biblia e dogma à luz da exortação apostólica

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Biblia e Teologia à luz da Exortação Apostólica “Verbum Domini” Introdução No dia 30 de Setembro 2010, a distância de dois anos da XII Assembleia Geral Ordenária do Sínodo dos Bispos, o papa Bento XVI assinou a Exortação Apostólica “Verbum Domini”, sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. O Santo Padre declara abertamente as suas intenções em redigir, assinar e entregar à Igreja este precioso documento: Desejo indicar linhas fundamentais para uma descoberta, na vida da Igreja, da Palavra divina, fonte de constante renovação, com a esperança de que a mesma se torne cada vez mais o coração de toda a actividade ecclesial ”. Portanto, um documento de claro e voluntário perfil pastoral, que olha para a actividade ecclesial, como já diz o sub-título. Seria interessante habitar este cruzamento entre a Palavra de Deus e a vida e missão da Igreja. Pois, apesar das louvaveis indicações formais, este era um limite bastante evidente entre a Dei Verbum e a Gaudium et Spes que encontramos na mesma recolha de Documentos do Concílio Vaticano II, mas que parecem dois moradores do mesmo prédio que se conhecem, sim, mas de nome e de longe. Poderiamos avançar a pergunta crítica mais radical: esta tentativa de hoje saiu bem, parcialmente bem, ou devemo-la registar simplesmente como uma louvavel tentativa cujo êxito foi longe do desejavel? 1

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Verbum Domini prima parte

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Biblia e Teologia luz da Exortao Apostlica Verbum Domini

IntroduoNo dia 30 de Setembro 2010, a distncia de dois anos da XII Assembleia Geral Ordenria do Snodo dos Bispos, o papa Bento XVI assinou a Exortao Apostlica Verbum Domini, sobre a Palavra de Deus na vida e na misso da Igreja.O Santo Padre declara abertamente as suas intenes em redigir, assinar e entregar Igreja este precioso documento: Desejo indicar linhas fundamentais para uma descoberta, na vida da Igreja, da Palavra divina, fonte de constante renovao, com a esperana de que a mesma se torne cada vez mais o corao de toda a actividade ecclesial.Portanto, um documento de claro e voluntrio perfil pastoral, que olha para a actividade ecclesial, como j diz o sub-ttulo. Seria interessante habitar este cruzamento entre a Palavra de Deus e a vida e misso da Igreja. Pois, apesar das louvaveis indicaes formais, este era um limite bastante evidente entre a Dei Verbum e a Gaudium et Spes que encontramos na mesma recolha de Documentos do Conclio Vaticano II, mas que parecem dois moradores do mesmo prdio que se conhecem, sim, mas de nome e de longe.

Poderiamos avanar a pergunta crtica mais radical: esta tentativa de hoje saiu bem, parcialmente bem, ou devemo-la registar simplesmente como uma louvavel tentativa cujo xito foi longe do desejavel?Claro que, se considerassemos o nmero quase irrelevante dos que entre os destinatrios da Exortao leram com o devido obsquio do intellecto e da vontade essas reflexes...deixo a vs a concluso que deveriamos tirar.

Este, parece-me, o destino da maioria dos documentos, Encclicas, Exortaes etc...se depois so longos, um pouco complexos, desanimam bastante at padres e bispos, surprehendentemente atarefados na conjungao do verbo Apascentar, se o rebanho ou a si mesmos no cabe a mim julgar.

Melhor aproveitarmos deste espao que a sabedoria dos meus colegas quis criar, convidando-nos a ler, meditar, reflectir e depois partilhar neste simpsio das Jornadas Teolgicas 2011.

Quanto pergunta crtica que animou esta introduo, deixamo-la no ar, como estmulo, apesar de me aparecer como decisiva sob muitos pontos chave, seja teologicamente, seja antropologicamente. Notem, por exemplo, que a Gaudium et Spes a nica Contituio Dogmtica do Conclio Vaticano II a no ser citada explicitamente ao longo de toda a Exortao e que a Lumen Gentium s se encontra citada uma vez em referncia vocao santidade de todos os fieis (N 77). Digo-o com um sopro, mas evidente, e no s pelos documentos, mas tambm pelas nomeaes, que est a ser actuada uma reforma interna Igreja Catlica Latina segundo um modelo diferente ao do Concilio Vaticano II. Este progressivo distanciamento da Lumen Gentium e da Gaudium et Spes j tinha comeado na Assembleia Extraordinria do Sinodo dos Bispos do 1985, como, com crtica bem ponderada, nos mostra o teologo monge benedictino Gislain Lafont no seu precioso livro: Imaginar a Igreja catlica.D para pensar, muito mais para rezar!

Biblia e Teologia: um cruzamento perigoso.

Os excellentissimos organizadores deste simpsio pediram-me que, baseando-me no documento presente, falasse de Biblia e Teologia.Logo a cabea comeou a doer e se um pensasse de resolver a questo apoiando-se nos pilares da Divina Revelo, isto Sagrada Escritura e Sagrada Tradio, no que se vai sentar num lugar seguro e estavel. Hoje, a nivel de reflexo e debate teolgico, estes dois pilares so semelhantes s duas colunas do templo filisteu com o juiz Sanso que se aproxima.O mesmo entendimento destas duas palavras, Biblia e Teologia, j soffreu muitas peripcias e, se entrarmos na Quaestio disputata vamos escrever outra Summa Teologiae.Oportunamente o Santo Padre move por um caminho mais esquemtico, aproveitando da Dei Verbum que, todavia, j na sua genese e redao conciliar foi, de facto, o mais dificil quanto gestao e o mais debatido, tenso, trabalhado e cheio de insdias.

Ponto de departida de todo o documento, de toda a vida e misso da Igreja o seguinte: Deus se d a conhecer em dilogo, Deus se comunica amorevolmente a ns. O Santo Padre no demora a concluir que estamos diante de um Princpio de caracter absoluto. No texto, como podemos conferir, a palavra Princpio est escrita em itlico, para que na nossa leitura sejamos mais atentos nesta passagem.Tratase do Princpio Revelao, segundo uma expresso muito cara ao Karl Barth na sua Dogmtica Ecclesial. No esta a nica referncia barthiana no documento que, de facto, na sua primeira parte segue a impostao dos dois primeiros volumes da Dogmtica Ecclesial: Deus Deus que fala, Deus que se revela, Que fala aos homens como a amigos (citao da Dei Verbum, que nos lembra uma lindissima frase de Lutero, citada por Barth no seu Rmerbrief) etc...mas tambm a expresso que intitula o N7: Analogia da Palavra de Deus que lembra de perto a Analogia Revelationis que Barth opunha Analogia Entis, sempre na Dogmtica Ecclesial.

Uma autntica prola o N8 que fala da dimenso csmica da Palavra, um nmerio que tornaria muito feliz o Teilhard de Chardin (justo para ligarmos as Jornadas Filosficas 2011 do Seminrio S.to Agostinho). Este nmero de clara inspirao boaventuriana. O Doutor Serfico citado no texto e nas notas, mas esta no uma novidade. Quem conhece o Santo Padre, sabe que ele ama particularmente a assim chamada via afectiva da tradio agostiniana-franciscana.

Mais uma prola o N14 que fala da dimenso excatolgica da Palavra de Deus que me lembra telogos da espessura de Cristoph Blumhardt e Paul Althaus.

Bom, em geral, dizer que um prazer imenso ler a primeira parte desta Exortao, reconhecer as vrias janelas que se abrem e deixam ver aquele maravilhoso panorama teolgico que voltamos a apreciar no grande caminho da renovao bblico-teolgica no sec. XX e da qual o teologo, agora papa, Joseph Ratzinger permanece como testemunha.Mas o respiro do documento abraa a grande teologia medieval e atinge abundantemente na patrstica. Encontrar, depois, indicaes directas e lembranas da mstica ecclesial uma gostosa novidade que enche o corao de alegria.

Finalmente, dado que na Dei Verbum estava l mas num estado bastante embrional, eis que a dimenso pneumatolgica da Palavra de Deus se coordena agora de maneira mais clara e equilibrada com a dimenso cristolgica da Palavra de Deus: O Pai exprime a sua Palavra no Esprito Santo.

Pena que, na srie dos portanto ou por conseguinte que, no documento, se seguem lapidria proclamao do Princpio Revelao no se encontre a seguinte: Portanto a gerao eterna do Logos de natureza pneumatolgica...mas pode-se intuir.Contamos, no texto, uma srie de 4 consequncias do Princpio Revelao:1) Por conseguinte nunca ouve em Deus um tempo em que no existisse o Logos2) Portanto, no corao da vida divina, h o dom absoluto3) Por isso o Verbo revela-nos o prprio Deus no dilogo de amor entre as Pessoas divinas e convida-nos a participar nele4) Portanto luz da revelao que se esclarece definitivamente o enigma da condio humana.

Todos estes 4 pontos tm relevcia pneumatolgica, mas s quem tem uma prpria sensibilidade pneumatolgica capaz de o ver ou intuir. Para aqueles que ainda no ouviram fafar do Esprito Santo...podia valer a pena de se gastar um pouco de tinta a mais. Penso que, num documento onde se encontra espao e tempo para falar das TICs devia-se estender aqueles N 6 que fala de Deus em dilogo.Verdade que depois, ao N 15 tenta-se bem de re-equilibrar segundo o ritmo j seguido no N 11 que falava da Cristologia da Palavra.O N 15 fala da Palavra de Deus e o Esprito Santo. um nmero maravilhoso mas que fica um pouco distante e que deixa nas papillas espirituais um pingo de amargura. Sendo que o N 15 fala do Horizonte Pneumatolgico, porque no usar o termo mesmo no ttulo.Teriamos assim o N 11 Cristologia da Palavra e o N 15 Pneumatologia da Palavra, chegando assim concluso bem conhecida por todos os estudantes do Seminrio So Pio X: A teologia Cristologia e Pneumatologia, portanto teologia trinitria.O N 11 e o N 15 deveriam seguir logo o N 6 e neles deviam ser incorporados os nmeros que encontramos a caminho. Resultaria um texto mais ordenado, segundo a taxis trinitria, e mais educativo para uma praxis teolgica e pastoral ainda convalescente pelo virus plurisecular do esquecimento da Trindade, como diagnosticado pelo Karl Rahner.

Todavia, com este documento ganha-se muito e quem se dedica mais belas das cincias no ter grandes dificuldades em navegar sossegadamente entre as partes.

A relao entre Sagrada Escritura e Sagrada Tradio

Voltando agora ao assunto dogmtico, deveriamos postar no N 17 e reflectir bastante na relao entre Tradio e Escritura. O texto afunda as suas raizes na Dei Verbum, no 2 captulo sobre a Sagrada Tradio, mas no entra nem aprofunda a me de todas as tenes conciliares, reduzindo o discurso da Sagrada Tradio tradio apostolico-ecclesial: Atraves da obra do Esprito Santo e sob o guia do Magistrio, a Igreja transmite a todas as geraes aquilo que foi revelado em Cristo.

O problema dogmtico reside no facto que a attestao escriturstica do que foi revelado em Cristo, ou, se preferimos, a normatividade da Sagrada Escritura, j formalmente em si mesma fruto e xito de uma tradio plural que deveria abrir e abilitar a plurais hermenuticas.O exemplo mais evidente disso que Cristo um s, mas os evangelhos so 4 e no so certamente a fotocpia um do outro. E mais: toda a Bblia regista pluralidade de tradies e aparece como um corpo bem compaginado mas no feito de membros iguais. Entra portanto o problema da historicidade das formas ou das tradies, da dvida cultural e lingustica das formas e das tradies e, de um pondo de vista esquizitamente gnoselgico, a necessidade de se abrir a um pluralismo de hermenuticas. Parece-me que uma proposta interessante neste sentido seja avanada pelo telogo gallego Andrs Torres Queiruga na sua obra Repensar a Revelao. O autor, atravez da categoria da Maiutica, mostra o dinamismo que se estabelece entre a Palavra de Deus e o Ouvinte desta Palavra.Na parte conclusiva desta obra, o autor avana sugestes interessantes a nivel de relao entre Biblia e Teologia Dogmtica. Re-envio-vos a este texto, limitando-me, neste momento a simples indicaes.

A pergunta que me fao , mais ou menos, a seguinte: No que por acaso o dogma, entendido rigidamente e restritamente como molho das formulaes dogmticas, j no constitue o complexo das janelas que permitem olhar, de diferentes cantos, para o mistrio revelado na sua unidade e beleza, mas se tornou restrictivamente o nico e taxativo par de oculos que todos, independentemente da prpria histria o cultura, devem usar na leitura do dado revelado e da sua attestao escriturstica?

un dado de facto que na histria do dogma, sobretudo no periodo iluminista e post-iluminista ou modernista, houve um forte restringimento na maneira de entender e portanto interpretar e inculturar o dogma. Perdeu-se o contacto com a totalidade do Mysterium Salutis, com o seu dinamismo e fecundidade, fazendo das formulas dogmticas o centro catalizador da f. Ser crentes, profissar a f, mais aderir obsequiosamente a formulas do que vivenciar uma Histria de maneira relacional. Perdeu-se a prioridade do teolgico a favor do jurdico-formal com uma ancoragem fixa e fidelidade defensiva letra, mas mortificante esquecimento do Espirito. O que cunta saber repetir perfeitamente as formulas assim como so, sem mudanas de palavras ou da posio das mesmas. A catequese doutrina, nada de mistaggico. Vale mais a definio dogmtica do que o depositum fidei na sua estrutura e equilbrios de interconexes entre os vrios aspectos. Como dizer: filtrou-se o mosquito, engoliu-se o camelo! Na poca patrstica o dogma nasce e vive como confisso ou profisso da f (pensamos nas formulaes de Niceia, Constantinopola, Calcednia etc...) onde o Ns acreditamos de um lado fructo e do outro promotor de sentido de pertena ecclesial, facto comunitrio e plural. Tudo isso se foi, despedido por um individualismo da f disptico e ante-evanglico.

A renovao da teologia do seculo passado, o Conclio Vaticano II, a reforma litrgia, o renovamento bblico responderam devidamente e tentaram reconduzir o dogma dentro dos padres que lhes so prprios.

E agora?Se aceitarmos que a escritura no ditado mas corpo o conjunto de formas de concretizao e attestao de tradies pre-textuais do evento relacional da Revelao/Aliana, e se convenimos no facto que o dogma mesmo concretizao de confisses ou profisses de f historicamente condicionadas (o peso das lutas s heresias inegavel), a relao entre Biblia e Dogma no deveria ser pensada a nivel de tradio dinmica ou histrica, isto necessariamente plural? No seria portanto legtimo falar de hermenuticas do texto bblico e tambm de dogmticas ecclesiais, permitindo que a Igreja catlica continue a profissar a sua f como sempre fez no princpio, em primeira pessoa, mas sim plural?

A Exortao Apostlica Verbum Domini no pode nem deve responder a essa pergunta, mas os sinodos locais sim. Na linguagem usada, nas estruturas semnticas, nos sub-estrados culturais subjacentes Verbum Domini nota-se que este trabalho ainda est a espera. Os primeiros telogos da Igreja moambicana so os seus bispos e esta Exortao Apostlica necessita da mediao tambm teolgica deles, para que os fins desejados nela sejam atingiveis ao nosso nivel local.Sou mope e provavelmente tambm nisso vejo mal, mas o percurso nascer e crescer a partir da base, como antigamente foram os problemas das comunidades e dos destinatrios a moldar os diferentes textos evanglicos.Como sempre, a ugncia e necessidade de anunciar o Evalgelho no nos deixar descansar tranquilos, at no encontrarmos uma hermenutica apropriada ao nosso contexto grvido de tenses e tempestades culturais, entre cultura clssica moambicana e impulsos derivantes da globalizao e multiculturalidade.

Obrigado pela atenoPe. Giuseppe Meloni scj6