro de nós e do outro.
Caminhar de mãos dadas com cada um tem sido uma das minhas mais ricas
experiências de vida, oferecendo-me reflexões, questionamentos e respostas para muitas
das minhas indagações; é, sem dúvida, um crescer junto.
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3.2 – O Facilitador – Braços Abertos
“São tantas (emoções) já vividas,
são momentos que eu não esqueci
detalhes de uma vida,
historias que eu contei aqui.”
Roberto Carlos (“Emoções”)
Facilitadores, somos grandes felizardos e privilegiados, porque no dia-a-dia do
nosso ofício participamos de muitos nascimentos, partilhamos diversas descobertas,
nutrimos com os nossos vínculos várias sementes, compartilhamos de muitos momentos
de prazer, de dor e de aconchego.
Presenciamos silenciosa e entusiasticamente o surgir:
De uma nova cor,
Um movimento mais fluido de braços,
Um tônus muscular mais relaxado,
Um sinergismo no andar,
Uma conexão de olhares,
A evolução de uma rabiscação,
A criação de um personagem através das dobras e costuras de retalhos,
A evolução de um aperto de mão automatizado a um abraço ao irmão.
Compartilhamos de inúmeras gestações, motivadas pela musica, pela tinta, pelo
barro, pelo conto, pelo sonho...
Em uma preocupação constante pela escolha adequada de materiais expressivos
ou de músicas orgânicas para deflagrar as emoções, criando estratégias criativas que
favoreçam a transformação,
39
Somos presença de confiança e facilitação para que cada um se
sinta livre e protegido para sentir e dançar sua própria dança, sem temores
e repressões;
Somos presença encorajadora, para que possam criar e recriar
suas pontes, seus acessos às suas potencialidades, aos seus sentimentos
e afetos esquecidos, alguns jamais vivenciados;
Somos presença afetuosa, para que imagens ameaçadoras, porta-
vozes dos medos, lutos, perdas, choros escondidos e guardados por
muitos anos, possam ser expressos, confrontados, transformados em sua
própria metamorfose.
Caminhar juntos, de mãos dadas, é antes de tudo um ato, um movimento de
respeito à ética e ao amor. Tanto na Biodanza quanto na Arte Terapia o facilitador não
se encontra atrás ou na frente do outro, mas sim ao seu lado.
Nos emocionamos, dançamos, pintamos, modelamos, nos integramos,
construímos trilhas para chegarmos à harmonização guiados pela bússola do saber, do
sentir, da visão ecológica e, sem dúvida, do mais antigo e perpétuo sentimento: o amor à
vida.
40
3.3 – Enfoques Teóricos e Metodológicos
Mecanismos de ação – Os mesmos princípios que regem a Biodanza, criados
por Rolando Toro, podem reger a Arte Terapia sem causar nenhum ferimento à teoria e à
metodologia, com exceção do principio de estrutura grupal. A Arte Terapia é uma técnica
não estritamente grupal, mas o conceito de grupo, como matriz, continente de proteção e
acolhida afetiva, é comum.
Diagnóstico – A Biodanza e a Arte Terapia não se prendem a diagnósticos
nem enfatizam os sintomas. Citando Jung (1999a),
“O diagnóstico é uma questão completamente irrelevante, já que, fora a fixação de um rótulo mais ou menos adequado à condição neurótica, nada se ganha com ele, muito menos no que diz respeito à prognose e à terapia.” (p.195)
Singularidade – A Biodanza e a Arte Terapia respeitam a singularidade
expressiva. Ambas não se importam com o valor estético, a performance dos
movimentos, sejam eles traçados no próprio corpo ou em uma tela. Não existe lugar para
correção, tudo que é expresso será acolhido, pois cada passo, cada traço, é a própria
expressão da identidade vindo à tona.
Conexão com a vida – Buscando as palavras de Rolando Toro, temos que:
“A função de conexão à vida é uma das mais evoluídas que pode alcançar o homem. Sendo a função primordial que permite a existência da vida, deve chegar através de um largo processo de maturação interior e ser uma atitude consciente desde onde se inicia de novo o contato com o primordial. [...] Despertar a arcaica função de conexão à vida é um objetivo [...] Em Biodanza, a função de conexão à vida se treina dentro de três níveis: Conexão consigo mesmo. Conexão com o semelhante. Conexão com o universo.” (s.d., p.30)
41
Confirmando o encontro das duas teorias, citamos a seguir Jung sobre os três
níveis abordados pela Biodanza.
Encontramos uma clara referencia à conexão consigo mesmo em:
“Emprego a expressão individuação para designar o processo pelo qual um ser torna-se um individuo psicológico, isto é, uma unidade autônoma e indivisível, uma totalidade.” (C. G. Jung apud Elie G. Humbert, 1985, p.255)
Para o ser humano encontrar sua totalidade, é necessário que esteja conectado
consigo mesmo.
Em relação à conexão com o semelhante, encontramos:
“A realização consciente da unidade interior é inseparável da relação humana que lhe é condição indispensável, pois sem ligação conscientemente reconhecida e aceita com o próximo não é possível a síntese da personalidade.” (C. G. Jung, 1998, p.95)
Em relação à conexão com o universo, temos que:
“A individuação não exclui o universo, inclui-o.” (C. G. Jung apud Elie G. Humbert, 1985, p.554)
Ato intimo de curar – Segundo Rolando Toro,
“Cada pessoa participa de sua própria cura, ao mesmo tempo que contribui para a cura dos demais.” (s.d., p. 153)
E Jung, no livro Dois Ensaios, nos diz:
“Só a própria pessoa tem o poder de curar.” (parágrafo 258)
Técnica não-interpretativa – Tanto a Biodanza quanto a Arte Terapia não se
utilizam do recurso da interpretação. Jung descreve o processo analítico em quatro
estágios: confissão, elucidação, educação e transformação. Seguindo este roteiro, o ser
humano percorre o caminho da individuação.
42
“Não é necessário interpretar desenhos, imaginar o que eles significam. Você os faz e convive com eles. Alguma coisa acontece entre você e aquilo que cria. Não precisa ser expresso em palavras para ser eficaz.” (Daryl Sharp, 1995, p.150)
A vivência, para a Biodanza, tem um valor em si mesma, é completa e cheia de
sentidos, dispensando qualquer nível de interpretação. Segundo Rolando Toro, a
elaboração das vivências se faz a nível corporal.
Linguagem não-verbal – Tanto a Biodanza quanto a Arte Terapia se utilizam
de um processo predominantemente não-verbal. Em Biodanza, a palavra só é utilizada
para compartilhar sensações da vivências, e é facultativa. Em Arte Terapia, é utilizada no
decorrer ou após a conclusão das atividades plásticas, com o mesmo sentido, ou seja,
compartilhar as emoções surgidas durante o trabalho.
Conceitos teóricos – A Biodanza, ao longo de sua evolução, se alicerçou em
alguns conceitos junguianos. Os conceitos de inconsciente coletivo e de inconsciente
pessoal estão integrados no modelo teórico da Biodanza. Outro conceito em
comum é o de transtase, proposto por Rolando Toro, e o de função transcendente, de
C. G. Jung, “que dão acesso a um novo nível de integração dentro da rampa evolutiva.” -
Toro.
Jung (1971) nos explica:
“A energia anteriormente presa num estado de indecisão é liberada, e o movimento torna-se possível [...] É chamado de função transtase porque torna possível organicamente a passagem de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente.” (p.145)
Outra questão convergente é o conceito de arquétipo e imagens arquetípicas, e as
posições geratrizes em Biodanza.
Rolando Toro nos diz que, desde os primórdios da história humana até os nossos
dias, o homem realiza alguns “gestos eternos”. Ele pesquisou o repertório gestual de
diversas culturas, confirmando a presença de várias manifestações simbólicas iguais, e
43
selecionou algumas que, em seu parecer, poderiam deflagrar, harmonizar, integrar e
expandir o vínculo total com a vida. Dançar essas manifestações simbólicas é a
possibilidade de estimular a energia psíquica e vital. As energias se expandem no
organismo e a imagem arquetípica estrutura simbolicamente o psiquismo.
Paralelo a isto, Jung nos diz:
“Tem-se uma neurose por ignorar as leis fundamentais do corpo vivo e ter-se afastado delas.” (C. G. Jung apud Elie G. Humbert, 1985, p.131)
Expressão das emoções – Segundo Rolando Toro,
“A parte „sombria‟ formada por emoções negativas, como angústia, ódio, medo, depressão, etc., tem expressão em Biodanza somente dentro de um contexto criativo, porque só a arte pode abarcar e conter o mal e fazer com ele algo valioso e pleno de sentido.” (s.d., p.207)
Angústia, medo, depressão são sentimentos expressáveis através de criações
plásticas. A produção plástica serve de canal para trazer à tona os conteúdos reprimidos
e oprimidos.
A figura do facilitador / terapeuta – Como escreve Maria Lucia Pessoa (1996),
é
“indispensável para o facilitador o comprometimento com seu próprio crescimento e com o crescimento do outro. Cada palavra-ação pode ser desenvolvida durante o processo de tornar-se facilitador: acolher, aceitar, estimular, saber ouvir, saber calar, compreender, perceber, sintonizar, saber-se em processo de crescimento, desenvolver a auto-estima, reconhecer seu valor pessoal. E ainda qualificar-se e qualificar o outro, reconhecendo seus talentos e valores; desenvolver a capacidade de observação e reflexão; aumentar a tolerância à ambigüidade; ter sensibilidade aos processos individuais e do grupo.” (p.103)
Pelo lado da Arte Terapia, podemos citar Ângela Philippini (2000):
“Construir, manter, cuidar e ampliar espaços acolhedores ao processo criativo para que as subjetividades imagéticas tenham vez e voz, e
44
deste modo cada um possa se reconhecer em sua própria produção expressiva. Favorecer a expressão e expansão das atividades criativas de cada cliente, através do convívio terapêutico, será facilitado também pela construção e ampliação das próprias vivências criativas do arteterapeuta.” (p.29)
Finalizando os exemplos do modo de ver convergente do terapeuta / facilitador em
Biodanza e em Arte Terapia, podemos citar Jung:
“O trabalho terapêutico requisita o homem inteiro.” ( Psicologia e Transferência , p.55)
45
4) CONTOS, CASOS, DANÇAS E CAUSOS
“Pra começar, quem vai colar os tais caquinhos do velho mundo.
Pátrias, famílias, religiões e preconceitos,
Quebrou não tem mais jeito.
Agora descubra de verdade o que você ama, que tudo pode ser
seu,
Tudo caiu e tudo caia, pois tudo raia.
O mundo pode ser seu.”
Antonio Cícero (“Pra começar”)
4.1 – Caso Clínico
Sr. Dig, sexo masculino, 45 anos de idade, casado, pai de dois filhos, educação
superior.
Queixa principal:
Há cinco anos o paciente se sentia deprimido, não se motivava em sair de casa,
nem mesmo para ir ao trabalho.
Apresentava um discurso confuso, repetitivo, orbitando em torno do medo de viver
e do medo de se confrontar com as complexidades que o mundo lhe apresentava. A vida
lhe parecia um palco de dificuldades e doenças, suas narrativas eram freqüentemente
interrompidas por fortes crises de choro. Desde o início do processo terapêutico
mostrou-se assíduo e cooperativo, participava das sessões oferecendo um rico material.
Apesar de afirmar suas dificuldades de expressão, calando-se na presença do outro, sua
fala era fluente e ansiava por respostas rápidas. Constantemente se queixava de dores,
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falava de suas idas aos médicos, ou relatava suas desconfianças em relação aos
funcionários de sua empresa: sempre imaginava que alguns deles o lesavam ou
desejavam fazê-lo. Ele descrevia sua vida afetiva sexual de uma forma monótona e
insatisfatória, passava por uma crise conjugal culminando em pensamentos de
separação. Sentia-se rejeitado pela mulher, mas não havia nada que pudesse fazer a
respeito.
Por mais infeliz que se sentisse, não via possibilidades de viver sem sua estrutura
familiar.
Sua vida social não era tão diferente: seu convívio era restrito, não tinha hábitos
sociais tais como ir ao cinema, jantar fora, fazer pequenas viagens, participar de festas
ou comemorações.
Filho primogênito de uma família de classe média, guardava princípios morais
rígidos e severos. Sem permissão para errar, ocupava o lugar daquele que deve dar o
exemplo.
Sem perceber a sutil trama familiar, ele aceitou os mandatos que lhe foram
impostos:
– Seja forte.
– Seja perfeito.
– Agrade sempre.
Ironicamente, sua história era povoada de medos e inseguranças. A vida o
assustava, optou por um mundo mais hermético, tendo como companhia seus diálogos
internos, que o alimentavam de ressentimentos, autopiedade, sentimentos de culpa e
pessimismo. Silenciava diante do amor e da alegria de viver; mudo para o mundo, se
distanciava de todos e de si mesmo. Escondido na sua persona, evitava de todas as
maneiras iluminar seus aspectos sombrios.
Eu estava diante de um homem dividido entre cabeça e coração, razão e emoção,
desejo e dever, Eros e Thanatos.
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Um conflito secreto estava devastando seu coração, não sei se ele tinha ciência
disso, penso que não. Suas defesas o impediam de perceber que a vida que vivia
encontrava-se em contagem regressiva.
Jung acredita que a eclosão de uma neurose é a oportunidade para nos
tornarmos conscientes, ou seja, descobrirmos quem somos, em oposição a quem
pensamos ser.
“O conflito gera fogo dos afetos e das emoções e, como todo fogo, possui dois aspectos, o de queimar e o de produzir luz. [...] A emoção é a fonte principal de realização da consciência. Sem emoção não há transformação da obscuridade em luz e da inércia em movimento.” (C. G. Jung apud Elie G. Humbert, 1985, p.40)
Diante do conflito e dos seus respectivos sintomas, colocamo-nos face a face com
nossas limitações. Diante delas surge sempre a possibilidade de descobrimos nossa
força e nossa verdadeira natureza. Portanto, a neurose assume um papel bem mais
positivo do que a maioria dos leigos lhe confere. Ela pode ser responsável por um
despertar, uma reavaliação, um questionamento existencial, como podemos fazê-lo
quando respondemos às três perguntas básicas que Rolando Toro nos propõe:
– O que quer fazer? (diz respeito à vocação)
– Onde quer viver? ( diz respeito ao ninho ecológico)
– Com quem quer viver? (diz respeito às relações afetivas)
Era hora de munir-se de coragem e enfrentar a vida, arregaçar as mangas da
camisa e se pôr ao trabalho, senão se afogaria neste mar de solidão.
Mergulhar em si mesmo é uma tarefa árdua, mas sem duvida fascinante.
A sombra, como vimos anteriormente, é também morada dos potenciais criativos,
dos traços positivos que não tiveram oportunidade de se desenvolver. Era isso que o Sr.
Dig precisava: iluminar seus aspectos sombrios, guardiões fiéis de suas potencialidades,
fazê-los emergir, resgatando a si mesmo.
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O conflito é a oportunidade para iniciar uma nova vida. Percorrer esta idéia é crer
que o sofrimento vivenciado pelo Sr. Dig o levara a uma nova e mais saudável
perspectiva de vida. Nesta difícil e apaixonante trajetória, contamos com grandes
aliados, bons parceiros, tais como:
Assiduidade, o desejo e a coragem do Sr. Dig em mergulhar no seu processo
em busca da individuação.
“... em cada caso, mais a ver com a motivação e potencial inato do que com qualquer coisa que o analista diga ou faça.” (Daryl Sharp, 1995, p.14)
“Só a própria pessoa tem o poder de curar.” (C. G. Jung, Dois Ensaios, parágrafo 258)
Atividade de Biodanza.
“Biodanza é a dança da vida.” (Rolando Toro, s.d., p.8)
Atividade de Arte Terapia.
O meu entusiasmo, o meu vínculo com o Sr. Dig e com essas práticas, nas
quais confio como auxiliares indispensáveis para chegarmos ao porto seguro.
Escutando seu Coração
Durante várias sessões eu apenas o escutava, sem interrompê-lo, isenta de
valores, julgamentos e interpretações. Era como se ele destampasse algo que há muito
tempo se encontrava fechado.
Uma enxurrada de sentimentos, pensamentos e questionamentos eram
despejados de uma forma desordenada e atropelada. Acolhi suas palavras, seu choro e
a sua dor.
49
O Sr. Dig se apresentava com uma aparência cansada e abatida, sua energia se
encontrava retrovertida, ativando fantasias infantis de um paraíso perdido.
Escolhi algumas produções plásticas para ilustrar a trajetória do Sr. Dig. O
objetivo dessas atividades, como já vimos anteriormente, é dar expressão às inúmeras e
ricas facetas da personalidade, muitas das quais não nos são conscientes.
Os desenhos, pinturas, personagem construído, conto, escultura e escrita criativa
falarão por si sós, dispensando qualquer interpretação. Eles irão nos assinalar o caminho
percorrido pelo Sr. Dig.
Nesta fase o Sr. Dig produziu o seguinte:
Desenho nº 1
Material oferecido ao paciente:
Uma folha de papel 40kg medindo 67cm x 98cm, superfície ampla para expansão.
Tintas de diversas cores.
Estratégia de liberação: a natureza do material é fluida.
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Mergulhar na sua escuridão era um caminho que não poderíamos deixar de
percorrer. Nesta escuridão encontrei:
Uma mãe depressiva, em tratamento medicamentoso orientado por psiquiatra
desde o seu nascimento.
Um pai profissionalmente bem-sucedido, mas alcoólatra. O Sr. Dig se
orgulhava de mencionar que foi ele quem levou e insistiu no tratamento do seu
pai, até obter êxito.
Um tio materno muito acolhedor. Tinha lembranças de um convívio agradável
e protetor, foi o tio quem propiciou seu primeiro emprego. Por outro lado, o tio
tinha comportamento depressivo e fazia uso de medicamentos, orientado por
psiquiatra. Este mesmo tio financiava o tratamento psiquiátrico de sua mãe,
quando esta não conseguia fazê-lo.
Uma lembrança de febre reumática contraída pelo seu único irmão, mais novo
que ele, aos quatro anos de idade, que resultou em um tratamento longo e
doloroso para todos.
Um casamento de aparências vivido pelos seus pais.
Uma primeira atividade sexual fracassada, deixando como herança a crença
de ser um homem pouco atraente e pouco potente.
Muitas outras histórias e fatos foram lembrados, passamos um longo período
mergulhados em sua escuridão.
A cada sessão o Sr. Dig se desnudava, escorrendo pelo seu rosto uma tinta que
já se desbotava; ele aos poucos percebia o contorno de sua face. Ainda estávamos no
primeiro estágio do processo analítico – confissão. O segundo estágio – elucidação – já
estava à nossa espera.
O Sr. Dig necessitava de, internamente, cumprir os mandatos impostos sutilmente
pelos seus pais. As razões eram bem claras: o apego à mascara, à imagem, e o papel
que desempenhava como homem forte, bom, inteligente, bem-sucedido, bem casado e
51
pai de dois lindos filhos. O Sr Dig se vê fortemente comprometido com a família, pois
essa é a sua persona. Ele deseja corresponder às expectativas familiares e coletivas,
vendo-se como pai de família genuinamente responsável e marido exemplar. Prefere,
como os pais, reduzir a importância que o amor e a sexualidade têm em sua vida,
abafando o sentimento em nome da preservação da imagem do homem exemplo, bom e
forte.
Desenho nº 2
Material oferecido:
Papel 40 Kg.
Tintas e lápis com diversas texturas.
Solicitei que desenhasse aquilo a que cada cor o remetia.
Desdobramento da imagem inicial.
52
Novos mergulhos foram feitos, nos deparamos com sentimentos de perda e o luto
que o assombrava. Falamos da morte do seu pai. Da cirurgia de joelho que precisou
fazer aos 20 anos de idade, quando jogava futebol em plena forma física. Jogar futebol
era na época sua grande paixão, interrompida abruptamente. Da sua saída de casa para
morar sozinho, aos trinta anos, e o quanto foi difícil para sua mãe aceitar esta decisão.
53
Várias cenas de desafeto surgiram a partir desta atitude, sua mãe somente conseguiu
visitá-lo mais de um ano após sua saída.
Nos reportamos aos encontros amorosos, que eram precedidos de crises de
vômito. Para solucionar este problema, o Sr. Dig deixava de se alimentar horas antes dos
encontros, acreditando que desta forma resolveria o problema.
Alguns sonhos neste percurso foram narrados. Os seus conteúdos eram
sombrios, falavam do despencar de aviões onde ele se encontrava, falavam de perdas e
lutos. Eles retratavam com muita riqueza a realidade do conflito que vivia. O Sr. Dig se
encontrava num estado de completa orfandade.
A depressão neste estágio de vida indica a necessidade de se perceber tudo
aquilo que não se é, mas se finge ser.
O Sr. Dig percebe e sente que muitos dos seus funcionamentos psíquicos estão
lhe consumindo por dentro; tudo se encontra fora do lugar, deixando um grande caos
interior. Diante de seu desenho, avistávamos uma vida embrionária, que inicialmente
aparece como pequenos pontos em uma superfície de tramas espessas, mas lá já se
fazia presente. Tramas e pontos mostravam o verdadeiro labirinto de sua vida. Seu
trabalho nos permitia, como o fio que Ariadne entregou a Teseu, percorrer os caminhos
de sua alma. Era a possibilidade que ele tinha de enfrentar com coragem seu Minotauro
e caminhar pelo seu labirinto mais fortalecido.
Muitos outros trabalhos plásticos e dinâmicas foram realizados. Lembro-me
agora de uma dinâmica muito interessante que o impactou. O Sr. Dig sempre
mencionava seu desinteresse por se alimentar, para ele as refeições eram atividades
automáticas, sem sabores, sem temperos, sem cheiros. Colocado de olhos vendados
diante de um prato com vários sabores, doces, salgados, picantes, azedos, o Sr Dig
identificou um número mínimo dos sabores apresentados; sua pressa o fazia misturar um
com o outro, perdendo sua próprias características, dificultando assim saborear e
identificar o que estava ingerindo.
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Foi um verdadeiro soco no estômago, por muito tempo esta sessão o
acompanhou. Ela lhe foi útil para uma maior compreensão do seu complexo materno e do
seu funcionamento sexual.
A alimentação está diretamente relacionada com as vivências protogênicas de afeto
e proteção. É através destas vivências que se pode estabelecer alguns mandatos de vida.
Esta vivência favoreceu o Sr. Dig a se aproximar do seu mundo sensorial, do qual se
encontrava afastado.
Desenho nº 3
Nos deparamos com uma criança desvalida e oprimida, sem espaço para o
desfrute. Ele precisava crescer o mais rápido possível, deixando para trás o seu estado
criança. Precisava ingressar no mundo do adulto precocemente, para sustentar
emocionalmente sua família, que decretava falência.
Pensei sobre o medo do Sr. Dig em deixar seus filhos; talvez fosse a sua criança
interior ansiando por segurança e proteção dos seus pais, identificando-se com os filhos
e suas necessidades.
55
A partir desta imagem desenhada (nº 3), o convidei para construir um
personagem. Sairia do plano bidimensional para o tridimensional. Ele achou a idéia um
pouco “diferente” e um tanto “esquisita”, nunca havia costurado nada até então e não se
imaginava fazendo. Eu compreendi o que ele me dizia. Penso que muitas vezes é difícil
ser diferente, fazer algo que nunca se fez, fugir das expectativas e previsibilidades. Esta
era um boa oportunidade do Sr. Dig experimentar o novo.
Na sessão seguinte, ele trouxe entusiasmadamente um saco cheio de retalhos,
que pesava aproximadamente 12 kg. Eu me surpreendi com a quantidade de panos
dentro do saco. Eram bem mais que simples retalhos, e nós sabíamos disso.
Registrei a abundância e o entusiasmo com que ele abraçou o início desta
atividade.
O passo a passo desta construção:
Desenhou sobre o pano o boneco;
Recortou;
As partes foram unidas com alfinete para segurar a costura;
As partes opostas foram costuradas.
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No decorrer desta atividade, que perdurou por longas e várias sessões, outras
histórias povoaram aquele setting sagrado:
Lembranças de menino bagunceiro e arteiro,
Um mundo mais colorido e excitante vinha à tona.
Historias de paquera, aventuras amorosas e sexuais foram lembradas,
Antigas namoradas foram ressuscitadas,
Grupos da praia, do violão.
Casa de veraneio, baile de carnaval
Sonhos com conteúdos eróticos foram narrados.
Como em um passe de mágica, ele abre o saco abundante de lembranças,
As revive intimamente,
Revisitando o garoto alegre e travesso que outrora ele fora.
Semanalmente, a construção do boneco de pano era sua própria
reconstrução.
Todas as histórias adormecidas pelo tempo e por sua condição interna
foram acordadas,
Estão despertas para serem revividas e recriadas.
O que fará o Sr. Dig com este menino?
O menino e o Sr Dig tiveram longas conversas e grandes encontros.
Um não podia mais ignorar a presença do outro.
Resgatar a presença do menino que o homem precocemente roubou,
Esta foi a grande construção.
A construção do boneco lhe serviu para integrar as partes fragmentadas,
compreender seu significado e transformar.
O Sr. Dig atravessou a fronteira da fragmentação, rumo a uma estrutura global;
este é objetivo da técnica de construção.
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Para cada transformação externa com os materiais expressivos, analogamente
são geradas transformações internas.
A sombra escondida revelava agora um homem atraente, desejoso de uma vida
sexual ativa e mais excitante. O homem que cobiçava outras mulheres era capaz de se
aventurar no amor e na paixão. O menino se tornava adolescente.
Clareava-se o complexo materno que o atava ao desejo de segurança e proteção,
castrando-o como homem capaz de seguir seus instintos e desejos.
A relação simbiótica que vivenciava com sua mãe foi transportada para sua
esposa. Ora sendo o pai que ela necessitava, ora sendo o filho. Como pai ele a protegia
e a provia, como filho obedecia seus caprichos, sendo um filho exemplar dentro do
modelo prescrito.
Parecia que o Sr. Dig tinha como companhia a sua anima no primeiro estágio –
Eva, provedora de alimento e segurança. Sua esposa parecia que tinha seu animus
estacionado no primeiro e segundo estágios.
Ambos tinham potencial para o sexo e para uma vida criativa repleta de desfrutes,
porém não conseguiam se realizar um ao outro. Estavam atados e regredidos na relação
pai e filho.
Os desenhos do Sr. Dig começavam a demonstrar seu desejo de romper as
relações simbióticas com as mulheres com as quais convivia afetivamente.
Desenho nº 4
Material oferecido:
Papel ofício 24 kg.
Lápis e tintas de diversas cores.
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No decorrer deste trabalho o Sr. Dig mencionava o desejo e os movimentos que
estava fazendo para romper com algumas regras e preconceitos, mostrava-se mais
confiante e maduro. A família lhe é importante, mas já consegue se ver como uma árvore
em crescimento fora do vaso, embora com algumas raízes ainda presas à segurança
do vaso.
“Não se pode abandonar uma forma de vida sem mudá-la por outra.” (C. G. Jung, 1963, p.149)
Desenho nº 5
Material oferecido:
Papel 40 kg.
Tintas de diversas cores.
Desejo de voar como pássaro livre.
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Escrita criativa realizada no mês de junho de 1996
Este texto foi escrito pelo Sr. Dig na sessão seguinte ao Desenho nº 5. Os grifos,
pontuação e divisão do texto foram respeitados integralmente.
Asas atrofiadas (título dado pelo Sr. Dig)
Asas atrofiadas impedem o vôo Você se torna presa fácil Cobaia de zôo Você precisa reagir! Lutar! Amar a reação e amar a luta Mudança de conduta Luta Vai em frente olhando para frente Seja capaz Você é capaz de ser capaz Ser Ser capaz Demais Assim você desatrofia E cria Cria coisas boas E voa Viu? É simples.
60
Segunda escrita criativa da sessão
(sem titulo)
Meu pássaro menor é feio, disforme, triste e frágil Não gosto dele, não quero ele Mas ele faz parte de mim Preciso aceitá-lo para modificá-lo Para que haja mudança é preciso aceitação e não destruição Embora às vezes em momento de fraqueza desejo destruí-lo Sinto que o processo mais sábio e menos sofrido é a TRANSFORMAÇÃO É o CRESCIMENTO Por isso meu pássaro feio, disforme... se transformou em um pássaro
AZUL Com formas de pássaro que só a natureza sabe desenhar. Pronto para alçar vôo para se defender dos predadores e buscar a
HARMONIA COM A NATUREZA E voando cada vez mais alto para encontrar quem sabe outros pássaros,
onde lá debaixo só se viam nuvens é possível perceber a presença de anjos e a sensação de estar mais próximo a Deus.
Em sua escrita criativa, podemos observar uma religação com os conteúdos
transcendentes. ( Devemos entender função transcendente no sentido junguiano, como
transtase em Biodanza. )
Estas atividades ensejaram a continuidade do trabalho utilizando o conto de
fadas “O patinho feio”.
Preliminarmente, faremos algumas considerações sobre o conto de fadas acima
citado, contextualizando-o à luz da teoria junguiana.
“O patinho feio” trata do arquétipo do ser incomum e desvalido. Foi uma das
poucas histórias a incentivar sucessivas gerações de gente “diferente” a encontrar sua
turma.
Os significados básicos que nos interessam, segundo Clarissa Pinkola Estés
(1994), são:
O patinho simboliza a natureza selvagem que, quando forçada a enfrentar
circunstâncias poucos propícias, luta instintivamente para continuar vivendo. Outra
questão a ser examinada é o exílio. Neste conto o personagem central é torturado por
acontecimentos alheios a si, à sua influência e vontade. Tem como origem um
61
esquecimento total, o qual tenta superar aproximando-se de uma família que pensa ser a
sua. Percebe com rapidez que é rejeitado.
A rejeição, a criança diferente é outro tema abordado neste conto:
O patinho na realidade não é feio, só não se parece com os demais; ele é
diferente, ele não corresponde à imagem dessa pseudo família. Sofre a pressão de se
adequar e, dependendo do grau de intensidade desta pressão, pode se sentir
perseguido, maltratado e com o coração apertado; pode fugir para longe, para um
mundo oculto, ou vaguear por tempo indeterminado à procura de um continente seguro
para se abrigar e ser feliz.
A trajetória que o nosso personagem percorre foi longa e turbulenta, mas ele não
desistiu, a natureza selvagem persistiu e triunfou.
O patinho vagueou até encontrar o que precisava, sentiu-se só, com frio, acuado,
perseguido, rejeitado; sentiu-se intruso, aqui de forma desengonçada e atrapalhada.
Desesperado no desejo de abrandar seu isolamento, bateu em várias portas, todas sem
êxito, em cada incursão ganhou novas feridas, novos maus tratos, aumentando ainda
mais sua ferida original.
Depois de tanto sofrer e vaguear, ele conseguiu atravessar a fronteira do seu
próprio território. Ele é percebido com maior naturalidade, sem críticas e interjeições. Ele
é admirado, até mesmo contemplado. Ele pisa no seu próprio chão psíquico.
A psique selvagem consegue resistir ao mau trato, à rejeição, ao isolamento, e
quando se encontra em situação limite, que pensa não poder mais sustentar, algo
inesperado ocorre, oferecendo uma direção a seguir.
Nosso patinho passou pelo desfolhamento do outono, enfrentou o gelo e a frieza
do mundo no inverno.
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Desnutrido, no limiar da vida e da morte, longe de sua família psíquica, resistiu
como herói; agora é tempo de primavera, é hora de migrar de volta para a terra de sua
própria gente.
O conto finaliza com a chegada da primavera.
Esta história, para o Sr. Dig, foi como a última caixinha de Pandora: ela guardava
o tempo da esperança.
E a história continua...
A contribuição da Biodanza para o Sr. Dig
Paralelamente ao processo psicoterapêutico, o Sr. Dig iniciou o trabalho de
Biodanza em grupo regular, desde a formação do grupo, há 3 anos atrás.
Desde o início ele se entusiasmou com as aulas de Biodanza. Sempre muito
assíduo, sentia-se integrado e vinculado ao grupo. Gostava de expressar-se e de
partilhar as suas vivências e sentimentos com o grupo, não temendo se revelar para os
outros. No princípio sentia-se um pouco inadequado quando não era escolhido ou
quando não conseguia escolher a pessoa com a qual desejava partilhar a vivência
(reminiscências do Patinho Feio).
Passo a passo, esta sensação de desconforto foi dando lugar a vivências
mais indiferenciadas; já não era mais importante o com quem fazer, mas sim o sentir-se
fazendo.
No decorrer dos últimos três anos, foram muitas as vivências que o Sr. Dig
partilhou com o grupo. No âmbito deste trabalho serão descritas algumas que melhor
demonstram a evolução do seu processo de crescimento.
Comecei trabalhando as categorias de movimento. O Sr. Dig apresentava um
caminhar pouco vigoroso, pouco vital e ligeiramente robotizado. Mover-se no mundo era
uma tarefa árdua e pesada para ele.
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Propus várias modalidades de caminhar, respeitando sempre o princípio da
progressividade: caminhar sinérgico, caminhar com alegria, caminhar com potência e
determinação.
Caminhar a dois, a quatro, a oito... caminhar todos juntos.
Caminhar melódico com graça e sensualidade.
Caminhar majestoso triunfante, celebrando e resgatando a dignidade. O príncipe
e a princesa que habitam em nós.
Caminhar...
Outros exercícios na linha da vitalidade foram propostos: variações rítmicas, pulo
sinérgico, jogos rítmicos, jogos de vitalidade, danças euforizantes, danças de alegria,
ciranda, roda vertiginosa, roda guerreira, elasticidade integrativa com tensão dinâmica,
sincronização motora, movimentos em câmara lenta.
O Sr. Dig gradualmente se entusiasmava pelo novos movimentos que
experimentava. A cada aula de Biodanza seus movimentos eram mais livres e criativos.
Os exercícios segmentares também foram vividos pelo Sr. Dig com alguma
dificuldade. O pescoço se encontrava enrijecido, havia pouca fluidez nos braços, tinha
por hábito inclinar o corpo demasiadamente para trás, forçando e deslocando seu eixo. O
movimento pélvico parecia estar travado, pouco se movia, ele procurava substituir os
movimentos da pélvis por movimentos laterais com os ombros e braços.
Durante este período, pude observar mudanças significativas: melhor adequação
do seu tônus muscular, maior agilidade de movimentos, velocidade de reflexos, o modo
como se deslocava no espaço, amplitude de movimentos e de percepção, uma melhor
integração motora, movimentos mais flexíveis e fluidos, maior conexão com a própria
força e potência.
A linha da afetividade foi assumida pelo Sr. Dig como o verdadeiro “carro abre-
alas” abrindo o desfile dos novos sentimentos que ele experimentava.
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Ser tocado, tocar, abandonar-se no continente afetivo, receber um colo de amor,
sentir-se pertencendo ao ninho da espécie, foram vivências novas carregadas de um
forte tom de emoção. Um outro ponto alto no seu percurso foi a descoberta do abraço.
Perceber o outro, conectá-lo no olhar, ir ao seu encontro oferecendo seu abraço e sentir
seu coração foi uma vivência bastante mobilizadora. Como Rolando Toro nos diz,
“O abraço em biodanza é um ato de encontro consigo mesmo e com o outro; é um meio supremo de perceber este outro como semelhante” (s.d., p.416).
O Sr. Dig reaprendeu a dar, a receber e a pedir as carícias e afagos necessários
e desejados. Ele percebeu que não estava mais só no mundo, que vincular-se a si
mesmo é importante mas não suficiente, que a presença do outro em sua vida é
fundamental. O Sr. Dig reavivou a capacidade de escutar o outro, de entrega, de
confiança, de amar e qualificar as pessoas que estão à sua volta.
Vários exercícios foram propostos nesta linha de vivência, respeitando o princípio
de progressividade e reciprocidade. Com esta linha de trabalho procurei despertar e
desenvolver a auto-estima, a ternura e a solidariedade.
Alguns dos exercícios propostos foram: sincronização em par, encontros de mãos
com conexão de olhar, acariciamento de mãos, caminhar para o outro, caminhar
confiando, dar e receber colo, cantar o nome do outro enquanto oferece colo, fluidez fetal,
eutonia a dois, regressão por acariciamento, ninho ecológico, movimento sensível de
braços em par, roda de embalo, rodas concêntricas de olhares, rodas de solidariedade,
encontros com abraços e outros.
O caminho que esta linha nos convida a percorrer é a reparentalizaçao,
retribalizaçao, humanização, sensibilização e integração ecológica. Por este caminho
resgatamos e revigoramos o instinto gregário.
A linha da criatividade ofereceu ao Sr. Dig outro canal para expressão e expansão
do seu potencial criativo. Agora acrescentou às tintas, lápis e papéis o seu próprio corpo,
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na gênese revisitada de sua alma. Além de riscos e rabiscos, ele dança a possibilidade
de criar e recriar a sua existência.
O Sr. Dig dançou no centro da roda.
Dançou a dois em ritmos e melodias variadas.
Dançou Yin e Yang.
Dançou o dar e receber a flor.
Dançou em Shiva a sua destruição e criação.
Dançou em Vishnu a conservação dos ciclos vitais.
Dançou a semente, o seu desabrochar, seu florir e seu frutificar.
Dançou a sua coragem e determinação no tigre.
Dançou a entrega ao prazer no hipopótamo.
Dançou seu vôo existencial na garça.
Dançou sua sensualidade e erotismo na serpente.
Dançou os elementos terra, água, ar e fogo.
Dançou a criação, recriando-se.
Dançou e dançou...
Dançou, e dança, a dança da vida.
A linha da sexualidade representou uma oportunidade para rever seus
preconceitos e tabus. Inicialmente foi muito difícil tocar eroticamente seu próprio corpo e
o corpo do outro.
Sentimentos de culpa, de mal-estar, de castração foram vividos em vários
exercícios, pouco a pouco foi se libertando de suas amarras, que o seguravam a um falso
moralismo, atando-o ao desprazer. Recuperar seus movimentos sensuais e eróticos foi
uma trajetória recheada de surpresas. O Sr. Dig aos poucos redescobria o prazer de
tocar o seu próprio corpo e, encorajado por esse prazer, assumia uma vida sexual mais
ativa.
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Respeitando a linha de progressividade, foram propostos, dentre outros, os
seguintes exercícios: compressão e descompressão de mãos, acariciamento das mãos
em par, acariciamento profundo dos cabelos, acariciamento sensível de pés e pernas,
acariciamento simultâneo das costas, acariciamento de rosto, acariciamento de corpo
inteiro, túnel de carícias, auto-acariciamento, sincronização em par, elasticidade
integrativa a dois no chão, abandono no centro da roda, grupo de fluidez com
acariciamento, grupo eutônico de acariciamento e outros.
A linha da sexualidade possibilita o despertar da fonte do desejo, a sua expressão
e realização. Ela nos convida ao prazer. O Sr. Dig visitava todos esses lugares.
A linha da transcendência favoreceu enormemente no último ano, quando o Sr.
Dig buscava a harmonia interna ampliando sua visão existencial. O mundo anteriormente
era composto por sua pequena família, resumida a menos de uma dúzia de pessoas;
hoje ele caminha buscando a totalidade, sua família é o mundo, é a natureza.
O caminho que o Sr. Dig trilhou por esta linha de vivência possibilitou a ampliação
dos cinco sentidos, compreensão do funcionamento sistêmico do universo, amor pelas
criaturas, sensação de energia e, por fim, a iluminação.
O Sr. Dig, dançando, descobriu-se:
Na intimidade
No dar e dar-se
No valor e no trabalho
No sustentar e embalar a vida nos braços
No flutuar no âmnio
Na conexão com a grandeza
Na conexão com o sagrado
No canto da cana divina
Na conexão com o infinito
Na evocação do paraíso em dança livre
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E livre, entregou-se ao transe, permitindo a atemporalidade
O sentir da vida em sua máxima plenitude.
O Sr. Dig mostrava-se mais intenso e vital. Sentimentos de amor, de erotismo,
entrega, confiança, solidariedade... habitavam seu íntimo novamente. O Sr. Dig
resgatava sua energia, seu potencial e a alegria de viver.
Várias outras vivências provavelmente o encantaram e emocionaram, convidando-
o a mudar seu estilo de vida.2
A viagem continua...
Tudo parecia correr bem, não posso negar que um sentimento materno invadiu
meu peito. Eu me orgulhava do Sr. Dig, da sua trajetória, da migração que ele fazia da
dor para a alegria de viver.
Em uma tarde de terça feira ele entrou desolado no consultório. Quase não
compreendia o que falava, o choro era mais forte e ocupava quase todo o espaço de sua
expressão. Sua fisionomia era lastimável.
Aguardei silenciosamente. O Sr. Dig me comunicou que estava com lupus, uma
doença imunodepressiva, avassaladora se for sistêmica. Mais tarde seu lupus foi
diagnosticado como eritomatoso.
Parecia que a vida o fazia novamente parar para refletir. O que será que a vida
queria lhe mostrar?
Estávamos diante de um novo conflito.
Sem querer entrar no mérito da medicina, devo lembrar que o lupus eritomatoso é
uma doença tratável, tendo como limitação total a exposição ao sol.
O Sr Dig estava diante de uma doença que ele próprio semeou durante alguns
anos, vivendo sob o domínio da sombra, atrás de uma máscara que o abafava e o
2 Nos Anexos encontra-se um depoimento livre do próprio punho do Sr. Dig, relatando suas
vivências mais marcantes. Também são apresentados alguns trechos de depoimentos produzidos
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impedia de ver seus aspectos luminosos. Agora, a vida, através do seu próprio corpo,
lhe impõe o uso de uma máscara contra o sol, no momento em que ele está desfrutando
os raios de luz.
O Sr. Dig não se recobrou logo. Estava chocado, e devo confessar que eu
também. Será que ele vivenciaria a doença como uma armadilha que o aprisiona e
efetivamente o impede de mudar de direção?
Silenciosamente, me perguntava: será que uma nova depressão iria se instalar?
Mas, como Jung nos diz: Um passo atrás para saltar melhor.
O Sr Dig não se deprimiu, pelo contrário, mostrou-se confiante, no fundo já
acreditava na vida e a desejava intensamente.
Neste momento parecia haver atravessado o Cabo das Tormentas, já estando em
condição de batizá-lo como da “Boa Esperança”.
No decorrer dos dois últimos anos sua doença regrediu. Ele receberá alta médica
no início de agosto – coincidentemente, quando este trabalho deverá ser apresentado.
Como diria Jung, coisas da sincronicidade.
Neste período quase não falamos da doença, não por defesa, mas por estar de
fato interessado em outros aspectos de sua vida.
O Sr. Dig, na sua trajetória em busca agora do sol interior, passou a freqüentar
reuniões espirituais e a meditar. Jung nos diz:
“[...] confronto divino e meditação [...] um acontecimento psíquico autônomo, uma quietude que se segue à tempestade, uma luz reconciliadora na escuridão [...] secretamente trazendo a ordem ao caos de sua alma.” (C. G. Jung apud Daryl Sharp, 1991, p. 167)
Hoje estrutura seu tempo de uma forma mais saudável, guardando lugar para
diversas atividades que julga serem importantes, como yoga, biodanza, terapia, ginástica,
por outros alunos do grupo regular de Biodanza, além de fotos e outros materiais que ilustram a dinâmica do trabalho desenvolvido.
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almoço... Enfim descobriu também o prazer da boa mesa. Não abre mão de brincar com
seus filhos, assiste todos os sábados a jogos de futebol com o filho mais velho.
No campo profissional, sua empresa cresceu, e ele trabalha de uma forma
descentralizada, dividindo responsabilidades com pessoas de sua confiança.
Sua vida afetiva tomou outro rumo. Reencontrou uma antiga namorada, pela qual
tinha sido apaixonado em sua adolescência. Tem uma vida sexual ativa, sentindo-se
encorajado para planejar uma vida a dois.
Sua vida social é intensa, ele é convidado para participar de várias atividades, tais
como festas, jantares, idas ao teatro, ao cinema; freqüenta um clube social.
Nos últimos três anos tem alugado casa de veraneio para passar férias com os
filhos. No ano passado sentiu-se encorajado a viajar de avião para o exterior.
“Todas as forças que lutam pela unidade, todos os desejos saudáveis de inteireza, resistirão à desintegração e, desse modo, a pessoa se tornará consciente da possibilidade de uma integração interior, que antes havia procurado fora de si mesma. Aí, então, encontrará sua recompensa: o „eu‟ não-dividido.” (C. G. Jung, 1999c, p.334)
A citação acima descreve o Sr. Dig mais tranqüilo diante da vida, mais consciente
do seu processo. Ele já conhece algumas armadilhas da persona, as suas conveniências
e utilidades. Percebe com maior clareza quando a sombra é projetada. Todas estas
mudanças estão hoje expressas em seu corpo. Como sustenta a cabeça, o ombro, seu
modo de andar, o brilho de seu olhar, a fluidez de sua expressão e a afetividade do seu
toque. Sua voz não se cala mais diante da opressão e da repressão, ela assume um tom
forte, seguro e terno.
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Escultura criada em dezembro de 2000
Penso que o Sr. Dig construiu sua própria concavidade, onde pode gestar sua
vida com segurança e afeto.
Aprendeu a ser mãe de si mesmo, na medida em que aprendeu a aceitar-se e a
cuidar de si mesmo. Aprendeu que cuidar é um ato de amor. Alimentou o sonho de um
grande útero acolhedor do EU, do TU e do TODO.
“Reentrar na mãe significa então: estabelecer uma relação entre o ego e o inconsciente. [...] Neste estágio, o símbolo materno não mais remonta aos começos; dirige-se para o inconsciente enquanto matriz criadora do futuro.” (C. G. Jung apud Humbert,1985, p.122)
Finalizo a apresentação deste caso com fragmentos do discurso do Sr. Dig na
festa comemorativa dos seus 50 anos, em abril de 2001, que ele comemorou com 120
convidados, oferecendo-lhes um belo jantar regado a musica, dança, alegria e afeto.
“... Apesar do momento ser festivo, temos convivido cotidianamente com todos os tipos de violências, praticadas por marginais, políticos igualmente marginais, epidemias, instabilidade econômica e agressões ao nosso planeta.
Outra fonte desta verdadeira usina de stress é que raramente conseguimos tempo para fazer tudo aquilo que desejamos.
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Para lidar com estas adversidades extremamente negativas, e até lutar para reverter estes quadros caóticos, precisamos estar com nossas mentes equilibradas.
A principal sustentação deste equilíbrio é o amor.
Quero convidá-los a reverenciar este sentimento que mais nos engrandece como seres humanos.
Primeiro precisamos amar a nós mesmos, reverenciando a chama divina que habita nossos corações.
Amando a nós mesmos, nos tornamos muito mais intensos e capazes de não só amar ao próximo, mas também lidar com qualquer tipo de adversidade.
Para amar não importa a forma. Pode ser pela religião, pela meditação, pela fé ou qualquer outro caminho. Que sejam poucos minutos diários. Não tenham dúvidas que serão os minutos mais preciosos de nossas vidas, pois representarão a conexão com a serenidade e a paz interior.
Amar é saúde para o espírito...
Amar é união...
Quem ama não mata...
Quem ama cuida...”
72
Este caso clínico foi uma grande vivência de crescimento, não só para o Sr. Dig
como para mim, que privilegiadamente o acompanhei.
Entramos no mesmo barco, remamos juntos em direção a um continente,
enfrentamos tempestades e algumas calmarias, mas hoje celebramos a chegada.
Não foi uma viagem fácil, descobrimos várias paisagens, algumas já conhecidas,
outras jamais vistas. Sem dúvida, elas nos forneceram coragem e entusiasmo para
seguirmos em busca de novas paisagens, outros continentes.
A viagem continua...
73
5) CONCLUSÃO, OU MELHOR, DESCONCLUSÃO: A VIAGEM CONTINUA...
“Mas os deuses, com pena da humanidade – nascida para trabalhar –, estabeleceram a sucessão de festas repetidas, a fim de recuperá-los da fadiga, e deram-lhes as Musas, e Apolo, seu chefe, e Dioniso, como companheiros nas suas festas, de forma que, alimentando-se com os deuses em companhia festiva, pudessem novamente manter-se de pé e eretos.” (Platão apud M. H. Varela e A. R. Lucas, 1982, p.426)
Como pudemos perceber ao longo do trabalho, encontrar pontos comuns entre
Biodanza e Arte Terapia foi uma tarefa proveitosa e, posso até afirmar, prazerosa.
Trabalhar com as duas no dia-a-dia de minha clínica é algo que pratico já há
algum tempo, sem no entanto haver me aventurado a escrever sobre isso.
Voltando às duas citações com as quais abro este trabalho, sinto que Rolando
Toro e Ângela Philippini – o primeiro, o criador da Biodanza, e a segunda, eminente
professora e facilitadora da Arte Terapia – já haviam percebido que uma completava as
expressões artísticas plásticas e a outra completava a dança.
A Biodanza e a Arte Terapia são práticas que nos permitem alegrarmo-nos e
celebrar o nascimento de uma imagem, de um movimento, uma nova forma e um novo
funcionamento.
São práticas que nutrem e fortalecem as potencialidades criativas, oferecendo
uma nova forma de sentir e de atuar no seu mundo interno e externo, no dentro e no fora
de si mesmo.
São práticas que nos permitem reencontrar o fio condutor e buscar saídas
criativas para o nosso labirinto.
São práticas que buscam reeducar, para transformar e transcender.
São práticas que convidam a reencontrar o canal criativo, afetivo e vital.
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São práticas que dão as mãos para tocar, acariciar, modelar, pintar, cultivar e
colher os frutos que um dia foram plantados nos solos férteis da Biodanza e da
Arte Terapia.
São práticas que nos religam à totalidade.
São práticas que sacralizam a vida.
Epílogo
A Biodanza e a Arte Terapia se originam de uma atividade milenar. A dança e a
arte atravessaram o tempo, a nossa história. Se viajarmos no tempo para a era
paleolítica, encontraremos os primeiros registros sobre a origem pré-historica dos passos
da dança, e estas descobertas são devidas às pinturas e esculturas rupestres
encontradas nas paredes das cavernas do homem daquela era.
Há milênios o homem deixa sua obra de arte no interior das cavernas.
Hoje, as duas técnicas na sua idade madura – uma perto de aniversariar os seus
50 anos, e outra celebrando a proximidade dos seus 40 anos – buscam espaço para
facilitar o homem a viver, a sentir, a expressar e a expandir o interior de suas cavernas.
A arte, seja ela expressa pela dança, pintura, escultura, etc., nessas abordagens
(teóricas e metodológicas) assume um real papel de manifestação vital e possibilidades
transformadoras capazes de exprimir as mais genuínas emoções aliançando o homem a
suas vivências primitivas, a suas raízes naturais. Desta forma, recupera a força instintiva
do
potencial genético criador e transformador do homem, que inúmeras vezes a cultura, com
sua repressão e deformação, abafa, esmaga e submerge.
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Hoje celebro em minha vida a oportunidade de vivenciar, como profissional e
como aluna/cliente, estas práticas, que me fizeram e fazem percorrer caminhos que me
levam a dançar a vida.
Celebro com os diversos Sr. Dig a vida e sua sacralidade.
Iniciei o trabalho com uma epígrafe extraída do conto “Alice no País das
Maravilhas”, e penso encerrá-lo com outra passagen de Lewis Carol, agora em “Através
do espelho e o que Alice encontrou lá”.
Durante uma conversa entre Humpty Dumpty e Alice:
“– Foi presente do Rei e da Rainha Branca...
– Como presente de não aniversário...
– Quer dizer, o que é um presente de não aniversário?
– Um presente dado quando não é nosso aniversário, é claro.
Alice refletiu um pouco: – Acho que gosto mais de presente de
aniversário.
– Você não sabe o que esta dizendo! gritou Humpty Dumpty. – Quantos
dias tem um ano?
– Trezentos e sessenta e cinco dias, disse Alice.
– E quantos aniversários você tem?
– Um só.
– E se você tira um de trezentos e sessenta e cinco, quanto fica?
– Trezentos e sessenta e quatro, é claro.
– Isso mostra que você tem 364 dias para ganhar presentes de não
aniversário.
– Certo, reconheceu Alice.”
Podemos e devemos celebrar nossa existência todos os dias de não aniversário,
pois a VIDA é uma GRAÇA, é um PRESENTE.
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VARELA, Maria Helena & LUCAS, Antonio R. Antropologia – paisagens, sábios e selvagens. Porto, Porto Editora, 1982.
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ANEXOS
Depoimento do Sr. Dig.
Trechos de depoimentos do grupo regular de Biodanza.
Fotos dos nossos momentos mágicos.
Celebramos os aniversários e os não aniversários.
Celebramos o florescer da primavera.
Celebramos a alegria.
Celebramos o nascimento.
Celebramos a colheita das sementes plantadas.
Celebramos a vida.
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DEPOIMENTO DO SR. DIG
Biodança. Tem sido um dos valores que contribuem em meu crescimento como
ser humano.
Trabalhando a vitalidade, a criatividade, a afetividade, a sexualidade e a
transcendência, com a orientação da facilitadora e interação permanente com o grupo,
tenho obtido ganhos pessoais e uma autoconfiança incontestáveis.
Acreditei desde o início neste trabalho, para mim uma arte, e as transformações
têm sido incríveis, pois são percebidas e comentadas por todas as pessoas de minha
convivência, seja no campo social, profissional ou familiar.
Minha primeira grande mudança foi no exercício do abraço. Através da
afetividade, que em mim estava totalmente adormecida, pude entrar em contato direto
com o amor a mim mesmo, ao próximo e à minha criança, que começou a reviver.
Através do abraço comecei um movimento de afetividade que julgava não ser capaz, mas
que na realidade tinha e tenho muito para dar.
Com o tempo, fui me percebendo com muito mais vitalidade e prazer para
qualquer atividade.
As doenças que eram freqüentes (gripes e alergias) praticamente não aparecem
mais.
Quero destacar a importância do grupo, pois através da interação pude trocar
várias experiências e sensações importantes, no meu processo e nas minhas mudanças.
Exercitar o caminhar, a postura, e olhar as pessoas de frente e com determinação
também tem sido muito estimulante na minha postura diante da vida.
Todos estes estímulos, é claro, influenciaram positivamente a minha sexualidade,
pois me sinto muito mais seguro e com muita vitalidade.
Como sempre tive na transcendência um valor importante, é evidente que minha
sensibilidade ficou também muito mais aflorada, principalmente no que diz respeito ao
amor. Aos meus filhos, aos meus familiares, aos meus amigos e ao grande amor de
minha vida.