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Renato Suttana BicicletaS BicicletaS

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Renato Suttana

Bic

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titulo : BicicletasPoemas de Renato Suttana

grafismo e imagem de M. Almeida e Sousaedição “BicicletA”

Mandrágora C. Cultura e Pesquisa de Arte

[email protected]

Cascais - Portugal Abril de 2010

menumenudos ciclistas ... 4

pedalando ... 5bicicletas I ... pag 6

bicicletas II .... pag 7bicicletas III ... pag 9bicicletas IV ... pag 11bicicletas V .... pag 13

bicicletas VI ... pag 14bicicletas VII . pag 151 bicicleta I .. pag 16

1 bicicleta II .. pag 171 bicicleta III e IV ... pag 19

epílogo didático .. pag 20

Renato Suttana (n. 1966 - Brasil) é professor universitário e autor dos livros Visita do fantasma na noite (poesia, 2002), O livro da noite (prosa, 2005), João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (Editora Scortecci, 2005), Bichos (poesia, 2005), Uma poética do deslimite: poema e imagem na obra de Manoel de Barros (Editora da UFGD, 2009) e Fim do verão (poesia, 2009).página: http://www.arquivors.com/

M. Almeida e Sousa (n. 1947 - Portugal) Professor e formador na àrea do Teatro-Expressão Dramática - professor efectivo na Escola Secundária Passos Manuel (Lisboa), onde coordena o curso profissional de artes do espectáculo.actor, artista plástico e performer - colaborações dispersas em projectos de artes gráficas e na área da poesia visual.

página: http://domadordesonhos.wordpress.com/4

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Sempre achei que andar de bicicleta fosse um puro dom – bastante gratuito – da gravidade (que afinal tem lá os seus caprichos). Uma vez, escrevi sobre as galinhas que nós “admiramos o modo como se equilibram sobre duas patas” e nem nos lembramos de que a sua história é bem mais antiga do que imagina a nossa admiração. O mesmo se poderia dizer dos ciclistas: admiramos o modo como se equilibram sobre duas rodas, etc., mas sem a ênfase das penas e sabendo que a admiração por eles é algo mais recente.

Uma vez, dois poemas de minha autoria (um gato, uma águia) foram publicados na edição de número 8 da Bicicleta – revista comemora-tiva dos 25 anos da Mandrágora –, com intermediação de Nicolau Saião, que os encaminhou aos editores Bruno Vilão e Manuel Almeida e Sousa. Pouco tempo depois, escrevi um poema in-titulado “Bicicletas”, que dediquei a esses empreendedores da Bicicleta, e o mandei ao mesmo Saião, que se não me engano o fez publicar na Internet. Mais tarde, saindo o número 9 da revista (no qual puseram uma cidade e um gato meus), me aconteceu o impulso de escrever outro poema de bicicleta (escrever poemas de bicicletas é como pedalar), que enviei ao Manuel e que foi publicado em seu blogue. Depois veio um terceiro, que não mandei para nin-guém, e um quarto, e a coisa teria parado aí, se os aros não continu-assem a rodar.

Bicicleta é assim: vai e volta, leva e traz, quando vai, leva alguma coisa, quando volta, já vem trazendo novidade. A última novidade foi o presente livrinho. A ideia me surgiu por acaso: apanhei os poemas de bicicletas, acrescentei alguns, dei-os ao Manuel, pedindo-lhe que os ilustrasse, e o Manuel – ciclista experiente – não pensou duas vezes.

Pois aí está o efeito de tudo isso – galinhas, gravidade, acasos, troca de e-mails e firmeza no guidom. Que o leitor julgue por si mesmo e veja se vale a pena pedalar também.

RS

pedalando

BICICLETAS (I)

são aparelhos que usamospara voar são cordassão remédios que tomamos à noiteantes de adormecersão frutas caçarolas sirenesque colhemos à tarde gárgulasao pé das grandes árvores pejadassão os cabelos de Maria os olhos de Mariaos dois seios de Maria e os seios das outrassão instrumentos com que medimos o tempocom que medimos o espaço tambémcom que calculamos a quilometragem dos pássarossão folhas brotando das formigas asas crocodilos que ainda sonham dinossauroso estrume dos elefantes a mosca e o cactoos dentes postiços do avôque não os tira para rezar

Bicicletas são os teus pensamentosquando se encontram com os meusnalguma esquina de julho.

6

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uno

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Sou

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leta

7

BICICLETAS (II)

bicicletaspara medir estrelaspara medir o roxoa rosa do desertoa fome

teu coração atravessa o paísnuma velocidade de luzvem construir no meu quintal uma pazque reúne outubro resgataas estruturas de outubro numa pequena formaque não é vidro nem carrosselmas é prazer espuma saltocoisa que se leva para casasono que se leva para a noitea noite

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bicicletassão as distâncias da tarde concentradas no geloos adivinhos as cenasas aventuras do passadoos caminhos do passado concentradosno dia as horas desse diao dia concentrado no olhoa tarde – o cume – a canção imortale as nossas vidas ali

(são as estradas do excesso no tempoteu coraçãoque chega ao seu destino)

e sobretudo o retornodo que sempre esteve à nossa esperao beijo com que me recompensaso ouro com que me recompensasno deserto da tarde solar.

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BICICLETAS (III)

Ainda cantamas bicicletas?

Ainda se usamas bicicletascomo aparelhos de produzir músicacomo ônibus como aviõescomo torres?

Ainda existem bicicletasem vossos cérebrosem vossas veiasem vossos pensamentos de cada diaem vossa métricaem vosso gozo?

Enquanto comeis o pãoenquanto bebeis o vinhoainda pensais em bicicletasainda pedalais vossas bicicletasquando vos dedicais ao amor?

Como se explicaque as bicicletas ainda habitem as vossas vozesainda saltem de vossos cabelose jorrem de vossos olhosquando ides à farmáciacomprar o vosso suprimento diáriode sobrevivência?

Vossas fórmulas matemáticasvossas teoriasvossa física e vossa químicavossa botânica e vossa astrologiavossa medicina, vosso asco e vossa anatomiacontemplam as bicicletasexplicam o existirmagrinho e brevedas bicicletas?O seu cotidianolevar-nos até lá?

Sois por acasobicicletas?

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BICICLETAS (IV)

Bicicletasnão são casasnão são íntimasnão são de água

(Uma bicicleta de águate faria choversobre a Tailândia)

Não são luasnão são axiomasnão são beijosnão são asas nem pássaros

(Uma bicicletaque tivesse asaste levariapara o outro lado do mundo)

Não são vidrosnão são de álcoolnão são árvoresnão são pedras

(Uma bicicleta de pedrate manteria em silênciopor pelo menos dez anos)

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Não são curvasnão são estradasnão são aviõesnão são portas

(Uma bicicletaque se abrisse na tardete faria entrarno verão)

BICICLETAS (V)

As bicicletas de janeirocruzam calmamente a fronteirae vão chegando a fevereiro

Montadas pelos bons meninosengolem tempos e distânciascomo o fazem os peregrinos

e vão chegando alegrementee vão tocando com bravurao ponto onde o dia se invente

As bicicletas de janeirovêm de longe vêm do provávelseguem um lúcido roteiro

Vão procurando algum lugarque fica próximo do sonoperto do sol perto do mar

onde – flores – serão plantadaspor mãos gentis de camponesasà margem das longas estradas

onde libertas de janeiroe da ansidedade dos lugareshão de florir o ano inteiro.

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BICICLETAS (VI)

Tudo era excessivoinclusive a batina dos padres

num mundo onde as bicicletaspodiam ser usadas como guarda-chuvas.

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BICICLETAS (VII)

A liberdade guiandoas bicicletas

Trigal com corvose bicicletas

A ronda noturnadas bicicletas

Tudo isso eu vinos melhores museusdo país das bicicletas.

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UMA BICICLETA (I)

uma bicicleta, amigocom suas grandes rodascom o seu grande rodar

não é coisa que não se queiralevar para casaque não se queiracom a qual não se queirater pelo menos uma noite de amorpelo menos um diade bom convívio e boa prosa

uma bicicletacom as suas grandes rodasredondas e magrascom o seu ar de despedidacom o seu lúcido rodarcom o seu arco-íris.

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UMA BICICLETA (II)

I

Uma bicicletapara o teu fastiopara a tua impaciênciapara a tua pressa

Uma bicicletapara o teu consolopara te servir de consolopara o teu sono

Uma bicicletapara levares à luapara levares ao campopara levares no bolso

Uma bicicletapara a tua primaverapara o teu aniversáriopara o teu casamento

Para te servir de padrepara ser o teu comandantepara ser o teu professorpara chamares de irmã

Para ser a tua pátriapara te servir de mapapara te servir de abotoadurapara ser o teu ópio

a tua papoulao teu esconderijoo teu amigoa tua sopa

Uma bicicletapara te servir de casapara te servir de muletapara te servir de nuvem

Para ser a tua amantepara ser o teu cachecolpara ser o teu livro a tua glóriapara te servir de prece

Uma bicicletana tardeuma bicicletano céu.

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II

Uma bicicleta na mãoe outra voando

uma bicicleta lavando a outrauma bicicleta

com amor se paga.

III

Uma bicicletadominando o vale

neutramolecomo um relógio mole.

IV

Uma bicicletano pensamentocomo uma abelha

como um jardimenfeitado de borboletasà véspera de uma guerra

à vésperade uma erupção

(antes da erupçãodo Vesúvio)

antes de qualquer coisa

Uma bicicletabrancaarco-íris de sonho

abrindo um parênteseno ar.

V

Uma bicicletapara chegar ao outro ladopara chegar ao Japãopara atravessar o Atlântico

Uma bicicletapara pedalarobjetivamenteos quatro elementos.

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UMA BICICLETA (III)

Uma bicicleta

é simétrica

em 2010

É simples

como uma curva

como uma criança

como um ovo

como um piano

ao sol

quando entra

o outono.

UMA BICICLETA (IV)

Uma bicicleta

é só um objeto

É só um homem

sobre duas rodas

É só um estar

a caminho.

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ESPÍLOGO DIDÁTICO

Vem o crítico e diz:A bicicleta para vocêsé um fetiche

Rio-me alegrementee saio pedalando o meu fetiche.

Renato Suttana

Bic

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