benedito josÉ tobias: impressÕes do pouco que se sabe...

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BENEDITO JOSÉ TOBIAS: IMPRESSÕES DO POUCO QUE SE SABE BENEDITO JOSÉ TOBIAS: IMPRESSIONS OF THE LITTLE WE KNOW Carolina Cerqueira Corrêa / UFJF RESUMO O presente artigo busca resgatar e pensar a produção do artista paulistano Benedito José Tobias. A partir de alguns de seus retratos, produzidos entre 1930 e 1960, é possível refletir sobre a presença do negro artista no Brasil e a representação da negritude por mãos negras. O artigo procura analisar as obras transcendendo a narrativa restrita que apaga as existências negras ou as restringe a um plano secundário. PALAVRAS-CHAVE Pintura; retratos; artista negro; representação ABSTRACT The article seeks to rescue and think about the production of the artist from São Paulo, Benedito José Tobias. Through some of his portraits, produced between 1930 and 1960, it is possible to perceive the presence of the black artist in Brazil and the representation of blackness by black hands. The article seeks to analyze the works transcending the restricted narrative that erases black existences or restricts them to the background. KEYWORDS Painting; portraits; black artist; representation

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BENEDITO JOSÉ TOBIAS: IMPRESSÕES DO POUCO QUE SE SABE

BENEDITO JOSÉ TOBIAS: IMPRESSIONS OF THE LITTLE WE KNOW

Carolina Cerqueira Corrêa / UFJF

RESUMO O presente artigo busca resgatar e pensar a produção do artista paulistano Benedito José Tobias. A partir de alguns de seus retratos, produzidos entre 1930 e 1960, é possível refletir sobre a presença do negro artista no Brasil e a representação da negritude por mãos negras. O artigo procura analisar as obras transcendendo a narrativa restrita que apaga as existências negras ou as restringe a um plano secundário. PALAVRAS-CHAVE Pintura; retratos; artista negro; representação ABSTRACT

The article seeks to rescue and think about the production of the artist from São Paulo, Benedito José Tobias. Through some of his portraits, produced between 1930 and 1960, it is possible to perceive the presence of the black artist in Brazil and the representation of blackness by black hands. The article seeks to analyze the works transcending the restricted narrative that erases black existences or restricts them to the background. KEYWORDS Painting; portraits; black artist; representation

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CORRÊA, Carolina Cerqueira. Benedito José Tobias: impressões do pouco que se sabe, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p.31-42.

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Pouco se sabe sobre como Benedito José Tobias (B. J. Tobias) começou sua obra

como pintor e desenhista. Nasceu em São Paulo em 1894, apenas seis anos após a

Lei Imperial n.º 3.353, 13 de maio de 1888, que extinguiu oficialmente a escravidão

no Brasil. Sua família possuía alguma posse, dizem ser neto bastardo do Brigadeiro

Rafael Tobias de Aguiar (ARAÚJO, 2010, p.47). Não se sabe o que teria marcado

seu início de carreira. Seus primeiros quadros tratam de temas que desconhecemos

e suas motivações poéticas, seus recursos materiais, possibilidades de linguagem,

fatura e plasticidade ainda são pouco pesquisados. Segundo Emanoel Araújo esse

fato não é uma especificidade de Benedito:

[...] Não se pode dizer que a vigorosa contribuição do negro à formação de uma cultura legitimamente brasileira não tenha interessado aos nossos estudiosos. Essas pesquisas, todavia, têm praticamente se limitado à escravidão propriamente dita e à herança negra encontrada no sincretismo, na música, no idioma, na literatura e nos costumes. As artes plásticas sempre foram relegadas a plano secundário, limitando-se praticamente a trabalhos isolados e incompletos [...]. (ARAÚJO, 1988, p.9)

Sem pretender dividir a produção de Tobias em ciclos ou fases, atentamos que o

artista pintou paisagem e natureza-morta, dois temas relevantes no exercício

pictórico, na prática do modelado, da cor e do efeito entre os planos, porém o que

chama atenção para suas ideias como artista são seus retratos.

No entanto, dentro desse contexto impreciso, sabemos que o período de maior

produção na carreira do pintor paulista foi entre as décadas de 1930 e 1940. A

artista, pesquisadora e professora Renata Felinto dos Santos questiona quanto ao

por quê de, na primeira metade do século XX, artistas afrodescendentes, em sua

maioria, serem categorizados como “populares” (SANTOS, 2016, p.130). Entre

“populares” e “eruditos”, Tobias é, como uma excessão, categorizado como

“erudito”. Em um artigo sobre a arte afro-brasileira, o antropólogo e professor

Kabenguele Munanga aponta sobre o mesmo período:

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CORRÊA, Carolina Cerqueira. Benedito José Tobias: impressões do pouco que se sabe, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p.31-42.

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A partir das décadas de 30 e 40, a arte afro-brasileira, [anteriormente] reduzida ao espaço das casas de culto, começa a sair da clandestinidade. Seus artistas abandonam o anonimato e alguns deles começam a trabalhar dentro do conceito das chamadas artes “popular” e “primitiva”, encorajados pelo movimento modernista e pela busca do nacionalismo. [...] A partir dessa época, a arte afro-brasileira, então conhecida apenas como arte religiosa, ritual, comunitária e utilitária, começa a ampliar seu campo de atuação. Seus artistas, saindo do anonimato, começam a produzir uma arte não-étnica, com projeção na linguagem plástica universal, embora conservando vínculos identitários com suas raízes. (MUNANGA, 2000, p.105)

Com as informação sobre Benedito obtidas até o momento, não é conhecida a

existência de vínculos ou pesquisa relacionada com uma linguagem estética africana

ou afro-brasileira, no entanto, como produziu durante o período modernista, muito

provavelmente, Benedito tinha consciência do projeto que presumia o acesso do

Brasil ao mundo moderno, através da mediação da brasilidade, implicando um

conhecimento aprofundado da realidade do país e a descoberta de sua própria

identidade e especificidade (FORTE, 2009, p.27). Mesmo preservando uma

inspiração acadêmica em suas telas (SANTOS, 2016, p.74), as questões dos

tempos modernos se mostram, em certa medida, nas pinturas de Tobias: a maestria

técnica, que segundo o olhar do artista plástico baiano Emanoel Araújo, revela certa

influência expressionista, e a interpretação do país no que lhe era específico.

Mas o pintor encontra espaço? Certamente, não é razoável classificar Tobias. Só

conhecendo a obra, de forma aprofundada, e o perfil da história de vida de um

artista é que podemos nos arriscar na tarefa de classificá-lo. Na realidade, o esforço

aqui é outro.

Benedito se dedicou ao exercício de retratar. Foi um dos primeiros pintores negros

com algum reconhecimento e produziu, quase exclusivamentne, retratos de negros e

negras. O que certamente era do seu interesse – podendo até parecer visualmente

monótono, como figuras isoladas em fundos planos –, na verdade, materializavam

um interesse complexo, indo além de simples retorno às origens e atributos

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distintivamente brasileiros. Aos seus semelhantes o sentimento é que as suas obras

pictóricas abraçam as características que conectam os retratados com o que eles

são enquanto indivíduos e também enquanto um grupo. Possibilitando o encontro de

semelhanças e não de caricaturas. Suas figuras não necessariamente refletem

elementos populares da maneira como fez alguns de seus contemporâneos, mas

Tobias retrata corpos racializados e constrói uma perspectiva em primeira pessoa,

ele não retrata o outro.

Em seu Retrato de Mulher (Figura 1), obra feita em aquarela sobre papel, com

paleta de cores análogas, apresenta uma mulher jovem, rosto com bela proporção

facial, olhos fechados, pensativa com turbante sobre seus cabelos. Essa figura é

delicadamente materializada, humanizada, recortada habilidosamente no fundo cru.

É humana. Tem alma. Cria indivíduo naquela que é ícone exclusivo do bloco servil.

A cor, a tinta, a madeira, o papel nas mãos de B. J. Tobias não eram para

representar a decoração marrom ou preta em segundo plano, mas retratar a mulher

que não precisa de adjetivo cromático para determinar o motivo de sua existência,

uma fuga de contingências externas, de meio e de tempo.

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CORRÊA, Carolina Cerqueira. Benedito José Tobias: impressões do pouco que se sabe, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p.31-42.

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Figura 1. Benedito José Tobias, [Retrato de Mulher], circa 1930 e 1940. Aquarela sobre papel, 58,2 x 48 cm. Fonte: Acervo digital Museu Afro Brasil. Disponível em:

http://www.museuafrobrasil.org.br/acervo-digital/acervo Acesso em: 15 de abr. 2019.

O artista não conquistou o mundo, apesar dos prêmios que ganhou no Salão

Paulista de Belas Artes (Prêmio Prefeitura de São Paulo em 1935, 1954 e 1958,

Pequena Medalha de Prata – Pintura em 1935, Prêmio Valentim Amaral em 1961 e

Prêmio Ilde Brande Diniz em 1962)1 do qual participou em várias edições (1934,

1935, 1937,1940, 1954, 1958, 1961 e 1962). Também foi um dos membros da

Comissão Organizadora do mesmo Salão em 19602, ano que recebeu a Medalha

Cultural Comemorativa do Jubileu de Prata3, sua obra permaneceu por um longo

período quase que ignorada. É preciso mais do artista do que apenas a técnica e a

composição entre cores e planos para conseguir, dentro dos limites do seu tempo,

atingir a consagração pela unidade artística e criadora.

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Sobre ele, disse [o artista] José M. Silva Neves (1896-?): “Numa vida inquieta e estabanada, desperdiça seu talento e a fortuna em imóveis e terrenos que herdara dos pais, passando então a viver exclusivamente de sua arte. Nessa quadra de sua existência, sentiu toda a dolorosa beleza da vida. Sentindo as harmonias do pobre, do barato, a beleza dos atos vulgares, conhecendo as pequenas e as grandes misérias, olhava tudo com olhar compassivo, tendo pelas fraquezas dos outros suma tolerância sem igual. Estava embriagado com o licor da vida. Mas a pintura era sua preocupação dominante. Por ela sofreu humilhações e duras desilusões.” (ARAÚJO, 2008)

Dizem que a pintura era seu pensamento constante e por ela sagrificou e gastou

toda sua herança. De onde veio as desilusões e humilhações? Da arte? Da pintura?

De suas circunstâncias? Ao lado da construção de uma composição de um retrato,

José Tobias precisava penetrar e compreender a densidade constante que separa

corpos e corpos, corpos e objetos. Dentro de pequenas telas ele criou figuras, que

podem ser idealizações, mas não são acessórios, pelo contrário, contribuem para

colocar no centro aqueles que carregam a sombra do esquecimento e

desaparecimento constantes. Como na pintura Homem Negro Idoso com Cachimbo

(Figura 2), óleo sobre madeira, o artista integra e eleva o homem retratado à

dignidade pela arte, transcendendo a condição de despersonalização e objetificação.

O valor extra-plástico surge pelo conhecimento, através da experiência vivida pela

cor da pele, que é comum ao artista e ao representado, mesmo que a intenção não

fosse iminente. Assim como no Retrato de Mulher, a obra pictórica se restringe à

figura do indivíduo pintado, o fundo é cor e não arrasta a figura de volta à realidade

de uma narrativa delimitada. Terra e trabalho.

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CORRÊA, Carolina Cerqueira. Benedito José Tobias: impressões do pouco que se sabe, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p.31-42.

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Figura 2. Benedito José Tobias, Homem Negro Idoso com Cachimbo, circa 1930 e 1940. Óleo sobre madeira, 33,5 x 22,5 cm. Fonte: Coleção particular.

Certos detalhes descritivos não podem passar despercebidos, já que eles nos levam

a um novo imaginário. Em outro retrato (Figura 3), similarmente com paleta de cores

análogas, óleo sobre madeira e de título desconhecido, uma mulher com brincos nas

orelhas, um belo sorriso no rosto acompanhado pelo brilho nos olhos, cabelos

crespos, exibindo sua encantadora tonalidade retinta. Com naturalidade e traços

distintivos, a pintura concretiza um signo que celebra de forma sensível uma jovem

moça. O espaço pictórico tem pouca profundiade e é dominado pela figura. O

espectador se vê forçado a confrontar e conversar com a figura pintada, ao mesmo

tempo que a personagem do quadro tem seus olhos e atenção voltados para alguma

outra atividade, talvez convidando quem observa a experimentar o mundo para além

de suas fronteiras.

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Quando nos aproximamos da obra de Benedito podemos nos perguntar: Se confirma

a negritude como servil e passiva ou há um olhar crítico que vem de um

posicionamento diferente a partir do qual a negritude é apreciada, experimentada e

representada? Gostaria de pegar emprestadas as palavras do historiador e

professor Kleber Amancio em comentário sobre retratos produzidos pelo pintor

Arthur Timotheo da Costa (1882-1822), para descrever aqueles feitos por José

Tobias:

[...] telas preocupadas em nos introduzir a humanidade das personagens. [...] São obras que educam os observadores no museu, na maioria das vezes brancos, que toparem com essas figuras numa exposição. Algo banal? Talvez em outro contexto em outra sociedade. O Brasil é um país que desde tempos imemoriais costuma tratar pessoas de pele escura como propriedade/coisa e (ou) como ameaça. (AMANCIO, 2016, p.127)

Como percebeu Emanuel Araújo, “Tobias revela um refinado sentido de observação

ao dedicar-se de forma quase exclusiva à representação de negros [...]” (2010, p.47)

e, seguindo sua observação, somos levados a confrontar padrões de representação

presentes nas pinturas do mesmo período, nos perguntando: Quem está sendo

representado e como está sendo representado? Quem está produzindo e por que

está produzindo?

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Figura 3. Benedito José Tobias, título desconhecido, circa 1930 e 1960. Óleo sobre madeira maciça, 35 x 30 cm. Fonte: Acervo digital Museu Afro Brasil. Disponível em:

http://www.museuafrobrasil.org.br/acervo-digital/acervo Acesso em: 15 de abr. 2019.

O negro produz e a produção de Tobias chama a atenção por também representar

criticamente a condição social das pessoas por ele retratadas. Cria narrativa no

sentido de que “a arte deveria mostrar a paisagem, o povo e a cultura brasileira”

(MUSEU AFRO BRASIL, 2017, p.10). Em Porta da Policlínica (Figura 4), óleo sobre

tela de 1937, o título logo nos ajuda a identificar mais precisamente a cena. As

figuras estão sentadas em uma escada de tons frios. A mãe e dois filhos aguardam

longamente, são duros os desgostos. O catálogo A Nova Mão Afro-brasileira nas

Artes Visuais do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil, nos lança uma pergunta

em relação a essa obra de B. J. Tobias: “É possível relacionar a cena representada

com o momento atual? De que forma?” (2017, p.11). A obra apresenta em primeiro

plano a materialidade plástica de um grupo, aparência estática de longa espera em

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meio a composição. A luz pictórica ilumina a mãe em seu olhar perdido com um

bebê no colo. Mais ao lado, na sombra à esquerda, outra criança recostada ao seu

ombro, dormindo. O quadro de 95 x 74,5 cm é familiar, reconstrói uma cena de

outrora que se repete ainda hoje. Azuis, cinzas, branco, marrons, amarelo,

vermelho. Dentro desta escala cromática o artista expressa a existência da humilde

família. O tema desse quadro nos lembra da desigualdade como legado da

escravidão, tão específico e tão enraizado na sociedade brasileira.

Figura 4. Benedito José Tobias, Porta da Policlínica, circa 1930 e 1940. Óleo sobre tela, 95 x 74,5 cm. Fonte: Acervo digital Museu Afro Brasil. Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/acervo-

digital/acervo Acesso em: 15 de abr. 2019.

Conclusão

Retratos de negros e negras brasileiros, que não são, necessariamente,

extraordinários como o Intrépido Simão4, são raros na produção de pinturas no

Brasil, ainda mais raros quando esses indivíduos são retratados por mãos negras.

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Mesmo não identificando suas figuras, Tobias lhes deu a possibilidade de

permanencia pela arte. Seu pensamento pictórico está vinculado às suas raízes

brasileiras. Cria espelhos para o futuro afro-brasileiro, complexificando uma

existência negra narrada muitas vezes de maneira limitada, repetitiva e desgastada

por uma perspectiva unilateral euro-brasileira.

As impressões das ausências na produção sobre Benedito encontram estreita

afinidade na elaboração de análises sobre a arte afro-braseileira. Kabenguele

Munanga ao escrever sobre o que poderia ser a arte do segmento étnico que

considera um dos mais excluídos no Brasil, registra que:

Faço essas reflexões não para esconder nossas limitações, que são verdadeiras, mas sim para suscitar críticas construtivas capazes de enriquecer o debate das idéias sobre o conteúdo e a substância da arte afro-brasileira e a importância de sua contribuição na construção da identidade nacional brasileira. (MUNANGA, 2000, p.109)

A temática racial modela uma dinâmica de complexidade de relações multilaterais,

que repercutem umas sobre as outras. O que é valido de ser retratado por uns não o

é para outros. Os retratos produzidos por Tobias transformam em espetáculo

empolgante a simples visão de homens e mulheres, jovens e idosos, em razão de

que podem ser encontrados na brecha entre o sacrifício escravo idealizado e a

herança africana simplificada. E é pela brecha, por onde passou do esquecimento

ao interesse afroresistente, que o indivíduo completo invade a sua arte. E não

poderia ser esse o objeto de sua obra?

Notas

1 B. J. Tobias. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa259517/b-j-tobias>. Acesso em: 19 de Abr. 2019. Verbete da Enciclopédia. 2 O ESTADO DE S. PAULO: PÁGINAS DA EDIÇÃO DE 25 DE Agosto DE 1960 - PAG. 7 3 “Em solenidade realizada ontem, em seu gabinete o secretário do Governo, sr. Marcio Porto, entregou a Medalha Cultural Comemorativa do Jubileu de Prata do Salão Paulista de Belas-Artes aos srs. Carlos A. Gomes Cardim Filho, Orlando Tarquinio, Luiz Morrone, João Del Nero, B. J. Tobias, major João de Siqueira Campos e Persio Ribeiro Porto.” O ESTADO DE S. PAULO: PÁGINAS DA EDIÇÃO DE 08 DE Novembro DE 1960 - PAG. 17 4 Retrato do intrépido marinheiro Simão, carvoeiro do vapor Pernambucana do pintor José Corrêa de Lima de cerca de 1853.

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Referências

AMANCIO, K. A. O. Reflexões sobre a pintura de Arthur Timotheo da Costa. 2016. 244 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.

ARAÚJO, Emanoel (org.). A Mão Afro-Brasileira: Significado da Contribuição Artística e Histórica (catálogo exposição). São Paulo: Tenenge, 1988.

______. (org.). A Mão Afro-brasileira: Significado da Contribuição Artística e Histórica (catálogo de exposição). 2.ed. revista e ampliada – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010. 2v.

______. Negros pintores. Revista Arquitextos, São Paulo, ano 9, set. 2008. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.100/107. Acesso em: 19 de Abr. 2019.

MUNANGA, Kabengele. Arte Afro-brasileira: o que é afinal? In: Mostra do Redescobrimento: Arte Afro-brasileira. Nelson Aguilar (org.): Fundação Bienal de São Paulo. São Paulo: Associação Brasil 500 anos. Artes Visuais, 2000.

MUSEU AFRO BRASIL. A Mão Afro-brasileira nas Artes Visuais 2. São Paulo, 2017. 16 p. Núcleo de Educação Museu Afro Brasil. Catálogo exposição permanete.

Carolina Cerqueira Corrêa

Carolina Cerqueira Corrêa é artista visual e pesquisadora. Graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mestre em Belas Artes pela School of Arts da University of the Witwatersrand, Joanesburgo, África do Sul. Atualmente, doutoranda em Artes, Cultura e Linguagens pela UFJF. Sua produção é composta dos resultados de um processo artístico de pesquisa baseado em questões de identidade, raça e pertencimento. Contato: [email protected].