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    ENTREVISTA COM

    BENEDITO NUNES

    A revista Trans/Form/Ao retoma uma prtica que marcou seus n-

    meros iniciais, de publicar entrevistas com filsofos ou intelectuais, decisi-

    vos no debate acadmico contemporneo. O gnero merece hoje ser reto-

    mado, pois se de um lado aponta para a tradio do dilogo filosfico, isto

    , para um percurso argumentativo motivado pelo confronto e apresentao

    de idias, por outro, demonstra que o formato de uma conversa, composto

    por desvios, associaes e rememoraes, possibilita um exerccio intelec-

    tual dinmico que atualiza contedos filosficos.

    Assim, neste nmero publicamos a entrevista com o professor emrito

    da Universidade Federal de Belm, Benedito Nunes. Nascido em Belm em

    1929, formado em Direito, ele autor de vrios livros em que busca aproxi-

    mar filosofia e literatura, como No tempo do niilismo e outros ensaios (1993)

    e Crivo de papel (1998). Aqui, o autor retraa em tom caloroso e jovial seucaminho singular at a filosofia, um itinerrio que desde o incio j acenava

    para a pesquisa de uma estreita vizinhana entre poesia e filosofia. Seja com

    Clarice Lispector ou Joo Cabral de Melo Neto, seja com Heidegger ou Mer-

    leau-Ponty, tratava-se de encontrar entre eles relaes de contigidade: mo-

    dos de aproximao e de distanciamento. Do percurso dialgico, o leitor en-

    contrar ainda a reflexo do filsofo sobre sua atuao nos suplementos

    culturais de vrios jornais brasileiros; as referncias filosficas decisivas em

    sua formao e, por fim, como pensa hoje a especificidade da filosofia.

    A conversa aconteceu em Belm, em janeiro de 2004, com a participao

    dos professores Mrcio Benchimol Barros (Unesp) e Ernani Chaves (UFPA).

    ***

    Ernani Chaves Eu j li em algum lugar que o primeiro livro defilosofia que o senhor leu foi o Zaratustra de Nietzsche. Eu gostaria de

    saber como que a filosofia aconteceu na sua vida.

    Benedito Nunes Eu tenho uma vaga recordao desse Zaratustra de

    Nietzsche, em uma edio popular de Portugal. As folhas estavam at des-

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    manchando e os cadernos descosturados. A outra recordao da filosofia que nessa poca eu tinha descoberto por conta prpria que havia, diga-mos, uma inquietao religiosa, e essa inquietao religiosa foi que me le-vou filosofia. Eu tinha descoberto certos pensadores que se tornaram pramim verdadeiros companheiros de um pensamento que comeavaeu ti-nha necessidade de pensar... Como Unamuno, por exemplo, e de Unamunocheguei a Pascal. Peguei Pascal na biblioteca do Colgio Moderno.

    E.C. Com quantos anos isso, professor?

    BN Eu devia ter uns 16 ou 17 anos j com Pascal. Eu tinha a vanta-gem, nessa poca, de ler muito bem francs. Eu tinha comeado a aprender

    francs fora do colgio. Havia uma senhora... preciso fazer um retrato de-la: morava perto da minha casa e era de uma famlia antiga de que hoje hpoucos descendentes disseminados por a. Mas ela tinha uma particulari-dade: tinha uma paixo pelo estudo de lnguas. Era praticamente viva,porque o marido dela estava no Rio de Janeiro... no sei qual era a situaofamiliar. Lembro que ela morava numa casa grande e bonita, linda, que foiderrubada. E ela fez questo de me ensinar francs. Ento antes do ColgioModerno, pelo mtodo Berli tz, que ela tinha adotado, eu aprendi francs.Assim, quando cheguei s aulas da professora Luclia eu j tinha um co-nhecimento da lngua, e por isso eu pude facilmente ler certos autores quea biblioteca do Colgio Moderno tinha (no sei que fim levou esses livros...).Bom, tinha, por exemplo, livros que eram considerados terrveis, que paramim foram um choque emocional e intelectual, por exemplo. De famlia ca-

    tlica e tendo sido aclito, ajudando o padre na missa: s quintas-feiras,beno do santssimo; aos domingos, missa no Rosrio da Campina..., en-to, para mim a descoberta de certos livros foi um pouco um incio de umalibertao intelectual. Por isso que eu disse que a religio foi o caminho.Num desses livros, de uma coleo portuguesa chamada Biblioteca do Es-prito Moderno, que devia ser uma coleo de anarquistas e socialistas por-tugueses, intituladoA Igreja e a Liberdade, se enumeravam todas as atitu-des da Igreja contrrias a liberdade. Indo da perseguio aos Ctaros organizao da Inquisio. E havia outro pior ainda, escrito sob pseudni-mo... um tal de Timoteon..., que tinha o ttuloNo creio em Deus. Ainda melembro desses livros, das configuraes deles, como era mais ou menos opensamento de cada um... O Timoteon era muito ingnuo, panfletrio, eraum livro de poca. A coleo publicava livros de anarquistas portugueses.

    Ento foi, realmente, essa situao religiosa, que depois se tornou uma in-quietao intelectual, que me levou filosofia. Quer dizer, que fez com queeu no me fixasse tambm na filosofia, que oscilasse entre literatura e filo-sofia. Que eu acho que outro ponto que me impregnou muito. Na verdademinhas atividades comeavam sendo atividades literrias.

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    E.C. Eu li a tese da professora do NPI que recolheu todos os su-

    plementos literrios daFolha do Norte. Ela fez um estudo e no final

    catalogou tudo. E l o senhor publicou muitos poemas. Eu li, inclu-

    sive, vrios poemas.

    BN Horrvel! Horrvel..., mas ali eu tambm publicava, dentro dessadualidade ou dessa ambigidade (literatura e filosofia), uns pretensiosospensamentos em forma de adgio, que se chamavam As Confisses do So-litrio, que eram reflexes sobre o que eu estava fazendo, e que mereceramuma vez, de um jornal que o Arcebispado publicava um artigo censurandoesses trabalhos, no qual o autor, que era Dom Alberto Ramos,1 se admiravamuito de que uma pessoa de uma famlia catlica pudesse escrever coisasassim. Eles sabiam a identidade do solitrio..., para voc ver como Belmera pequena naquela poca...

    E.C. Uma coisa que me chamou ateno quando li sobre o suple-

    mento literrio da Folha do Norte, do qual o senhor fazia parte junto

    com um outro grupo de intelectuais da poca, era a presena muito

    grande do existencialismo; uma importncia muito grande do pensa-

    mento de Sartre. Gostaria que o senhor falasse uma pouco disso, na

    Belm do final da dcada de 40 e no comeo dos anos 50, qual a in-

    fluncia e a importncia do pensamento de Sartre.

    BN Isso foi canalizado pelo suplemento literrio, que era dirigido peloHaroldo Maranho,2 que saa aos domingos, Letras e Artes, ou coisa se-

    melhante. O suplemento publicava autores do sul, como Carlos Drummondde Andrade, Ceclia Meireles, Manuel Bandeira... eram todos colaboradorescom os quais o Haroldo se relacionava. Ele fazia entrevistas com estes au-tores, Ceclia Meireles, Manuel Bandeira... Por causa das agncias de not-cias europias, que antigamente funcionavam nas bases correspondentes,com a tecnologia da poca que eram os telegramas, feitos por meio de umamquina especial, telefax, ou algo assim..., vinham muitas coisas do suldo pas, da imprensa do sul do pas. Por outro lado, essa imprensa era abas-tecida com jornais europeus, raramente norte-americanos. Esses correspon-dentes sediados no Rio de Janeiro mandavam (artigos) pra c. Ento vinhamuita coisa sobre o existencialismo. Na poca, claro ningum fazia dife-rena entre o existencialismo e as filosofias da existncia. Acho que no sesabia que existencialismo era um nome prprio cunhado pelo Sartre, etc...

    Voltando para a minha situao, antes de terminar o curso de direito, eu fiz

    1 Antigo arcebispo de Belm.2 Escritor e jornalista belenense.

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    uma palestra no salo da faculdade (de direito), que era ainda no Largo daTrindade. No sei se a denominei O existencialismo, ou As filosofias daexistncia ou As correntes existencialistas. E o diretor da faculdade que jocupava o cargo h muito tempo e que era muito cordial, me disse: olha,eu vou assistir, eu quero ver o que voc vai dizer. Ele estava pensando noexistencialismo da propaganda jornalstica, que era o existencialismo do ta-bu, de Paris, freqentado pelo Sartre. Quando ele viu que a coisa no era praesse lado ele ficou muito desgostoso. Tambm naquela poca, devido s in-clinaes religiosas que eu tinha, eu fiz tambm um estudo sobre So To-ms de Aquino. Tal como o Mrio Faustino, numa determinada poca, eume inclinei muito para Igreja, e dessa hesitao resultou um estudo sobre

    So Toms de Aquino. O decisivo, realmente, veio com um conhecimentomelhor de filosofia, do Heidegger, estudando por conta prpria, lendo aquie ali pelo meu sistema de caderninhos: tomando notas abundantemente eescrevendo. Naquela poca, escrevi muito no Jornal do Brasil, e o carrochefe foi um estudo que fiz sobre o Mrio Faustino; minha colaborao (como Jornal do Brasil) comeou com um estudo muito grande sobre Mrio Faus-tino, sobre O Homem e sua Hora. E depois vieram outros e outros escritos,por exemplo, sobre Nicolai Hartmann, do qual ningum falava no Brasil.Mas o Jornal do Brasil publicou dois ou trs artigos sobre o Hartmann deminha autoria. Naquela poca essa questo do espao no era to severacomo hoje, era outra compreenso que se tinha jornalismo, era diferente.Hoje, os assuntos culturais so muito bi tolados, eles entram numa certa ma-quinria, que at uma maquinria publicitria: hoje o artigo se confundemuito com a resenha jornalstica. Eu publiquei no Jornal do Brasil, em 1956,em cinco domingos seguidos, em pgina inteira, um estudo que hoje inte-ressaria a poucas pessoas: O pensamento de Scrates, uma tentativa dereconstituir desde Digenes Larcio at outros testemunhos, como seria opensamento de Scrates. E tambm houve, por iniciativa do Mrio Fausti-no, a proposta de organizar uma pgina de filosofia para o Jornal do Brasil.Ento saram quatro pginas de filosofia no Jornal do Brasil. Mas eu tam-bm no tinha esse pendor jornalstico que ele tinha, e alm do mais a ge-nialidade que ele tinha. O Mrio era um sujeito de um talento imenso, quej confinava com a genialidade. Ele fez o jornalismo literrio mais argutoque j se fez no Brasil, e em uma pgina dedicada s poesia! Crtica (lite-rria) limitada poesia, isso s ele fez...

    M.B. Nessa poca o senhor residia em Belm?

    BN Sim. Ento nas quatro pginas organizadas saram, por exemplo,Descartes, asMeditaes cartesianas... a eu punha um trecho dasMedita-es que eu traduzia; depois um artigo de Sartre sobre Descartes... e muitas

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    coisas assim. Chegaram a sair trs ou quatro pginas. Isso foi no Jornal doBrasi lde 1956 a 1959. Depois essa fase urea acabou.

    At ento, apesar dos artigos de filosofia, eu ainda no tinha publicadonenhum livro. O primeiro livro que publiquei foi O mundo de Clarice Lis-pector, editado em Manaus, pelo Arthur Csar Reis,3 que tinha sido meuprofessor aqui em Belm. Era um magnfico professor de histria que nosdeu a conhecer diversas civilizaes, Asteca, Andinas etc, e que me deupara ler Casa Grande e Senzala. Ento, ele publicou esse livro que era umacoletnea de artigos que haviam sido publicados nO Estado de So Paulo.Quando eu estava trabalhando para o Jornal do Brasil, comecei a escreverno O Estado de So Paulo.

    M.B. Nessa poca o senhor j tinha travado conhecimento pessoal

    com Clarice Lispector?

    BN No, nessa poca s conhecia a lenda da Clarice. Ela se tornaramuito amiga de pessoas, como o prof. Mendes.4 Em 1942 ou 1943, poca daGuerra, ela veio pra c acompanhando seu marido que era do Itamaraty echamava-se Amaury Gurgel Amarantes. Hospedaram-se no Central Hotel,que era um hotel civilizado, no como aquela baguna que tem hoje. Hos-pedou-se l e fez um contato com o Mendes, cuja vida domstica se passa-va em grande parte no Caf Central: era l que ele recebia os amigos. E elese deu com a Clarice, de modo que eu sempre ouvia falar na dona Clarice.Ela foi daqui pra Natal com o marido e seguiu com ele para Itlia, por causa

    da guerra. Ento, o Arthur Reis publicou esse livro sobre Clarice Lispector,que foi o primeiro. Ao mesmo tempo, por causa das minhas relaes com OEstado de So Paulo, eu conheci o Dcio de Almeida Prado, e por interm-dio dele o Antonio Candido. Estavam nessa poca, ele e Antonio Candido,organizando uma coleo de pequenos livros, livros de divulgao. Eles meencomendaram dois: um chamadoFilosofia da Arte, que era sobre esttica,e outro sobre filosofia contempornea. Esse dois livros foram publicados edepois republicados pela (editora) tica.

    E.C. E nesse nterim o senhor comeou a dar aula na faculdade?

    BN Sim. Nesse nterim eu j estava comeando a dar aulas na Facul-dade de Filosofia, que foi o ncleo originrio da Universidade (Federal doPar), que funcionava no antigo Colgio Visconde de Souza Franco. Era

    uma casa muito bonita que a estupidez de um Secretrio da Cultura derru-

    3 Historiador belenense.4 Francisco Paulo Mendes, crtico literrio e intelectual belenense.

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    bou, uma casa linda, uma das poucas que restavam da poca da bellepo-que. Derrubaram tudo. No incio, abriram cursos como o de pedagogia, decincias sociais, de histria... O primeiro professor de filosofia era da cadei-ra de histria da filosofia, no curso de pedagogia. Quem lecionava era o Da-niel Coelho da Souza. E o Daniel ficou impossibilitado de lecionar num de-terminado ano, e me chamou, e eu fui substitu-lo.

    Ento depois vieram as encomendas dos dois l ivros. O caso do (livro so-bre) Heidegger foi muito diferente. Eu conhecia o Heidegger por leiturastransversais. Eu achei que no era correto, no era uma coisa autntica es-crever alguma coisa sobre Heidegger sem conhecer alemo, sem poder lerem alemo. Ento, ao mesmo tempo em que eu comecei a reler o Heidegger

    eu tomei uma professora de alemo. Isso foi nos anos 70. Quem tinha me en-comendado isso, para uma coleo pequena que saiu durante algum tempo,alguns volumes s, foi o Silvano Santiago, que eu tinha conhecido em Parisem 60. Mas isto uma outra histria, a histria das minhas viagens. Na ver-dade, os assuntos pra mim se tornam importantes e eu no honro muitos osprazos, aprendi a honr-los mais pra c. Ento, eu ultrapassei todos os pra-zos. At que cheguei ao momento em que o livro ficou pronto e havia umprojeto da tica... foi ao tempo em que eu fui lecionar em Campinas e fizmuitos conhecimentos l; fui convidado pra ensinar no Instituto de Lingua-gem, pelo Antonio Candido, que abriu o Instituto (IEL-Unicamp). Nessapoca eu conheci muita gente e o livro foi retomado pela tica, e esse quevocs conhecem como Passagem para o Potico. Essa foi a coisa mais tra-balhosa que j fiz, em termos de dedicao. Isso porque fiquei muito tomado

    pelo assunto. Como tambm no caso da Clarice. Porque os primeiros artigosque tinham sido coligidos nesse volume editado em Manaus foram comple-tamente reformulados. Eu tinha dado uma verso muito existencialista paraa Clarice. Eu achei que no estava certo, e a reformulei tudo e resultou na-quele livro O Drama da Linguagem, que reformulao de um primeiroque eu havia publicado em So Paulo, Uma leitura de Clarice Lispector,numa coleo pequena que no durou muito. Ento, a vocs podem veruma oscilao entre a literatura e a filosofia, Clarice Lispector e ao mesmotempo Heidegger... oscilao essa que j vinha de muito tempo, e na qual eume encontro at hoje. Uma oscilao de pensamento... literatura e filosofia,procurando j, dentro de uma temtica determinada, ligar essas duas coi-sas; no nivelar, mas ligar, mostrar as correlaes, as oposies, os pontosde contato e de afastamento, etc..., o que gerou outros trabalhos...

    M.B. Como foi que o senhor comeou a se interessar pela filosofia

    do Heidegger? Historicamente como que isso apareceu na sua vida?

    BN Bem, a entra outro personagem. Eu dependo de personagens,sempre pessoas muito mais velhas do que eu. Por exemplo, pra concretizar

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    essa minha afirmativa: quando eu estava no Colgio Moderno, eu me ligueimuito ao Augusto Serra, que era o diretor. Conversvamos durante horas ehoras. Eu devia ser um menino muito presunoso... Devia ser muito falantetambm. E nessa poca eu publicava as tais confisses solitrias no jornal.O jornal era muito livre. Era o grande jornal que funcionava de manh, e detarde com um vespertino. O Augusto Serra era um grande amigo meu, e queme favoreceu bastante por me disponibilizar a biblioteca do Colgio Moder-no. Os livros eram quase todos em ingls e francs. Mas naquela poca ha-via gente lendo em francs e ingls. Havia alguma movimentao na biblio-teca. Isso era interessante. Era a biblioteca do Grmio Cvico do ColgioModerno, do qual eu era presidente. Eu tinha tambm um primo que tinha

    uma grande vocao para a filosofia, mas sua vocao era carregada de umadose grande de misticismo. Ele foi juiz federal no Amap, era intel igentssi-mo e resolveu contestar o Farias Brito, porque o Farias Brito tinha um livrochamado A verdade como regra das aes. Ento ele escreveu um livroque eu no consegui recuperar, que se chamava O amor como regra dasaes. Ele era um caboclo puro, com voz forte, de tenor. Quando eu saa doModerno eu ia sempre pra casa da me dele. Eram trs irmos: Ribamar,Levi e Silvio. O Silvio era catlico, o Levi era marxista o e Ribamar era ms-tico. Eram trs personalidades interessantssimas, viviam fora, nas comar-cas. O nico que vivia aqui era o Levi. Eu passava muitas manhs na casada me deles, porque eles tinham deixado uma biblioteca. E havia uns volu-mes lindos l, franceses encadernados: uma linda edio de O mundo como

    vontade e representao, de Schopenhauer e da Crtica da razo pura e Cr-tica da razo prtica de Kant. O meu primeiro contato com esses autores foil, nessa casa. Que ficava na Quintino Bocaiva e termina num capinzal.

    E.C. E foi esse primo que um dia lhe enviou um dia o Heidegger?

    BN Exatamente. O Ser e tempo, em tradio espanhola, da dcada de1950, que precedeu em muitos anos a edio francesa. Mais tarde ento que houve a leitura que fiz do Heidegger j em alemo para escrever o livro.O pensamento dele, pra que eu use o termo certo, me apaixonou. A lingua-gem, o modo de envolvimento da existncia, a noo mesma de existn-cia... tudo isso que correspondeu j a uma sada do campo religioso e queme levou filosofia, e me deu tambm uma compreenso antropolgica de

    religio, que eu pude associar a outros autores como Ernst Cassirer, um au-tor que eu usei muito para ensinar filosofia. O Heidegger tambm me deu arelao, muito permanente no meu pensamento, que a entre filosofia e po-esia. O papel da poesia em relao filosofia, questo que depois foi fecun-dada e realimentada pelo Merleau-Ponty.

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    M.B. O senhor foi aluno dele, no ?

    BN muito forte dizer que fui aluno. Porque era o Collge de Francee no Collge de France voc chega e se senta...

    E.C. E as conferncias dele?

    BN Assisti s conferncias de Merleau-Ponty, o que foi diferente por-que nesse tempo ele era professor regular da Sorbonne. Ele estava lecionan-do, dando cursos. Ele nunca passou para o Collge de France, porque per-deu na eleio para o Michel Foucault. Bom, outro captulo tambm oFoucault. Que tambm interessa talvez porque foi uma outra relao muitointeressante j intermediada pela Universidade (Federal do Par).

    E.C. Mas o que que o senhor guarda dessas aulas do Merleau-

    Ponty?

    BN Bom, o Merleau-Ponty que me interessou muito foi o Merleau-Pon-ty posterior, o de O Visvel e O Invisvel, mas comeando pela Fenomenolo-gia da Percepo. O que eu guardo principalmente a abordagem, que na-quele tempo era indita, numa poca de pleno domnio da filosofia daexistncia. Ento vem um professor e comea a falar de novo sobre filosofiada natureza, sobre o corpo, corpo prprio, darwinismo, neodarwinismo, otrabalho da evoluo, de adaptao... Isso tudo foi realmente uma segundaseduo para mim em relao primeira, ao Heidegger. Tanto que tenhofeito alguns trabalhos, que esto naquele Crivo de Papel,5 sobre essa gran-

    de separao entre ns e a natureza, do ponto de vista at da animalidade,separao com o mundo animal, com o mundo natural. Ns vivemos numacultura completa. Talvez o nosso pensamento tenha se afastado muito e ago-ra esteja se aproximando por intermdio do ecologismo e outros movimentosassim. Com os quais o Heidegger j tinha uma determinada afinidade.

    E.C. Ento, j que a gente tocou em Heidegger.... Bom, grande par-

    te do pensamento contemporneo uma crtica acirrada a Heidegger,

    considerado irracionalista, conservador. Como que o senhor se situa

    diante dessas crticas. Os crticos, por exemplo, do chamado ps-moder-

    nismo, sempre terminam na mesma crtica; e ao lado do Heidegger, o

    Nietzsche tambm criticado nos mesmos termos. Como , por exem-

    plo, o caso do Habermas, noDiscurso filosfico da modernidade.

    BN , h uma oposio muito grande ante ao Heidegger e eu achoque o que influiu muito foi a posio dele de adeso ao Nazismo, essa coisa

    5 Obra de Benedito Nunes (tica Editora, 1998)

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    da qual ele no se livrou a vida inteira. O que ter sido isso afinal de contas?Que dizer, ele aderiu plenamente, foi uma deciso intelectual, esclarecida,ou ele foi na onda? possvel admitir que um pensador v na onda? Isso, para mim, at hoje, uma coisa discutvel. A posio, por exemplo, daHannah Arendt... Ela foi ligada ao Heidegger; unha e carne, at no sentidoverdadeiro da palavra. Quando ela voltou (para a Alemanha), naquele tem-po muito ligada ao Jaspers, orientador dela, um homem que ela admiravamuito , os ataques ao Heidegger eram grandes, acirrados por causa do pro-cesso que tinha sido aberto. Ele, afinal foi depois indultado, mas ficou aque-la pergunta. E ela dizia sempre: deixem esse homem em paz. Ela foi visi-tar o Heidegger. Diz ela que tinha tambm queixas do porqu da atitude

    dele, mas foi visitar o Heidegger. Eles tiveram um encontro muito bom, se-gundo relato da prpria Hannah Arendt. Ento, era uma mulher extraordi-nria, sobretudo, pela carga de pensamento, com noes que ela bebeu emHeidegger, mas noes que s poderiam ter sido desenvolvidas depois dofastgio do pensamento heideggeriano. E apesar de tudo, esse pensamento uma etapa da nossa experincia do mundo. E, por exemplo, algo que mui-tos herdaram de Heidegger foi a crtica tecnologia.

    M.B. Aproveitando esse ponto, nesse ano que passou foi come-

    morado em diversas ocasies o centenrio de Adorno. E Adorno uma

    pessoa que foi um desses crticos principais de Heidegger. Estiveram

    de fato dos dois lados da trincheira. E, uma coisa que de vez em quan-

    do se levanta, um tema que eu gostaria que o senhor comentasse,

    que apesar disso, existiriam pontos de contato nas crticas que ambos

    fazem a cultura contempornea.

    BN Heidegger se aproxima muito do Marx, em alguns pontos, por in-termdio justamente disso que ele (Marx) chama de alienao, mas com ou-tra linguagem. Se aproxima realmente bastante do Marx isso. Ento, euacho que h uma afinidade de pensamento. Principalmente no que toca aexigncia da poesia, como uma espcie de frente contra a tcnica. Mas ocaminho do Adorno foi bem diferente. O Heidegger no tem essa noo devanguarda que, para Adorno, era como que a salvao da arte. Quer dizer,quanto mais a arte fosse desentendida pela burguesia, melhor para a arte.Bem, isso levou a certos caminhos que, muitas vezes, no so, digamos, ple-namente aceitveis. Levou-nos a uma grande msica, mas tambm levou a

    tentativa de um outro sistema, que o dodecafonismo, que eu acho que msica para msicos. Voc tem que ter a partitura na mo, conhecer a es-crita, no msica para mim, para quem conhece msica. Talvez isso sejauma grande limitao. Isso muito bem retratado por Thomas Mann, noDoutor Fausto, dizem que grande parte o Schnberg que est retratado l.

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    M.B. O senhor poderia desenvolver um pouco mais a questo da

    relao entre Heidegger e Marx que o senhor fez, partindo desse con-

    ceito de alienao? Por onde seria essa aproximao?

    BN A aproximao dele com o Marx precisamente num ponto. Vouter que precisar melhor isso. Mais explicitamente na questo da relao so-cial predominante. Em Heidegger a relao entre mim e os outros que sedaria por intermdio do topos que ele denomina das Man (a gente). Isso cor-responde ao que se chama de alienao no marxismo. A denominao que diferente. No Heidegger solicitude (citando a partir dePassagem para oPotico) ... que reala a permanente diferena insuprimvel de um em relaoaos outros, a distncia que os separa aumentando quanto mais se empenham

    em elimin-la. Por fora desse empenho os outros nos englobam subtraindo-nos a ns mesmos. O poder-ser prprio de cada qual se transfere aos outros,e, retornando a todos como potncia estranha e annima que os domina, co-loca oDasein sob o senhorio (Botmssigkeit) dos outros. Esse senhorio dosoutros justamente uma forma de alienao. O ser-em-comum que umanoo heideggeriana: o ser-si-mesmo alguma coisa que se conquista pas-sando pelo ser em comum estabiliza-se nesse poder annimo e erradio, im-pessoal e indefinido, atravs do qual se exerce o domnio subreptcio dos ou-tros, absorvendo o Dasein e determinando quem ele em si mesmo.... Tudoisso noo de alienao. Em sua preocupao com a mediania, opondo-sea toda exceo e originalidade, a gente, que exerce uma regulao nivelado-ra, o modo de ser pblico, a identidade cotidiana em que o Dasein se man-tm independentemente da cultura e do momento histrico.

    A diferena realmente em relao ao momento histrico. Para oHeidegger isso alguma coisa inerente condio humana, para empregarum termo da Hannah Arendt. E para Adorno ou Benjamin trata-se de umacondio histrica; a poca da alienao seria a poca de domnio mximoda burguesia solicitando ao mesmo tempo a atuao do proletariado, etc.Ento h uma correlao, e, como em toda a correlao h uma diferenagrande. Essa questo vai ser retomada depois sob o ngulo da tcnica j nofim da obra, onde se v que o extremo oposto da tcnica o que ele chamade poesia. Mas ele denomina poesia com o termo grego, piesis, que querdizer que alguma coisa que atua sobre vida, no s nos textos: dos textospassa para a vida tambm.

    M.B. O senhor falou ainda agora que o pensamento de Heidegger

    uma etapa da nossa experincia do mundo. O senhor pode explicitar me-lhor esse pensamento? O que o senhor quer dizer com essa afirmao?

    BN uma etapa da nossa experincia do mundo tal como vivemoshoje... e as geraes que nos precederam. uma experincia do homem namodernidade, quer se considere que a modernidade comece no sculo

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    XVIII ou no XIX. uma experincia do homem em novas condies de exis-tncia, com objetos fabricados, num mundo industrial... isso na linguagemde Marx seria tambm a ascenso do capitalismo, o seu auge. A reconstru-o do mundo tecnocrtico, dominado pela tcnica..., o mundo da mdia um mundo que nos forma e nos deforma ao mesmo tempo. Sem a mdia euno poderia ouvir msica. Muito curioso isso. Houve uma poca que as pes-soas (que queriam ouvir msica) tinham de saber msica ou de ir aos con-certos, que eram dados ou nas capelas ou nas casas dos nobres, etc.... Issoa o lado, digamos, positivo da mdia: eu tenho meus discos em casa eouo quando quero. Mas ao mesmo tempo existe uma srie de outros as-pectos, por exemplo, da ausncia do instrumento, do musicista, aspectos

    que me colocam numa relao com o outro que o msico. A diferena en-tre ouvir a msica no disco e ver o vdeo grande.

    M.B. Muito da msica ocidental, toda concepo dela esteve ba-

    seada, no meu entender, na situao do concerto. O concerto uma

    coisa que determinou muita coisa na prpria estrutura da msica e

    hoje o concerto desapareceu praticamente. At o fato de a gente ouvir

    um disco, uma interpretao, a gente ouve sempre a mesma coisa. No

    concerto o mesmo msico toca a mesma coisa de modo diferente. Isso

    d uma diferena grande...

    BN Uma diferena entre intrpretes tambm. A Guiomar Novaes tocadiferente do Kempff...

    M.B. Professor, como o senhor v a filosofia na cultura contem-

    pornea, ou seja, que papel ela ainda desempenha, ou deveria desem-

    penhar, e que papel ela ainda pode desempenhar?

    BN Isso uma exigncia platnica, que a filosofia desempenhe umpapel. A filosofia deve ser pensada em seu prprio ponto de vista. Na verda-de a filosofia nesse ponto se parece muito com a poesia. Ela sempre ficaabaixo, alguma coisa que no se integra plenamente ao pensamento co-mum. Tanto a poesia como a filosofa. E ainda mais quando a filosofia seaproxima da poesia. Essa aproximao no somente tpica, determinada, uma aproximao que vem de circunstncias histricas. no momentoem que a metafsica perde a sua hegemonia, nesse momento que comeaa haver a valorizao do corpo, da palavra, da linguagem.

    M.B. Ainda nesse mesmo tpico, ainda que a filosofia no deva

    ter nenhuma atuao que v alm dela mesma, de qualquer forma o

    momento histrico coloca certas tarefas a ela. Quer dizer, ela est em

    contato com o momento, pois est pensando coisas que so trazidas

    tona pelo momento. Minha pergunta a seguinte: nesse momento em

    que vivemos, em que aparecem tantos problemas que pensvamos

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    que j estavam superados, como a possibilidade de uma conflagrao

    internacional,6 e em que aparecem problemas que nunca apareceram,

    como a perspectiva, em mdio prazo, de uma catstrofe ecolgica, am-

    biental, etc., o senhor reconhece algum problema que seja prprio do

    nosso tempo e alguma tarefa que esteja colocada ao pensamento filo-

    sfico nesse tempo?

    BN Uma tarefa prpria ao pensamento filosfico justamente defen-der-se desse crculo das coisas prementes da poca. Defender-se da urgn-cia das solues imediatistas. Defender-se dos sistemas de aplicao dema-siadamente funcional. Ou seja, o pensamento filosfico tem que defender oespao de liberdade, no sentido prprio da palavra, para o homem pensar a

    si mesmo, pensar a sua circunstncia, pensar-se independentemente dastarefas. Essa a grande problemtica tambm do Heidegger, que deixouaberta a questo da moral. Perguntavam porque que o senhor nunca escre-veu uma tica, onde est sua tica? Eu acho que no era da perspectivadele escrever uma tica. Existe um capitulo na introduo de Ser e Tempoque eu acho muito interessante que o capitulo Destruio da histr ia e daontologia. Esta destruio da histria e da ontologia atingiu muitas coisas,principalmente a formao da tica. Qual a ontologia da tica? No podehaver uma ontologia da tica porque se houver uma ontologia da tica exis-te uma forma de ser. E a tica fica nessa oscilao entre os mores romano eo thos grego. O thos grego sempre a necessidade de ultrapassar osmo-res, e fazer algo para que o homem seja o que ele . Mas o que o homem ,isso ele pode saber s na medida em que haja a um problema da ao, de

    onde deriva Hannah Arendt. Ela foi um dos poucos pensadores que colocou,de uma maneira corajosa, o problema da ao. Essa talvez seja a grande fal-ta do Heidegger, mas foi estimulada por essa filosofia que a Hannah Arendtchegou a esse ponto. Quais so as condies da ao num mundo como ode hoje, completamente cercado pela propaganda, pela mdia, pelas inven-es tecnolgicas. Um mundo que parece voltar a certas formas primitivasde conduta. Como essas agremiaes religiosas, pessoas que se matam en-tre si, outras que se emasculam...

    E.C. Bom, mas o senhor falou do Merleau-Ponty, depois falou do

    Ricoeur e depois falou do Foucault. Vamos retomar um pouco como

    que foi sua relao com Ricoeur e sua relao com Foucault.

    BN Veja s, eu tinha a pretenso de fazer uma tese na primeira vez

    que eu fui, em1960, para a Europa. Eu tinha muito pouco tempo, mas eu fiz

    6 O entrevistador referia-se tenso internacional ocasionada pela guerra do Iraque, iniciada haviameses.

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    um esforo de uma tese, e tive a ousadia de pedir uma entrevista com o Ri-coeur. Ele morava num lugar muito bonito fora de Paris, e eu me lembro ca-minhando com ele por um bosque belssimo. A casa dele era pequena edava para esse bosque. quase uma impresso paradisaca que eu tenhodesse bosque to lindo com rvores to grandes. E foi mais ou menos na-quela poca que houve aquele caso da bomba voadora espi dos EUA quefoi parar na Rssia e que foi derrubada pelos russos, e houve a partir distouma onda de que havia a possibilidade de uma conflagrao mundial, e nsconversamos sobre isso. Isso foi em 1960. E depois teve aquele incidentecom ele durante os acontecimentos de maio de 1968, e ele comeou a irpara os EUA, e ento eu perdi completamente o contato com ele. Quando

    voltei Frana ele j estava nesse vai e vem entre Frana e EUA.

    E.C. Mas o senhor leu bastante o Ricoeur.

    BN Muito. J escrevi alguma coisa baseada nele, mas no publicadaem livros, est em publicaes, anais de congressos, etc., Especialmenteum evento que houve na UERJ, onde apresentei um trabalho chamado nar-rativa histrica e narrativa ficcional, baseado no Ricoeur.

    E.C. E o Foucault?

    BN O Foucault... tudo comeou com um conhecimento muito rpido.Ele apareceu e ficou na casa do Machado Coelho, na Praa da Repblica.Ento, Machado Coelho mandou me chamar. Fui l e perguntei se ele no

    queria fazer uma palestra na Universidade (Federal do Par). Ele me disseagora no, estou de frias, vou para o Maraj, mas ano que vem eu possofazer. Bom, uma promessa..., ns brasileiros sabemos como so as nossaspromessas ... No ano seguinte o agente consular da Frana me telefonou di-zendo que o Foucault estava vindo fazer a tal palestra que ele prometeu. Eleficou hospedado no Hotel Gro-Par e durante uma semana e ele fez essaspalestras. Naquela poca era o regime militar ainda, e, justamente para queas conferncias fossem proveitosas eu peguei a turma da filosofia e fiz umasrie de exposies sobre o Foucault, sobre As palavras e as Coisas, e ou-tros trabalhos (...) fizemos um levantamento completo, s vezes at fora daUniversidade. Ento, para assegurar a presena de pessoas que tinham umconhecimento de francs e que estavam manifestamente interessadas, eufiz uma relao que contava sessenta assistentes. Aquela lista foi uma es-

    pcie de marco de fidelidade, de que as pessoas iam comparecer e etc.,Foucault foi extraordinrio, como sempre ele era muito brilhante. Eu fazia aintermediao, as pessoas faziam a perguntas, eu traduzia, ele dava as res-postas e eu passava para a assistncia. Mas o episdio final no foi a. Elefoi embora e tal... Tivemos um jantar de despedida em um restaurante (...)

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    Ainda havia uma moa paulista que nos acompanhava sempre, e todas asfitas gravadas das palestras do Foucault foram roubadas do carro dela. Me-nos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo dire-tor, cujo nome no vou mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo arelao dos freqentadores. Eu disse eu no dou a relao. Sa de l e fuidiretamente falar com o reitor. Ele foi muito correto, e at corajoso. Ele medisse para no dar a lista. Ento foi isso. Havia uma vigilncia at nesseponto. No era uma inveno dizer que o SNI estava infiltrado...

    T Mas tambm tem o passeio l no Mara,7 que tem as clebres

    fotografias...

    BN Ah, tem as fotografias, verdade. O Foucault no Mara. Nadadortremendo, ele se metia nas ondas. Era atltico. Fomos num bar muito vaga-bundo, naquele tempo no tinha nem casa no Mara. Tomamos banho l edepois fomos almoar num barzinho na praia.

    E.C. E, para finalizar a conversa sobre Foucault, o que o senhor

    diria ser a grande contribuio de Foucault para o pensamento con-

    temporneo?

    BN justamente na parte da relao entreLes mots et les choses (en-tre as palavras e as coisas). Ele levou essa relao at onde ela no tinhasido levada. E a relao tambm com o sexo. muito importante o fato deele ter firmado uma noo de positividade, como marca de cada poca, com

    seu regime de pensamento, que ao mesmo tempo regime de linguagem.Isso me parece uma contribuio muito grande. E depois, nos ltimos li-vros, a teoria da sexualidade, que ele comeou a expor aqui. O que ele ex-ps aqui foi justamente a parte inicial dessa teoria da sexualidade. No seise chegou a concluir, mas publicou trs volumes, ligando ao conhecimentode si mesmo, etc., E parece que seguiu esse ponto de vista porque Merleau-Ponty estava estudando a respeito do corpo. Essa noo de corpo pr-prio... que o Heidegger vai retomar num certo momento de sua vida, comesse Medard Boss.8 Ele comea a falar muito na noo do corpo prprio, queno est muito desenvolvido em O ser e Tempo, s uma pequena parce-la de pensamento, que ele comea a desenvolver aqui, nos seminrios deZollikon. Ento o prprio pensamento heideggeriano ficou em muitos pon-tos, um pensamento tambm em aberto.

    7 Praia situada na ilha do Mosqueiro, regio metropolitana de Belm.8 Psicoterapeuta suo, amigo e seguidor de Heidegger, editor dos textos dos seminrios heidegge-

    rianos de Zollikon.

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    M.B. O senhor v nessa nfase dada pelo Heidegger e pelo Mer-

    leau-Ponty no corpo, ou seja, o centramento que Merleau-Ponty faz, na

    filosofia dele, na questo do corpo, com essa noo do ser em situao,

    etc... O senhor v alguma ligao disso com Schopenhauer, com o fato

    de o corpo aparecer no O mundo como vontade e representao

    como porta de entrada do conhecimento do em si? Porque nesse livro

    o corpo desempenha um papel importante: se no fosse pelo corpo

    no se teria nenhum acesso ao em si, vontade

    BN Sim, sem duvida que h essa correlao. E no s isso em Scho-penhauer, mas tambm o incio da valorizao da poesia e da arte, colocada

    ao mesmo nvel do pensamento filosfico, ou em um dilogo com o pensa-mento filosfico.

    M.B. Ento, nesse aspecto, pode-se traar uma linha que vai de

    Schopenhauer at Merleau-Ponty....?

    Sim, uma linha que passa primeiro pelo Schelling. De Schopenhauer aMerleau-Ponty e depois um salto para Hannah Arendt e depois para um ou-tro pensador que est aparecendo agora e que est sendo muito publicadona Alemanha, Peter Sloterdijk, que uma reviso do pensamento heidegge-riano. O primeiro trabalho dele foi uma crtica a Heidegger, uma crtica mui-to bem feita, mas ao mesmo tempo aderindo obra e se distanciando dela.Enfim, por isso que eu disse que o Heidegger uma entrada ao pensamento

    de nossa poca, com todos seus posicionamentos, com todas suas oposi-es e contradies.

    T Para encerrar, hoje em dia, nesse cenrio filosfico mundial,

    o que o senhor destaca em termos de um pensamento vigoroso, de

    uma escola filosfica que esteja agora ainda sendo desenvolvida, al-

    guma coisa que o senhor destacaria como sendo especialmente im-

    portante nesse momento.

    BN Um desenvolvimento mais ou menos de escola o da hermenu-tica. Depois disso osmatre penser, os chamados pensadores, eles vo ra-rear. Voc no encontra ningum da estatura do Foucault ou de Gadamer...

    T Como o senhor v o Habermas nesse cenrio mundial da filo-

    sofia. Em que lugar o senhor o coloca?

    BN Eu no li muito o Habermas. Eu li livro sobre a modernidade que indispensvel. E acho que justamente ele fica nesse mesmo rumo deAdorno, Benjamim e de outros que foram crticos da modernidade.