bibiane engroff

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65 ANOS DE HISTÓRIA Um castelo no centro da cidade Palco de uma curiosa lenda urbana, o Castelinho do Alto da Bronze ultrapassou décadas e hoje está no meio do Centro Histórico de Porto Alegre Um castelo em estilo medieval, construído no centro histórico de Porto Alegre nos anos 1940, gera estranheza e fascínio aos porto-alegrenses. Seus paredões de pedra, suas torres dentadas e janelas em arco, guardam muitas histórias que mexem com o imaginário de quem o conhece, de quem já ouviu falar ou de quem apenas transita pelo Centro Histórico da cidade. Tudo começou com a adoração que Carlos Eurico Gomes, um aclamado político casado com Ruth Caldas, irmã do diretor do jornal Correio do Povo, tinha por castelos. Ele colecionava fotos e recortes de revistas e jornais, pois sempre sonhara em construir um para si. Foi quando Carlos, já casado, se apaixonou por Nilza Link, uma jovem de 18 anos, mãe de um garoto e desquitada. Os dois mantiveram um relacionamento em segredo, mas sua mulher descobriu a traição e pediu o divórcio. Sendo assim, Carlos desenhou a próprio punho a planta do castelo e o ergueu para morar com Nilza. Reza a lenda que a jovem se tornou a Rapunzel de Porto Alegre, devido ao excessivo ciúme do companheiro, que não a deixava nem se aproximar das janelas, muito menos sair de dentro de casa sozinha. Após quatro anos de convivência, entre 1948 a 1952, Nilza se cansou da vida que levava e resolveu fugir com seu filho. Esse romance foi narrado pelo escritor e jornalista gaúcho, Juremir Machado da Silva no livro A prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze. Depois da fuga de Nilza, Carlos se casou novamente e continuou morando no castelo com Nélida, sua nova esposa. O castelo, que está situado na esquina das ruas General Vasco Alves e Fernando Machado, foi construído onde deveria ser o pátio da casa de Rui Claudio da Cunha Marques e Neila da Cunha Marques. A residência do casal existe há 109 anos e contorna a construção medieval fazendo um “L” no castelo. Esse foi o motivo que fez com que, em 2005, Rui decidisse adquirir a casa. Já Neila, que vem de uma família tradicional do Alto da Bronze, conhece o castelo desde pequena e sempre teve uma ligação afetiva com ele. Hoje se sente honrada em ter comprado a edificação. “Carlos faleceu, e então Nélida continuou morando no castelo e, depois que ela morreu, eu

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Reportagem de Bibiane Engroff para a revista Primeira Impressão.

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Page 1: Bibiane Engroff

65 ANOS DE HISTÓRIA

Um castelo no centro da cidade Palco de uma curiosa lenda urbana, o Castelinho do Alto da Bronze ultrapassou

décadas e hoje está no meio do Centro Histórico de Porto Alegre

Um castelo em estilo medieval, construído no centro histórico de Porto Alegre

nos anos 1940, gera estranheza e fascínio aos porto-alegrenses. Seus paredões de pedra,

suas torres dentadas e janelas em arco, guardam muitas histórias que mexem com o

imaginário de quem o conhece, de quem já ouviu falar ou de quem apenas transita pelo

Centro Histórico da cidade.

Tudo começou com a adoração que Carlos Eurico Gomes, um aclamado político

casado com Ruth Caldas, irmã do diretor do jornal Correio do Povo, tinha por castelos.

Ele colecionava fotos e recortes de revistas e jornais, pois sempre sonhara em construir

um para si. Foi quando Carlos, já casado, se apaixonou por Nilza Link, uma jovem de

18 anos, mãe de um garoto e desquitada. Os dois mantiveram um relacionamento em

segredo, mas sua mulher descobriu a traição e pediu o divórcio. Sendo assim, Carlos

desenhou a próprio punho a planta do castelo e o ergueu para morar com Nilza.

Reza a lenda que a jovem se tornou a Rapunzel de Porto Alegre, devido ao

excessivo ciúme do companheiro, que não a deixava nem se aproximar das janelas,

muito menos sair de dentro de casa sozinha. Após quatro anos de convivência, entre

1948 a 1952, Nilza se cansou da vida que levava e resolveu fugir com seu filho. Esse

romance foi narrado pelo escritor e jornalista gaúcho, Juremir Machado da Silva no

livro A prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze. Depois da fuga de Nilza, Carlos se

casou novamente e continuou morando no castelo com Nélida, sua nova esposa.

O castelo, que está situado na esquina das ruas General Vasco Alves e Fernando

Machado, foi construído onde deveria ser o pátio da casa de Rui Claudio da Cunha

Marques e Neila da Cunha Marques. A residência do casal existe há 109 anos e

contorna a construção medieval fazendo um “L” no castelo. Esse foi o motivo que fez

com que, em 2005, Rui decidisse adquirir a casa. Já Neila, que vem de uma família

tradicional do Alto da Bronze, conhece o castelo desde pequena e sempre teve uma

ligação afetiva com ele. Hoje se sente honrada em ter comprado a edificação. “Carlos

faleceu, e então Nélida continuou morando no castelo e, depois que ela morreu, eu

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sempre pensava que ele poderia ser nosso, tenho uma ligação forte com ele, que

representa boa parte da minha vida”, afirma Neila.

Nélida faleceu em 2003, mas como parou de morar no castelo anos antes, o

espaço acabou sendo palco para inúmeras atividades. O Castelinho participou da noite

de Porto Alegre quando se transformou na Wiskeria Ivanhoé, uma tradicional boate da

época, criada por Ovídio Chaves. Ovídio era poeta, compositor, jornalista e boêmio. Seu

sobrinho, Ricardo Chaves, mais conhecido como Kadão, fotógrafo que atualmente

trabalha como colunista da Zero Hora, conta que Ovídio sempre foi uma pessoa muito

simples. “Meu tio era uma figura muito interessante. Em Porto Alegre, ele despertava

amor e ódio por ser pouco convencional para a época”, explica.

Além da Wiskeria, o poeta abriu em meados dos anos 1950 também no castelo,

o Clube das Chaves, que foi sua casa mais expressiva. O Clube foi um dos primeiros

locais noturnos de Porto Alegre a ter música ao vivo e não era parecido com os cabarés

de prostituição que sempre existiram. Era frequentado por intelectuais, artistas e

músicos, como Mario Quintana, Carlos Scliar, Iberê Camargo, Nelson Gonçalves, Ivon

Curi, Marlene, Silvio Caldas, Gregório Barrios, Cecília Meireles, Manoel Bandeira e

muitos outros.

Kadão conta que Ovídio sempre foi uma pessoa muito romântica e não se

importava com luxos. “Quando ele se mudou para o Rio de Janeiro, fui lá visita-lo, e ele

morava em uma casa velha, caindo aos pedaços. A porta da geladeira era enferrujada,

era um lugar bem estranho, mas ele era um cara assim, não dava muita bola para essas

coisas e vivia uma vida pouco convencional”, conta o sobrinho.

Mesmo sendo uma pessoa conhecida na noite de Porto Alegre, Ovídio não tinha

muito êxito com seus investimentos. Como era boêmio, acabava consumindo mais

bebidas do que faturando.

No entanto, não se sabe se na época das duas boates, Carlos Eurico Gomes ainda

estava vivo, e se Ovídio alugava dele o castelo, pois a separação com Nilza e a abertura

das casas noturnas aconteceu na mesma época, tudo em meados dos anos 1950. A única

coisa que se sabe é que Nélida herdou a edificação após a morte de Carlos. Como as

histórias são muito antigas e cheias de detalhes, é inevitável que algumas perguntas

fiquem sem respostas.

Depois que o Clube e a Boate se extinguiram, Rui e Neila passaram a alugar o

espaço, em 2009, para sete artistas, eram os “Se7e artistas residentes”. O grupo era

formado por Alejandro Ruiz Velasco, Adriana Xaplin, Elen de Oliveira, Lena Kurtz,

Page 3: Bibiane Engroff

Lisete Bertotto, Manoel Henrique Paulo e Sandra Santos. O espaço cultural dispunha de

oficinas de pintura, escultura, muralismo (tipo de pintura que é executada diretamente

em uma parede), fotografia, literatura, teatro, quadrinhos, caleidoscópio, toy art e

leitura. Cada artista instalou no castelo o seu atelier, e o objetivo era oferecer cultura e

informação à sociedade.

Luzia Helena Kurtz de Sousa Bragatti, conhecida apenas como Lena, foi uma

das artistas que montou seu espaço no Castelinho. Além de ser jornalista, Lena estuda

artes visuais na UFRGS e sempre teve uma ligação muito forte com as paredes de pedra

do castelo. “Durante muito tempo, minha linguagem visual foram as histórias em

quadrinhos inspiradas em arte gótica. Quando descobri que no centro de Porto Alegre

existia um castelo gótico, eu me emocionei muito, e minha ligação com ele se iniciou”,

conta ela.

Durante os dois anos, os artistas fizeram festas, aulas de xadrez, cursos de

desenho, brechós em prol dos animais e diversas oficinas. Este foi o único momento em

que o castelo foi efetivamente aberto a um público variado. “Tenho saudade dessa

época, aquele é um lugar mágico, muito movimentado, me sinto muito grata por ter

podido participar de tudo isso.” O grupo dos sete artistas terminou quando Elen de

Oliveira morreu. Hoje a artista plástica, designer têxtil, escritora e ex-integrante dos

“Se7e Residentes”, Sandra Santos, trabalha e reside no castelo.

No início, Sandra precisava apenas de um local para realizar o lançamento da

obra de um poeta português, pois era curadora do evento e alugou o castelo somente

para isso. No entanto, a artista também precisava de um lugar para colocar em prática

um de seus projetos, o “Casa Naíf”, que é voltado para pintores não conhecidos e sem

verba para realizar as obras e fazer exposições. O projeto tem o foco de incentivar a

produção artística naíf brasileira e latino-americana.

Sandra entra em contato com estes artistas e oferece hospedagem de duas

semanas para eles produzirem as obras. “São artistas com dificuldades, que não recebem

ajuda alguma, alguns não têm e-mail ou telefone. Eu preciso ir à casa deles para

convidar para o projeto. Eles não são reconhecidos”, explica Sandra. Além de ela pagar

a passagem e garantir o bem estar dos pintores, eles também recebem tintas, pincéis e

telas para realizar as pinturas. No final deste período, Sandra monta uma exposição no

castelo para eles venderem suas obras. “Eles têm cores maravilhosas. O folclore

brasileiro está dentro de seus quadros, é a arte mais brasileira que existe”, explica.

Page 4: Bibiane Engroff

Depois que a artista assumiu o local, o castelo se tornou o “Espaço Cultural

Castelinho do Alto da Bronze”, onde acontecem periodicamente exposições de artes

plásticas e fotografias, lançamentos e performances artísticas, saraus literários e

exposições. Além disso, Sandra realiza atividades literárias e artísticas com as escolas,

“Na Páscoa, convidei as escolas para trazerem os alunos. Montei uma oficina de arte

para eles pintarem os coelhos e fiz uma atividade para procurarem os ovos pelo castelo.

Às vezes eu chamo algum escritor ou poeta infantil para fazer um bate-papo com as

crianças”, conta ela.

Sandra também é curadora de um projeto de incentivo à leitura, do Castelinho

Edições, o “Instante Estante”. O objetivo é distribuir livros que cheguem ao leitor

gratuitamente, através da Intervenção Urbana Instante Estante ou pela distribuição nas

bibliotecas comunitárias.

Sandra se considera uma “moradora de passagem” do castelo, pois viaja

bastante. Ela diz que se sente como um Naíf, que passa curtas temporadas morando na

edificação. “Eu não sinto o castelo como minha casa. Eu estou sempre de passagem,

mas os momentos que passo aqui são bons”.

Sandra está com um novo projeto em mente. Sua ideia é fazer o Clube da

Leitura. Ela pretende comprar um caixão e montar dentro do castelo um acervo de

literatura fantástica. O projeto é diferenciado, pois não consiste na venda de livros.

“Existem muitos clubes de leituras que acontecem nas livrarias, onde o intuito é vender

as publicações Aqui vai ser diferente. O clube escolhe que livros as pessoas vão ler,

depois elas pesquisam sobre o tema e é criado um debate sobre o assunto. Será uma

coisa mais ampla, uma discussão sobre a leitura mesmo”.

Sessenta e cinco anos depois de ter sido construído, o castelo continua chamando

a atenção. Muitas pessoas desconhecem a lenda da prisioneira, e muitas se intrigam com

o que acontece dentro do castelo, que já foi palco de inúmeras histórias e está cravado

no centro de Porto Alegre. O que se imagina é que não sairá do meio da cidade tão cedo

e continuará mexendo com o imaginário das pessoas. O que resta saber é quais serão as

novas histórias que as paredes de pedras vão guardar?