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BERENICE CAVALCANTE A REVOLUÇÃO FRANCESA E A MODERNIDADE COLEÇÃO REPENSANDO A HISTÓRIA GERAL CONCEPÇÃO JAIME PINSKY (UNICAMP) COORDENAÇÃO HILÁRIO FRANCO JÚNIOR (USP) BRAZ AQUINO ORANCATO (PUC-RGS) EDITORA CONTEXTO ISBN 85-85134-81-X SÃO PAULO - 1990

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BERENICE CAVALCANTE

A

REVOLUÇÃO FRANCESA

E A MODERNIDADE

COLEÇÃO REPENSANDO A HISTÓRIA GERAL

CONCEPÇÃO

JAIME PINSKY (UNICAMP)

COORDENAÇÃO

HILÁRIO FRANCO JÚNIOR (USP)

BRAZ AQUINO ORANCATO (PUC-RGS)

EDITORA CONTEXTO

ISBN 85-85134-81-X

SÃO PAULO - 1990

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Nota de Esclarecimento

Caro leitor(a)

Este livro fora digitalizado pelo Projeto Prometheus, que

tem por objetivo, a digitalização de toda e qualquer obra

acadêmica e literária que seja de fundamental importância para

o enriquecimento do conhecimento de toda a sociedade, pois

acreditamos que as mesmas citadas não devem permanecer nas

limitações dos poucos exemplares oferecidos nas bibliotecas

públicas ou privadas, como tão pouco, nas livrarias a preços

inacessíveis a grande parte da população de nosso país.

Entretanto, condenamos e repudiamos veemente a pirataria,

pois ela faz seus lucros sobre o que mais condenamos, os altos

preços por aquilo que deveria ser de acesso gratuito a todos, o

conhecimento. Mediante a isto, e em reafirmação dos valores do

Projeto Prometheus, esta obra é oferecida a toda sociedade de

maneira total e perpetuamente gratuita. Vedada toda forma de

lucro sobre ela e/ou uso que não seja exclusivamente o do

ascender do conhecimento pessoal ou coletivo.

Atenciosamente.

Projeto Prometheus.

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Sumário

A Autora no Contexto ......................................... 07

1. O Tema da Revolução Francesa ..................... 09

2. O Antigo Regime Francês ............................. 14

3. Iluminismo e Revolução ............................... 24

4. Cultura e Revolução ................................... 54

Conclusão ..................................................... 67 Sugestões de Leitura ....................................... 69

O Leitor no Contexto ....................................... 71

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A AUTORA NO CONTEXTO[07]

Berenice Cavalcante é graduada em história pela Faculdade de

Filosofia da antiga Universidade do Brasil. Obteve o título de Mestre em

História, em 1975, no ICHF-UFF, com uma dissertação sobre O

"Movimento Católico Leigo na Década de Trinta" e o de Doutor em

História, em 1983, na FFLCH-USP. com uma tese sobre o "Partido

Comunista Brasileiro".

Entre suas publicações principais destacam-se Certezas e Ilusões —

os comunistas e a redemocratização da sociedade brasileira, Tempo

Brasileiro e, na mesma editora, a organização do volume sobre História e

Literatura, reunindo os textos dos conferencistas que participaram do

ciclo do mesmo título, enfocando a obra de Machado de Assis.

Atualmente é professora de história moderna e contemporânea dos

Departamentos de História da PUC-RJ e do ICHF-UFF.

A seguir, um rápido bate-papo com a autora;

1. Por que ao aceitar o convite leito pela Editora Contexto, escolheu o

tema sobre a Revolução Francesa?

R. Em primeiro lugar porque é um assunto com que tenho grande

familiaridade e um vivo interesse, que, aliás, vem de longa data. A razão

deste interesse é em parte compreensível pelo próprio argumento que

desenvolvo no livro, e que chamo de sua "contemporaneidade". Além

desse aspecto, considero que em história poucos temas permitem, como

a Revolução Francesa, que o pesquisador tenha contato com tamanha

riqueza e pluralidade de interpretações, construídas segundo as mais

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diversas tendências historiográficas. Os adeptos da simples empiria,[08]

os românticos, os socialistas, os marxistas, os conservadores, todos se

debruçaram sobre o tema. Seu estudo é um pouco uma espécie de

"escola de formação" do historiador.

2. Seria possível mencionar uma questão que considerasse a mais

intrigante nesse processo?

R. Sou um pouco avessa a solicitações que impliquem escolhas desse

tipo, que sugere uma definição superlativa. Aliás, no livro falo na questão

da complexidade da revolução, o que significa reconhecer que há vários

aspectos intrigantes, Feita essa ressalva, eu mencionaria um ponto

destacado por Tocqueville: a dupla potencialidade da revolução que

comporta forças libertárias e forças despóticas. Essa questão, que o

intrigou há mais de um século, permite-nos compreender hoje a

autonomia do político e do Estado; e a razão de a revolução não se

encerra em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem, e a

conseqüente definição dos princípios de uma sociedade burguesa e

liberal.

3. Considera possível reconhecer a influência do pensamento

iluminista e dos acontecimentos da Revolução Francesa sobre o processo

de independência brasileira?

R. Sim, desde que se resguardem certos limites e se reconheçam as

singularidades dessa influência. Em primeiro lugar, porque a realidade

social brasileira era muito distinta da francesa: sua condição colonial, sua

estrutura econômica e social com base no trabalho escravo, a forte

presença da Igreja (principalmente dos jesuítas, que aqui praticamente

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chegaram com os primeiros colonos), e o baixo nível cultural da

população, circunscrevem as condições da "leitura" daquelas idéias. Em

segundo lugar porque, grosso modo, tomaram contato com aqueles

pensadores no período em que permaneceram estudando em

universidades européias, principalmente Coimbra. Lá também, a tradição

do pensamento escolástico era forte e obstaculizou a expansão de um

pensamento crítico anticlerical.

Finalmente, porque — com exceção da Conjuração Baiana — esses

movimentos sempre foram conduzidos pelas elites ricas e cultas,

portanto refratarias à igualdade social. O que as movia era resguardar ou

restaurar sua posição dominante na sociedade. Esse propósito não era

em nada comparável ao que acontecia em França e que demonstra que

seu interesse era antes reformar do que revolucionar a sociedade. Por

último, mesmo quando incorporaram a idéia de "razão" como promotora

do progresso, não raro o fizeram através de uma construção ambígua,

em que ela aparecia ao lado do reconhecimento de uma ordem

transcendente e, assim, não rompem com a tradição.

1. O TEMA DA REVOLUÇÃO FRANCESA[09]

O propósito de abordar o tema da Revolução Francesa oferece aos

historiadores grandes atrativos e inúmeros desafios. É verdade que esses

desafios não têm tido, ao longo do tempo, potencial para paralisar, ou

mesmo desestimular os pesquisadores. Um breve relance na bibliografia

sobre o assunto revela justamente o oposto, uma grande quantidade de

títulos, abordando períodos diversos, focalizando diferentes atores,

propondo novas interpretações, construídas a partir de perspectivas

teórico-metodológicas várias, conduzindo a conclusões, não raro,

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radicalmente opostas. O tema parece inesgotável e mantém seu forte

poder de atração entre os estudiosos que renovam, e revêem análises

que começaram a ser construídas simultaneamente ao desenrolar dos

acontecimentos.

De fato, o processo revolucionário que abalou tão profundamente a

sociedade francesa no final do século XVIII e que de forma diversa

atingiu as demais sociedades européias, influenciou outros movimentos

revolucionários, atemorizou e entusiasmou diferentes segmentos sociais

mesmo nas longínquas regiões coloniais, impôs-se à reflexão de

políticos, pensadores, filósofos, romancistas e historiadores.

A Revolução Francesa, ainda no século XVIII, foi objeto de análise de

Burcke e Kant, exemplos primeiros do empenho em buscar um sentido

ou uma explicação para acontecimentos vistos como inesperados e

imprevisíveis por seus contemporâneos. A falta de "familiaridade" com

aqueles acontecimentos foi o denominador comum da obra de três

famosos historiadores franceses no século XIX: Guizot, Michelet e

Tocqueville.

[10]O tempo parece não esmorecer o interesse e a curiosidade

intelectuais ao longo do século XX, produzindo novas interpretações que

oscilam ao sabor de acontecimentos políticos, refletindo debates

apaixonados, forjando as novas tendências historiográficas, demolindo

antigos mitos, substituindo heróis, continuando a freqüentar os gabinetes

dos especialistas em ciências sociais e humanas. Porque o assunto,

definitivamente, não se constitui em patrimônio dos historiadores.

Como entender a persistência do interesse e da curiosidade? Como

explicar que, contrariamente ao que ocorro com outros temas, o estudo

da Revolução Francesa atravesse diferentes conjunturas mantendo viva a

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busca de seu esclarecimento, não sendo relegado a plano secundário

como assunto menor?

É interessante notar que, em meio a tantas discussões,

interpretações díspares, revisões críticas e reconstituições históricas tidas

como "definitivas", um aspecto aparentemente pouco significativo,

parecendo mais um detalho de somenos importância, ou quem sabe

resquício de uma repetição monótona e pouco imaginativa, a Revolução

Francesa permaneça inabalável em seu posto de marco temporal

assinalando o fim dos tempos modernos e o início dos tempos

contemporâneos. Contudo, é este aspecto — aparentemente pouco

significativo — da simples periodização que pode fornecer um indício

para que se desvende o segredo de seu forte poder de atração enquanto

tema de estudos.

Antes de tudo, é importante sublinhar seu caráter universal.

Os efeitos dos acontecimentos — desde os menos significativos, aos

mais relevantes — que integram a chamada Revolução Francesa, não se

circunscrevem aos limites de história de França. Por esta razão, podem

ser identificados a um divisor de águas entre épocas de características e

dinâmicas distintas.

Acontecimentos como: a queda da Bastilha, a prisão e condenação do

rei, a Declaração dos Direitos do Homem, a proclamação da República, a

organização de clubes jacobinos, a abolição dos privilégios nobiliárquicos,

a promulgação da constituição, a adoção do sufrágio universal, o

estabelecimento de uma nova noção de propriedade, apenas para citar

os fatos mais conhecidos, cada um a seu tempo e a seu modo, assinalam

o rompimento com a tradição e a fundação de uma nova ordem.

Em outros termos, é a construção de uma nova ordem que recusa

não apenas as antigas estruturas políticas e sociais, com as quais se

contundia o Antigo Regime — expressas na monarquia absoluta e na

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sociedade desigual e hierárquica, como também valores e concepções

predominantes até então. Assinala, portanto, a etapa final do[11]

processo de secularização das estruturas de poder e de cognição da

própria história, inaugurando a chamada modernidade ocidental.

Em termos genéricos pode-se identificar essa modernidade com a

fundação da sociedade burguesa, calcada nos princípios da igualdade e

da liberdade — típicas da lógica do mercado — e assinala também a

passagem da condição de súdito à de cidadão.

Nos cenários políticos e ideológicos em que se desdobram as

diferentes etapas desse processo, reflexos de projetos políticos diversos

o perspectivas opostas acerca dos projetos revolucionários, os franceses

protagonizaram experiências históricas inéditas. São elas: a politização

da questão social, as experiências democráticas e republicana, e os

primeiros projetos socialistas. Todas são questões de extrema

contemporaneidade e podem explicar não apenas a sua prolongada vida

como tema de estudos, como também ser ponto de referência e modelo

para práticas políticas atuais.

É justamente dessa riqueza, da pluralidade de interpretações e de

matrizes explicativas, que decorrem os desafios, resumidamente

expressos na dificuldade de explicar esses acontecimentos, e na de

escolher que versão privilegiar.

ALGUMAS VERSÕES E MUITOS DEBATES:

A COLOCAÇÃO DE UM PROBLEMA

Na impossibilidade de se resenhar o conjunto dos textos que

integram a extensa listagem bibliográfica sobre a Revolução Francesa,

dois conjuntos de questões serão mencionados a seguir para que se

tenha uma noção, ainda que gorai, dos debates contemporâneos em

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torno da questão da natureza da revolução e de suas causas. Vale

lembrar que cada uma delas tem seus acólitos e seus críticos. E que a

construção desse panorama objetiva não apenas orientações de leituras

futuras como uma melhor compreensão do plano desta obra.

A interpretação da Revolução Francesa como modelo "clássico" da

revolução burguesa desfruta de razoável prestígio entre os historiadores.

Apoiando-se nas teses de Marx sobre a via revolucionária de

passagem do feudalismo ao capitalismo, esta versão combina leis gerais

da história para explicar a mudança de modos de produção, com

problemas de ordem particular a estrutura específica da sociedade

francesa no fim do Antigo Regime e sua base aristocrática. Os

acontecimentos são explicados à luz da luta de classe que oporia

aristocracia a burguesia, em torno da manutenção ou abolição da

feudalidade. Esse[12] modelo de interpretação privilegia como temas

principais o problema da propriedade e da questão agrária, e a

participação dos camponeses e das massas populares urbanas, em

especial os jacobinos. Os primeiros considerados os "árbitros" da

revolução e os segundos como expressão das forcas mais radicais da

revolução.

A explicação assim estruturada em torno da contradição entre dois

tipos diversos de sociedade, sendo a superação da ordem antiga pela

nova considerada como uma lei histórica, dá aos acontecimentos

revolucionários um caráter inevitável. Dito em outros lermos, integra um

conjunto de fatos que possuíam um razoável índice de previsibilidade. A

passagem do feudalismo para o capitalismo é então entendida como uma

"necessidade histórica".

Alguns críticos dessa interpretação apontam as fragilidades da visão

construída sobre a base do conflito entre burguesia e aristocracia.

Consideram a realidade social francesa no Antigo Regime mais complexa

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e, portanto, irredutível a esta simples polaridade. Invertem essa

interpretação ao chamar atenção para a formação de uma nova elite,

integrando setores daquelas duas classes e impondo a revisão da

natureza dos conflitos e tensões sociais do período.

Numa outra vertente, as análises sobre a situação agrária no final do

Antigo Regime têm insistido nas teses sobre o desenvolvimento de

formas capitalistas no campo ao longo do século XVIII, fragilizando ainda

mais o argumento fundado no conflito entre feudalismo e capitalismo, ou

aristocracia e burguesia, que se constitui no substrato daquela

interpretação. Na perspectiva econômica, pesquisas mais recentes

tendem a abrandar o caráter de "crise" daquela sociedade, que teria

conhecido relativo crescimento e lembram que as transformações no

regime de propriedade eram um fato, durante o reinado de Luís XVI.

Pode-se concluir deste conjunto de argumentos que pensar a revolução

como provocada por tensões inerentes ao sistema feudal não seria um

bom caminho para sua compreensão. Na hipótese da existência e do

aguçamento dessas contradições seria mais compreensível esperar que a

revolução ocorresse em outras sociedades do leste europeu, como já

apontou Tocquevílle em meados do século passado.

Para que se defina o caráter da revolução há que se definir

previamente qual de suas etapas, ou qual de suas "revoluções" melhor

identificaria a mudança. Em termos de periodização, significa optar por

1789 ou por 1793. Isto é, atribuir maior relevância à Declaração dos

Direitos, ao período constitucional, a vitória dos princípios do liberalismo

e à conquista da liberdade; ou privilegiar a Convenção Jacobina e o

esforço de ampliar as conquistas revolucionárias ao preço do sacrifício da

liberdade, em prol da igualdade e da imposição do terror.

[13] Em sentido diverso, historiadores que se situam em outro plano

de compreensão dos processos de mudança, recusando explicações

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organizadas a partir dos conflitos sociais, ou da preeminência dos fatores

de natureza econômica, atribuem importância ao papel desempenhado

pelas idéias dos filósofos iluministas.

Para esses historiadores, as obras de Voltaire, Diderot, Rousseau e

Montesquieu, em que pesem as diferenças que guardam entre si, têm

em comum o lado crítico ao Antigo Regime e à Igreja, parceira do rei no

controle do poder. Seus textos desempenharam importante papel na

derrocada do Antigo Regime, por condenarem o obscurantismo e o

predomínio das "trevas", com os quais os filósofos identificavam as

sociedades submetidas ainda ao pensamento escolástico. E, ainda por

difundirem a crença na razão como portadora do progresso e da

felicidade, substituindo então os antigos deuses por uma crença

secularizada.

Essa interpretação também tem seus críticos que levantam dúvidas

quanto à possibilidade de novas idéias terem a força de mudar regimes

políticos e sociais. Acrescentam ainda o argumento que destaca um certo

grau de acomodação dos filósofos ao cotidiano da sociedade francesa, ao

convívio com as elites, esvaziando assim seu conteúdo revolucionário.

As interpretações sobre o papel desempenhado pelas "Luzes" na

Revolução Francesa merecem ser reexaminadas para que se desvende a

importância da constituição de uma opinião pública. Esta forjaria uma

nova concepção de poder, não mais alocado no Estado, mas na

sociedade, pré-condição para a experiência da cidadania, com a qual se

confunde o processo revolucionário.

Tendo em mente que estas brevíssimas referências às explicações

que desfrutam de maior aceitação entre os historiadores, ficam distantes

da constituição de um quadro mais fiel da extensa bibliografia sobre as

origens da revolução, destaque-se que elas aglutinam em torno de si os

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temas mais polêmicos dos debates acadêmicos. Por esta razão, inspiram

O prosseguimento das pesquisas por aqueles que aceitam o desafio.

O capítulo que se segue da continuidade à discussão sobre as

possibilidades de compreensão dos fatores que levaram à derrocada da

monarquia absolutista na França e à abolição dos princípios

aristocráticos.

Por esta razão, privilegiará uma discussão sobre as estruturas de

poder e seus mecanismos de reprodução.

O foco incidirá sobre a dinâmica social, considerada como o centro

das tensões de uma sociedade profundamente diferenciada e

hierarquizada e que pretende manter seus privilégios, vale dizer, sua

dominação e seu poder.

2. O ANTIGO REGIME FRANCÊS[14]

A MONARQUIA ABSOLUTISTA

Para que sejam compreensíveis os acontecimentos que transtornaram

tão profundamente a sociedade francesa, é necessário proceder a um

recuo no tempo e considerar o processo de centralização do poder, tal

como se verificou no reinado de Luís XIV, no final do século XVII.

Nestes termos, importa avaliar em que medida a reunião das funções

governamentais na figura do soberano imprimiu uma nova dinâmica às

relações sociais e ao exercício do poder que geraram as graves tensões

que terminaram por minar o sistema.

De início é preciso fixar que a centralização de poder, típica da

monarquia absolutista significou — do ponto de vista do rei — o controle

de um duplo monopólio: o monopólio fiscal e o monopólio da violência.

Do ponto de vista da nobreza francesa, descendente das tradicionais

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famílias proprietárias de terra e a quem cabiam, de longa data, os

encargos guerreiras e militares, a perda dessas funções significou

conseqüente submissão ao monarca, que se impunha como o "senhor

dos senhores".

Essa passagem, que não se operou pacificamente e, pelo contrário,

enfrentou acirrada concorrência entre as famílias rivais, teve motivações

variadas, delas não se excluindo as questões religiosas e a disputa por

território.

O que importa sublinhar para a compreensão dos acontecimentos

aqui analisados é que a centralização de poder se concretizou num[15]

quadro dominado por uma competitividade plurissecular, cujas origens

remontavam aos séculos XV e XVI.

É de se notar que nesse longo período a acomodação dessas forças

sociais implicou em profundas transformações. Isto, de forma tal que não

apenas se mantivesse a hegemonia do mais poderoso, como ao mesmo

tempo se eliminassem os concorrentes em potencial e se mantivesse o

povo subordinado.

Como podem ser descritos esta acomodação e o exercício do

monopólio do poder?

Para tanto é preciso retornar ao duplo monopólio real mencionado

acima. Através da manutenção do controle fiscal, o rei centralizou o

recolhimento de impostos e, vale lembrar, colocou sob seu controle

atividades até então desempenhadas pelos senhores.

O significado dessa mudança pode melhor ser avaliado quando se

considera, em primeiro lugar, que as necessidades financeiras eram

crescentes, seja para financiar as guerras, seja para pagar o numeroso e

dispendioso corpo de funcionários necessário à manutenção da máquina

administrativa ou, enfim, para manter o alto padrão de vida da família

real e de seu círculo, a corte.

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Além deste aspecto, que revela a permanência e constância na

obtenção de novos financiamentos — quer sob a forma da criação de

novos impostos, quer de empréstimos contraídos junto à burguesia — , o

que importa é que tais práticas corrompem os princípios mesmos sobre

os quais se assentavam os esquemas de fidelidades entre os nobres.

Por sua importância, esse ponto merece ser visto mais

detalhadamente.

Para a solução das contínuas e crescentes necessidades financeiras, e

para o preenchimento dos cargos que compunham a estrutura

burocrática do remo, o rei valia-se de dois expedientes básicos: os

empréstimos e a venda de cargos públicos e títulos de nobreza.

Em qualquer um desses procedimentos, as relações monetárias eram

o mediador. Assim, o rei garantia fidelidades através de uma relação de

compra e venda, e não mais através da distribuição de torras, como de

praxe nas relações entre senhores.

Há uma certa ambigüidade nesse proceder. Ao mesmo tempo em que

se pretende o estabelecimento de vínculos de dependência e fidelidade,

conforme os padrões tradicionais, eles se estabelecem sobre novos

valores que nada têm em comum com suas origens feudais.

Além desse aspecto, que minou os princípios e os valores sobre ao

quais assentavam-se tradicionalmente as solidariedades, a questão dos

empréstimos e da distribuição (ou venda) de cargos introduz outros tipos

de modificação.

[16]Com relação aos empréstimos, o rei só podia obtê-los junto aos

grandes comerciantes e financistas franceses. A burguesia que florescia

nas cidades e nos portos, através das atividades mercantis e manufaturei

rãs, constituía-se na única lente para obtenção desse recurso.

Quando os recursos financeiros não eram obtidos através da compra

de cargos ou de títulos de nobreza, o credor recebia em troca algum

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outro tipo de proteção ou privilégio. Explica-se dessa forma a distribuição

de monopólios comerciais, característicos do mercantilismo — a política

econômica típica das monarquias absolutistas.

Em qualquer dos casos, o que se observa é que não eram todos, e

sim, alguns membros da burguesia que se beneficiavam das concessões

reais e participavam do esquema de proteção e privilégios. Mais do que

isto, os representantes da burguesia que se encaixavam n situação

constituíram a nova nobreza, a nobreza togada, ou os parvenus, que só

tinham em comum com a nobreza sangüínea, de origem militar e

guerreira, o fato de ostentarem um titulo nobiliárquico.

Os altos cargos militares e eclesiásticos não eram postos à venda e

eram preenchidos exclusivamente pela nobreza tradicional. Mas, nem por

isso ficaram imunes aos elementos corruptores das novas práticas. Ao

receberem essas sinecuras eram simultaneamente introduzidos no

mundo das relações monetárias, sendo essas pensões — senão a única

— a principal fonte de renda, pois as demais haviam passado para as

mãos do rei.

Assim, o rei tanto continuou a desempenhar seu papel de primeiro

cavaleiro do reino, no que tange à obediência às hierarquias de origem

nobiliárquica, como incorporou um novo papel, o de chefe de negócios.

Aburguesou os nobres e enobreceu os burgueses.

A SOCIEDADE DE CORTE

E A LÓGICA DO PRESTÍGIO

É compreensível associar-se monarquia absoluta à figura do rei. De

fato, nada mais correto do que destacar-se o papel central

desempenhado pelo monarca na vida desse sistema. Correto ainda

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porque, como um bumerangue, as decisões partiam desse centro e a ele

retornavam, de forma a fortalecer esse poder.

Contudo, mesmo reconhecendo esse movimento, cabe indaga como

isso foi possível, considerando-se que manter e reforçar seu poder

significava controlar rivalidades, obstaculizar as ambições de seus rivais,

subordinar a massa do povo e garantir a expansão da burguesia - porque

dela dependia.

[17]Para que tal ocorresse, há que se considerar o papel

desempenhado pela corte. Dito de forma mais enfática: reconhecer que a

corte instituiu-se em instituição fundamental da monarquia absoluta e,

por extensão, do poder do monarca.

No caso da sociedade francesa à época da revolução, a corte

instituía-se de aproximadamente quatro mil famílias que viviam ao redor

do rei em Versalhes, recebendo pensões. E pode ser considerada como o

microcosmo da sociedade. Como esclarece Norbert Elias, afirmar a

existência de urna sociedade de corte, significa afirmar que a Corte é a

sociedade, na medida em que ela constitui uma formação social onde são

definidas, de maneira específica as diferenças e hierarquias que

caracterizam as relações sociais como um todo. Assim, a vida na corte

funcionava não apenas no seu próprio interior, mas também para o

conjunto de sociedade que nela deveria espelhar-se e diferenciar-se.

Que relações sociais são essas, e como expressam e reforçam o

poder do monarca absoluto?

Em primeiro lugar, a reunião dessas famílias em tomo do rei, e a

proximidade em que vivem permite ao monarca um controle mais efetivo

com relação a possíveis tentativas de usurpação do poder. Mantendo-os

sob sua vigilância constante, constrói simultaneamente uma rede de

dependências, ao mesmo tempo em que pode jogar, ao seu sabor, uns

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contra os outros, dificultando uniões perigosas, explorando a

concorrência entre os pares, ao invés de eliminá-la.

O coração desse sistema é constituído pela lógica da dependência ou

a lógica do prestígio.

De um lado, como já foi descrito, a dinâmica irradia-se do rei, através

de suas inúmeras concessões, entre as quais se destacam as pensões.

Não é demais frisar que ao perderem parte significativa de fontes de

renda, receberam - à guisa de compensação - pensões reais. Viviam,

literalmente, às custas do rei.

Por outro lado, quanto maior era essa dependência, maior era o

prestígio do beneficiário. E a mesma mão que concedia, podia retirar Ou

diminuir, Esse jogo nutria-se de disputas e rivalidades, permitindo por

sua vez, que o rei pudesse manter sempre seu poder individualiza-a

medida em que ele era o árbitro absoluto nessa relação. Assim, o rei

compensava o que lhes retirara, mantendo-os em posição privilegiada,

no sentido que se emprestava a esse termo à época. Privilegiada porque

significava a proximidade do rei, a participação em sua vida, e o

recebimento de pensões. Portanto, privilegiada, porque dependente.

Nos diversos graus de prestígio e dependência em que se

organizavam estabelecia-se a hierarquização e diferenciação dos

membros da corte, e dai irradiava-se para fora porque ela deveria servir

para[18] identificar os não privilegiados, isto é, os plebeus, de quem

importava guardar distância e subordinação.

Nestes termos, a "sociedade de corte" funcionava num duplo sentido.

Significava reconhecer que a sociedade tinha uma corte e que a corte era

a sociedade, na medida em que reunia suas características, e dinâmica

fundamentais.

Data desse período (e dessas necessidades) a criação de uma série

de normas de conduta, de regras rígidas o detalhadas, definição de uma

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vida etiquetada que objetivava não apenas tornar os antigos guerreiros

mais civilizados, aprendendo a conviver em público e a controlar suas

paixões, como também, lançar mão de outro recurso que não

exclusivamente a violência para a realização de seus objetivos.

Os procedimentos etiquetados, que desciam a minúcias sobre lugares

a serem ocupados, a ordem de entrada nos salões, a distinção daqueles

que podiam entrar no quarto do rei para assistir ao seu despertar, a

definição de cores que poderiam ou não ser usadas em indumentárias,

regravam o convívio diário e tornavam absolutamente visível a ordem

hierárquica em vários sentidos; de cada um dos nobres em relação ao

rei, dos nobres entre si e dos nobres e plebeus - estes, naturalmente,

pela exclusão.

A esses era reservado o lugar de público-plateia desse grande teatro,

dessas formas dramatizadas de se representar o poder. As festas, as

paradas, as procissões, as festas religiosas eram os momentos em que o

poder vinha a público, expunha-se na sua forma centralizada e

hierarquizada.

O ESTADO DE COMPROMISSO

Pelo exposto pode-se depreender que a monarquia absoluta fundava-

se sobre uma base muito precária, que combinava elementos de

convivência problemática.

Por ter-se tornado um permanente pólo de atração de dinheiro, o

Estado absolutista torna-se também o promotor da mobilidade social.

Este ponto é fundamental para as interpretações que aqui se

desenvolvem. O que ocorreu em França desde o reinado de Luís XIV, até

ás vésperas da revolução, decorreu - em larga medida - das tensões

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sociais geradas por essa mobilidade e pela desfuncionalidade que

imprimiu ao sistema.

Isso porque a monarquia absolutista estabeleceu-se sobre a

destruição da autoridade tradicional dos senhores e das comunidades

locais.[19] Segundo François Furet, desta destruição decorre o

compromisso instável entre a manutenção dos princípios de organização

social herdados do período feudal - as ordens ou estamentos - e a

construção de um Estado moderno.

O propósito era conciliar a reprodução da pirâmide social, composta

pela diferenciação hierarquizada entre o clero, os nobres e o povo e, ao

mesmo tempo, promover a prosperidade do reino. Unificava o mercado

nacional, racionalizava a produção e a troca, destruindo as velhas

comunidades agrárias.

Pesquisas recentes têm mostrado a progressiva transformação das

estruturas agrárias francesas em função da expansão da propriedade

explorada por mão-de-obra assalariada. A resistência ao avanço dos

arrendamentos e da grande e da média propriedade era feita, não por

nobres e sim pelo campesinato, que permanecia apegado à defesa das

garantias da sobrevivência da comuna.

Para além dos fatores meramente econômicos relacionados à relativa

prosperidade do reino, esta modernização gera uma dinâmica social nova

- essa dinâmica incompatível com a manutenção do outro compromisso

firmado; a preservação dos princípios de organização social fundados nos

privilégios nobiliárquicos.

Não apenas cria uma outra nobreza, originária de representantes

bem sucedidos do mundo de negócios, como também cria uma estrutura

social paralela e contraditória em relação à primeira: uma elite dirigente.

Pode-se assim melhor compreender a impossibilidade de manutenção

da antiga solidariedade entre a nobreza, minando a tradição nobre sobre

Page 21: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

a qual se mantinha e corroendo e substituindo os valores que

sedimentavam essa solidariedade.

Ao contrário, o que se observa é o fracionamento desse grupo e sua

tensão permanente, e são os conflitos intranobiliárquicos que dão a

tônica do período.

A boa vida da corte jamais foi assimilada pela pequena nobreza ou

nobreza provinciana, que vivia dos rendimentos cada vez mais magros

de sua propriedade e que não desfrutava também da proteção das

pensões reais.

São exemplo perfeito da desfuncionalidade do sistema, pois

mantinham títulos de nobreza sem exercerem as prerrogativas de

direito, ocupando, na prática, plano secundário na vida social e política

do reino.

Esta situação realimentava não apenas seu tradicional desprezo pelos

plebeus - de resto, um dos poucos fatores a uni-la a outros grupos

nobres - como a levou a nutrir áspera hostilidade ao dinheiro e,

conseqüentemente, a sua expressão social: os novos nobres.

[20]Em sua oposição aos parvenus, a nobreza provinciana tinha

numerosos aliados entre representantes da "velha nobreza". A "reação

aristocrática", que se manifesta no reinado de Luís XVI, não se limita a

apenas resguardar os princípios de diferenciação e hierarquização entre

nobres e plebeus, mas, sobretudo, reage à nova feição que estes

princípios assumiam em decorrência dos processos de enobrecimento

através de compra de títulos. Assim, à antiga distinção nobre/plebeu,

acrescentara-se a nova: nobre ou enobrecido. Ou então: nobre - desde

quando?

O Edito de 1781, dirigido contra os nobres que não descendiam de

quatro gerações de sangue azul, expressa de forma significativa a

Page 22: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

resistência da nobreza tradicional em reconhecer legitimidade numa

nobreza criada pelo dinheiro e pelo Estado absolutista.

Por seu turno, a nobreza togada, alvo dessas hostilidades e dessa

oposição, identifica-se - com algumas dificuldades - ao grupo em que

teoricamente se incorporava. Vivia fora da corte, cuidando de seus

negócios, e fazendo oposição tanto ao grupo de Versalhes, quanto aos

seus representantes locais, os intendentes.

Não restou sequer a solidariedade entre os integrantes da nobreza

dirigente ou aristocracia, porque se compunha de elementos muito

diversificados: velhas famílias feudais, a alta nobreza militar, bispos

cortesãos, financistas aliados às grandes famílias e os intendentes

membros da alta burocracia de Versalhes.

Desprovidos de homogeneidade social ou econômica que lhe desse

coesão, os membros desse segmento social moviam-se motivados por

sua ambição em relação ao poder e em relação aos mecanismos de

mobilidade social instaurados pela monarquia.

O sistema de elites concorrentes, instaurado por Luís XIV, nem

sempre pode funcionar sob seu controle, menos ainda com seu sucessor,

cujas práticas mais ainda abastardaram os princípios, mesmo quando -

aparentemente - parecia resguardá-lo. Luís XVI cassava antigas

concessões ou nomeações. O intuito, porém não era depurar a nobreza

como a iniciativa pode sugerir, e sim, confiscar os cargos para colocá-los

à venda outra vez.

A forma peculiar com que o Estado absolutista promoveu a

mobilidade social criou-lhe dificuldades entre seus principais beneficiários

em potencial, pois, para a burguesia, aquele sistema era fonte também

de insatisfações.

De fato, para a burguesia esses mecanismos revelavam uma dupla

inadequação. Comparada à sua relativa prosperidade, ao aumento de

Page 23: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

fortunas e á expansão de seus membros, a possibilidade de integrar-se

ao grupo dominante era relativamente pequena, e atingia apenas[21]

uma parcela menor desse segmento social. Na prática, funcionava tomo

um sistema comparável ao de uma loteria em que apenas alguns poucas

ganhavam a sorte grande. Os que ficavam de fora engrossavam as

fileiras dos descontentes e aumentavam as pressões por mudanças.

Para além desses fatores de natureza mais quantitativa relacionada à

incapacidade de esse sistema absorver o grupo como um todo, ressalta-

se também que essa era a única alternativa oferecida aos plebeus. Ou

seja, integrar-se ao Estado, à sua corte, à sua burocracia, à sua

magistratura, etc., etc.

É dessa combinação esdrúxula entre as formas arcaicas e sua

atualização, entre o "velho" e o "novo", no esforço de combinar a

tradição ao moderno, que decorrem os conflitos entre a sociedade de

ordens e o absolutismo.

Os princípios sobre os quais se funda a mobilidade social - por leu

turno a saída possível para realizar o instável compromisso - complicam

e desonram o mecanismo de ascensão e os valores tradicionais. Ao

mesmo tempo em que sangue azul não oferecia mais nenhuma

possibilidade de ascensão social, nem detinha mais antigas atribuições, a

nobreza é mantida como segunda ordem do reino e detentora de

privilégios. Em contraste, através do Estado e a partir da reunião de

fortunas, participa-se da elite dirigente, deixando cada vez mais sem

expressão política e sem função na sociedade as famílias tradicionais.

O descontentamento generalizado, a rivalidade entre os grupos e a

crescente disputa pelo poder às vésperas da revolução, traduziram-se

em três "projetos" para a sociedade francesa, representando três

carrinhos possíveis.

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Ainda que não se consubstanciassem em projetos políticos formais,

expressaram as expectativas alimentadas no interior desses grupos. O

primeiro desses projetos correspondia ao sonho de uma certa volta ao

passado. Nutria-se de comparações com a nobreza polonesa, conhecida

por sua hostilidade ao Estado e por querer manter suas prerrogativas

clássicas. Integrava aqueles que se opunham à centralização do poder e

que acalentavam esperanças de uma descentralização futura e de

restabelecimento das unidades senhoriais.

Na margem oriental do Reno, a Prússia também inspirava um outro

sonho entre os nobres. Sem negar a necessidade de modernização do

Estado, supunham poder operá-la em seu proveito, isto é, mantendo o

monopólio dos principais cargos públicos.

Finalmente, o exemplo que vinha do outro lado do canal da Mancha:

uma monarquia à inglesa, constitucional e parlamentar.

[22] Na verdade, nenhum desses caminhos foi possível, embora seus

representantes se tivessem feito presentes em diferentes momentos da

revolução. Essa diversidade de perspectivas explica, em parte, as

marchas e contramarchas enfrentadas pelo processo revolucionário em

seus desdobramentos posteriores, e justifica sua periodização em várias

etapas. Ou melhor, em diversas "revoluções"

A REBELIÃO DAS "ORDENS"

Em termos da identificação desses vários momentos revolucionários,

há um período que é chave para sua compreensão e para a demarcação

da queda do Antigo Regime. Engloba os acontecimentos compreendidos

entre a instalação dos Estados Gerais em maio de 1789, e a Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão na noite de A de agosto.

Page 25: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Nesse período, que é mediado pela queda da Bastilha e pelos

levantes camponeses do verão que disseminaram o chamado "grande

medo", ambos assinalando a entrada na cena pública da multidão de

pobres e oprimidos, manifestam-se as tendências que marcariam a

revolução nos anos seguintes, e definem os marcos que balizariam as

discussões e as lutas posteriores.

Na impossibilidade da reconstituição detalhada desse quadro, o que

se pretende é chamar atenção para aspectos que permitem sustentar as

interpretações apresentadas acima. O primeiro deles foi a vitória do

Terceiro Estado recusando a votação por ordem, como determinava a

tradição, e estabelecendo o voto por cabeça. Sua rebeldia, confirmada

alguns dias depois no famoso juramento da sala do Jeu de Paume -

firmou a igualdade entre os representantes eleitos e permitiu que se

declarassem em Assembléia Nacional, em 17 de junho. Embora o rei

aceitasse tornar-se um monarca constitucional e propusesse a abolição

dos privilégios fiscais, mantinha-se irredutível em sua intenção de

conservar as dízimas, as rendas e os deveres feudais e senhoriais.

Não apenas o caráter conservador da proposta do monarca, como

também a falta de unidade e solidariedade entre os representantes das

ordens evidenciaram as dificuldades de negociação e criaram um

impasse inicial para as decisões dos Estados Gerais. No entanto, o

importante nesse período é que se firmam os princípios da soberania

nacional e da igualdade que se incluem entre as principais conquistas da

Revolução.

Tais princípios completam-se com a Declaração dos Direitos do

Homem, que coloca um ponto final nos princípios sobre os quais

assentava-se[23] a sociedade hierarquizada, e anula, no mesmo golpe,

todo tipo de privilégios. Naquela noite estabeleceram-se os princípios da

Page 26: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

sociedade liberal e democrática firmada sobre a conquista da igualdade e

da liberdade dos cidadãos franceses.

Não obstante, é sabido que a revolução não se encerrou aí. Ou

melhor, que se segue um período de grande instabilidade política, no

qual as conquistas revolucionárias não logravam consolidar-se, o que as

revogações de constituições recém-promulgadas podem exemplificar. A

revolução também se desviou de seu curso parlamentar, ganhou as ruas,

deixou de ser pacífica e a violência instalou-se como aliada da liberdade,

por mais estranho que possa soar.

De 1789 a 1815 a monarquia foi abolida, a república proclamada,

estabelecida a ditadura jacobina, deflagrado o golpe do Termidor e do 18

Brumário de Napoleão, tendo antes passado pela experiência do Diretório

e do Consulado. Durante esse período os princípios e as bandeiras

revolucionárias foram reinterpretados, suspensos, ampliados ou limitados

conforme entendiam as forças sociais presentes no embate político.

Entre elas, inclusive, figuravam as antigas elites dominantes, com seu

contingente de nobres falidos e inconformados com a perda de seus

antigos privilégios.

A referência à instabilidade que se seguiu à abolição da monarquia

justifica-se para sublinhar a relação entre a Revolução Francesa e a luta

pelo poder, uma sociedade dividida em facções opostas em torno do

entendimento sobre quem deveria dominar, e sob que forma política

deveria se organizar o Estado. Sua motivação é, portanto, de natureza

essencialmente política.

Dessa complexidade resulta também a impossibilidade de reduzir a

Revolução Francesa a uma equação simples do tipo capitalismo versus

feudalismo, ou burguesia versas aristocracia. Ao contrário, revela os

impasses e as enormes dificuldades vividas no confronto das diversas

Page 27: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

expectativas em torno de dois de seus temas centrais: igualdade e

liberdade.

3. ILUMINISMO E REVOLUÇÃO[24]

Os primeiros a construírem a identificação entre as idéias dos

filósofos franceses do século XVIII e a revolução foram os próprios

lideres revolucionários.

Variando de acordo com as circunstâncias do momento e as

tendências políticas, a preferência poderia ser Voltaire ou Rousseau, o

primeiro mais significativo para os girondinos, o segundo para os

jacobinos. Rousseau, ou "Jean-Jacques", como a ele se referiam - o

amigo da natureza, a alma sensível e o defensor da justiça e da

igualdade - foi a referência principal do período em que a ampliação dos

direitos da cidadania e o princípio da igualdade social destacam-se como

prioridades da revolução.

A preocupação em fundar novos valores que legitimassem a ordem

nascente impunha que se eliminasse os vínculos identificados com a

ordem anterior. Nesse movimento de rompimento com a tradição, inclui-

se o estabelecimento de uma outra relação com o tempo, através da

fixação de um novo calendário e da escolha de novos heróis. Entre esses

incluíam-se os filósofos cuja memória deveria ser preservada e o culto

ser respeitado.

Essas foram as razões da "panteonização" de Voltaire e Rousseau.

Com a transferência dos restos mortais dos dois filósofos para o Panteão,

respectivamente em 1791 e 1794, a revolução os homenageava

duplamente: como "precursores" e como "inspiradores".

Page 28: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

A despeito das diferenças que marcaram a obra dos dois filósofos, o

que importava nessa iniciativa era o que poderiam representar em

comum. E essa pretensa sintonia, destacada nos discursos feitos[25] por

ocasião das duas solenidades, sublinhava os méritos decorrentes do

talento e dos serviços prestados por ambos á humanidade. O mérito

assim compreendido, não guardava nenhuma relação com nascimento,

títulos hereditários, feitos de guerra, etc., e com tudo mais que se

identificasse à tradição, ou seja, ao passado que se pretendia destruir.

Lideres revolucionários de matizes diversos buscavam assim explicar

a origem da revolução o ganhar legitimidade. Aos filósofos se tributaria a

formulação das idéias que eles colocaram em prática, pondo fim a um

período que passaria a ser identificado aos preconceitos, ao

obscurantismo e à tirania.

Sobre esses pilares inicia-se a propagação de um ideário que

colocava iluminismo e revolução como imagens que se espelhavam. A

homenagem que unia na posterioridade o que fora separado em vida -

não é demais relembrar as enormes discordâncias entre os dois filósofos

-, cumpria ainda uma outra finalidade. Ela permitia interpretar o

iluminismo como um movimento homogêneo e contínuo, cuja tarefa teria

sido preparar a revolução.

Ainda que parte da historiografia reproduza esse tipo de

interpretação, ela convive com trabalhos que conduzem a outras

conclusões.

No que concerne ao papel de "inspiradores" o de "precursores"

desempenhado pelos filósofos, outros aspectos muito importamos têm

sido recuperados pelos historiadores para que se repense essa relação.

Se esses novos enfoques não chegam ao ponto de negar totalmente

aquela relação, buscam, no entanto, matizá-la e torná-la menos

homogêneas e continuas.

Page 29: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

É preciso que se chame atenção para o fato de que se as idéias dos

filósofos iluministas tinham em comum o fato de criticar e rejeitar a

sociedade do Antigo Regime, faziam-no de óticas e perspectivas di-

versas, partiam de premissas opostas e, em conseqüência, a relação de

cada um deles com os diferentes momentos da revolução foi igualmente

muito diversa.

As idéias de Voltaire, por exemplo, estariam mais próximas da

constituição de uma monarquia ilustrada, ou seja, do governo do príncipe

"esclarecido", pressupondo apenas reformas e não uma revolução. Isto

reflete sua grande influência sobre o imperador Frederico II da Prússia

(1740-1786), sempre referido como "déspota esclarecido". Nesse caso,

as idéias de Voltaire influenciaram a modernização do Estado

empreendida pelo imperador, numa engenhosa combinação do "velho" e

do "novo", tudo feito para manter inalterada a base aristocrática da

sociedade prussiana e promover a marcha da "civilização". O caso

francês escaparia a essa regra porque, ali, as idéias[26] dos filósofos

teriam sustentado uma autêntica revolução, e essa seria a razão da

homenagem.

Como explicar esse quadro?

A tarefa não é simples pois dela têm se ocupado muitos historiadores,

que nem sempre concordam cm suas explicações. Saber se os filósofos

influenciaram ou não a revolução c, em que medida o fizeram, exige -

parece-nos - o tratamento prévio de outras questões. Antes de

aprofundar a relação das idéias com sua aplicação, isto é, com a obra da

Revolução, é necessário conhecer as condições em que foram gestadas.

Esse é um pressuposto para a determinação de seu conteúdo

"revolucionário" e o grau maior ou menor de contestação à ordem.

Assim, guardando relativa distância das interpretações espelhadas

entre iluminismo e revolução, encaminharemos a análise das relações

Page 30: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

entre iluminismo c Antigo Regime para relacionar o surgimento das

novas idéias a um estilo de vida e à estrutura da monarquia absoluta.

A questão posta nestes termos permite articular o iluminismo com o

processo mais amplo de desenvolvimento da Razão, cuja origem remonta

ao Renascimento o toma feições próprias em função dos traços

característicos da sociedade francesa descritos no capitulo anterior.

Portanto, sua relação com a revolução seria perceptível por um caminho

bem mais complexo e tortuoso do que aquele constituído pelo ideário

revolucionário na última década do século XVIII.

A REPÚBLICA DAS LETRAS, OS SALÕES E A VIDA MUNDANA: O

ESPRIT DE FINESSE

Tocqueville, aristocrata francês, autor do livro O Antigo Regime e a

Revolução, escrito em meados do século XIX, foi dos primeiros

historiadores a indagar por que os "homens de letras" se tornaram as

principais figuras políticas no reinado de Luís XVI c que efeitos essa

situação feria produzido para a história de França. Embora não chegue a

responder integralmente à pergunta, seu texto indica algumas pistas

interessantes.

A primeira delas é nos chamar atenção para a importância dos

"homens de letras" - as "principais figuras políticas" - no século XVIII. De

passagem, ele nos apresenta a forma singular de inserção desses

"letrados" na vida social. Esta é uma pista preciosa para quem pretende

desvendar as relações entre as novas idéias e a revolução.

Diferentemente de seus congêneres na Inglaterra c na Alemanha onde,

respectivamente, não ocupavam nenhuma função pública, ou se

alheavam em construções filosóficas abstratas ou se dedicavam ao

Page 31: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

cultivo da literatura simplesmente, a "república das letras" francesa era

justo o oposto.

Segundo Tocqueville a importância da "república das letras" decorria

do fato de serem

Ouvidos discorrendo todos os dias sobre a origem das sociedades e

suas formas primitivas, sobre os direitos primordiais dos cidadãos e das

autoridades, sobre as relações naturais e artificiais dos homens, sobre os

erros e a legitimidade dos costumes e sobre os próprios princípios das

leis. Penetrando desse modo até as bases da constituição de seu tempo,

Nesse conciso balanço dos temas sobre os quais se pensava e se

escrevia à época, Tocqueville recenseou autores de "sisudos tratados" e

de "simples canções". Mesmo assim, naquelas indicações é possível

perceber, de forma implícita, referências a obras clássicas do iluminismo

francês, entre as quais se destacam as Cartas Filosóficas e O Ensaio

sobre os Costumes, de Voltaire; O Contrato Social e o Discurso sobre a

Desigualdade entre os Homens, de Rousseau, e O Espirito das Leis, de

Montesquieu. Mais adiante voltaremos a essas obras. Nesse ponto é

importante registrar que a "República das Letras" era constituída por um

número muito maior de autores, nem todos com mesma notoriedade,

mas com interesses e curiosidades, não raro, muito próximos.

Para além do interesse e da curiosidade por esses assuntos, outros

fatores atraiam os jovens franceses - inclusive da província - para Paris,

alimentando o sonho de integrar-se ao grupo dos iniciados, e participar

do monde, como se dizia então.

O que haveria de tão atraente na condição de filósofo? O que haveria

de tão especial no monde? Essa expressão, difícil de ser traduzida,

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recobria o círculo fechado da vida mundana parisiense, a freqüencia aos

salões, a convivência com uma elite intelectual que presava o saber,

aprimorava o gosto e a formação de uma opinião.

Possivelmente o impulso para ingressar nesse meio era alimentado

pelo desejo de "também serem ouvidos", não apenas pelo monde, mas

quem sabe talvez até pelos monarcas, viver num castelo, seguindo os

passos de Voltaire, ou ganhar notoriedade através da aceitação na

Academia de Letras.

Essa não é uma hipótese remota, pois significava alcançar status e

ter prestígio. Como se buscou sublinhar no capitulo anterior, essa

palavra-chave para o entendimento dos mecanismos de reprodução

social no antigo regime.

Ao que parece, os "homens de letras" não escaparam da atração

exercida pelo poder. A carreira de escritor conferia uma "certa nobreza

ao autor", como bem registrou Voltaire, ainda que não se referindo

explicitamente à situação em Franca. A definição, porém, aplica-se

perfeitamente àquela realidade, não apenas porque a própria carreira

deste filósofo o comprova - é suficiente lembrar os cinqüenta anos que

separam a surra que levou a mando do cavaleiro de Rohan e aclamação

pública em seu retorno a Paris -, mas porque significava ter distinções,

diferenciar-se. Ter uma "certa nobreza" significava, de uma forma ou de

outra, inserir-se na "lógica da dependência", pois a fama e a notoriedade

faziam-se acompanhar de pensões e benesses reais.

Por caminhos e meios diversos daqueles utilizados pela burguesia

enriquecida, os homens de letras buscavam um mesmo objetivo usufruir

de privilégios, ter algum grau de identificação com a nobreza integrar a

nova elite que se formava então.

Esse era o caminho mais fácil para se aproveitarem do crescimento

do mercado de livro durante o século XVIII. A combinação fortuita de

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diversos elementos como a duplicação do número de alfabetizados, em

função das mudanças operadas no sistema educacional,

paralelamente[29] à expansão econômica, podem explicar não apenas o

aumento do público leitor como uma disponibilidade maior para a leitura.

Disso resultou o grande movimento editorial. Todavia, é sempre bom

lembrar que o sucesso nesse meio e a possibilidade de ser lido

dependiam não tanto dos méritos individuais, mas do status que

alcançara. Pois o que vigorava então não era a lógica do mercado e sim a

do prestigio. Os livros eram publicados em função não das qualidades do

escritor mas das amizades que ele construía e era capaz de cultivar.

Nesses termos, como é possível atribuir aos integrantes da "república

de letras", uma postura revolucionária, se uma parte considerável dela

integrava a elite da sociedade?! A resposta dependerá do sentido

emprestado ao termo "revolucionário".

Elite que freqüentava os salões, como os de Mme. Geoffrin,

d’Holbach, de madame Necker e madame Sauvin, considerados os mais

famosos de Paris. Ali, os intelectuais com fama já reconhecida

pontificavam, expunham suas idéias, tomavam conhecimento das

novidades do meio artístico em geral, promoviam talentos novos ou

barravam expectativas de outros. Os salões constituíam-se assim em

passagem obrigatória para todos aqueles que almejavam o

reconhecimento público e a ascensão social.

Também de forma semelhante ao que acontecia aos burgueses, a

carreira de escritor podia operar a ascensão social, mas as portas de

passagem eram muito estreitas e não podiam dar acesso a todos. Nesse

meio também funcionava aquela espécie de "mobilidade lotérica", na feliz

expressão de Tocqueville.

Produzia também os seus "excluídos" e, portanto, gerava conflitos e

tensões antagonizando - no caso da "república das letras" - a elite dos

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philosophes à boêmia literária, como se verá em parte subseqüente

deste texto.

Os salões tiveram ainda importância no desenvolvimento do gosto, de

uma mesma linguagem e um certo "estilo" típico do século XVIII

Francês.

Os salões desempenharam importante papel no aprimoramento um

estado de espirito, que guarda relações muito estreitas com os modos de

pensar do período e, conseqüentemente, com o iluminismo.

O esprit de finesse, como era designado, distanciava-se tanto do

gosto, quanto das posturas em voga no século XVII. A época do

classicismo o que predominava como moda, ou como estilo em meios

eruditos, era a busca de uma atitude séria, a utilização da expressão

mais justa entre as várias possíveis, para expressar corretamente um

pensamento.

[30] Predominava a preocupação com a construção escrupulosa das

frases, evitando-se a utilização de sinônimos, de palavras com o sentido

semelhante porque concebia-se à época que a verdade era simples e

clara; e esta deveria ser a forma de exposição.

Nessa busca de um mais elevado nível de perfeição causava profundo

desagrado e prova de mediocridade, a utilização de expressão duvidosa

ou a demonstração de insegurança em opiniões e preferências. Era

inadmissível e inaceitável a utilização de uma palavra imprópria. Era o

momento áureo da busca da noção de exatidão.

O pensamento deveria ser estruturado solidamente, através do

encadeamento lógico das idéias, pautando-se pela objetividade que

deveria marcar toda exposição.

Contrastando com esse rigor, o esprit de finesse do século XVIII

consistia, segundo a definição de Voltaire em seu Dicionário Filosófico, na

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"arte de não exprimir diretamente seu pensamento, mas deixá-lo

facilmente perceber-se: é um enigma".

Essa espécie de arte da adivinhação tão apreciada entre as elites

francesas pressupunha um estilo de pensar e conversar em que se

sugeriam muitas coisas sem dizê-las explicitamente, combinando a

delicadeza com a fineza de expressões.

O enigma, tão caro ao "espírito" do século XVIII, não negava a

existência de uma estrutura lógica necessária ao pensamento, mas

considerava que ela deveria permanecer oculta.

O segredo constituía-se em peça-chave do movimento de expansão

das idéias à época do iluminismo. Ele será tratado de forma mais

detalhada um pouco mais adiante, cabendo por ora tão-somente fazer o

registro e associá-lo ao esprit de finesse.

Um pensamento assim concebido utilizava-se em sua elaboração de

constantes comparações, alusões delicadas e não raro empregava

palavras com a possibilidade de serem entendidas em sentido diverso do

habitual.

Nessa espécie de jogo em que se processavam as conversas que

animavam a vida nos salões era possível também o estabelecimento de

relações entre idéias que em princípio tinham pouca coisa em comum,

aproximando coisas distantes, ou, inversamente, separando o que

parecia unido.

O pensar e o conversar, encarados como uma arte, utilizavam-se com

muita freqüência de figuras de linguagem como metáforas ousadas, para

que sempre o pensamento fosse expresso apenas em parte, ficando o

restante por conta da imaginação. Podia também nuançar o pensamento

através de uma ligeira falsidade como meio de acrescentar delicadeza a

um pensamento, pois o "espírito" era o charme da conversação.

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[31] Assim brevemente esboçado esse era o estado de espírito

naquela época e guarda muita sintonia com o próprio iluminismo.

Na verdade, quando deixaram de se guiar pela razão lógica e

geométrica imperante no século anterior, o que os movia era o propósito

de encontrar novas formas de conceber as coisas, de esclarecê-las e

desvendar todos os aspectos, inclusive os menores detalhes e nuanças

de uma realidade que se percebia diversa e mutável.

Uma realidade assim concebida estimulava a criação das mais

variadas formas de expressão, ordenadas e combinadas de forma nova,

mais apropriada às novas descobertas.

O esprit de finasse liberava a imaginação, abrindo infinitas

possibilidades de acesso à pluralidade dos dados da natureza. E assim

cumpria seu papel "revolucionário".

A ENCICLOPÉDIA

Parte da historiografia sobre a Revolução Francesa indica a

elaboração da Enciclopédia de Diderot e D'Alembert, entre 1751 e 1777,

como uma das datas-chave para a periodização dos acontecimentos que

assinalam a derrocada do Antigo Regime em França.

Seja por essa associação que já lhe confere considerável grau de

importância, seja porque assinala uma nova orientação na história do

pensamento científico, a menção é obrigatória para quem busca uma

resposta mais consistente para as relações entre iluminismo e revolução.

A referência justifica-se ainda porque sua elaboração guarda também

identidade com o esprit de finesse descrito acima.

Duas definições de Diderot são exemplares para o argumento que

aqui se desenvolve: 1) o mundo: "uma diversidade infinita eternamente

em movimento"; 2) o universo: "um imenso conjunto de corpos agindo e

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reagindo uns sobre os outros, e onde todos, em certa medida, destroem-

se para se recompor de outra forma. Não pode haver paz absoluta nesse

universo porque tudo está em movimento num fluxo perpétuo... as

formas que tomam as coisas na natureza não são jamais definitivas".

O mundo assim concebido, num contínuo fluxo de elementos

heterogêneos, é a imagem mesma do esprit de finesse, onde as idéias

são expressas num mesmo fluxo posto que se sucedem, se entrecruzam

e não são jamais as mesmas.

Assim, a concepção da Enciclopédia - essa obra de uma "sociedade

de letrados", conforme o Discurso Preliminar de D'Alembert -, se[32] faz

em um meio em que fervilhavam perguntas sobre a vida e o ser, em

suas diversas manifestações. As respostas não poderiam mais ser

encontradas no interior de concepções ligadas ao passado, pois estavam

presas à noção de um princípio ordenador para toda esta diversidade.

Ficavam igualmente renegadas as visões que postulavam uma ordem

para o universo fixada de uma vez por todas.

Encaminhar em outros termos a questão da ciência e do saber era o

ponto central para os idealizadores da Enciclopédia. Dedicaram-se à

tarefa de rearranjar um conjunto de conhecimentos e descobertas

isoladas, abrangendo campos os mais diversos do conhecimento como a

história, a botânica, a geografia, etc., de uma forma que não se

submetesse à antiga crença na existência de um sistema.

Impunha-se, pois, definir o princípio que guiaria a organização e que

abrigasse as infindáveis possibilidades oferecidas pelo espírito humano

para colocar em ordem o conhecimento.

Partindo então da noção de que cada ciência possuía seus próprios

princípios e formava um todo individual dotado de uma estrutura

particular, voltada para um objeto determinado, pensaram ser possível

Page 38: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

reconhecer algumas "regiões" ou "ilhas", umas maiores, outras menores.

Seria impossível, contudo, conhecer a sua ligação com o continente.

Assim concebido, o método seguido na Enciclopédia pode ser

comparado ao método dos geógrafos, algo que se aproximaria de um

mapeamento, em que cada verbete correspondia a um território

determinado e comportava também regiões inexploradas. Da mesma

maneira como o ponto de vista dos geógrafos influía na elaboração dos

mapas, na Enciclopédia os verbetes - escritos por aproximadamente

duzentos colaboradores - assumem feições diferentes em função de seu

autor. Essa é a marca característica de seus vinte e oito volumes; cada

artigo, cada assunto, cada colaborador tem na obra sua linguagem e

estilo próprios.

A nova postura adotada pelos enciclopedistas revela ainda uma

distinção e uma inovação em relação às concepções sobre as formas de

estudo das ciências naturais. Relegando a plano secundário a prática da

observação sistemática que caracterizava os procedimentos dos

estudiosos da natureza, o novo método orientava-se pelas pesquisas

experimentais, mais adequadas às diversidades individuais e próprias à

expansão do livre curso do espírito humano.

Como a própria expressão do esprit de finesse os enciclopedistas

postulavam uma dupla possibilidade. Ao mesmo tempo em que

libertavam os diferentes saberes do isolamento a que estavam

condenados até então, ao reuni-los numa única obra criaram as

possibilidades para[33] que fossem estabelecidas as relações, as mais

diversas entre eles, em função do ponto de vista adotado. Essa

possibilidade de infinitas formas de agrupamento do conhecimento

humano sobre a natureza, além de reproduzir um quadro mais fiel à

própria natureza - que não fazia classificações de "reinos" humano,

Page 39: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

animal e vegetal - significava, no campo do conhecimento, a conquista

da liberdade, tão cara aos homens daquele período.

Na perspectiva dos enciclopedistas, a atividade científica deveria

cumprir um duplo objetivo: a exploração dos fatos particulares e, através

das descobertas sucessivas e simultâneas, a criação de um conjunto bem

ordenado submetido a determinadas leis. Esse agrupamento, contudo,

não se confundiria com o estabelecimento de um "sistema" tal como

entendia a tradição. Servia exclusivamente para agrupar fatos isolados

na diversidade oferecida pelo espetáculo do universo. O conhecimento

desses fatos isolados constituía-se no fim último das ciências.

No plano do conhecimento, a Enciclopédia firmava os valores

inerentes ao esprit de finesse ao constatar o isolamento e a diversidade

das relações possíveis entre eles, e nesse proceder, expandir a atividade

criadora do espírito humano.

Essa nova maneira de conceber a ciência permite ainda desvendar

mais um aspecto novo e de grande importância para a compreensão das

mudanças relacionadas ao iluminismo.

[34] A Enciclopédia merece bem a identificação como a obra do

Século das Luzes ao reconhecer a impossibilidade de os homens terem

acesso à realidade da vida ou à verdade absoluta. Como já foi

mencionado, existiriam sempre os espaços vazios dos "territórios

inexplorados". Pagando tributo a Newton que afirmava que o único

caminho possível para o conhecimento era a experiência e a observação,

os enciclopedistas estabeleceram as fronteiras entre o cognoscível e o

incognoscível. Ao estabelecerem a relação entre sensibilidade

(experiência) e intelecto (entendimento), excluíram a religião - domínio

por excelência da verdade revelada - da esfera do saber,

circunscrevendo-a à esfera do crer. Significava retirar o conhecimento do

Page 40: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

controle da Igreja e submetê-lo aos intelectuais comprometidos com o

iluminismo.

Das várias implicações dessa nova concepção destacam-se: uma

nova relação entre conhecimento e poder e o reconhecimento de que a

inteligência permaneceria submetida a uma razão criadora, que lhe era

superior. Dessa dupla constatação derivava o importante papel que

concediam à ciência: estar a serviço da "razão", agora entendida como

uma "aquisição", como um "fazer", para organizar a vida coletiva e

instaurar o reino da justiça e da felicidade.

Nessa perspectiva, não caberia à ciência abrigar curiosos e diletantes,

uma vez que sua existência seria fundamentalmente prática.

Esse é o aspecto "revolucionário" da filosofia das Luzes, sua crença

na educação e no pragmatismo inerentes ao avanço das ciências: ensinar

aos homens o que é justo e bom, e a conhecer o que é belo, contribuindo

para eliminar os preconceitos e para abrir novas possibilidades de se

alcançar a felicidade.

Em resumo, a contribuição da Enciclopédia consistiu em fundar uma

nova concepção de ciência ao redefinir sua prática e afirmar que somente

a razão criadora poderia fornecer as regras para a condução da vida nas

coletividades. Como reconheceu Diderot, "a razão significa para o

filósofo, o que a graça significa para o cristão".

Vejamos com um pouco de detalhe como Voltaire e Rousseau, os dois

filósofos homenageados e imortalizados como precursores da Revolução,

encararam essas novas concepções.

VOLTAIRE

Na obra de Voltaire (1694-1778) um traço muito característico

destaca-se em primeiro plano: seu conteúdo crítico. Se é verdadeiro que

Page 41: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

ele preparou a Revolução Francesa, fê-lo ensinando os homens a[35]

pensar. A pensar de uma maneira geral, e sobre a realidade a que

estavam submetidos, de uma maneira particular.

Fosse lançando mão das experiências mais próximas de seus leitores

ou interlocutores, fosse buscando referências longínquas e que não

integravam mesmo o mundo mais próximo, Voltaire tinha sempre em

mente mostrar os absurdos que imperavam na sociedade. Assim, tanto

podia tomar um exemplo extraído da realidade oriental, quanto de

práticas religiosas ou da legislação francesa. O que importava era

demonstrar as contradições reinantes na sociedade e assim encaminhar

o raciocínio no sentido de que todo o legado da tradição fosse re-

examinado. Esse era o ponto central de sua crítica, e seu estilo, afinado

com o esprit de finesse sob a forma dialética, incitava o pensamento a

reavaliar criticamente as formas de existência social.

Seu estilo de argumentação desenvolvia-se como uma espécie de

jogo entre os interlocutores, em que os lances eram dados pelo

permanente vaivém do pensamento, através do recurso a analogias, do

contraste de situações, e da criação de inumeráveis fatos concretos que

poderiam ser mencionados para confirmar ou negar um argumento.

Logo, o método consistia na construção de um argumento claro e

preciso que deveria ser confrontado com os fatos disponíveis. Um

clássico exemplo desse proceder, e que também serve para ilustrar o

anticlericalismo de Voltaire, pode ser extraído de sua sugestão aos

franceses de fazerem um contraponto entre o que o catolicismo lhes

ensinava e o que observavam na vida cotidiana, numa clara alusão aos

absurdos da sociedade. Ou, numa expressão mais condizente com seus

pontos de vista, em sua falta de razão.

Não só o catolicismo foi alvo de sua crítica, mas a religião como um

todo, encarada como fonte de preconceitos, obscurantismo, ignorância e

Page 42: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

intolerância. Com Voltaire, o processo de secularização recebe impulso

significativo.

Em larga medida, a religião foi um de seus alvos principais. Voltaire

entendia que os homens, a despeito de todas as diferenças que

guardavam entre si, partilhavam a recusa em aceitar tudo que não

estivesse claro.

Com essa premissa organizando seu pensamento, Voltaire encontrou

na sociedade do Antigo Regime uma realidade pródiga em exemplos e

situações para alimentar seu discurso crítico. Estes, em que pese a

variedade dos assuntos que abordavam, eram pontuados por sua forte

atração pela negação, por sua paixão demolidora, embora não raro

contrapostas a uma certa ironia cética com relação à sua própria

afirmação.

[36] A atração pela negação era o corolário imediato do ponto de

vista inabalável de que a faculdade crítica era o elemento fundamental

da razão humana. Quanto à ironia, além de ser ela mesma uma negação,

e de poder, no limite, realimentar o jogo argumentativo, derivava muito

possivelmente da certeza que partilhava com outros filósofos de seu

tempo, de que os homens permaneceriam ignorando os segredos do

mundo.

Todavia, ao lado do ceticismo inevitável a uma constatação desse

teor, dialeticamente, ele alimentava ainda mais sua revolta contra o

reino da desrazão e atacava implacavelmente a intolerância.

Tudo isso em nome de uma luta sem tréguas contra todas as formas

de dogmatismo e predeterminação que obstaculizaram o acesso à

verdade. Consoante o espírito da época, pregava a substituição dos

procedimentos tradicionais por uma disciplina científica, fundada na

experiência e na atitude crítica.

Page 43: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Desse esboço das idéias de Voltaire, como entender que possa ter

influenciado a revolução?

Além de ter ensinado os homens a pensar criticamente, levando-os a

rejeitar o que apontou como os "absurdos" de seu tempo, Voltaire

alimentava os desejos de reformas da sociedade. Segundo seu

pensamento, era possível criar um novo tipo de sociedade fundada a

partir dos princípios fixados pelas Luzes, em que as leis fossem produto

da razão absoluta e soberana em suas avaliações, livre de todos os

preconceitos.

Todavia, sabe-se também que a revolução em muito se distanciou de

Voltaire, e renegou mesmo alguns de seus pontos de vista. Na verdade,

no plano político esta relação era mais delicada, e quando se passou a

enfrentar a questão de quem deveria fazer as leis, a incompatibilidade

dos ideais predominantes entre os revolucionários e o filósofo tornou-se

clara. A rigor, após 1791, tornaram-se mesmo opções excludentes.

Segundo ele os capazes de executarem essa tarefa eram os homens

"esclarecidos", os desprovidos de preconceitos, os filósofos enfim. Aos

filósofos cumpriria a tarefa de dirigir a opinião pública. Essa era sua

primeira obrigação, e deveria começar a ser cumprida junto às classes

dominantes da sociedade. Vencida essa etapa poderiam se ocupar do

povo, mas cuidando para que não aprendessem a ler, pois considerava

que o maior serviço que poderiam prestar à humanidade era distinguir os

homens cultos e letrados dos imbecis.

De forma bem mais enfática, Voltaire explicitou sua posição numa

correspondência a Damillaville, em 1766: "O povo deve ser dirigido e não

instruído; ele não é digno de sê-lo. Quarenta mil sábios, é mais ou[37]

menos o que eles precisam". Como seu correspondente não partilhasse

esta opinião e defendesse mesmo a posição contrária, Voltaire contra-

atacou: "Entendo por povo a massa que só tem os braços para viver.

Page 44: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Duvido que esse tipo de cidadão jamais tenha tido tempo e capacidade

para se instruir morreriam de fome antes de se tomarem filósofos".

Mesmo reivindicando a liberdade para que todos pudessem pensar

por si sós, expressar sem constrangimentos de nenhuma espécie as suas

idéias, e tendo ajudado os homens a acreditarem que todos eram

dotados dessa faculdade, Voltaire não a considerava como sendo a

mesma entre os homens. Em sua opinião, haveria sempre uma elite

esclarecida, os filósofos, e ao lado deles a massa dos que deveriam ser

guiados e iluminados por eles.

Não deixava assim de reconhecer a desigualdade entre os homens e,

mais ainda, de conceber a sociedade dirigida por um outro tipo de

aristocracia, constituída pelos homens cultos e letrados.

Essa era uma das razões pelas quais nutria tanta admiração pelo

reinado de Luís XIV, considerando-o o século mais esclarecido, e que

muito contribuíra para o progresso da civilização, com o qual identificava

um "sentido" para a história.

Apesar das discordâncias que o processo revolucionário terminou por

evidenciar, muitas das idéias de Voltaire foram incorporadas pelos

girondinos. É possível mesmo que por influência desse grupo algumas

medidas adotadas na Constituição de 1791 tenham se inspirado no

controvertido pensador. Entre elas, a liberdade de imprensa, a reforma

do processo civil e a adoção do sistema de assalariamento para os

pobres.

ROUSSEAU

Os motivos que levaram Rousseau (1712-1778) a criticar e rejeitar a

sociedade do Antigo Regime são de natureza radicalmente distinta

daquela apontada na parte referente a Voltaire.

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As diferenças são mais facilmente perceptíveis sob o ângulo da total

inadaptação de Rousseau à vida em Paris. Contrastando com Voltaire,

que tanto se esforçou para ser aceito no monde e integrar-se à elite

francesa, Rousseau ali foi sempre um estranho no ninho.

Os modismos, a sofisticação e o gosto pelas conversas alimentadas

pelos vôos da imaginação, típicas do esprit de finesse, do artificialismo

da vida social, foram os principais responsáveis por sua inadaptação

àquele meio.

[38] Rousseau era originário de família simples e perdeu a mãe muito

cedo. Desde pequeno desenvolveu o gosto pela leitura, hábito adquirido

nas longas noites em que seu pai o ensinou a ler. Era tímido e

introvertido, parecendo sempre absorto em seus sentimentos. Não tinha

nenhum traquejo social, tendo mesmo dificuldades em manter o ritmo de

um diálogo numa situação de convívio social.

Com estas características, ao chegar a Paris com quarenta anos de

idade, vindo de Genebra, sentiu-se sempre deslocado. Nunca perdeu sua

condição de estrangeiro, permanecendo apegado aos valores que

cultivara em sua solidão.

A transferência para a capital proporcionou-lhe experiências vitais e

que muito influenciaram sua obra. Até aquela época nunca havia escrito.

O convívio social regido pelas atitudes polidas e etiquetadas em que era

fundamental a aparência; onde a impressão que se deve causar no outro

era sempre mais importante e guardava certa independência com relação

ao que se era verdadeiramente; em que a opinião do outro era referência

constante, fizeram Rousseau perceber a impossibilidade de o homem ser

ele mesmo e de eles reconhecerem-se entre si. Anulava-se o ser em

detrimento do parecer.

Page 46: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Foi em meio à profunda nostalgia e à sensação de deslocamento que

viveu então, em que o sentir pesava mais que o pensar, que começou a

desenvolver suas concepções sobre uma nova humanidade.

Rousseau era impulsionado pela recusa dessa existência de fachada,

que impunha aos homens o viver num mundo de aparências,

impossibilitando o seu verdadeiro reconhecimento e abafando a

verdadeira vida que residia no íntimo de cada um.

Em seu entendimento, tanto a desigualdade quanto os maus

sentimentos que proliferavam no mundo eram estranhos à alma humana

e resultavam das transformações sofridas pela humanidade em seu

esforço de, através do progresso, sair do estado natural.

O pano de fundo que sustentou essas formulações de Rousseau

preservava, na forma secularizada, o esquema cristão da evolução

histórica. Este concebia a existência de três momentos: o Éden, a queda

e a salvação. Em Rousseau, esse tempo original seria o estado de

natureza, seguido por uma longa decadência. Ou seja, o estado social,

no qual se encontravam. Comportava a possibilidade de redenção, que

não se confundiria com o regresso ao passado, que o filósofo sabia ser

impossível. Portanto, não significava a volta ao estado de natureza,

embora devesse restaurar a condição original, a verdade das origens, do

homem primordial.

Para Rousseau o dilema que se colocava então resultava - por um

lado - da constatação da impossibilidade de um retorno ao estado[39] de

natureza, à idade da inocência e da igualdade. E, por outro, da

constatação de que não haveria a conciliação entre estado de natureza e

estado natural. Todo o mal da sociedade derivava do fato de uns

dependerem dos outros, pois no mundo só havia senhores e escravos

que se corrompiam mutuamente, contrariando assim a sua própria na-

Page 47: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

tureza. O que fazer para que a humanidade civilizada se regenerasse e

os homens reencontrassem e recuperassem a liberdade perdida?

A alternativa proposta por Rousseau para esse dilema girava em

torno de dois eixos principais.

O primeiro deles pode ser referido ao Contrato Social, que seria a

solução política para preservar a sociedade e permitir que os homens

recuperassem sua liberdade e se unissem por laços mais estreitos. O

contrato restauraria o bem supremo do homem, sua faculdade de se

governar. Como isto seria possível?

Segundo Rousseau, através da substituição da vontade dos homens

por uma vontade impessoal, a vontade geral. Somente ela poderia

elaborar leis e, colocada acima dos homens, ser a única instância a

governá-los. Todos obedeceriam e, portanto, desapareceria a divisão

entre dominantes e dominados, sendo está a condição de recuperação da

liberdade perdida.

A noção de vontade geral é básica para a compreensão das propostas

de Rousseau. Ela supõe a constituição de uma comunidade na qual se

integram indivíduos que outrora viviam isolados. Na nova comunidade, a

sua vontade e a vontade comum são uma mesma vontade. Os homens

não se submeteriam mais a nenhuma vontade particular, pois a lei assim

estabelecida seria um poder impessoal. Esta é a noção de liberdade civil

que consiste em só obedecer à lei.

A ordem civil, tal como Rousseau a concebe, desenvolve um novo

tipo de bondade inexistente no homem natural, pois nesse estágio não

existiam nem a sociabilidade, nem a moralidade. Nesse outro estágio, os

princípios sobre os quais repousaria o Estado seriam explicitados num

código moral que regraria a vida dos cidadãos. Assim, ele se torna um

ser moral, senhor de si mesmo, agindo de acordo com sua consciência.

Page 48: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Todas as suas aptidões deveriam ser canalizadas no sentido de torná-

lo parte integrante de um todo. Nesta nova forma de existência, ele

encontraria a felicidade, porque a felicidade de cada um seria a felicidade

da coletividade.

Cada um dependeria do conjunto, sem o qual nada poderia ser feito.

Desse princípio decorreria o grande fator de regeneração da sociedade,

pela constituição de um forte fator de coesão e de sentimento patriótico,

elevando os homens acima de seus interesses individuais.

[40] Nesse processo, a educação desempenharia um papel

fundamental e a ela Rousseau dedicou especial atenção, sendo este o

outro princípio organizador de suas idéias. A educação se incumbiria de

ensinar aos jovens essa nova compreensão de individualidade que só

adquiria sentido em função da relação com a coletividade, nada signi-

ficando fora dela.

Em seus textos literários, em especial a Nouvelle Heloïse, Rousseau

aprofunda esse ponto. Além de emocionar seus leitores ensinando-os a

falar de coração para o coração, e inaugurando mesmo um tipo de

literatura mais sentimental e valorizadora no íntimo de cada um e das

instâncias da vida privada, como o amor, o casamento, a maternidade, a

educação dos filhos, etc., ele cria uma relação também nova entre a vida

pública e a privada. Rousseau elimina as fronteiras entre essas duas

instâncias da vida cotidiana ao apagar as distinções entre a moralidade

privada e a virtude pública.

A constante necessidade de se identificarem à coletividade, preenchia

toda a existência dos cidadãos, incitando-os a manterem essa união

sempre viva. A consciência de que isolados não eram nada, faria com

que cada um estendesse seu amor a todos os outros. O Estado cuidaria

de organizar festas públicas para realimentar os sentimentos de

Page 49: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

fraternidade, os laços de união entre os cidadãos, que se sentiriam

sobretudo como irmãos, como amigos.

Essa nova concepção de humanidade unida por sentimentos de

fraternidade, integrando homens virtuosos, sem ódios, inveja e

competitividade, foi um dos elementos que mais fortemente conquistou

para Rousseau a admiração e a popularidade do povo.

O sentimento de não-pertencimento à sociedade, experimentado por

Rousseau em Paris, era o mesmo sentimento de exclusão vivido pelo

povo. O filósofo tocou-lhes também o coração porque seu ideal de

homem confundia-se também com o ideal revolucionário do cidadão,

dado que ambos tinham origem no mesmo sentimento.

Acrescente-se ainda que, com suas idéias, construiu um novo

conceito de democracia. Com ele - e não com Voltaire - foram

valorizados os homens cuja existência cotidiana não tinha nada de

especial, e que até então não tinham desempenhado nenhum papel

relevante na história. Eles aprenderam a reconhecer o seu valor, que

residia no simples ato de existir. Esse valor de democracia, baseada no

homem simples, tal como é encontrado no povo, assinala também um

traço distintivo de sua obra.

A ele deve-se creditar também o reconhecimento de uma outra forma

de igualdade entre os homens; a condição de todos experimentarem as

mesmas emoções e as mesmas reações.

[41] O homem descrito por Rousseau diferencia-se não somente das

concepções de Voltaire, como também daqueles que imperaram na

sociedade do Antigo Regime, submetido à ordem hierárquica. Em

contraste, Rousseau sublinha simplesmente o fato de serem homens, e

isso é que os igualava Sua imagem era o homem do povo que preservara

em formas mais puras os valores naturalmente humanos.

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Um balanço geral da influência de Rousseau sobre a Revolução deixa

transparecer algumas dificuldades, a começar pela identificação mais

imediata que habitualmente se faz com o período da ditadura jacobina.

Na verdade, a conquista do sufrágio universal e a exaltação da

democracia direta são inspiradas no Contrato Social, e é possível

também que algumas medidas tomadas em favor dos pobres tenham

derivado de seu Discurso sobre a Desigualdade. Quanto à adoção de uma

economia dirigida, que também caracteriza o período, é menos provável

porque ele pronunciou-se muito pouco sobre essas questões.

No que se relaciona à mentalidade revolucionária, sua influência

também é perceptível, sobretudo no plano da moral.

A apropriação pela política de suas idéias sobre educação inspirou e

entusiasmou aqueles que acreditavam na possibilidade de abandonar as

práticas legadas secularmente, romper com as convenções passadas e

construir uma ordem fundada na verdade natural. Uma frase do Emile é

exemplar nesse sentido, pois afirma: "Pais e mães, o que é factível é o

que quereis fazer". A crença no agir e nas potencialidades da intervenção

humana é transparente nesta afirmação.

Além desse aspecto, vale lembrar que suas idéias sobre regeneração,

autonomia, igualdade, bondade do povo e seu ideal de virtude foram

apropriadas em etapas diferentes da revolução. É verdade que, em

algumas situações, ao sabor das necessidades do momento. Desse caso

não escapa nem mesmo sua utilização por um adversário da revolução

que recuperou sua afirmação de que "nenhum homem sensato poderia

destruir as instituições e a monarquia francesa, estabelecidas por um

período de mil e trezentos anos".

Fora da esfera da política sua influência foi acentuada no campo da

literatura. Com a Nouvelle Heloise inaugura-se um novo estilo, que

Page 51: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

marcaria a produção no século seguinte. A Rousseau também se associa

a origem do romantismo e o impulso às narrativas autobiográficas.

A vida modesta que levava, sempre se recusando a receber pensão

ou auxílio financeiro de qualquer espécie, impôs-lhe muitas dificuldades.

Em alguns momentos, para garantir sua sobrevivência, fazia transcrições

de partituras musicais. Tudo isto influiu para que o povo visse nele a sua

própria imagem: a do homem humilde e virtuoso.

[42] Um contraponto final entre Voltaire e Rousseau indica que

ambos refletiram criticamente sobre a sociedade do Antigo Regime, e

acreditaram na possibilidade de a filosofia auxiliar os homens em sua

conduta futura. Neste ponto, porém, cessa a convergência de seus

pontos de vista. Voltaire condenava o cristianismo como a própria

negação da razão, enfatizava a faculdade humana de pensar, e nesta

potencialidade depositava as suas esperanças para o futuro, numa nova

idade da humanidade, mais feliz e mais esclarecida.

Rousseau rejeita as formas de vida de sua época por não serem

conforme à natureza, e sonha com a possibilidade de redenção humana

que recupere as condições naturais. Para ele, o homem sente antes de

pensar, e por esta razão importa-lhe mais o que ele experimenta, a

bondade que lhe é natural e sua necessidade de amar e ser amado.

A FRANCO-MAÇONARIA

A outra instituição social do Antigo Regime que, paralelamente à

"República das Letras", teve papel decisivo na expansão dos valores,

idéias e práticas típicas do iluminismo foi a franco-maçonaria. Ambas

desenvolveram um mesmo estilo, uma mesma linguagem e uma mesma

conduta, compreensíveis quando se recupera a estrutura política da

monarquia absoluta.

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De fato, ao retirar dos súditos qualquer possibilidade de participação

política, ao negar-lhes quaisquer meios de expressar sua opinião e influir

no processo decisório, a monarquia absolutista colocava os súditos na

condição de privados do acesso à esfera pública.

Nessa situação não havia distinção entre nobres e plebeus, ricos e

pobres, leigos e eclesiásticos, pois eram todos igualmente ignorantes dos

assuntos públicos. No entanto, no caso da nascente burguesia e da nova

elite que se formava em decorrência da venda de títulos de nobreza e de

cargos públicos instaurada pela monarquia absolutista, essa interdição

agravava as tensões por explicitar o desequilíbrio entre a conquista de

status social e do crescente prestígio, e a ausência de expressão política.

De forma um tanto esquemática é possível identificar a esfera pública

ao exercício do poder monárquico e, conseqüentemente, a ela associar a

figura do soberano. A ele caberia cuidar do que fosse comum a todos os

súditos. Por esta razão dela estariam excluídos os interesses e as

opiniões individuais, fonte de permanentes conflitos e divisões no interior

da sociedade.

[43] É importante lembrar que a liberdade de juízo constitui-se em

experiência fundamental para a compreensão da modernidade ocidental.

Renascimento e reformas religiosas foram processos fundantes do

desenvolvimento da subjetividade e da liberdade de escolha que

constituem traços característicos do indivíduo moderno.

A formação da monarquia absolutista se opera no quadro de conflitos

e tensões sociais geradas em conseqüência dessas novas experiências. O

novo Estado enfrenta as divisões que se instauraram na sociedade,

distinguindo responsabilidade e convicção.

A solução encontrada para que se mantivesse a ordem entre os

súditos e a paz entre os homens transfere para o espaço privado o

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exercício da liberdade. Aí os homens poderiam diferenciar-se e seguir

sua consciência e sua moral.

Historicamente, o surgimento de novos valores se operou a partir do

âmbito privado ao qual o Estado absolutista reduziu seus súditos, e onde

desenvolveram a experiência de "estar em liberdade secreta", como dizia

um ditado da época.

Nesses termos fica compreensível a interpretação do iluminismo

referido ao processo mais amplo de passagem da condição de súditos à

de cidadãos, aí compreendidas algumas transformações fundamentais.

Todas elas, porém, passíveis de serem reduzidas ao movimento de

passagem da opinião da esfera privada para a esfera pública.

Observada com um pouco mais de detalhe, essa solicitação de

publicização e de livre acesso da opinião à esfera pública, significava

refundar essa noção - e esta foi a obra da Revolução.

A esfera pública seria referida não mais ao Estado, e sim, à

sociedade, constituída por aqueles que são portadores de uma "opinião",

vale dizer, de cidadãos.

O processo de formação de opinião restrito à instância privada do

convívio social, desenvolveu-se nas discussões nos salões, clubes, cafés

e academias[44], onde se reunia um número cada vez maior de leitores

e de pessoas interessadas nas idéias dos filósofos iluministas.

Nessa ambiência gestou-se o desejo de reformas segundo a crença

de que as "Luzes" se confundiam com o progresso e a civilização. Por

essa razão o iluminismo pode ser interpretado como o fecho do processo

de secularização, pela crença que difundiu na possibilidade de uma

planificação moralmente justificada, em tudo subordinada à razão. O

tema da salvação que predominara na cultura cristã vê-se assim

transmudado para o plano terrestre ao se desenvolver uma nova religião

secularizada e obediente a uma nova divindade: a razão iluminada.

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Essa estrutura explica que os locais privilegiados para discussões

fossem apolíticos, como as bolsas de comércio, os cafés, as academias e

as lojas maçônicas. Esses eram espaços sociais por excelência fio sentido

de não se confundirem com os espaços estatais. E explica que as funções

políticas que desempenharam se realizassem por vias indiretas.

Dentre essas diversas instituições destaca-se a franco-maçonaria Por

demonstrar, de forma exemplar, a relação entre moral e política, tal

como se processou no século XVIII francês.

Esta questão é fundamental por revelar os valores morais como os

que deveriam constituir a política, ou melhor, a forma indireta como se

concebia a intervenção política através da intervenção moral. O centro da

dialética entre moral e política residia no "segredo". O partilhar de um

segredo, essência de todas as sociedades maçônicas, unia seus membros

através de um elo que não era nem de natureza religiosa, nem política,

mas sim, moral.

O conteúdo do segredo poderia variar de uma loja para outra. O que

importava era o que representava, a possibilidade de participar de uma

vida nova.

A cerimônia de iniciação dos novos membros significava a

descoberta desse mundo, de uma comunidade de irmãos, sem diferença

de classe ou crença religiosa. Essa união, cimentada pelo segredo, tinha

como reverso a permanente desconfiança e a cautela com relação aos

que não pertenciam à loja e com a traição. Assim, o reverso da função

protetora exercida pelo segredo constituía-se em sua força como

instrumento de dominação, o que implicou no desenvolvimento de

práticas minuciosas de controle e informes secretos.

A função protetora que desempenhava para os associados

reafirmava a separação entre o campo da moral (dos valores, dos

princípios e das virtudes) e o campo da política (do Estado). Disso

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resultava a dupla frente de batalha dos maçons: contra a Igreja, que

chamava a si a responsabilidade de velar pelos padrões morais, e contra

a monarquia absolutista. O segredo protege e delimita o âmbito social,

campo em que a moral deveria se desenvolver e, assim, garante a união

de seus membros e promove a felicidade dos cidadãos.

Nas lojas maçônicas reinava um outro deus e um outro soberano: a

virtude. Por esta razão o maçom era obrigado a prestar obediência à lei

moral, desenvolver o autocontrole de sua consciência, e mostrar-se

sempre virtuoso e independente do soberano.

As lojas maçônicas constituíram-se, assim, nos espaços onde se

desenvolveu uma nova sociabilidade, que alimentava as expectativas de

construção de uma nova sociedade, mais fraterna e obediente a novos

valores morais.

[45] Antes mesmo de concretizarem suas expectativas, a integração

à franco-maçonaria potencializava a consciência de um mundo novo

fundado sobre uma outra humanidade, desconectada do mundo exterior,

por não se orientar por seus ordenamentos políticos e religiosos. O

próprio isolamento em que os maçons viviam do mundo exterior

desenvolvia entre os membros das lojas a consciência de sua qualificação

moral. E, portanto, de sua superioridade e competência para julgar os

não iniciados, aqueles que permaneciam do lado de fora, isto é, os que

não pertenciam à sociedade secreta.

Desse julgamento não escapavam obviamente os assuntos políticos -

embora submetidos a considerações e veredictos de natureza moral, em

função mesmo de sua intenção de fundar uma outra sociedade e, por

essa razão, negarem-se a reconhecer conteúdo político aos seus

propósitos.

De qualquer forma, dessa acepção resultava que, se diretamente não

se imiscuíam em questões políticas, viviam conforme uma lei que

Page 56: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

implicaria, mais cedo ou mais tarde uma mudança na ordem

estabelecida. Ainda que de forma indireta, a moral que cultivavam

constituía-se em ameaça à soberania do rei. É importante não esquecer

que - segundo os princípios da monarquia absolutista - somente o rei

detinha autoridade para decidir sobre o que era justo ou injusto, o certo

e o errado. E, além disso, grande parte das críticas à rainha Maria

Antonieta e aos membros da aristocracia dirigiam-se aos seus vícios e

corrupção. Embora organizados em torno de finalidades explicitamente

apolíticas, os maçons constituíram-se em forças políticas indiretas, seja

por seu propósito de disseminar uma nova moral, seja porque em função

de sua crítica moral, todas as lojas maçônicas eram obrigadas por sua

constituição a darem proteção e asilo aos que se rebelassem contra o

regime, desde que fossem moralmente inatacáveis.

Não é detalhe de menor importância lembrar que Robespierre era

chamado de "Incorruptível" e líderes revolucionários como Brissot,

Danton e o próprio abade Sieyes, entre outros, foram membros de lojas

maçônicas parisienses.

O JACOBINISMO

Dificilmente o tema do jacobinismo é abordado pela literatura

especializada sem que se destaque a radicalização revolucionária do

período (1792-1795); a ação dos clubes sans-culottes e a ascensão do

movimento popular, a ampliação das conquistas sociais e a proclamação

da república igualitária; o reconhecimento do sufrágio universa e[46] as

primeiras experiências democráticas. São moedas correntes nas

considerações sobre aquela fase do processo revolucionário francês.

Quanto às suas relações com o iluminismo, que é o que aqui nos

interessa, não costuma merecer muita atenção. Grosso modo, a questão

Page 57: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

é resolvida trazendo-se Rousseau à cena em seu papel de "inspirador"

daquela etapa revolucionária. Sua sombra estaria por trás da política

implementada pelo Comitê de Salvação Pública.

Não se trata de refutar esse tipo de interpretação: ele repousa sobre

uma sólida base, constituída por argumentos consistentes e, em certa

medida, irrefutáveis.

Em que pesem as ambigüidades do pensamento de Rousseau, suas

concepções de igualdade, a glorificação do povo e sobretudo a defesa da

vontade geral são os indicadores mais fortes de sua influência. Todavia,

como já foi apontado anteriormente, a relação entre a filosofia das Luzes

e a revolução não pode ser espelhada, dado que elas não se

correspondem mutuamente. Essa relação não pode ser estabelecida a

partir de transposições simples e imediatas. A lembrança do tema da

violência é uma boa referência para o que aqui se está dizendo.

De fato, o recurso à violência e o ideário de Rousseau são impossíveis

de conciliar. Sua reconhecida repulsa a essas práticas não condiziria com

a guilhotina e com a implantação do terror. Além do mais, não se pode

esquecer que as restrições à liberdade, inerentes ao período do terror,

representavam justo o oposto de suas concepções acerca da moralidade

do novo homem.

Aliás, na maior parte da bibliografia sobre o tema, o terror parece

não se ajustar a nenhum modelo de interpretação do jacobinismo, sendo

seu caráter de excepcionalidade freqüentemente evocado para

interpretá-lo como fruto das circunstâncias. Nessa perspectiva, o terror

não se identificaria com o jacobinismo, e a condenação à morte na

guilhotina teria sido recurso inevitável face à situação momentânea. A

fuga do rei, a coligação das potências absolutistas européias contra a

França revolucionária, e sua ligação com aristocratas franceses teriam

imposto a necessidade de "salvar" a revolução da reação "contra-

Page 58: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

revolucionária". Isto é, o terror e a violência seriam recursos

indispensáveis e circunstanciais para eliminar os inimigos da revolução.

Segundo essa linha de interpretação, representada principalmente

por Albert Soboul, a partir de 1792 a revolução atravessou um período

extremamente delicado. Ao lado do medo "nacional", representado pela

guerra e pela ameaça da invasão estrangeira, a revolução vivia também

o medo "social", representado pelas revoltas camponesas daquele verão,

e pela crescente pressão dos sans-culottes, insatisfeitos[47] com a

Constituição de 1791 que os eliminava da condição de eleitores, e pela

não resolução da questão agrária. As dificuldades de abastecimento e a

fome que grassava em Paris naquele momento exacerbavam as paixões

e tanto explicaria a ascensão dos jacobinos quanto a adoção do terror.

Sob essa ótica, a questão do jacobinismo não guardaria maiores

relações com o iluminismo, a não ser nos termos em que foi estabelecida

em partes anteriores deste texto: a incorporação de alguns princípios de

"Jean-Jacques" e a celebrada "panteonização".

No entanto, é possível recuperar o fio da meada e restabelecer a

relação entre o jacobinismo e o iluminismo, do que resultará inclusive a

revisão do tema da violência, que perderia assim seu caráter de medida

circunstancial.

Ao se restabelecerem os nexos entre iluminismo e jacobinismo, este

último assumiria um lugar de destaque como um fenômeno central da

revolução por expressar a ruptura mesma do tecido histórico nos termos

em que foi interpretado por Agustin Cochin, historiador francês do final

do século XIX.

[48] Nesta perspectiva de análise, o primeiro passo é aproximar o

jacobinismo das inúmeras associações literárias, câmaras de leitura,

clubes que se disseminavam pelas províncias e que mantinham uma

ativa rede de correspondências.

Page 59: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Posto nestes termos o jacobinismo teria uma natureza e uma

dinâmica próprias por promover um outro tipo de sociabilidade e por

poder ser interpretado como um tipo de sociedade que Cochin chamou

de "uma sociedade de pensamento".

O que a caracterizaria? E em que medida esta interpretação pode

auxiliar na compreensão do jacobinismo como um fenômeno

revolucionário que romperia com as estruturas do Antigo Regime?

Em primeiro lugar, porque uma sociedade de pensamento significava

o estabelecimento de novas formas de relacionamento social, eis que

seus membros deveriam se despojar de todas as particularidades

concretas de sua existência social. Em lugar das tradicionais inserções

marcadas pelo pertencimento a uma ordem ou a um estamento da

sociedade tradicional, seus membros estavam unidos pela identificação

com uma idéia.

Consoante ao espírito dominante na época, valorizador das

discussões e das elaborações mentais, a sociedade de pensamento uniria

seus integrantes pelo partilhar de uma mesma idéia, ou de uma mesma

opinião.

Opinião esta construída não necessariamente em relação a uma

situação concreta, mas que era o resultado de uma discussão capaz de

fazer as opiniões convergirem num consenso entre seus membros. Como

se tratava somente de pensar, e não de agir, esta opinião tinha, por esta

razão, a possibilidade de construir-se livremente, isto é, com

independência em relação a situações reais.

O que importava era a produção do consenso, pois este - por seu

turno - estabelecia a igualdade entre seus membros. O partilhar de uma

opinião ocupa, assim, o lugar das antigas formas de sociabilidade e, por

esta razão, prefigura a experiência de cidadania e de democracia.

Page 60: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Esse é o ponto que se pode identificar com o rompimento, a vivência

de uma experiência nova regida por uma dinâmica radicalmente distinta

da que caracterizava a sociedade do Antigo Regime.

A experiência democrática no interior das sociedades de pensamento

não depende das condições sociais e, sim, da relação com a abstração de

uma idéia que se constitui, pois, como elemento fundamental da

igualdade. Os homens são iguais porque se identificam com um mesmo

pensamento, ou a uma mesma opinião.

A dinâmica da sociedade de pensamento pressupõe a desagregação

dos princípios sobre os quais se assentava o ordenamento social[49] do

antigo regime, a saber, os estamentos. Seus membros relacionavam-se

entre si não como integrantes de uma ordem, mas enquanto indivíduos.

Essa nova experiência trouxe consigo um duplo debilitamento: o da

solidariedade corporativa entre os membros de uma ordem, e o da

autoridade tradicional fundada na diferença e na hierarquia.

A noção de democracia nessas organizações, da qual o jacobinismo é

uma variante, não se exaure nesses aspectos. Seu complemento é a

concepção de democracia pura, por não comportar a mediação de

representantes. Todos opinam, todos participam.

Como a opinião que assim se constitui não é redutível a interesses

particulares, passa a significar a expressão infalível da coletividade. Esta

infalibilidade decorria do próprio fato de ser obra coletiva o que alimenta,

por seu turno, o culto do social.

Nesse particular, o período de dominação do jacobinismo e exemplar,

como a fase em que esse culto foi extremamente exacerbado em sua

dupla acepção, isto é, a valorização da coletividade enquanto instância

de produção do verdadeiro, e como povo-rei. Dito em outros termos, é a

vontade da coletividade que a todo momento se traduz em leis. É a

vitória do livre-pensamento, ou seja, da nova expressão de

Page 61: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

individualismo, caracterizado pela relação livre de cada um com uma

idéia.

Ainda que essa concepção de democracia pura implique posto

funcionamento de assembléias coletivas cotidianas, não escapa da

criação de uma "máquina", ou seja, da criação de alguma instância que

faça esse mecanismo funcionar, no sentido de recriar constantemente o

consenso.

Quer se conceba o funcionamento de uma sociedade de pensa mento

quer se considere o relacionamento entre várias dessas sociedades -

sendo essa a situação que mais se aproximaria do período dominado

pelos jacobinos - a permanente produção do consenso não se realizaria

sem as depurações.

É importante observar com um pouco mais de detalhe este ponto.

Vistas sob este ângulo, as depurações não seriam então recursos

esporádicos, fruto de condições momentâneas e excepcionais. Ao

contrário, são parte integrante da "máquina" que põe o sistema para

funcionar - um instrumento através do qual se reproduz o consenso, por

eliminar permanentemente a diferença. Com as depurações, os jacobinos

estendiam sua influência e seu controle por toda a sociedade.

A hipótese aqui sustentada é a de que a eliminação -

independentemente da forma em que se realizasse - é parte integrante

desse tipo de sociedade.

[50] A guilhotina seria o paroxismo de um procedimento inerente à

vicia da "República das Letras" - por exemplo, através da prática do

"terror seco", com o qual se demolia a reputação de alguns escritores.

Um exemplo dessas práticas era o conhecido incitamento de Voltaire

para se "esmagar o infame". Suas cartas e panfletos propagandísticos

costumavam terminar com esse enfático apelo. O que ele entendia por

"infame" pode ser conhecido através de suas próprias palavras:

Page 62: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Esmaguemos os fanáticos e patifes, suas hipócritas declarações, seus

miseráveis sofismas, a história mentirosa, o amontoado de absurdos.

Não permitamos que os possuidores de inteligência sejam dominados

pelos que não a têm - e a geração futura nos deverá a razão e a

liberdade.

Executar o apelo era uma operação bem definida e que comportava

uma série de procedimentos como o inquérito, a discussão, o julgamento

e a execução, que naquelas circunstâncias significava a condenação

pública ao desprezo.

O que importa é sublinhar que a imperiosa necessidade de se recriar

o consenso tem em seu reverso essa permanente triagem. Esta -ao

excluir alguns - funciona como elemento aglutinador do restante, numa

lógica semelhante à do "segredo" da franco-maçonaria.

A hipótese aqui sustentada é a de que nessas organizações que

prezavam a importância do social e da opinião consensual, a prática da

exclusão era elemento constitutivo. Portanto, era algo que se integrava à

sua lógica e que independia de circunstâncias momentâneas.

Para Cochin, o que teria havido na França durante a ditadura jacobina

seria o desdobramento de um processo iniciado em tomo de 1750 nas

lojas maçônicas e nas sociedades literárias e, sem nenhuma relação com

o poder. Em 1793, época do terror sangrento, deu-se a culminação desse

processo quando o jacobinismo - em nome do povo - substituiu a

sociedade e o Estado.

A BOÊMIA LITERÁRIA

Page 63: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

O historiador norte-americano Robert Danton propõe uma

interpretação muito original das relações entre iluminismo e revolução. A

originalidade decorre, em larga medida, de seu entendimento sobre o

ofício do historiador. Com sólida formação em antropologia, Danton se

classifica como um historiador etnográfico porque, ao se dedicar à

história da cultura da França no século XVIII, o faz considerando a

maneira[51] como as pessoas comuns entendiam o mundo e construíam

suas interpretações sobre a realidade a que estavam submetidas.

Essas referências iniciais justificam-se para sublinhar alguns traços de

sua postura teórico-metodológica, e salientar que seu trabalho se rege

pela preocupação de captar as diferenças que identificam as sociedades

em épocas distintas. A aparente simplicidade desta afirmação dilui-se

quando a aplicamos especificamente a um objeto de estudo, pois sua

operacionalização significa não apenas eleger outras fontes documentais

para análise, como também atribuir um outro conteúdo aos temas em

pauta. Com muita firmeza ele adverte os historiadores para os perigos de

se deixarem seduzir por uma falsa familiaridade entre o seu presente e o

passado que pretendam reconstruir.

Para o historiador da cultura este risco levaria ao equívoco de se

supor que há dois séculos os franceses pensavam e sentiam da mesma

forma que nós.

Assim, seu trabalho se propõe a reconstituir e respeitar as formas em

que o conceito for entendido à época e que significado lhe atribuíam.

Nestes termos para ele importa menos saber o que pensavam e, sim,

como pensavam. No caso de uma pesquisa sobre o iluminismo, esta

perspectiva implica na adoção de um procedimento que respeite o ponto

de vista dos autores da época, por mais estranhos que eles nos possam

parecer em determinadas circunstâncias.

Page 64: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Foi este estranhamento que ele experimentou ao deparar com uma

lista de pedidos encaminhada a um livreiro na Suíça. Os títulos ali citados

como "filosóficos" não condiziam com o entendimento que hoje se tem

sobre o tema. Títulos como Vênus no claustro ou A freira de camisola: O

cristianismo desvendado: Thérèse, a filósofa e Margot, a companheira do

exército, não correspondiam à idéia que hoje se tem sobre filosofia e

nem sobre iluminismo. Segundo Darnton, esta lista - que mais parecia

"um monte de lixo" - de alguma forma terminou por incorporar-se à idéia

de filosofia que se tinha naquela época.

Em suas pesquisas sobre a vida intelectual na França do século XVIII,

ao lado de nomes conhecidos do pensamento francês ele descobriu um

verdadeiro mundo de subliteratos, da "boêmia literária", constituída por

escritores que não desfrutavam do status dos integrantes da "república

das letras". Viviam isolados e contavam sempre com poucos recursos,

pois eram os excluídos do monde e, portanto, não recebiam pensões.

Suas considerações sobre a "boêmia literária" reforçam as

interpretações sobre as tensões criadas pelo sistema de ascensão social

através do prestígio, que - por sua própria natureza - só recobria um[52]

grupo limitado, o que significava manter na condição de excluídos o

contingente maior da sociedade.

Suas conclusões possibilitam também o encaminhamento da questão

levantada por Tocqueville a respeito das razoes que poderiam explicar a

"paixão" que parecia empolgar os franceses e tornar compreensível a

"indignação" que experimentaram ao contemplar a sociedade em que

viviam.

Os literatos da boêmia expressavam suas idéias nos libelle, uma

espécie de panfleto que disseminava o sentimento de repulsa pelo Antigo

Regime, sempre tratado de forma apaixonada, em tom insolente

difamador e caluniador.

Page 65: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Os panfletos que circulavam e eram lidos principalmente nos cafés -

uma espécie de "salão" das parcelas menos favorecidas da sociedade -,

tinham como assunto predileto e alvo principal de sua mordacidade, o

monde. Escolhiam preferencialmente personagens da corte, membros da

aristocracia, freqüentadores dos salões e das academias, assim como a

hierarquia eclesiástica como personagens dos casos escandalosos e

sensacionalistas, com o que pretendiam demonstrar a corrupção

instaurada no reino, a degeneração e decadência moral da aristocracia.

Importa chamar atenção para o fato de que, mesmo sendo uma

literatura que se nutria de escândalos, de "segredos de bastidores", de

detalhes da vida íntima de personagens importantes da corte, entre os

quais não escaparam nem o rei, a rainha e o poderoso cardeal de Rohan,

o que estava em foco era a questão moral.

Ainda que não elaborassem propostas, nem submetessem à opinião

pública projetos de reforma para a sociedade, os libelles eram

instrumentos permanentes de denúncias. A seu modo contribuíram para

desgastar ainda mais a imagem do Antigo Regime, sua decadência e

falta de autoridade moral.

Estes "Rousseau de sargeta" como os apelidou Danton, viviam numa

realidade muito distinta daquela que imperava para os literatos bem-

sucedidos. Nesse underground não vigiam princípios, nem estavam os

libelles submetidos a certas regras implícitas de "civilidade" das demais

instituições do Antigo Regime. Entre eles reinavam uma acirrada

competitividade e um profundo despeito pelo sucesso alcançado por

todos que haviam conseguido penetrar no monde. Este foi o caldo de

cultura em que ferveu seu ódio pelas elites.

Numa certa medida esse é o limite de sua campanha "revolucionaria".

Disseminar o descontentamento, insuflar a repulsa pelas elites, atacar os

Page 66: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

privilégios e desmoralizar os poderosos, eram os objetivos de sua

campanha contra o status quo.

[53] Rétif de Ia Bretonne talvez seja uma exceção nesse meio. Se,

por um lado, pôde integrar esse submundo pelo estilo de vida que

levava, antes da revolução publicou várias obras contendo projetos de

reformas reunidas sob o título de "Idéias Singulares", e que constavam

de um plano para a reforma da educação, da ortografia, a reforma da

prostituição e uma reforma social baseada na eliminação da propriedade

privada.

Não está em jogo a excentricidade de sua obra e, sim, o interesse em

reforçar o argumento sobre o peso que àquela época exerciam as

questões morais. Os libelles raramente propunham reformas, limitavam-

se a denunciar a decadência moral, mas cumpriram importante papel

para a revolução.

Danton é enfático ao concluir que o extremismo jacobino nutriu seu

verdadeiro timbre "neste ódio que subia das entranhas, e não nas

refinadas abstrações de uma bem tratada elite cultural", dando assim

sua versão para as relações entre iluminismo, jacobinismo e revolução.

Esta interpretação inclui ainda uma consideração final de que a

revolução teria virado pelo avesso o mundo cultural e, no cumprimento

dessa tarefa, bebeu na fonte das concepções antielitistas cultivadas com

paixão pela "boêmia literária".

A revolução destruiu as instituições onde florescera a elite intelectual

do Antigo Regime, os salões e as academias; revogou a censura,

eliminou as pensões, e aboliu os privilégios.

4. CULTURA E REVOLUÇÃO[54]

Page 67: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Com extrema lucidez e certa dose de perplexidade, Tocqueville

traduziu o sentimento vigente na França pós-revolucionária ao afirmar:

Retrocedo de época em época até a mais remota antigüidade, mas

não encontro paralelo com o que está se passando perante os meus

olhos; como o passado deixou de lançar a sua luz sobre o futuro, a

mente humana vagueia na escuridão.

O que esta afirmação nos permite desvendar de imediato é o traço

inaugural da modernidade ocidental, o rompimento com a tradição. A

ausência de todo e qualquer paralelo com as experiências pretéritas

apresenta-se, na expressão do pensador francês, como uma constatação

trágica, por remeter os homens ao espaço do desconhecido.

Ao reconhecer que o passado não iluminaria mais o futuro, o que

Tocqueville testemunha é a nova maneira como se passou a relacionar o

passado, o presente e o futuro. Registra a mudança fundamental que se

operou em relação aos planos de historicidade, isto é, a forma como os

homens entendiam o próprio tempo histórico e as relações que

estabeleciam entre os três momentos que o constituem. O que está a

nos indicar é a mudança no próprio entendimento que passaram a ter da

história, a qual perdeu as características que a identificava no período

clássico, quando se concebia que "sem a história nada se pode provar".

Desde a antigüidade o conhecimento dos fatores históricos era

valorizado por seu caráter de exemplaridade. Assim, a história "mestra

da vida" importava porque as experiências passadas podiam orientar

ações futuras. Desta visão derivou a força da tradição e a forma pela

qual, através dos séculos, entrelaçavam-se o passado e o futuro.

O abandono do passado, e, por extensão, da valorização do "espaço

de experiência" redimensiona o espaço de "expectativas" com o qual se

Page 68: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

confunde o futuro, que se apresentaria então pleno de infinitas

possibilidades, e impossível de ser balizado pelos exemplos extraídos do

passado. A abertura deste espaço e esta mudança radical de concepção

foram obra da revolução, pois dela se originou a crença de que os

homens podem controlar a história e, vale dizer, construir o futuro. A

idéia de construtibilidade substituiu a força da tradição na condução dos

assuntos humanos.

O MODERNO CONCEITO DE REVOLUÇÃO

Consta que na noite de 14 de julho de 1789, ao tomar conhecimento

da queda da Bastilha, da fuga dos prisioneiros e da derrota das tropas

reais, o rei Luís XVI teria indagado ao Duque de La Rochefoucauld-

Liancourt o que estaria ocorrendo, e se se tratava de uma revolta. O

Duque respondeu negativamente, dizendo tratar-se de uma revolução.

O que teria permitido ao Duque refutar o rei e propor outra

designação? Para ele tratava-se de fenômenos distintos, que não podiam

ser confundidos. Em que residiria a diferença?

Hannah Arendt nos informa que aquela data assinalaria não apenas a

destruição do grande símbolo do poder do Antigo Regime, como também

a utilização, pela primeira vez, do termo "revolução" revestido de um

significado político diverso do que lhe emprestavam até então. O diálogo

comporta então uma dupla diferenciação: entre revolta e revolução, e

entre dois significados neste último termo.

É verdade que desde os séculos XVI e XVII os dois termos não eram

utilizados de forma intercambiável, embora não fossem mutuamente

excludentes. De uma maneira geral, utilizava-se os termos revolta,

levantes, insurreições e rebeliões em relação aos movimentos

Page 69: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

camponeses, aos sangrentos conflitos religiosos que conflagraram, as

sociedades européias naquela época.

O que importa, não apenas para o esclarecimento do famoso diálogo,

mas para a compreensão de valores inerentes à modernidade ocidental

que se instauraram com a revolução francesa, é que sob aquelas

diferentes denominações englobavam-se movimentos que tinham, pelo

menos, duas características em comum.

[56] Todos eram entendidos como uma guerra civil, isto é, distúrbios

- não raro apaixonados - entre facções rivais, que dividiam

momentaneamente a sociedade, mas que se mantinham no interior da

concepção de sociedade estamental que era preservada, a despeito dos

conflitos que durante certo período perturbavam a ordem estabelecida.

Nenhuma dessas revoltas fora capaz de alterar a estrutura social.

Além deste aspecto pode-se também interpretar a classificação feita

pelo rei como expressão de experiências passadas, comparando aquela

situação a outras perturbações da ordem ocorridas no reino.

Provavelmente referia-se a situações anteriores, assimiladas pelo poder,

pois todas as revoltas foram abafadas e não provocaram mudanças

substantivas na ordem social.

Já o termo revolução, naquele mesmo período, era utilizado como

uma metáfora inspirada no vocabulário das ciências da natureza, mais

particularmente em Copérnico, cuja obra A Revolução dos Corpos

Celestes cunhou o seu sentido inicial.

Originando-se, pois, de um vocabulário astronômico, o termo

"revolução" designaria movimentos rotativos dotados de uma certa

regularidade. Assim compreendido, o conceito de revolução comportava

a idéia de repetição, de obediência a um movimento cíclico e que se

processava com independência em relação à intervenção humana.

Page 70: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Transposta para o terreno da história, essa compreensão do termo

revolução inspirada no movimento dos corpos celestes, se identificaria

com a noção de restauração, por pressupor um retomo a um ponto

original. Neste entendimento assimila-se a idéia de revolução como um

movimento restaurador da ordem e que representaria a manifestação de

concepções valorizadas de uma relação predominante do presente com o

passado. Ou seja, a consciência social que se tinha à época aplicaria o

conceito originado nas ciências naturais a acontecimentos históricos que

respeitavam a tradição e, mesmo, buscavam restaurá-la.

Foi com essa metáfora do eterno retomo que a Revolução Inglesa do

século XVII foi interpretada. Esta imagem não se aplicava aos anos sob o

domínio de Cromwell, e sim a 1660, com a destituição do Longo

Parlamento e o restabelecimento da Monarquia. Também a 1688, com a

chamada Revolução Gloriosa que, sem apelo à violência, expulsou os

Stuart e restaurou o poder monárquico.

Um outro exemplo pode ser extraído das imagens construídas pelos

peregrinos que migraram para a América e dos panfletos e da

propaganda revolucionária à época da independência, quando sentiam o

debilitamento e o esvaziamento das liberdades tradicionais em função da

política adotada pela monarquia inglesa. Com a Lei do Selo e a[57] Lei

do Chá sentiram-se usurpados em antigos direitos. Reportavam-se à

tradição de uma monarquia limitada no seu poder pela força das leis que

estariam sendo reinterpretadas ou desrespeitadas.

No entanto, a definição do Duque mencionada anteriormente sobre os

tumultos do 14 de julho corno sendo uma revolução, comporta um outro

entendimento deste conceito que não mais derivava do estabelecimento

de uma relação com o passado. A queda da Bastilha não significava um

retorno a um ponto de origem, nem a perda de um direito adquirido e

nem a uma liberdade legitimamente instituída.

Page 71: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Naquele momento o recurso à metáfora enfatizava o caráter de

irresistibilidade daquele processo. Como as estrelas, a massa popular, a

multidão de pobres e oprimidos que invadia a cena pública obedecia a

uma força irresistível e irrevogável. O Duque discordava do rei por

considerar que ele nada poderia fazer para impedi-la de cumprir seu

movimento. Definia assim a sua diferença em relação aos movimentos

do passado.

O reconhecimento da revolução como dotada de uma natureza

inexorável (irresistível e irrevogável), identifica o novo significado de que

fala H. Arendt, e que tomaria força nos discursos dos revolucionários e se

firmaria nas novas teorias políticas do século XIX, através do conceito de

necessidade histórica. A revolução passou a ser entendida como um

processo vital - indispensável, portanto, ao curso da história.

Indispensável porque com ela se promoveria a emancipação social.

O que permitiu que o termo revolução abandonasse suas origens

naturais e adquirisse um novo significado, foi a experiência inédita vivida

no século XVIII francês de que os homens podiam mudar sua existência

social através da revolução, e que a pobreza também não era um dado

natural, pois derivava de condições históricas. Esta foi a herança do

jacobinismo e de sua visão muito particular sobre o objetivo

revolucionário.

Da ênfase do jacobinismo na questão da igualdade social derivam

algumas noções que sobreviveram ao período em que lideraram o

processo revolucionário. A primeira delas diz respeito à tematização da

"questão social", isto é, a politização da questão da pobreza, fato inédito

até então. Simultaneamente, conjugou revolução à superação da

miséria, ao elevar a resolução da questão social à razão mesma das

revoluções. Por seu turno, a libertação dos homens da esfera da

necessidade, ou seja, da situação de privação em que viviam, constituía-

Page 72: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

se no argumento central sobre o qual assentava-se a noção de

necessidade histórica aplicada à revolução. Dito em outros termos, o

acontecimento revolucionário era um acontecimento "necessário" e

"irresistível" no curso da história.

[58] Pode-se agora melhor compreender a perplexidade de

Tocqueville. A revolução, ao privilegiar o agir humano, o fez em função

da libertação da ordem antiga e, portanto, da instauração do novo.

Assim, não poderia buscar um retorno ao passado, e a ausência desta

referência deixava os homens a "tatear na escuridão".

Este passo em direção ao futuro e ao desconhecido foi registrado por

Diderot ao reconhecer que ninguém sabia o que iria se seguir à

revolução. A mesma incógnita transparece na constatação de Rousseau

ao considerar que as monarquias européias deveriam desaparecer, mas

o que se seguiria, ninguém podia saber.

Desde então, o campo conceituai sobre a revolução incorporou alguns

traços com que vem sendo utilizado na cultura ocidental.

Em primeiro lugar, sua aplicação como um coletivo singular (a

revolução), parece unir em si o curso de todas as revoluções que se

operam nos diferentes campos. O termo assumiu preeminência como

princípio regulador dos conhecimentos e ações humanas, associando-se

sempre a fenômenos que convulsionam a história.

Numa outra perspectiva, a valorização do agir e a crença que os

homens podem construir a história, decorrentes das experiências pós-

1789, significou a transferência para o plano terrestre das antigas

expectativas religiosas de salvação. A perspectiva escatológica que

predominara nas concepções tradicionais despe-se de seu conteúdo

religioso, e assume as formas seculares da libertação na vida terrena. O

paraíso seria conquistado em vida e no reino dos homens.

Page 73: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Mais do que isto passou-se a conceber a possibilidade de acelerar sua

conquista através da revolução.

Com a revolução modifica-se também a concepção de tempo. Em

primeiro lugar porque, como já foi comentado anteriormente, a revolução

dava as costas ao passado e vivia o presente em função do futuro. A

noção recém-descoberta da construtibilidade da história supõe a crença

na possibilidade de controlar o tempo e de acelerá-lo, alcançando o

futuro mais rapidamente.

Quando Robespierre justificou a adoção de medidas de caráter

excepcional e o recurso ao terror, justificou-se perante os cidadãos

franceses como sendo iniciativas necessárias para "acelerar" o curso da

revolução, exemplificando assim a crença nas potencialidades humanas

de construir a história e submetê-la a um ritmo mais rápido.

Da nova relação passado/presente/futuro, em decorrência dos

fenômenos revolucionários, alteraram-se as várias visões sobre o

passado.

Em contraste com as práticas tradicionais de reconstituir a história

narrando sempre os mesmos, acontecimentos, segundo uma mesma[59]

perspectiva, abrem-se as possibilidades de interpretações diversas. Esta

novidade foi fruto das divergências e entendimentos opostos que se

manifestaram naquele processo. A história mesma da revolução foi a

primeira a sofrer estas constantes reinterpretações. De acordo com os

interesses e as situações particulares próprias às diversas facções,

tiravam-se conclusões diferentes sobre o passado e reinterpretavam-se

os acontecimentos sob nova ótica.

A meta das revoluções é o futuro das sociedades. Como já se viu

anteriormente, concebe-se como objetivo das revoluções a emancipação

social de todos os homens através da mudança das estruturas sociais.

Desde que a aprovação da Declaração dos Direitos Humanos, em agosto

Page 74: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

de 1789, abriu caminho para ações futuras em nome da ampliação da

conquista de liberdade e igualdade, as revoluções passaram a se

identificar com um determinado modelo social. Babeuf, o líder da

Conspiração dos Iguais, em 1795, afirmou que a Revolução Francesa não

terminaria enquanto a exploração e a escravidão não fossem abolidas.

A noção de revolução permanente é um desdobramento desta

característica. Para a consecução de seus objetivos temporal e

espacialmente, a revolução deve durar até a sua concretização final.

Esta[60] era a visão de Robespierre, que em discurso em 1794

considerava "que a metade da revolução do mundo estava terminada e

que faltava completá-la na outra metade".

Para concluir, o moderno conceito de revolução, tendo como centro a

idéia de libertação social e a construção de uma sociedade mais justa e

igualitária, distancia-se, em conseqüência, da noção original de

restauração da ordem com a qual foi introduzida no vocabulário político

no século XVII.

Este último ainda foi o sentido aplicado à Revolução Inglesa. Em

contrapartida, o caso francês, tal como foi visto por seus idealizadores,

ao romper os laços com a tradição, pretendeu fundar uma nova ordem. A

noção de fundação expressava a idéia da revolução como um divisor de

águas, um marco a distinguir um antes e um depois. Com ela deveria se

(re)iniciar o curso da história, que assim teria um começo e um fim A

este respeito, vale lembrar que em 1792 - com a abolição da Monarquia

e a proclamação da República - inicia-se um novo calendário, sendo

aquele o ano que assinalaria o início de uma nova era.

É esta concepção que tem alimentado a mentalidade revolucionária

que ganhou força no século XIX. Ainda que postulando novos valores

(razão, liberdade, progresso, revolução) no lugar dos antigos padrões

religiosos (Juízo Final, imortalidade da alma), não deixa também de ser a

Page 75: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

expressão secularizada do pensamento escatológico cristão por

representar a possibilidade de "salvação" total. A revolução

desempenharia assim um papel crucial nos tempos modernos por

viabilizar o nascimento de um campo secular dotado de dignidade

própria, a política.

A CONQUISTA DO MUNDO HISTÓRICO

Nas considerações anteriores acerca do moderno conceito de

revolução já foi sugerido que a experiência revolucionária do século XVIII

não deixou a concepção de história imune a transformações. Em

decorrência do rompimento com a tradição altera-se a noção de

historicidade isto é, a maneira como a consciência social entendia a

relação entre o passado, o presente e o futuro.

A alteração não se restringe a esse aspecto e assume amplitude

maior. É possível a identificação naquele período das origens da

concepção de história ainda presente na atualidade. Ernst Cassirer é inci-

sivo sobre este ponto, e dele tomamos emprestado o título desta seção,

por traduzir - de forma sucinta - a essência da questão.

[61]A possibilidade de se falar na "conquista do mundo histórico"

reside num duplo entendimento, por fundar e assegurar uma

conceptualidade própria e por não deixar de pagar tributo à noção

mesma de um mundo em construção.

As origens dessas mutações são da mesma natureza daquela

apontada nas considerações sobre o iluminismo: as questões gerais

relacionadas ao espírito do século XVIII, a expansão do racionalismo e

dos debates científicos e metodológicos acerca dos critérios de acesso à

verdade. Não excluem a hipótese que relaciona o surgimento desta

concepção de história à condição de privados de participação na esfera

Page 76: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

da política, que caracterizava a condição dos súditos do monarca

absolutista. Acrescente-se que o acirrado espírito crítico do período

nutria-se dos fracassos políticos e financeiros do regime, aí se incluindo a

crítica ao grande poder da Igreja, que se constituía em obstáculo às

reformas políticas e administrativas necessárias para a promoção do

progresso.

Da combinação destes fatores resultou uma reviravolta importante,

porque até então os historiadores sempre tomavam o partido do

governo. Não poderia ser de outra forma, seja porque eram historiadores

"oficiais", isto é, nomeados pelo rei, segundo a lógica imperante no

Antigo Regime, seja porque um de seus assuntos prediletos era a

genealogia da monarquia. Não se registravam diferenças entre as várias

obras, pois exerciam seu ofício mais ou menos como "continuadores",

porque contavam sempre a mesma história, mudando apenas o estilo.

O campo próprio à história permaneceu meio indefinido no século

XVII, sendo ocupado também pelos chamados "antiquários" que, grosso

modo, se ocupavam dos assuntos e das fontes que os historiadores

deixavam de lado. Esse grupo era formado por eruditos que se

dedicavam a reunir e estudar as tradições e os vestígios do mundo

antigo, seguindo um caminho aberto pelos humanistas dos séculos XV e

XVI.

Historiadores e antiquários foram vítimas, no século XVIII, dos

ataques dos filósofos iluministas, que censuravam a ambos por

esquecerem que a história deveria ser uma "reinterpretação" do passado

e que somente com este proceder seria possível formular conclusões

sobre o presente.

Este é um primeiro ponto a ser ressaltado, a forte preocupação com o

presente, e o esforço em fixar um sentido para a história. Em que pesem

as diferenças entre as concepções de Bayle, Voltaire e Montesquieu,

Page 77: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

pode-se afirmar que a obra historiográfica desses três filósofos

empreende a "conquista do mundo histórico" pelo esforço em determinar

as relações entre o universal e o particular a idéia e a realidade, as leis e

os fatos. Partilham também o mesmo desprezo[62] pela ficção, pelas

fábulas históricas que consideravam produtos de pura invenção e, como

dizia Bayle, sendo a "verdade a alma da história deve ser libertada da

mentira".

Assim como naquela época a matemática era o modelo para o

conhecimento exato, os filósofos buscaram instituir a história como um

modelo metodológico para as ciências do espírito. Para tanto, o primeiro

passo seria emancipá-la da teologia.

Negando a interpretação de matriz religiosa foram os primeiros a se

interrogar sobre se o curso da história era determinado por forças

inconscientes, o "espírito do tempo" ou pelo caráter nacional.

Foram também pioneiros na adoção de um ponto de vista filosófico

para separar o acidental daquilo que poderia ter um valor típico e

universal, e para explicar a correlação entre os fatos.

A nova orientação dada à história deslocou o interesse do campo

tradicional com o qual se ocuparam seus antecessores que escreviam

histórias da monarquia, de guerras, de assuntos políticos, enfim, para

ocupar-se de assuntos que até então não eram valorizados. Os objetos

prediletos passam a ser o comércio, a indústria, as artes e

principalmente a civilização, sendo este o tema central para o

reconhecimento da questão que os mobilizava em relação à história, o

conhecimento da evolução geral da sociedade.

Vale lembrar que o desprezo e a rejeição pela barbárie unia os

filósofos e os levava a considerar os homens letrados e os "espíritos

cultos" como promotores do progresso e da civilização.

Tomemos uma vez mais o exemplo de Voltaire.

Page 78: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Entre seus textos sobre a história - História de Carlos XII, O Século

de Luís XIV e o Ensaio sobre os Costumes - é neste último que se pode

melhor depreender seus pontos de vista, bem como reconhecer o lugar

que o autor ocupa na fundamentação deste saber. O mérito resulta do

fato de ter encaminhado a questão da história partindo de pressupostos

radicalmente distintos dos que então se adotava entre historiadores e

antiquários. Assume um ponto de vista secularizado e distancia-se no

tempo, escreve sobre épocas passadas, para alcançar condições de um

melhor julgamento, teoricamente desapaixonado, guiado apenas pela

razão.

O destaque ao texto dos Ensaios pode ser explicado pelo fato de

Voltaire o ter dedicado à marquesa Châtelet, que se queixava da

dispersão do saber histórico e se interrogava sobre as possibilidades de

os acontecimentos históricos serem submetidos a leis, tal como fizera

Newton em relação às ciências naturais, na qual ela era formada.

Voltaire entusiasmou-se pela questão posta pela marquesa porque

não era muito diverso o seu ponto de vista. Ele considerava a

história[63] um "amontoado de absurdos" e acreditava ser possível

desvendá-la através do método analítico.

Numa publicação suplementar aos Ensaios, Voltaire afirmava que:

em lugar de acumular uma série de fatos em que um é destruído por

outro, há que escolher os mais importantes e seguros para proporcionar

ao leitor um sentido e colocá-lo em situação que possa formar um juízo

sobre o fim, o renascimento e os progressos do espírito humano e que

aprenda a conhecer o caráter dos povos e seus costumes.

Além de anunciar a necessidade de hierarquização dos

acontecimentos para se chegar à compreensão da história, Voltaire

Page 79: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

promove o deslocamento do centro de gravidade da história política para

a história do espírito, entendida como a categoria que recobria a

totalidade do acontecimento interno e das mudanças experimentadas

pela humanidade. Assim é preciso considerar a religião, a arte, as

ciências e a filosofia para que se possa reconstituir um quadro total de

todas as fases atravessadas pelo espírito para chegar ao ponto atual.

Todavia, o propósito de constituir a história deste "espírito"

defrontava-se com o aparente paradoxo de duas idéias presentes em

suas formulações, e que pareciam irreconciliáveis: a crença no

progresso[64] da humanidade e sua convicção de que a humanidade não

mudava a sua natureza.

Sem abandonar nenhuma das duas idéias Voltaire distingue dois

níveis em que se desdobra o processo histórico. Um diria respeito à

natureza humana mais íntima, que difundiria a unidade e estabeleceria

princípios invariáveis e autênticos, e que permaneceriam sempre os

mesmos. As mudanças só ocorreriam na superfície, no terreno da

cultura, reino da variedade e de manifestação de costumes diferentes.

Elucidou a dúvida da marquesa ao reconhecer que ao historiador

caberia uma tarefa que não era muito distinta da do investigador da

natureza. Como este, o historiador deveria desvendar - em meio à

mudança e à variedade dos fenômenos -, a lei oculta que lhes dava

inteligibilidade. Recusando as explicações teológicas, Voltaire identificou

a razão como força fundamental. Este era o sentido da história: dar

visibilidade e transparência à razão. Não era um fim e, sim, um meio,

pois o que se esperava dela era a verdadeira realização do conhecimento

do homem moral.

Suas concepções sobre história articulam-se às suas demais

formulações. Ganham relevância pela importância que lhe concede ao

reconhecê-la como meio através do qual se educaria e ilustraria o

Page 80: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

espírito humano. Constituía-se assim em peça fundamental da noção de

progresso e aperfeiçoamento da civilização que ajudou a disseminar.

Além de sedimentar o pragmatismo típico da filosofia iluminista, algumas

de suas idéias sobre a história permanecem vivas, informando

concepções diversas na atualidade.

Ao buscar identificar um sentido para a história (a civilização),

Voltaire descartou o acidental e meramente individual e desvinculou sua

explicação de pressupostos teológicos, compreendendo-os no plano da

imanência, e propondo leis para seu desvendamento. Portanto, em lugar

do privilégio dos acontecimentos (do plano visível da história) recorreu

ao invisível (os fundamentos), para entender a unidade e a diversidade,

no tempo e no espaço.

Em sua época, contudo, contribuiu para aumentar o fosso que

separava os filósofos dos antiquários, principalmente por negligenciar a

exatidão do detalhe, por deixar de lado o pormenor "inútil" - com que se

ocupavam os antiquários - e só valorizar as generalizações.

HISTORIA E CIDADANIA

A revolução fez triunfar a concepção de história dos filósofos, depois

sistematizada por Condorcet, um herdeiro direto da Enciclopédia,[65]

que assim a compreendia: "Uma reflexão sobre a evolução dos povos e

das civilizações, um estudo do passado indispensável para a análise do

progresso da humanidade nas vias da razão". Tratava-se, pois, de fazer

da história um dos terrenos privilegiados de demonstração do sentido da

existência social.

O elevado posto a que foi promovido pelos filósofos não condizia com

o lugar secundário que a história ocupava no ensino, onde nem mesmo a

legislação revolucionária a retirou da condição de complemento dos

Page 81: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

estudos clássicos e da aprendizagem do latim, e de passageira

clandestina dos programas oficiais. Permaneceu em sua posição

relativamente marginal por não integrar os programas regulares das

aulas. Fazia parte dos "exercícios públicos" nos feriados, às quintas-feiras

e aos domingos, como registra François Furet.

No Collège de France havia uma disciplina "História e Moral", em

meio a um conjunto reunido sob a referência de Ciências Morais e

Políticas. Haveria outros exemplos que talvez sugerissem uma lenta

expansão do ensino da história, mas não eliminariam o visível contraste

entre a importância que progressivamente assumia em meio ao clima

reformador do período final do Antigo Regime e mesmo durante a

Revolução, com o seu status pedagógico.

Esse descompasso comportava, na verdade, duas ordens de

problemas: em primeiro lugar constituí-la como uma disciplina, e

conceder-lhe um lugar no sistema educacional para que pudesse realizar

a pedagogia do cidadão. Estas duas ordens de questões foram resolvidas

somente no século XIX, embora obedecessem a dinâmicas e tempos

distintos.

A instituição da história como disciplina, isto é, tornar-se uma

matéria ensinável, foi impossível ao longo do século XVIII e nas

primeiras décadas do XIX, porque estava dividida entre duas atividades

intelectuais que se ignoravam ou se desprezavam. Eram elas: erudição

(típica dos antiquários com sua acentuada preocupação com o passado e

com a precisão do detalhe), e a filosofia (mais voltada para o sentido da

história, isto é, da relação entre o presente e o futuro). A total

discordância entre eles quanto aos métodos, aos objetos e mesmo sobre

o que era a história, constituía-se em obstáculo difícil de ser transposto.

À indefinição sobre o que era a história, a Revolução - com suas

marchas e contramarchas -, acrescentaria mais uma dificuldade, a de se

Page 82: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

definir qual a história a ser narrada. A antiga genealogia da nação, à qual

se dedicaram os historiadores dos séculos XVI e XVII, recontando as

aventuras de Childerico, Clóvis e Joana D'arc tornara-se impraticável.

[66] A Revolução desprezava esse interminável passado nacional,

pois afinal queria livrar-se do peso da monarquia e da feudalidade.

Assim, tomava-se difícil - senão impossível - constituirá história

nacional que seria o terreno próprio à pedagogia do cidadão. A Revolução

dividiria os franceses em duas "nações" opostas, cada uma

correspondendo a uma metade de sua história, pois até a Restauração de

Felipe D'Orléans, com o estabelecimento da Monarquia de Julho, em

1830, não era possível amar o Antigo Regime sem detestar a Revolução

e vice-versa.

Esses obstáculos foram transpostos inicialmente por Guizot, professor

da Sorbonne, ao fundir a tradição dos historiadores à dos antiquários,

através da noção de "fato histórico", e pela valorização da massa

documental a ser estudada (textos, fontes e monumentos) como meio de

reconstituição do passado; e da reconciliação da história nacional com a

história da civilização.

Estes foram os pontos de vista que estruturaram suas concorridas

aulas de história e que lhe custaram a destituição do cargo em 1822, por

atacar o regime em nome do Terceiro Estado, da antiga Monarquia e da

marcha da civilização. Esse tipo de visão sem dúvida se legitimou com a

própria história, porque a Monarquia de Julho, fruto das barricadas de

Paris, fez confluir as duas tradições nacionais, a da burguesia e a da

nobreza.

A história nacional francesa libertava-se da "maldição feudal" em que

se aprisionara por fixar-se no estudo desse período, e instituía-se, na

base do discurso enciclopedista, na fonte de civilização de que é

portadora.

Page 83: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Desde então, dotada de um campo específico e de um método

próprio, a história passou a desempenhar papel central na constituição

da cidadania.

Apenas um último adendo. Em 1886, a Faculdade de Letras de Paris

criou um curso sobre a Revolução Francesa, transformado em 1891

numa cadeira da Sorbonne da qual Aulard foi o primeiro titular. Esta

iniciativa veio somar-se à revista Revolução Francesa fundada em 1881 e

à Sociedade de História da Revolução, de 1888.

No início do século, Jaurés e Mathiez, os dois maiores historiadores

socialistas da Revolução fundaram, respectivamente em 1903 e 1908, a

Comissão de Pesquisa e de Publicação dos Documentos, relativos à vida

econômica da revolução, e os Annales Révolutionnaires.

Não cabe recensear as instituições ligadas ao estudo da Revolução e

que se multiplicaram a partir dessas iniciativas. Apenas sugerir a

relevância do tema para o estudo da nação francesa e que desde então

tem se processado de forma indissociável da história da modernidade

ocidental.

CONCLUÇÃO[67]

Como se evidencia ao término da leitura, este não é um livro sobre a

história da Revolução Francesa no sentido da narrativa dos

acontecimentos e da descrição de seus momentos mais relevantes.

É uma exposição que elegeu três questões como forma de abordar o

tema. Esta escolha foi presidida pelo intuito de demarcar a

contemporaneidade das reflexões sobre a Revolução. Essa

contemporaneidade, ou seja, sua presença viva na atualidade, seria

perceptível em campos variados. Na impossibilidade de abarcarmos

todos em seu conjunto, optamos por destacar aqueles que possivelmente

Page 84: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

mais sensibilizariam um público leitor das áreas de ciências sociais e

humanas.

Assim, buscamos situar inicialmente a análise da questão da

Revolução Francesa no campo das relações sociais e políticas do Antigo

Regime, suas práticas e seus valores, e verificar como estes - ao

permitirem sua reprodução - geravam as tensões e os antagonismos

sociais que terminariam por destruí-los. O importante de ser fixado é a

íntima conexão entre estas estruturas e suas práticas correspondentes e

a gestação de duas das principais bandeiras da revolução - a igualdade e

a liberdade. O mesmo enfoque aplica-se à compreensão da conquista da

cidadania, ou seja, da constituição da sociedade, integrando homens

portadores de uma opinião pública.

Nesse nível, a análise do iluminismo torna-se imprescindível e reforça

o enfoque adotado de buscar na dinâmica político-social do Antigo

Regime, a compreensão de acontecimentos tão imprevisíveis quanto

relevantes. O que se buscou retratar foi, inicialmente, como o

iluminismo, de formas as mais diversas, traduziu as esperanças de

reforma e como ganhou vida, em instituições próprias do Antigo Regime.

[68] Todavia, o tema do iluminismo com o privilégio que concede à

razão e à crença em sua potencialidade como promotora da felicidade,

isto é, a crença numa sociedade melhor, contamina as gerações futuras.

E se firma como matriz do pensamento das mais importantes correntes

filosóficas do século XIX, em particular do positivismo e do marxismo.

Antes de encerrar, um alerta finai ao leitor para a complexidade do

tema, para seus aspectos múltiplos e contraditórios e para a impos-

sibilidade de reduzir sua compreensão a fórmulas simplificadas e

esquemáticas, um fenômeno homogêneo e unitário. E, em conseqüência,

um convite para que reflita e extraia a sua conclusão entre as que aqui

são sugeridas.

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SUGESTÕES DE LEITURA[69]

ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Lisboa, Ed. Moraes, 1976.

O enfoque filosófico da autora pode causar algumas dificuldades

iniciais ao leitor não familiarizado com esta disciplina. Vale a pena

o esforço pela originalidade de suas interpretações sobre o

conceito da revolução, sobre o jacobinismo e as polêmicas

comparações com a Revolução Americana.

DARNTON, Robert. Boêmia Literária e Revolução. São Paulo

Companhia das Letras, 1987.

O livro reúne os artigos da pesquisa feita pelo autor na documentação

inédita dos arquivos de Neuchâtel, na Suíça. Situa-se no campo

da história das mentalidades, trabalhada num diálogo intenso com

a antropologia. Reúne um conjunto de ensaios bem característico

de sua perspectiva relativizadora em história.

ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Lisboa, Editorial Estampa,

1989.

Texto recomendado aos interessados em aprofundar os

conhecimentos sobre a sociedade do Antigo Regime. O autor

trabalha na perspectiva sociológica e tem outras publicações

sobre o período, do qual é um especialista.

FALCON, Francisco José Calazans. O Iluminismo. São Paulo, Ática,

1986.

O texto destina-se especialmente aos estudantes universitários.

Tem o caráter monográfico e suas qualidades maiores são a

clareza da exposição, o conteúdo das informações e as referências

bibliográficas, que reúnem obras fundamentais sobre o assunto.

FURET, François. Pensar a Revolução. Lisboa, Edições Setenta, 1988.

Page 86: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

Como sugere o título desta obra, de autoria de um dos mais

importantes historiadores contemporâneos, ela não descreve, mas

problematiza o tema de revolução. Apresenta interpretações

originais elaboradas numa perspectiva crítica e fundadas sobre

sólida base conceituai.

[70]GODECHOT, Jacques. A Revolução Francesa. Cronologia

Comentada. 1789/1799. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989.

Leitura fundamental para o conhecimento dos fatos relacionados à

historia da revolução. Como indica o próprio título, os

acontecimentos são dispostos em ordem cronológica e

comentados, de forma crítica e com traços da erudição que

caracteriza o autor.

LABROUSSE, Ernest e MOUSNIER, Roland. O Século XVIII. A

Sociedade Francesa perante a Revolução. H.G.C. Tomo V; Vol. 1.

São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1969.

Um dos melhores resumos sobre os acontecimentos relacionados à

Revolução.

A originalidade da interpretação não é sua marca principal, mas

oferece ao leitor informações e descrições importantes sobre o

assunto.

PERONNET, Michel. Vocabulário Básico de Ia Revolución Francesa.

Barcelona, Ed. Critica, 1985.

Obra de referência útil para a identificação e o conhecimento dos

principais termos relacionados à história da revolução.

SOLE, Jacques. A Revolução Francesa em questões. Riq de Janeiro,

Zahar, 1989.

O livro do professor de História Moderna da Universidade de

Grenoble, França, permite ao seu leitor tomar conhecimento das

Page 87: Berenice Cavalcante - A Revolução Francesa e a Modernidade.pdf

principais interpretações sobre a Revolução Francesa,

apresentadas e comentadas criticamente.

STAROBINSKY, Jean. Os emblemas da razão. São Paulo, Companhia

das Letras, 1988.

Leitura recomendada para quem se interessa pelo conhecimento

das formas de representação e pelo universo simbólico. O autor,

especialista em história da arte, analisa a obra de pintores (como

Goya e David) e músicos (como Mozart), relacionando-os à

ambiência do iluminismo.

TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília,

Editora Universidade de Brasília, 1979.

Texto clássico sobre o assunto e, por esta razão, leitura

indispensável. Através de uma lúcida análise sobre o Antigo

Regime o autor desenvolve suas teses, extremamente originais e

tratadas com o estilo elegante que o caracteriza.

No campo da literatura há pelo menos duas obras cuja leitura em

muito enriquece os conhecimentos sobre a Revolução. 7793, de Victor

Hugo e Um conto de duas cidades, de Charles Dickens.

O LEITOR NO CONTEXTO[71]

Alguns temas relacionados à Revolução Francesa merecem um

tratamento mais aprofundado. Entre estes, sugerimos:

1. No campo da história comparada, confrontá-la à Revolução Ameri-

cana (1776). Esta proposta oferece a possibilidade de desenvolvimento

de um trabalho em história, estabelecendo as diferenças que

singularizam processos que podem ser englobados sob a mesma rubrica.

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O entendimento da questão da liberdade e da igualdade, assim como a

ausência da questão social nos acontecimentos relacionados à indepen-

dência norte-americana, apresentam-se como pontos privilegiados para o

desenvolvimento desta reflexão.

2. As relações entre revolução e religião. Este é um assunto que não

tem despertado muita atenção entre os pesquisadores contemporâneos,

embora Edgard Quinet e Jules Michelet, no século passado, tenham

desenvolvido hipóteses interessantes sobre as diferenças entre as

sociedades "reformadas" e as que permaneceram católicas.

O tema pode ainda ser pensado sob outras óticas, que focalizem os

efeitos sobre a sociedade das medidas da descristianizacão e do culto

dos mártires, promovidas pela ditadura jacobina de Salvação Pública em

1793.

3. Aprofundamento da tese sobre as "várias revoluções" compreendi-

das pela Revolução Francesa, através, por exemplo, de comparação

entre 1789 e 1793. O que se propõe é uma reflexão sobre os conceitos

de liberdade, igualdade, cidadania e nação, tal como foram construídos

em cada um daqueles momentos.