benedetti. primavera num espelho partido mario benedetti

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Mario Benedetti

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  • Crditos Mario Benedettic/o Guillermo Schavelzon & Asoc. Agencia [email protected] os direitos desta edio reservados Editora Objetiva Ltda.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

    Ttulo originalPrimavera con una esquina rota

    CapaAndrea Vilela de Almeida

    Imagem de capaArthur Tress / Photonica / Getty Images

    Preparao de textoElisabeth Xavier de Arajo

    RevisoTamara SenderLucas Bandeira de MeloAna Kronemberger

    Converso para e-bookAbreus System Ltda.

  • CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJB398pBenedetti, MarioPrimavera num espelho partido [recurso eletrnico] / Mario Benedetti ; traduo ElianaAguiar. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2011.recurso digitalTraduo de: Primavera com una esquina rotaFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web176p. ISBN 978-85-7962-104-8 (recurso eletrnico)1. Romance uruguaio. 2. Livros eletrnicos. I. Aguiar, Eliana. II. Ttulo.11-5370. CDD: 868.993953CDU: 821.134.2(899)-3

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  • Sumrio

    CapaFolha de RostoCrditosDedicatriaIntramuros (Esta noite estou s)Feridos e contundidos (Fatos polticos)Dom Rafael (Derrota e rota)Exlios (Cavalo verde)Beatriz (As estaes)Intramuros (Como andam seus fantasmas?)O outro (nica testemunha)Exlios (Convite cordial)Feridos e contundidos (Uma ou duas paisagens)Dom Rafael (Uma culpa estranha)Intramuros (O rio)Beatriz (Os arranha-cus)Exlios (Vinha da Austrlia)O outro (Querer, poder etc.)Dom Rafael (Com a ajuda de Deus)Feridos e contundidos (Um medo terrvel)Intramuros (O complementar)Exlios (Um homem num saguo)Beatriz (Este pas)Feridos e contundidos (Sonhar acordada)Dom Rafael (Loucos lindos e feios)

  • Exlios (A solido imvel)O outro (Titular e suplente)Intramuros (O balnerio)Beatriz (Uma palavra enorme)Exlios (Penltima morada)Feridos e contundidos (Verdade e prorrogao)Dom Rafael (Notcias de Emilio)O outro (Embasbacado e tudo)Beatriz (A poluio)Exlios (A acstica de Epidauro)Intramuros (Uma mera possibilidade)Feridos e contundidos (O adormecido)O outro (Sombras e meias-luzes)Exlios (Adeus e boas-vindas)Dom Rafael (Um pas chamado Lydia)Beatriz (A anistia)O outro (Use o corpo)Feridos e contundidos (Merda de vida)Exlios (Os orgulhosos de Alamar)Dom Rafael (Remover os escombros)Extramuros (Fasten seat belt)Beatriz (Os aeroportos)O outro (Por enquanto improvisar)Extramuros (Arrivals Arrives Chegadas)

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  • Dedicatria memria de meu pai (1897-1971)que foi qumico e boa gente.

  • Intramuros (Esta noite estou s)

    Esta noite estou s. Meu companheiro (algum dia voc saber seu nome)est na enfermaria. boa gente, mas de vez em quando no to mauficar sozinho. Posso refletir melhor. No preciso armar um biombo parapensar em voc. Voc vai dizer que quatro anos, cinco meses e catorzedias tempo demais para se pensar. E tem razo. Mas no tempo demaispara pensar em voc. Aproveito para escrever porque h lua. E a luasempre me tranquiliza, como um blsamo. Alm do mais, ilumina,mesmo que precariamente, o papel, e isso tem l a sua importnciaporque no temos luz eltrica a essa hora. Nos dois primeiros anos nohavia nem mesmo a lua, de modo que no me queixo. Sempre tem al-gum que est pior, como conclua Esopo. E at pior do que o pior, con-cluo eu.

    curioso. Quando algum est fora e imagina que, por umarazo ou outra, poderia passar vrios anos entre quatro paredes, pensaque no conseguiria aguentar, que seria simplesmente insuportvel. Noentanto, suportvel, como pode ver. Eu, pelo menos, suportei. No ne-go que passei por momentos de desespero, alm daqueles em que odesespero inclui sofrimento fsico. Mas agora estou me referindo aodesespero puro, quando se comea a calcular, e o resultado esta jornadade clausura multiplicada por mil dias. Apesar de tudo, o corpo mais ad-aptvel do que o esprito. O corpo o primeiro a se acostumar aos novoshorrios, a suas novas posturas, ao novo ritmo de suas necessidades, aseus novos cansaos, a seus novos descansos, a seu novo fazer e a seunovo no fazer. Se tem um companheiro, voc pode, inicialmente,consider-lo um intruso. Mas pouco a pouco vai se transformando em

  • interlocutor. O de agora o oitavo. Creio que me dei bastante bem comtodos. O duro quando os desesperos no coincidem e o outro o conta-gia com os dele ou voc, com os seus. Tambm pode acontecer que umdos dois se oponha frontalmente ao contgio e que essa resistncia ori-gine um choque verbal, um enfrentamento, e nesses casos, justamente, acondio de clausura de pouca ajuda e, ao contrrio, exacerba os nim-os, leva um (e outro) a pronunciar afrontas e at a dizer, algumas vezes,coisas irreparveis que, em seguida, tm seu significado agravado pelosimples fato de que a presena do outro obrigatria e, portanto, inev-itvel. E quando a situao se torna to difcil que os ocupantes do lugar-zinho nem sequer se dirigem a palavra, ento essa companhia, em-baraosa e tensa, deteriora a pessoa muito mais, e mais rapidamente, doque a solido total. Por sorte, nesse j longo histrico, tive um nicocaptulo desse estilo, e durou pouco. Estvamos to cheios desse silncioem duas vozes, que uma tarde nos olhamos e quase simultaneamentecomeamos a falar. Depois foi fcil.

    H aproximadamente dois meses no tenho notcias suas. Nopergunto o que houve porque sei o que houve. E o que no. Dizem quedentro de uma semana tudo se regularizar outra vez. Tomara. No sabecomo uma carta importante para qualquer um de ns. Quando tem re-creio e samos, sabe-se imediatamente quem recebeu carta e quem no.H uma estranha luz nos rostos dos primeiros, embora muitos tratem deesconder sua alegria para no entristecer ainda mais os que no tiveramessa sorte. Nas ltimas semanas, por razes bvias, todos estvamos comcaras jururus, e isso tambm no bom. De modo que no tenho res-posta para nenhuma de suas perguntas, simplesmente porque careo desuas perguntas. Mas eu, sim, tenho perguntas. No as que conhece semnecessidade de que eu as faa e que, diga-se de passagem, no gosto defazer para no lhe dar a tentao de um dia (brincando ou, o que seriamuito mais grave, a srio) responder: No. Queria simplesmente per-guntar pelo Velho. H muito que no me escreve. E neste caso tenho aimpresso de que no existe qualquer outro motivo para que eu no

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  • receba cartas. Somente faz muito tempo que no me escreve. E no seipor qu. Repasso s vezes (s mentalmente, claro) o que consigo lem-brar de ter escrito em algumas de minhas breves mensagens, mas noacho que houvesse nelas nada que o ferisse. Voc o v com frequncia?Outra pergunta: como est indo Beatriz na escola? Em sua ltimacartinha, tive a impresso de notar certa ambiguidade em suas inform-aes. Voc j percebeu o quanto sinto sua falta? Em que pese minha ca-pacidade de adaptao, que no pouca, essa uma das faltas s quaisnem o esprito nem o corpo se acostumaram. Pelo menos at hoje.Chegarei a habituar-me? No creio. Voc se habituou?

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  • Feridos e contundidos (Fatos polticos)

    Graciela disse a menina, com um copo na mo. Querlimonada?

    Vestia uma blusa branca, calas jeans, sandlias. Os cabelosnegros, compridos mas no demais, presos na nuca com uma fita am-arela. A pele muito branca. Nove anos; dez, talvez.

    J disse para no me chamar de Graciela. Por qu? No o seu nome? Claro que meu nome. Mas prefiro que me chame de

    mame. Est bem, mas no entendo. Voc no me chama de filha,

    mas de Beatriz. outra coisa. Bem, quer limonada? Sim, obrigada.Graciela aparenta trinta e dois ou trinta e cinco anos, e talvez os

    tenha. Veste uma saia cinza e uma camisa vermelha. Cabelo castanho, ol-hos grandes e expressivos. Lbios clidos, quase sem pintura. Tirou osculos enquanto falava com a filha, mas agora os coloca de novo paracontinuar a ler.

    Beatriz deixa o copo com limonada em uma mesinha que temdois cinzeiros e sai da sala. Porm, ao cabo de cinco minutos, volta aentrar.

    Briguei com Lucila ontem na escola. Ah. No se importa?

  • Voc sempre briga com Lucila. Deve ser uma forma que vo-cs tm de se gostar. Porque so amigas, no ?

    Somos. E ento? Das outras vezes brigamos quase como um jogo, mas ontem

    foi srio. Ah sim. Falou de papai.Graciela tira os culos outra vez. Agora demonstra interesse.

    Bebe a limonada de um s gole. Disse que se o papai est preso porque deve ser um

    delinquente. E voc, o que respondeu? Disse que no. Que um preso poltico. Mas depois pensei

    que no sabia bem o que era isso. Ouo sempre, mas no sei bem o que.

    E foi por isso que brigou? Por isso e tambm porque me disse que em casa o pai dela

    diz que os exilados polticos vm para c e tiram o trabalho das pessoasdo pas.

    E o que respondeu? Bem, no sabia o que dizer e ento dei um tapa nela. Assim o pai dela vai poder dizer tambm que os filhos dos

    exilados agridem sua filha. Na verdade no foi um tapa, s um tapinha. Mas ela reagiu

    como se tivesse machucado.Graciela se abaixa para ajeitar a meia e tambm para ganhar uma

    trgua ou refletir. Bater nela no certo. Imagino que no. Mas o que ia fazer? Tambm verdade que o pai dela no deveria dizer essas

    coisas. Ele, sobretudo, deveria nos compreender melhor.

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  • Por que ele sobretudo? Porque um homem de cultura poltica. Voc uma mulher de cultura poltica?Graciela ri, relaxa um pouco e acaricia seu cabelo. Um pouco, sim. Mas ainda me falta muito. Falta muito para qu? Para ser como seu pai, por exemplo. Ele est preso por culpa de sua cultura poltica? No exatamente por isso. Seria mais por causa dos fatos

    polticos. Quer dizer que matou algum? No, Beatriz, no matou ningum. Existem outros fatos

    polticos.Beatriz se contm. Parece prestes a chorar e, no entanto, est

    sorrindo. Ande, traga mais limonada. Sim, Graciela.

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  • Dom Rafael (Derrota e rota)

    O essencial adaptar-se. J sei que com essa idade difcil. Quase im-possvel. E contudo. Afinal de contas, meu exlio meu. Nem todos tmum exlio prprio. A mim quiseram empurrar um alheio. Tentativaintil. Transformei-o em meu. Como foi? Isso no importa. No umsegredo nem uma revelao. Eu diria que preciso comear apoderando-se das ruas. Das esquinas. Do cu. Dos cafs. Do sol, e o que mais im-portante, da sombra. somente quando algum chega a perceber queuma rua no lhe estrangeira que a rua para de v-lo como um estranho.E assim com todo o resto. No princpio, andava com uma bengala,como convm, talvez, a meus sessenta e sete anos. Mas no era coisa daidade. Era uma consequncia do desalento. L, sempre fazia o mesmocaminho ao voltar para casa. E aqui isso me fazia falta. As pessoas noentendem esse tipo de nostalgia. Acreditam que a nostalgia s tem a vercom cus e rvores e mulheres. No mximo, com militncia poltica. Aptria, enfim. Mas eu sempre tive nostalgias mais cinzentas, mais opacas.Essa, por exemplo. O caminho de volta para casa. Uma tranquilidade,um sossego, saber o que vem depois de cada esquina, de cada sinal, decada banca de jornal. Aqui, em compensao, comecei a caminhar e mesurpreender. E a surpresa me fatigava. E ainda por cima, voc no chegaem casa, mas chega residncia. Cansado de surpreender-me, isso sim.Talvez tenha sido por isso que recorri bengala. Para amenizar tantassurpresas. Ou talvez para que os compatriotas que ia encontrando medissessem: Mas, dom Rafael, l o senhor no usava bengala, e eupudesse responder: Bem, vocs tambm no usavam palet. Surpresapor surpresa. Um desses assombros foi uma loja com mscaras de cores

  • um pouco abusivas, hipnotizantes. No conseguia me habituar s ms-caras, embora sempre tenham sido as mesmas. Mas junto com a recor-rncia das mscaras, repetia-se tambm o meu desejo, ou talvez minhaexpectativa, de que as mscaras mudassem, e diariamente me assombravaao encontrar as mesmas. E ento a bengala me ajudava. Por qu? Paraqu? Bem, para apoiar-me quando essa modesta decepo me assaltava,quer dizer, quando comprovava que as mscaras no haviam mudado. Edevo reconhecer que minha expectativa no era to absurda. Porque amscara no um rosto. um artifcio, no? Um rosto s muda poracidente. Em sua estrutura, digo; no em sua expresso, que, essa sim, varivel. Em compensao, uma mscara pode mudar por mil motivos.Digamos: por ensaio, por experimentao, por ajuste, por melhoria, pordeteriorao, por substituio. S depois de trs meses compreendi queno podia esperar nada das mscaras. No iam mudar, aquelas insist-entes, aquelas turronas. E comecei a fixar-me nos rostos. E afinal, foiuma boa troca. Os rostos no se repetiam. Vinham para mim, e deixei abengala. J no precisava mais me apoiar para suportar o espanto. Talvezum rosto no mude com os dias, mas com os anos; no entanto, os quevinham a mim (com exceo de uma mendiga ossuda e tmida) eramsempre novos. E com eles vinham todas as classes sociais, em carros im-pressionantes, em carrinhos modestos, em nibus, em cadeiras de rodasou simplesmente caminhando. Parei de sentir falta do caminho, mon-tevideano e conhecido, da volta a casa. Na nova cidade havia novas rotas.De rota vem derrota, j sei. Nossa derrota pode no ser total, mas derrota. J tinha entendido, mas pude confirm-lo totalmente quandodei minha primeira aula. O aluno ps-se de p e pediu permisso paraperguntar. E perguntou: Mestre, por que razo seu pas, uma democra-cia liberal estabelecida, passou to rpido a ser uma ditadura militar?Pedi que no me chamasse de mestre. No nosso costume. Mas pediisso apenas para poder organizar a resposta. Repeti o consabido: que oprocesso comeou muito antes, no na calma, mas no subsolo da calma.E fui anotando na lousa as vrias rubricas, os perodos, as caracterizaes,

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  • os corolrios. O rapaz concordou. E li em seus olhos compreensivos todaa dimenso da minha derrota, da minha rota. E desde ento volto cadatarde por um rota distinta. Por outro lado, agora j no regresso a umaresidncia. Tampouco uma casa. simplesmente um apartamento, ouseja, um simulacro de casa: uma residncia com agregados. Mas a novacidade me agrada, por que no? Sua gente menos mal tem defei-tos. E muito divertido especializar-me neles. As virtudes claro quetambm as possuem so geralmente tediosas. Os defeitos, no. Opedantismo, por exemplo, uma zona prodigiosa, na qual nunca acabode especializar-me. Minha bengala, sem ir mais longe, era um indcio depedantismo, e obviamente tive que abandon-la. Quando me sinto ped-ante, me deprecio um pouquinho, e isso pssimo. Porque nunca bomdepreciar-se, a menos que existam razes bem fundadas, o que no meu caso.

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  • Exlios (Cavalo verde)

    Seis meses antes havia escorregado em um piso encerado de hotel, em outracidade, batendo violentamente com a cabea no cho. Como consequnciadessa queda, teve descolamento da retina e agora tinha sido operado. Por in-dicao mdica, devia permanecer quinze dias deitado, com os olhos venda-dos, ou seja, durante esse lapso de tempo dependeria totalmente da mulher. Acada setenta e duas horas aparecia o cirurgio, destapava o olho operado,comprovava que tudo ia bem e voltava a tap-lo. Era aconselhvel que, pelomenos durante a primeira semana, no recebesse visitas, a fim de garantir aquietude completa. Mas podia ouvir rdio e gravador cassete. E, claro,atender o telefone.

    As notcias do rdio no somente no eram tediosas, como nos bonstempos, mas s vezes chegavam a ser arrepiantes, j que em janeiro de 1975costumavam aparecer dez ou doze cadveres dirios nas lixeiras portenhas.Entre noticirios e noticirios, entretinha-se ouvindo fitas de ChicoBuarque, de Viglietti, de Nacha Guevara, de Silvio Rodrguez, e tambm ATruta de Schubert e algum quarteto de Beethoven.

    Outra diverso era propor imagens a si mesmo, o que passou a ser amais fascinante de suas atividades passivas, j que sem dvida inclua umelemento criador, mais original, a bem da verdade, do que o simples e textu-al registro por meio da viso das imagens que a realidade ia proporcionando.Agora no. Agora era ele quem inventava e recrutava essa realidade, e elaaparecia com todos os seus traos e cores na parede interior de seus olhosfechados.

    O jogo era estimulante. Pensar, por exemplo: agora vou criar umcavalo verde sob a chuva e faz-lo aparecer no reverso das plpebras imveis.

  • No se atrevia a ordenar que o cavalo trotasse ou galopasse, porque a in-struo do mdico era de que as pupilas no se movimentassem, e no tinhamuita certeza, em sua recente descoberta, se a pupila enclausurada sentiriaou no a tentao de seguir o galope do cavalo verde. Mas em troca tomavatodas as liberdades ao conceber quadros imveis. Digamos: trs meninos (doislouros e um pretinho, como na publicidade dos grandes monoplios norte-americanos), o primeiro com skate, o segundo com um gato e o terceirojogando com um bilboqu. Ou ainda, por que no?, uma moa nua, cujasmedidas pode escolher cuidadosamente antes de concretizar a imagem.Ou uma ampla panormica de uma praia montevideana, com uma rea debarracas de cores muito vivas e outra, em compensao, quase deserta, comum velho, barbudo, de short, acompanhado de um co que contempla o donoem estado de rgida lealdade.

    Ento o telefone tocou e foi muito fcil esticar a mo. Era uma boaamiga que, claro, sabia da operao, mas que no perguntou como estavanem se tudo tinha corrido bem. Tambm sabia que o apartamento de LasHeras e Pueyrredn no dava para a rua, exceto por uma janelinha do ban-heiro de onde se viam trs ou quatro metros da praa. No entanto, disse:Estou ligando s para voc se debruar na varanda e ver que lindo desfilemilitar, bem em frente sua casa. E desligou. Ento ele disse mulher queolhasse pela janelinha do banheiro. O previsvel: uma blitz.

    Temos que queimar algumas coisas, disse ele, e imaginou o olharpreocupado de sua mulher. Apesar da urgncia, tratou de tranquiliz-la umpouco: No tem nada de clandestino, mas se entram aqui e encontramcoisas que podem ser compradas em qualquer quiosque, como os relatos deChe ou a Segunda Declarao de Havana (no digo Fanon ou Gramsci ouLukcs, pois no sabem quem so), ou alguns nmeros da revista Militnciaou do jornal Notcias, isso basta para nos trazer problemas.

    Ela foi queimando livros e jornais, dando olhadas espordicas aopedacinho de praa. Teve que abrir outras janelas (as que davam para ojardim dos fundos, que separava os dois blocos) para que sassem a fumaa eo cheiro de queimado. E assim foi durante vinte minutos. Ele tratava

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  • de orient-la: Olhe, na segunda estante, o quarto e o quinto livros es-querda, Esttica e marxismo, em dois tomos. Viu? timo, na estante debaixo esto Relatos da guerra revolucionria e O Estado e a Revoluo.

    Ela perguntou se devia queimar tambm O cinema socialista eMarx e Picasso. Ele disse que queimasse primeiro os outros. Esses eram maisfceis de explicar. No jogue as cinzas na lixeira. Use a descarga. A fu-maa o fez tossir um pouco. Ser que no vai fazer mal a seus olhos? Podeser, mas temos que escolher o mal menor. Alm do mais, creio que no. Estobem tapados.

    O telefone voltou a tocar. A amiga de novo: E ento? Gostou dodesfile? Pena que terminou to rpido, no ? Sim, disse ele respirandofundo, foi magnfico. Que disciplina, que cor, que elegncia. Os desfiles desoldadinhos me fascinavam desde quando era um moleque. Obrigado poravisar.

    Bom, no precisa queimar mais. Ao menos por hoje. J se foram.Ela tambm respirou, recolheu com a p as ltimas cinzas, jogou naprivada, deu a descarga, verificou se tinham sido levadas pela gua, lavou asmos e veio sentar-se, j relaxada, ao lado da cama. Ele conseguiu pegar suamo. Amanh queimamos o resto, disse ela, mas com calma. Tenhopena. So textos dos quais preciso, s vezes.

    Tratou ento de pensar no cavalo verde sob a chuva. Mas sem saberbem por que, o cavalo agora era preto retinto e montado por um robusto ca-valeiro que usava quepe mas no tinha rosto. Pelo menos ele no conseguiadistingui-lo na parede interior de suas plpebras.

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  • Beatriz (As estaes)

    As estaes so pelo menos inverno, primavera e vero. O inverno famoso pelas echarpes e pela neve. Quando os velhinhos e as velhinhastremem no inverno, diz-se que tiritam. Eu no tirito porque sou meninae no velhinha e tambm porque me sento perto da estufa. Nos invernosdos livros e dos filmes aparecem trens, mas aqui no. Aqui tambm notem neve. Que chato o inverno aqui. No entanto, tem um vento gran-dioso que se sente sobretudo nas orelhas. Meu av Rafael diz s vezesque vai se recolher para seus quartis de inverno. No sei por que no serecolhe para quartis de vero. Tenho a impresso de que nos outros elevai tiritar, pois bem idoso. Nunca se deve dizer velho, mas sim idoso.Um menino da minha sala disse que sua av uma velha de merda. Euensinei que em todo caso deveria dizer idosa de merda.

    Outra estao importante a primavera. Minha me no gostada primavera porque foi nessa estao que prenderam meu pai.Prenderam com um A na frente o que se faz na escola. Mas sem A como ir polcia. Prenderam meu pai sem A na frente e como eraprimavera ele estava com um pulver verde. Na primavera tambmacontecem coisas lindas, como quando meu amigo Arnoldo me emprestao skate. Ele bem que me emprestaria no inverno, mas Graciela no deixaporque diz que tenho tendncia a me resfriar. Na minha sala no temmais ningum com tendncia. Graciela minha me. Outra coisa muitoboa que tem na primavera so as flores.

    O vero a campe das estaes, porque tem sol e, sem dvida,porque no tem aulas. No vero s quem tirita so as estrelas. No verotodos os seres humanos suam. O suor uma coisa bem mida. Quando

  • algum sua no inverno porque est por exemplo com bronquite. Novero minha testa sua. No vero os vagabundos vo praia porque demai ningum os reconhece. Na praia no tenho medo dos vagabundos,mas dos cachorros e das ondas. Minha amiga Teresita no tinha medodas ondas, era muito valente e uma vez quase se afogou. Um senhor noteve outro remdio a no ser salv-la e agora ela tambm tem medo dasondas, mas ainda no tem medo dos cachorros.

    Graciela, quer dizer, minha me, repete e torna a repetir quetem uma outra estao chamada outono. Acho que pode ser, mas nuncavi. Graciela diz que no outono tem uma grande quantidade de folhassecas. sempre bom que exista uma grande quantidade de alguma coisa,mesmo que seja no outono. O outono a mais misteriosa das estaesporque no faz nem frio nem calor e ento as pessoas no sabem queroupa vestir. Deve ser por isso que nunca sei quando estou no outono.Se no faz frio penso que vero e se no faz calor penso que inverno.E acaba que era o outono. Tenho roupa de inverno, vero e primavera,mas acho que no vo me servir para o outono. L onde meu pai est, ooutono chegou bem agora e ele escreveu que est muito contente porqueas folhas secas passam entre as grades e ele imagina que so cartinhasminhas.

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  • Intramuros (Como andam seus fantasmas?)

    Hoje estive observando detidamente as manchas da parede. um hbitoque me veio da infncia. Primeiro imaginava rostos, animais, objetos, apartir dessas manchas; depois, fabricava medos e at pnicos relacionadosa elas. De modo que agora bom convert-las em coisas ou caras e nosentir medo. Mas aquela poca distante em que o mximo do medo eraprovocado por manchas fantasmagricas que ns mesmos fantasivamostambm me provoca um pouco de saudade. Os motivos adultos, outalvez as desculpas adultas para os medos que chegam depois, no sofantasmais, mas insuportavelmente reais. Sem dvida, s vezes acres-centamos fantasmas de nossa produo, no ? A propsito, como an-dam seus fantasmas? Alimente-os com protenas, para no ficarem debil-itados. No boa uma vida sem fantasmas, uma vida cujas presenas se-jam todas de carne e osso. Mas volto s manchas. Meu companheiro lia,muito enfronhado em seu Pedro Pramo, mas eu o interrompi assimmesmo para perguntar se j tinha visto uma mancha, provavelmente deumidade, que ficava perto da porta. No especialmente, mas agora queest falando, vejo que verdade, tem uma mancha. Por qu? Fez cara deassombro, mas tambm de curiosidade. preciso entender que quandose est aqui tudo pode chegar a ser interessante. Nem vou falar do quesignifica poder, de repente, distinguir um pssaro entre as grades ou(como me aconteceu na cela anterior) quando um ratinho se convertenum interlocutor vlido para a hora do ngelus, ou a hora dodemonius, como ironizava Sonia, lembra? Bem, disse a meu compan-heiro que estava perguntando porque queria saber se ele reconhecia al-guma figura (humana, animal ou simplesmente inanimada) naquela

  • mancha. Ele olhou-a fixamente por um instante e disse em seguida: Operfil de De Gaulle. Que brbaro. Para mim, em compensao, lem-brava um guarda-chuva. Contei para ele, que ficou rindo por uns dezminutos. Essa outra coisa boa quando se est aqui: rir. No sei, quandose ri de verdade, com vontade, parece que de repente suas vsceras sereacomodam, como se de repente houvesse razes para otimismos, comose tudo isso tivesse algum sentido. Era preciso automedicar-se o risocomo tratamento preventivo psicolgico, mas o problema que, como sepode imaginar, os motivos para rir no sobram por aqui. Por exemplo:quando me dou conta do tempo que faz que no os vejo: voc, Beatriz, oVelho. E sobretudo quando penso no tempo que ainda pode transcorrerantes que volte a v-los. Quando meo esse valor do tempo, no vejonada para rir. Acredito que tampouco para chorar. Eu, pelo menos, nochoro. Mas no me orgulho dessa minha parcimnia emocional. Sei demuita gente aqui que solta a franga, cai num choro convulsivo durantemeia hora e, em seguida, emerge desse poo em melhores condies ecom mais nimo. Como se tal desabafo lhes servisse de adaptao. Demodo que, s vezes, lamento no ter adquirido esse hbito. Talvez tenhamedo de me soltar e o resultado final no ser o ajuste mas o desajuste. Ej tenho, desde sempre, parafusos frouxos demais para me arriscar a umdescalabro maior. Alm disso, para ser estritamente franco, no queno chore por medo de me soltar, mas simplesmente porque no tenhovontade de chorar, ou seja, o pranto no chega. Isso no quer dizer queno padea angstias, ansiedades e outros passatempos. Seria anormal se,nessas condies, no sofresse com eles. Mas cada um tem seu estilo. Omeu tratar de dominar essas minicrises pela via do raciocnio. Namaioria das vezes, tenho sucesso, mas noutras, em compensao, no hraciocnio que d jeito. Destroando um pouco o clssico (quem eramesmo?) diria que s vezes a razo tem arrebatamentos que at o coraodesconhece. Conte-me de voc, do que anda fazendo, do que andapensando, do que sente. Como gostaria de ter caminhado algumas vezespelas ruas que voc agora percorre para que tivssemos algo em comum

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  • a tambm. o inconveniente de ter viajado pouco. possvel que vocmesma, se essa inesperada soma de circunstncias no tivesse ocorrido,nunca tivesse viajado para essa cidade, para esse pas. Talvez, se tudotivesse seguido o curso normal (normal?) de nossas vidas, de nossocasamento, de nossos projetos de apenas sete anos atrs, teramos algumdia juntado o suficiente para fazer uma viagem maior (no falo de via-genzinhas menores a Buenos Aires, Assuno ou Santiago, remember?),pois certamente o destino teria sido Europa. Paris, Madri, Roma, talvezLondres. Como tudo isso parece distante. Esse terremoto nos trouxe terra, a esta terra. E agora, claro, quem tem que sair vai para outro pasda Amrica. E lgico. E mesmo aqueles que hoje esto, por razes dis-tintas, em Estocolmo ou Paris ou Brescia ou Amsterd ou Barcelona,prefeririam seguramente estar em alguma das nossas cidades. Afinal decontas, eu tambm estou fora do pas. Eu tambm suspiro pelo que vocsuspira. O exlio (interior, exterior) ser uma palavra-chave desta dcada.Sabe, provvel que risquem essa frase. Mas quem o fizer deveria pensarque talvez ele tambm seja, de alguma maneira estranha, um exilado dopas real. Se a frase sobreviveu, voc deve ter percebido como ando com-preensivo. At eu me espanto. a vida, minha cara, a vida. Se nosobreviveu, no se preocupe. No era importante. D-se beijos e maisbeijos, de minha parte.

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  • O outro (nica testemunha)

    Puta, que olheiras, disse e se disse Rolando Asuero diante do espelho ede sua ferrugem. Mas eu mereo depois de tanta birita, acrescentou,tentando fazer com que os olhos ficassem enormes, mas conseguindoapenas uma expresso que definitivamente o deixava com cara de doido,de orate. Oratangongo, pronunciou lentamente e teve que rir, apesar daressaca. Era assim que Silvio chamava os milicos in illo tempore, quandose reuniam no stio do Balnerio Sols, um pouco antes de o futuro setornar definitivamente insalubre. No so sequer gorilas, diagnosticava.Apenas orangotangos e alm do mais, orates. Resumindo: oratangongos.

    Tinham se juntado os quatro: Silvio, Manolo, Santiago e ele,nas ltimas frias que tiveram. Estavam tambm as mulheres, as esposas(bah!). Na realidade, trs: Mara del Carmen, Tita e Graciela, porque ele,Rolando Asuero, sempre foi um solteiro profissional e nunca quis mis-turar seus programinhas ocasionais com os amores demasiado estveis deseus amigos. Mas as mulheres sempre tinham fofocas e modas e horsco-pos e receitas de cozinha para trocar, pelo menos naquela poca, e talvezpor isso eles quase sempre se reuniam parte para consertar o mundo. Equase consertavam. Silvio, por exemplo, era muito bom, mas meio in-gnuo. Nunca seria capaz de empunhar uma arma, garantia, mas acabouempunhando e tambm empunharam contra ele de modo que agora estno cemitrio do Buceo, para mais informaes no mausolu de pro-priedade de seus sogros, que ainda tm dinheiro, embora estejam tristes.E a gordinha Mara del Carmen, em Barcelona, com dois moleques,vendendo bugigangas nas Ramblas ou onde quer que os tenham alojado.Manolo era custico, incisivo e mordaz, trs palavras contguas que, nele,

  • no eram precisamente sinnimas, mas antes trincheiras de sua timidez.A prova era que nunca se excedia com eles, acabava sempre sendo suave ecompreensivo. Chapu, leno e alpargatas / e uma mirada sem fim.1 Comexceo do chapu, esse tango podia ser o seu retrato. Santiago era a en-ciclopdia, claro, mas era acima de tudo boa gente. Conhecia botnica,marxismo, filatelia, poesia de vanguarda e alm disso era um arquivovivo da histria do futebol. E no somente o gol de Piendibeni no divinoZamora, ou o sua, Hctor! da epopeia olmpica. Isso j era parte dofolclore. Santiago tinha, alm disso, na memria j repleta todo registro,partida por partida, da dupla Nazassi/Domingos (era tricolor at otutano) ou o ltimo chutao de Perucho Petrone, j na poca em queoito em dez chutes a gol iam direto para o azul do firmamento, en-quanto os outros dois serviam milagrosamente para aumentar o score; etambm, a fim de mostrar que no era sectrio, contava como o magroSchiaffino era um gnio mesmo sem a bola, coisa das mais difceis nocampo da conciliao, e o respeito que sempre lhe inspirou um certo gi-gante chamado Obdulio, que se fazia obedecer, e isso no fichinha, atpelo garoto Gambetta.

    E agora, puta, que olheiras, diz e se diz Rolando Asuero diantedo espelho de trs ferrugens, entreguei-me s penas, bebi meus anos.2 Averdade que se entregou tristeza, mas bebeu outra coisa. A est o ar-cano, pensa difcil. Por que, de vez em quando, digamos uma vez porms, toma um porre de primeira e, em contrapartida, mantm-se sbrio,quase abstmio, entre uma carraspana e outra? Quase abstmio, porquede vez em quando um clarete (ou ros, como dizem os que padecem deuma penetrao cultural cartesiana), bem, um clarete quase umcoquetel de aleluias com testosterona. Ser que a saudade depende dasluas, algo assim como as regras das minas. Bem, no s das minas, tam-bm das onze mil virgens e me s existe uma, que desproporo, no?Afinal, mais vale ser bbado conhecido do que alcolatra annimo.Quem ter parido essa sabedoria? A verdade que os alcolatras annim-os sempre lhe deram no saco. A pessoa se embebeda ou no se

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  • embebeda, de acordo com sua prpria exigncia ou humores ou ne-cessidades ou bodes ou descaramento e no de acordo com a rigidez dosimaculados ou a presso do puritanismo. Que maravilha o puritanismo,pensa Rolando Asuero fazendo uma careta. E se detm com deleite noexemplo ao norte do rio Bravo. Que maravilha. Campanha moralistacontra o martni ou o bourbon de cada crepsculo, mas em prol do nap-alm de cada aurora.

    Ah, se pudesse jogar no imperialismo a culpa por essas olheiras.Mas no. nica testemunha a luz do lampio.3 No precisa de terapiacoletiva ou individual. foda o exlio, no? At o pobre analista passoumaus bocados. L, negou-se a entregar as fichas de seus pacientes sub-versivos e menos ainda as dos subversivos impacientes. E claro, passoumaus bocados. A cana tem sua prpria terapia, no admite com-petidores. nica testemunha. Silvio morto, Manolo em Gotemburgo,Santiago na Penal. E Mara del Carmen, viva da represso, vendendobugigangas. E Tita, separada de Manolo, juntada agora com um garotomuito srio (vou me amigar com o Sardina Estvez, escreveu um anoantes), nada menos que em Lisboa. E Graciela aqui, desajustada e linda,com a Beatricita de Santiago e trabalhando como secretria. E ele? Puta,que olheiras.

    A gente deste bendito e maldito pas realmente simptica. Ele,para que neg-lo, gosta desses sorridentes, sobretudo delas. Mas h dias enoites em que sente falta do subentendido. Dias e noites em que temque explicar tudo e escutar tudo. Uma das pequenas vantagens de fazeramor com uma compatriota que, num instante dado (essa hora zeroque sempre soa depois das urgncias, do entusiasmo e do vaivm),quando no se est para muita conversa, pode se dizer ou ouvir umlacnico monosslabo e essa palavrinha se enche de subentendidos, designificados implcitos, de imagens em comum, de passados compartil-hados e sabe-se l mais o qu. No h nada que explicar nem que lhe ex-pliquem. No necessrio se lamuriar. As mos podem ir sozinhas, sempalavras, as mos podem ser eloquentssimas. Os monosslabos tambm,

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  • mas s quando rebocam seu comboio de subentendidos. Tem que verquantos idiomas cabem num s idioma, diz e se diz Rolando Asuero, en-frentando sua prpria imagem, e acrescenta, repetitivo e sombrio: puta,que olheiras.

    1 Funyi, lengue y alpargatas/ y una mirada sin fin. Do tango Se llamaba Serafin, de A.H.Acua e C. de La Pa. (N. da T.)

    2 Me hice a las penas, beb mis aos. Do tango Cafetin de Buenos Aires, de Mariano Morese Enrico S. Discepolo. (N. da T.)

    3 Testigo solito la luz del candil. Do tango A la luz del candil, de Carlos Vicente G. Florese Julio Navarrine. (N. da T.)

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  • Exlios (Convite cordial)

    Mais ou menos s 6 p.m. da sexta-feira 22 de agosto de 1975, estava lendono apartamento que alugava na rua Shell, de Miraflores, Lima, sem nen-huma preocupao vista, quando algum l embaixo tocou a campainha eperguntou pelo senhor Mario Orlando Benedetti. J me cheirou mal, poisesse segundo nome s figura em minha documentao e nenhum dos meusamigos me chama assim.

    Desci, e um sujeito em trajes civis mostrou sua carteira da PIP4 edisse que queria me fazer umas perguntas sobre meus documentos. Subimos eele me disse que tinham recebido a denncia de que meu visto estava ven-cido. Peguei o passaporte e mostrei que tinha sido renovado a tempo. De to-do modo, ter que me acompanhar, pois o Chefe quer falar com o senhor.Estar de volta em meia hora, acrescentou. E diante dessa declarao im-prudente tive quase certeza de que seria deportado. Todas as represses domundo usam linguagem cifrada.

    Durante a curta viagem at a Central de Polcia, ficou criticando ogoverno, armando, com torpeza digna de causas piores, ingnuas ciladaspara ver se eu mordia o anzol e tambm criticava a revoluo peruana.Meus elogios foram cautelosos, mas concretos.

    Uma vez na Central, me deixaram esperando meia hora e emseguida fui recebido por um inspetor. Falou de novo no documento com ovisto vencido e mais uma vez mostrei o passaporte. Disse ento que eu estavarecebendo salrios, o que proibido quando se tem um visto turstico. Disseque meu caso apresentava certas peculiaridades, j que, com plena autoriza-o dos Ministrios das Relaes Exteriores e do Trabalho, o dirio Expressotinha firmado comigo um contrato de trabalho como jornalista, que o

  • referido contrato estava atualmente no Ministrio do Trabalho e que o Min-istrio das Relaes Exteriores, em seus mais altos escales, tinha conheci-mento desses trmites. O inspetor ficou um pouco desconcertado com o altoescalo, mas ento outro funcionrio, certamente superior hierarquicamente,disse de outra mesa e em voz alta: No lhe coloque mais objees! Ele vaicontinuar a destru-las com raciocnios vlidos. Tem que ir direto ao ponto.E dirigindo-se a mim: O governo peruano quer que saia do pas! Minhapergunta lgica: Pode-se saber por qu? No, nem ns sabemos a razo. Oministro envia a ordem e ns a cumprimos. Quanto tempo tenho? Se forpossvel, dez minutos. Como no vai ser possvel, pois no tem como ir em-bora to rpido, direi que ir na primeira oportunidade em que isso for pos-svel: uma, duas horas. Posso escolher para onde vou? Para onde gostariade ir? Considere que no vamos pagar sua passagem. Como fui ameaadode morte na Argentina pela AAA, a Aliana Anticomunista Argentina, ecomo j trabalhei em Cuba por dois anos e meio, em outras pocas, e aindatenho possibilidades de trabalho, quero saber se tenho permisso para ir paraCuba. No. No temos voos para Cuba e o senhor tem que partir o maisrpido possvel. Bem, ento me diga quais so as minhas opes reais.So as seguintes: ou o deixamos na fronteira com o Equador por via ter-restre ou usa a sua passagem area de volta para Buenos Aires.

    Pensei rapidamente e no me seduziu a ideia de um caminho mil-itar me deixando, no meio da madrugada, na fronteira de um pas que euno conhecia na poca, de modo que disse: Buenos Aires. Nunca estive noEquador. Tive que assinar um documento no qual me perguntavam comorecebia meus rendimentos no Expresso. Disse que recebia na Caixa e reitereia existncia do contrato, do trmite no Ministrio do Trabalho etc.

    Voltamos ao apartamento. No incio, deram-me 15 minutos, depoisuma hora, e, medida que faziam ligaes telefnicas e no conseguiamlugar em nenhum voo para Buenos Aires, fui ganhando mais tempo. No ent-anto, s me permitiram levar uma mala, de modo que tive que deixar muitacoisa para trs.

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  • O inspetor me disse ento (a essa altura dos acontecimentos, j es-tavam me tratando melhor) que meu caso no era de expulso nem de de-portao e que, portanto, no colocariam em meu passaporte o carimbo de-portado. Para a deportao explicou necessrio um decreto supremo,o que no tinha ocorrido em meu caso. Por isso, era apenas um convite cor-dial para que fosse embora imediatamente. Perguntei o que aconteceria seno aceitasse o convite. Ah, teria que ir do mesmo jeito. Disse-lhe que,nesses casos, costumamos dizer em meu pas: Estou cagando para adiferena.

    Pedi que me deixassem ligar para algum em Lima. No per-mitiram. Estava incomunicvel. Em troca, consentiram que fizesse ligaesinternacionais. Portanto, telefonei para meu irmo em Montevidu para quedissesse a minha mulher que fosse se encontrar comigo em Buenos Aires. Ten-tei ligar tambm para duas ou trs pessoas em Buenos Aires, mas no con-segui completar a ligao. Minha preocupao era conseguir que algum meesperasse em Ezeiza. Pedi que pelo menos me deixassem falar com a dona doapartamento. Disseram que podia ligar, desde que informasse que tinharesolvido ir embora do Peru imediatamente e que, portanto, deixaria oapartamento. Disse que uma ligao desse tipo no se faz e que ela sempreteve comigo um comportamento muito correto. Sugeri que eles ligassem. Dis-seram que no.

    Ao cabo de alguns minutos o inspetor perguntou que condies eucolocava para falar com a proprietria. Disse que falaria com ela se pudessedizer que estavam me expulsando. Finalmente, aceitou. Liguei, ento, paraa mulher, s trs da manh. A pobre quase desmaiou. Ai, senhor, fazer issocom um cavalheiro como o senhor! Expliquei que deixaria uma lista dascoisas que ficavam no apartamento e que eram minhas, e que mais tardemandaria alguma indicao sobre o destino das mesmas.

    A essa altura, os sujeitos j estavam to suaves que me pediram umpster com uma de minhas canes, que estava na parede, e um outro pediuque lhe desse um de meus livros. No acha que vai compromet-lo?, per-guntei. Esperemos que no, disse sem muita convico.

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  • Como a essa altura da noite fazia muito frio, dois dos homens(eram quatro no total) pediram permisso ao chefe para buscar agasalhos.Ele concordou. Continuei arrumando minha mala sob o olhar vigilante demeus guardas. De repente, notei que ambos tinham adormecido. Roncavamto pacificamente que tirei os sapatos para que meus passos no carpete noperturbassem seu sono. Tive uma hora e meia para arrumar melhor a mala,e o cano do incinerador de lixo tambm teve bastante trabalho.

    Ao cabo dessa hora e meia, calcei novamente os sapatos e sacudi dis-cretamente o inspetor: Desculpe acord-lo, mas se sou to subversivo que re-solveram me expulsar do pas, por favor no durmam e tratem de me vigi-ar. O inspetor explicou que estavam trabalhando desde cedo e estavammuito cansados. Disse que compreendia, mas que a culpa no era minha.

    s quatro e meia samos os cinco (os outros dois tinham voltado comseus agasalhos) num carro grande e preto. Passamos pelo apartamento daproprietria. Entregaram-lhe as chaves e o inventrio. Essa viagem foi meunico motivo real de preocupao, j que me levaram por um caminho queno era o habitual. Totalmente escuro, entre terrenos baldios, iluminadoapenas pelos faris do carro. Demoramos muito mais do que normalmente.Quando reconheci de longe a torre do aeroporto, confesso que respirei umpouco melhor. J no aeroporto, s pude embarcar no voo das 9 a.m. desbado. Felizmente era a Aeroper. No conseguiram um lugar para mimno voo das 8, que era da LAN.

    No recebi, em momento algum, qualquer coisa para comer ou be-ber. Fiquei vinte e quatro horas sem tocar em comida. Acredito que isso sedevia simplesmente ao fato de eles no terem dinheiro, pois tambm nocomeram nada. Quando o inspetor me entregou os documentos junto da es-cada do avio, disse: O senhor certamente vai partir ressentido com o gov-erno, mas no guarde ressentimentos dos peruanos. E apertou minha mo.

    4 Polica de Investigaciones del Per. (N. do E.)

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  • Feridos e contundidos (Uma ou duas paisagens)

    Graciela entrou no quarto, tirou o casaquinho, olhou-se no espelho dotoucador e franziu o cenho. Em seguida tirou a blusa, a saia e estendeu-se na cama. Dobrou uma perna e logo voltou a estic-la. Ento percebeuum fio corrido na meia. Sentou-se, tirou as meias e comeou a examin-las em busca de outro fio corrido. Depois fez um montinho com o par ecolocou numa cadeira. Olhou-se no espelho de novo e apertou as tm-poras com os dedos.

    Pela janela ainda entrava a penltima luz de uma tarde que tinhasido fresca e ventosa. Abriu uma das vidraas e olhou para fora. Nafrente do edifcio B seis ou sete crianas brincavam. Reconheceu Beatriz,despenteada e agitada, mas em plena curtio. Graciela sorriu sem muitaconvico e passou a mo pelo cabelo.

    O telefone tocou junto cama. Era Rolando. Deitou-se de novopara falar mais vontade.

    Que tarde desagradvel, no? disse ele. Bem, nem tanto. Gosto do vento. No sei por que, mas

    quando ando contra o vento, parece que as coisas se apagam. Quer dizer:coisas que quero apagar.

    Como o qu? No l jornais, voc? No sabe que isso se chama interveno

    nos assuntos internos de outra nao? Est certo, repblica. Pelo menos repblica amiga, no?Passou o fone para a mo e o ouvido esquerdos, a fim de poder

    coar atrs da outra orelha.

  • Novidades? perguntou ele. Carta de Santiago. Ah, que bom. Um pouco enigmtica. Em que sentido? Fala de manchas na parede e das figuras que imaginava a

    partir delas quando criana. Acontecia comigo tambm. Com todo mundo, ou no? Realmente, o tema pode no ser muito original, mas tambm

    no me parece enigmtico. Ou queria que lhe mandasse uma declaraocontra os milicos?

    No seja bobo. Acho simplesmente que ele se atrevia maisantes.

    Sim, claro, e por acaso voc ficou mais de um ms sem rece-ber notcias por causa dessa ousadia.

    J verifiquei. Foi uma medida geral, um dos tantos castigoscoletivos.

    Para os quais geralmente se baseiam num pretexto to puerilquanto esse: algum que ultrapassou, conscientemente ou no, os limitesno estabelecidos, mas reais.

    Ela no respondeu. Ao cabo de alguns segundos, ele falou outravez.

    Como est Beatriz? Brincando l fora com a turminha. Gosto dela. cheia de vida e saudvel. Sim, bem mais do que eu. No tanto assim. verdade que essa vitalidade maior ela

    herdou de Santiago, mas de voc tambm. De Santiago, isso sim. E de voc tambm. O que acontece que anda deprimida

    ultimamente.

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  • Pode ser. A verdade que no vejo sada. E alm de tudomeu trabalho de uma chatice monumental.

    Logo vai conseguir outro mais estimulante. Por enquanto,tem que se conformar.

    Deveria me dizer agora que tive muita sorte. Teve sorte. Tambm caberia dizer que nem todos os exilados do Cone

    Sul conseguiram um emprego to bem remunerado, com apenas seishoras de trabalho e ainda mais com os sbados livres.

    Nem todos os exilados do Cone Sul conseguiram umemprego to bem remunerado etc. Posso acrescentar que voc merece,porque uma secretria eficientssima?

    Pode. Mas a eficincia justamente uma das razes do meutdio. Seria mais divertido se de vez em quando eu me equivocasse.

    No acho. possvel que se entedie com a eficincia, mas emgeral os patres e gerentes se entediam muito mais e mais rpido com aineficincia.

    Mais uma vez no respondeu. E outra vez foi ele quem reiniciouo dilogo.

    Posso lhe fazer uma proposta? Se no for desonesta. Digamos que semi-honesta. Ento eu s autorizo pela metade. Fale. Quer ir ao cinema? No, Rolando. O filme bom. No duvido. Tenho confiana em seu gosto. Pelo menos em

    seu gosto cinematogrfico. E dava para tirar tambm um pouco das suas teias de aranha. Estou bem com minhas teias de aranha. Pior ainda. Reitero o convite. Quer ir ao cinema?

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  • No, Rolando. Agradeo, de verdade. Mas estou arrebentada.Se no tivesse que cozinhar alguma coisa para Beatriz, juro que ia dormirsem jantar.

    O que tambm no nada bom. Qualquer coisa menos sedeixar vencer pela rotina.

    Graciela acomodou o fone entre a mandbula e o ombro.Evidentemente, tinha muita experincia nesse gesto de secretria profis-sional. Alm do mais, deixava as duas mos livres para, nessa ocasio, ol-har as unhas e corrigi-las aos bocadinhos com uma lixa.

    Rolando. Sim, estou ouvindo. Alguma vez viajou de trem com outra pessoa, sentados frente

    a frente, cada um em sua janela? Acho que sim. Agora no me lembro da ocasio precisa. Mas

    por que isso agora? No percebeu que se as duas pessoas comeassem a comentar

    a paisagem que esto vendo, o comentrio da que olha para a frente noseria exatamente igual ao da que olha para trs?

    Confesso que nunca atentei para esse detalhe. Mas possvel. Mas eu sempre observei. Porque desde menina, quando

    viajava de trem, adorava olhar a paisagem. Era um de meus prazeres fa-voritos. Nunca lia nos trens. At hoje, no gosto de ler quando viajo detrem. Fico fascinada com a paisagem vertiginosa que corre a meu lado,mas em direo contrria. Mas quando vou sentada para a frente, pareceque a paisagem vem para mim, sinto-me otimista, sei l.

    E se estiver olhando para trs? Parece que a paisagem se esvai, se dilui, morre. Francamente,

    me deprime. E agora, como est sentada? No brinque. Foi o que percebi no outro dia quando come-

    cei a reler as cartas de Santiago. Ele, que est na priso, escreve como se avida viesse a seu encontro. Eu, em compensao, que por assim dizer

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  • vivo em liberdade, tenho s vezes a impresso de que a paisagem vai seafastando, diluindo, acabando.

    Nada mal. Como inteno potica, claro. Inteno potica coisa nenhuma. Nem mesmo prosa.

    simplesmente como me sinto. Bem, agora estou falando srio. Sabe que esse seu estado de

    esprito me preocupa? E, embora esteja convencido de que cada um onico que pode resolver seus prprios problemas, acho tambm que al-gum de muita confiana pode ajudar s vezes, s ajudar. E me ofereopara essa ajuda relativa. Mas essencial que voc mergulhe em si mesma.

    Mergulhar em mim mesma? Pode ser. Pode ser. Mas notenho certeza de que vou gostar.

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  • Dom Rafael (Uma culpa estranha)

    Santiago queixou-se a Graciela de que faz tempo que no lhe escrevo.Est certo. Mas o que lhe dizer? Que o que est acontecendo com ele consequncia de sua atitude? Isso ele j sabe. Que me sinto um poucoculpado por no ter falado o bastante com ele (quando ainda era tempode falar e no de engolir as palavras) para convenc-lo a no seguir essecaminho? Isso ele talvez no saiba conscientemente, mas talvez imagine.Tambm deve imaginar que, mesmo que ele e eu tivssemos tido todasessas discusses em profundidade, ele teria seguido o caminho que defin-itivamente escolheu de qualquer maneira. Que cada vez que acordo nomeio da noite no consigo evitar a apreenso, a sensao ou o mau pres-sentimento, que sei eu, de que por acaso o estejam torturando naquelamesma hora ou que esteja se recuperando de uma sesso de tortura ou sepreparando para as prximas ou maldizendo algum? Talvez no tenhavontade de imaginar uma coisa assim. J tem o suficiente com seuprprio suplcio, seu prprio isolamento, sua prpria angstia. Quandoalgum suporta sofrimentos prprios no tem necessidade de atribuir-sedores alheias. Mas s vezes imagino que esto aplicando choques eltricosnos testculos de Santiago e nesse mesmo instante sinto uma dor real(no imaginria) em meus testculos. Ou se penso que o esto sub-metendo ao submarino, afogo-me literalmente eu tambm. Por qu? uma velha histria ou, melhor dizendo, um velho sinal: o sobreviventede um genocdio experimenta uma estranha culpa por ter sobrevivido. Equem consegue, por alguma razo vlida (no considero aqui as razesindignas), escapar da tortura experimenta uma certa culpa por no sertorturado. Ou seja, no tenho muitos assuntos. Certos assuntos

  • logicamente no podem ser mencionados numa carta a um preso, aindamais quando est na priso por subverso. Quanto a outros assuntos, soueu quem no quer mencion-los. Os temas que restam, depois dessas res-salvas, so bem estpidos. Santiago aceitaria que lhe escrevesse futilid-ades? Haveria um assunto sobre o qual poderia, em outras circunstn-cias, lhe escrever, ou melhor, falar. Mas nunca nessas. Refiro-me ao es-tado de esprito de Graciela. Graciela no est bem. Est cada vez maisdesanimada, mais cinza. Ela que sempre foi to linda, to simptica, toperspicaz. E o pior que tenho a impresso de que seu desalento vem dofato de estar se afastando de Santiago. Motivos? Como saber? Ela o ad-mira, tenho certeza disso. No lhe faz crticas polticas, j que virtual-mente tem (ou teve) a mesma posio que ele. Ser que a mulher, paramanter inclume o seu amor, necessita, mais do que da existncia, dapresena fsica do homem? Ser que Ulisses est se tornando caseiro, masPenlope, em troca, j no se conforma em ficar tecendo e destecendo?Quem sabe? O certo que, se no me atrevo a tratar do assunto com ela,a quem vejo quase diariamente, atrevo-me menos ainda com Santiago, aquem s envio uma carta de vez em quando. Tambm poderia lhe con-tar de minhas aulas, das perguntas dos rapazes. Ou talvez de certo pro-jeto de voltar a escrever. Outro romance? No. Um fracasso j sufi-ciente. Talvez um livro de contos. No para publicar. Na minha idadeisso j no importa muito. Tenho a impresso de que significaria um es-tmulo para mim. Faz quinze anos que no escrevo nada. Pelo menos,nada literrio. E durante quinze anos no tive vontade de faz-lo. Agorasim. Ser um sinal? Algo que devo interpretar? Ser um sintoma? Mas dequ?

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  • Intramuros (O rio)

    Venho do rio. Acha que estou um pouco louco? Nem muito nem pouco.Se no enlouqueci em outras circunstncias, creio que a essa altura j es-tou vacinado contra a loucura. E no entanto, venho do rio. H algumassemanas descobri o sistema. Antes, as recordaes assaltavam-me sem or-dem. De repente, estava pensando em voc ou em Beatriz ou no Velho,e dois segundos depois num livro que li na poca do ginsio, e quaseimediatamente em algumas das sobremesas que a Velha me fazia,quando vivamos na rua Hocquart. Ou seja, as recordaes me domin-avam. E uma tarde pensei: vou pelo menos libertar-me desse domnio. Ea partir de ento sou eu quem dirige minhas lembranas. Parcialmente,claro. Sempre h certos momentos do dia (geralmente quando o desn-imo me invade ou me sinto fodido) em que as recordaes ainda mepegam desprevenido. Mas no o habitual. O normal agora que euplaneje a memria, isto , que decida o que vou recordar. E assim decidorecordar, por exemplo, uma noite de farra com amigos, ou alguma dasinterminveis discusses na Federao dos Estudantes UniversitriosUruguaios ou os vaivns (at onde isso pode efetivamente ser recordado)de alguma de minhas poucas bebedeiras, ou um dilogo profundo com oVelho, ou a manh em que Beatriz nasceu. claro que vou alternandotudo isso com as recordaes que se referem a voc, mas resolvi botar or-dem nelas tambm. Porque se no boto ordem, todas as suas imagens seconcentram em seu corpo, em mim e voc fazendo amor. E isso nemsempre me faz bem. Passa a ser uma constncia dolorosa de sua ausncia.Ou de minha ausncia. Primeiro gozo angustiosa e mentalmente. Des-fruto no vazio. Em seguida fico deprimido. De maneira que, quando

  • digo que tive que botar ordem nesse campo tambm, quero dizer quedecidi incorporar outras recordaes que lhe (e me) concernem e que soto decisivas e valiosas como as noites de nossos corpos. Tivemos muitasconversas que, pelo menos para mim, so inesquecveis. Lembra dosbado em que a convenci (depois de cinco dialticas horas) dos novosrumos? E quando estivemos em Mendoza? E em Assuno? No importaa ordem das datas. Importa a ordem que imponho a minhas invocaes.Por isso comecei dizendo que hoje venho do rio. E uma recordao emque voc no est. O rio Negro, perto de Mercedes. Quando tinha dozeou treze anos, ia passar as frias de vero na casa de uns tios. A pro-priedade no era muito grande (na realidade, um sitiozinho), maschegava at o rio. E como havia entre a casa e o rio muitas e frondosasrvores, quando estava na margem ningum podia me ver da casa. Eaquela solido me agradava. Foi uma das poucas vezes em que ouvi, vi,cheirei, apalpei e saboreei a natureza. Os pssaros se aproximavam e nose assustavam com minha presena. Talvez me confundissem com umaarvorezinha ou uma moita. Em geral o vento era suave e talvez por issoas grandes rvores no discutiam, mas simplesmente trocavamcomentrios, cabeceavam com bom humor, faziam-me sinais de cumpli-cidade. s vezes, apoiava-me em algumas das mais velhas e a cortiarugosa me transmitia uma compreenso quase paternal. Alisar a cortiade uma rvore experimentada como acariciar a crina de um cavalo quese monta diariamente. Estabelece-se uma comunicao muito sbria(no melosa, como pode ser a relao com um co insuportavelmentefiel), mas bastante intensa para se sentir falta dela quando se volta agit-ao da cidade. Em outras ocasies entrava no bote e remava at o meiodo rio. A equidistncia das duas margens era particularmente estimu-lante. Sobretudo porque eram distintas e polemizavam. Nem tanto ospssaros, que as compartilhavam, mas antes as rvores, que se sentiam lo-cais e um pouco sectrias, cada uma na sua, ou seja, na sua ribeira. Euno fazia nada. Simplesmente olhava. No lia nem brincava. A vida pas-sava sobre mim, de margem a margem. E eu me sentia parte dessa vida e

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  • chegava estranha concluso de que no seria chato ser pinho ousalgueiro ou eucalipto. Mas, como aprendi vrios anos mais tarde, asequidistncias nunca duram muito, e tinha que me decidir por uma ououtra margem. E estava claro que pertencia apenas a uma delas. Pode vercomo estava certo o que eu disse no incio: venho do rio.

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  • Beatriz (Os arranha-cus)

    No singular se escreve rascacielos e no plural tambm se escreve rasca-cielos. O mesmo acontece com escarbadientes.5 Os arranha-cus so edif-cios com muitssimos banheiros. Isso tem a enorme vantagem de quemilhares de pessoas podem fazer xixi ao mesmo tempo. Os arranha-custm elevadores que balanam. Os elevadores com balano so muitomodernos. Os edifcios velhssimos no tm elevadores ou s tm el-evadores sem balano e as pessoas que vivem ou trabalham neles morremde vergonha porque so muito atrasados.

    Graciela, ou seja minha me, trabalha num arranha-cu. Umavez me levou a seu escritrio e foi a nica vez em que fiz xixi numarranha-cu. brbaro. O arranha-cu de Graciela tem um elevadorcom balano totalmente importado e por isso meu estmago fica muitoembrulhado. Outro dia contei isso na minha sala e todas as crianasmorreram de inveja e queriam que as levasse ao elevador com balano doarranha-cu de Graciela. Mas eu disse que era muito perigoso porque oelevador sobe rapidssimo e se a pessoa bota a cabea na janelinha podeficar sem ela. E todos acreditaram, so uns bobos, imagine se os el-evadores dos arranha-cus vo ser to atrasados para ter janelinha.

    Quando acontece um apago nos elevadores de arranha-cus opnico grassa. Na minha sala, quando chega a hora do recreio a alegriagrassa. O verbo grassar um lindo verbo.

    Alm de elevadores com balano, os arranha-cus tm porteiro.Os porteiros so gordos e nunca poderiam subir uma escada. Quando osporteiros emagrecem no podem continuar trabalhando nos arranha-cus, mas tm a oportunidade de ser taxistas ou jogadores de futebol.

  • Os arranha-cus se dividem em arranha-cus altos e arranha-cus baixos. Os arranha-cus baixos tm muito menos banheiros do queos arranha-cus altos. Os arranha-cus baixos tambm so chamados decasas, mas proibido que tenham jardim. Os arranha-cus altos fazemmuita sombra, mas uma sombra diferente da das rvores. Gosto maisda sombra das rvores, porque tem manchinhas de sol e alm do mais semove. Na sombra dos arranha-cus grassam as caras srias e as pessoasque pedem esmolas. Na sombra das rvores grassam gramados ejoaninhas.

    Acho que onde meu pai est, na ltima hora da tarde deve grass-ar a tristeza. Gostaria muito que meu pai pudesse, por exemplo, visitar oarranha-cu onde trabalha Graciela, ou seja minha me.

    5 Rascacielos (arranha-cu) , assim como escarbadientes (palito), um substantivo de doisnmeros em espanhol. (N. da T.)

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  • Exlios (Vinha da Austrlia)

    Eu o conheci no aeroporto da cidade do Mxico, em frente aos balces daCubana de Aviacin. Eu viajava para Havana com trs malas e tinha quepagar excesso de peso. Ento um senhor que estava atrs de mim na fila sug-eriu que, como ele viajava apenas com uma pequena maleta, registrssemosjuntos as nossas bagagens, que no total chegavam exatamente aos 40 quilospermitidos. Aceitei, claro, agradecendo o favor, e o empregado da Cubanacomeou a despachar as quatro malas. Mas quando o meu espontneo ben-feitor mostrou seu passaporte, eis que era, para minha surpresa, um docu-mento uruguaio. No oficial, nem diplomtico, mas um passaporte comum.Ele sorriu: Achou estranho, no? Admiti que sim. Vou lhe explicar en-quanto tomamos um caf.

    Tomamos o caf. Ele perguntou: O senhor Benedetti, no?Claro, mas de onde me conhece? No me lembro de seu rosto. Lgico.Estava no palanque e eu no meio do pblico. Pude ouvi-lo muitas vezes ematos pblicos durante a campanha eleitoral de 71. Lembra da manifestaofinal da Frente Ampla, diante do Legislativo e com a Diagonal Agraciadatotalmente cheia? Dessa vez, no falou, mas estava no palanque. Seregni foio nico orador. Esteve muito bem o general. Creio que me dava tantos da-dos para inspirar confiana, mas eu j no precisava deles. Seu rosto erahonesto, sem ambiguidades.

    Disse seu nome. Seu sobrenome outro, mas aqui vou cham-lo deFalco. De todo modo, o verdadeiro to uruguaio quanto esse. Paracomear, quero esclarecer que vivo h mais ou menos cinco anos na Aus-trlia. Sou operrio. Bombeiro ou encanador, segundo os pases. E por queveio a Cuba? Como turista. Fao parte de uma excurso. Economizei

  • durante dois anos para me dar o gosto de uma semana em Cuba. E o queachou de l? No aspecto econmico, bem. Mas nada de mais. Por outrolado, voc sabe (posso cham-lo de voc, no?), a imigrao para a Austrliano foi precisamente poltica, mas sim econmica, mesmo que diga que issosignifica que indiretamente poltica. Seria correto, mas em geral osimigrantes econmicos no tm conscincia dessa relao. Nesse sentido, umexlio bastante ingrato, muito diferente de outros lugares. s vezes h umatrgua, como quando Los Olimareos se apresentaram por l e, apesar dospesares, as pessoas foram ouvi-los porque os temas da terrinha continuam acomov-las. E no somente os temas. Tambm os nomes de rvores, flores,montes, figuras histricas, ruas, cidadezinhas, referncias ao cu, aos creps-culos, aos rios, a qualquer riachinho dos cafunds. Mas os Olima vo em-bora e voltamos todos a nossa rotina, a nosso isolamento. Costumo dizer quena Austrlia ns somos o Arquiplago Uruguaio, porque na realidade con-stitumos um conjunto de ilhas, ilhotas, de sujeitos ou casais ou famlias, to-dos isolados em solides mais ou menos confortveis, mas que no deixam deser solides. Alguns mandam dinheiro s pores de famlia que ficaram noUruguai e isso d um certo sentido a suas vidas e a seu trabalho. E notentam pelo menos se integrar no ambiente, fazer amigos australianos?Olhe, no fcil. Antes de mais nada, h a barreira do idioma. claroque, com o tempo, qualquer um acaba aprendendo ingls, mas quando chegaa esse ponto, a pessoa j se acostumou ao isolamento e difcil mudar a rot-ina. Alm do mais, a sociedade australiana, embora precise de mo de obraestrangeira, no se abre assim to facilmente para os imigrantes. Entrei emmuitas casas australianas, mas como bombeiro. E se a famlia est reunidaquando passo com minha caixa de ferramentas, param automaticamente defalar. E por que tanto interesse em vir a Cuba? No sei exatamente. uma dessas fascinaes parecidas com as que temos na infncia ou na ad-olescncia. Pode dizer que um tonto como eu j no est mais na idade defascinaes. Mas como uma paixonite, sabe? Veja s, falei paixonite e per-cebi que deve fazer uns cinco anos que no pronunciava essa palavra. L nos o vocabulrio vai se perdendo, mas tambm incorporamos sem sentir

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  • palavras inglesas fala diria. Bem, voltando a Cuba. A verdade que, noUruguai, nos iludimos demais, por volta de 69, 70, e um pouco menos em71. Acreditamos que uma mudana radical tambm seria possvel em nossopas. E no foi possvel, pelo menos por um longo agora. Ento me deu umacerta impacincia de conhecer um pas como Cuba, que conseguiu levar acabo sua mudana. Mas me diga, acha que haveria alguma possibilidade deeu ficar em Cuba? Trabalhando, claro. Espere para ver como vai se sentir.Imagine, por exemplo, que pode gostar das pessoas, pode concordar com o sis-tema poltico e, no entanto, o clima pode deix-lo arrasado. Nada de quatroestaes, mas s vero, com uma temporada seca e outra chuvosa. A mimpessoalmente no incomoda, mas sei de vrios rio-platenses que se sentemsufocados com tanto calor e umidade. De todo modo, sete dias so muitopouco tempo para as providncias necessrias. Lembre-se de que h um fimde semana bem no meio. Sim, claro, mas os cubanos veem com bons olhosa incorporao de estrangeiros? L voc no seria estrangeiro. latino-americano, no? O problema mais complexo. Imagine s o que aconteceriase Cuba (que acabou de abrir as portas para que todos os que no esto deacordo vo embora) abrisse essas mesmas portas para todo mundo quequisesse vir para c? As filas que se formariam em Montevidu, BuenosAires, Santiago, La Paz, Porto Prncipe! Alm disso, continua tendo sriosproblemas de moradia. Mas voc acha que poderia tentar? Claro, tente.No h nada a perder.

    Aquela voz, suave e annima, que em todos os aeroportos do mundoconvoca para o embarque e que parece sempre a mesma, avisou-nos que de-veramos ir para o porto oito. Durante o voo, continuamos a conversar equando a aeromoa (na Cubana de Aviacin, chamam-se comissrias debordo) nos deixou nossos respectivos refrigerantes, Falco comentou: in-crvel. No so bonecas, como nas outras companhias areas. So mulheres,voc viu?

    Perdi-me dele no aeroporto Jos Mart, depois de recolhermos nossasquatro malas (uma dele, trs minhas). Ele teve que se juntar ao resto da ex-curso e eu encontrei com vrios amigos que tinham ido me esperar.

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  • Dois dias depois houve a manifestao diante do EscritrioComercial norte-americano. A invaso dos dez mil na embaixada peruanaj tinha se concludo. Agora a questo era outra: o anncio de manobrasnavais na base de Guantnamo e as ameaas dirias de Carter.

    Eu tambm desfilei pelo Malecn com meus companheiros da Casadas Amricas. Em meus vrios anos de residncia em Cuba, nunca tinhavisto uma manifestao de massa to impressionante. Estvamos esperando,na altura da Rampa, que a passeata tivesse incio, quando de repente entreviFalco a uns dez metros de distncia.

    A multido era compacta, de modo que era difcil avanar. Entogritei: Falco! Falco! Ouviu meu grito desde o comeo, mas sem dvida noconseguia acreditar que quarenta e oito horas depois de ter chegado aHavana algum o reconhecia e o chamava. Mas assim o acaso. Eu era anica pessoa em Cuba que poderia reconhec-lo, e ali estava, a poucos passosdele.

    Finalmente me viu e s ento fez uma cara de espanto e ergueu seuslongos braos alegremente. Passaram-se dez minutos antes que consegussemosnos aproximar. Abraou-me. Que coisa fantstica, ch! Um milho de pess-oas e voc me encontra! Estava eufrico. Isso estimulante. No o faz lem-brar do ato final da Frente? Bem, aqui tem mais gente. Claro, mas merefiro ao entusiasmo, alegria.

    Comeamos, por fim, a desfilar, primeiro lentamente, depois umpouco mais rpido. De repente, senti que me dava uma cotovelada de cump-licidade. Sabe que hoje dei o primeiro passo? Que primeiro passo? Paraficar aqui. Ah. Fui ao escritrio que me indicaram: era justamente ondehavia uma grande quantidade de gente querendo ir embora. No exato mo-mento em que cheguei porta de vidro, ela foi fechada. Comecei ento afazer sinais para o funcionrio que fechou a porta. E ele a me fazer sinais deno. E eu a insistir que me ouvisse s um instantinho. Ento tive uma ideia.Tinha um papel no bolso. Escrevi a palavra companheiro e apertei o papelcontra o vidro. Talvez tenha sido mordido pela curiosidade, pois abriu aporta uns cinco centmetros, o suficiente para que pudssemos nos ouvir

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  • mutuamente. Hoje no atendemos mais solicitaes de sada, entendeu?Sim, entendi, mas que no vim para isso. E veio para qu, ento? Estounuma excurso. Turistas. Quero ficar. O rapaz (porque era um rapaz) nopodia acreditar. Ento abriu um pouco mais a porta para que eu entrasse,provocando compreensveis protestos por parte dos candidatos a exilados emMiami. Disse que quer ficar aqui? , foi o que disse. O rapazinho me ol-hou, como quem examina em profundidade. Depois pegou um caderninho,arrancou uma folha, escreveu um nome e entregou-me. Olhe, rapaz, venhaamanh, mas bem cedinho, e pergunte por esse companheiro. Ela vai atend-lo. E boa sorte. E ento vou at l amanh. O que acha? Ou como dizempor aqui: o que opina? Estou vendo que se adapta melhor aos modismoscubanos do que aos australianos.

    A marcha acelerou seu ritmo. Pouco a pouco fomos nos separando epor um instante eu o perdi de vista. Estvamos passando exatamente emfrente ao edifcio do Escritrio Comercial norte-americano (no se via nin-gum nas janelas) quando voltei a v-lo, agora um pouco mais atrs. Comvoz retumbante e spero sotaque montevideano, fazia vibrar uma das palav-ras de ordem que aquela jubilosa multido cantava em coro: Fora cam-bada, abaixo a gusanada!6

    6 Pin, pon, fuera, abajo la gusanera! Gusano (verme, caruncho) a forma como oscubanos chamam os compatriotas que se exilaram em Miami depois da revoluocastrista. (N. da T.)

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  • O outro (Querer, poder etc.)

    Voc est maluco, recorda nitidamente Rolando Asuero que Silvio tinhamurmurado naquela manh em que Manolo exps o que denominavaViso Pessoal e Panormica da Realidade Nacional e Outros Ensaios.Mas Manolo, que nesse meio-tempo s tinha falado uma meia horinha,disse apertando os lbios, deixe-me falar, pois no? E Silvio o deixou ter-minar. E agora, o que acha, disse Manolo muito cheio de si, depois doponto final. Voc est maluco, insistiu Silvio, inabalvel, e quase acabamaos bofetes. Mas Santiago e ele, Rolando, intervieram rapidamente, ealm do mais Mara del Carmen e Tita j estavam fazendo bico, ataquede nervos, claro; Graciela no, porque sempre foi mais dura ou maisequilibrada ou mais pudica, e Silvio e Manolo voltaram a se sentar eSilvio comeou a recuperar-se com o mate, dando umas chupadas nabomba que se ouviam num raio de trs quilmetros. O certo que a tesede Manolo era muito concreta, mas tambm muito catastrofista. Circu-lar, sentenciava Silvio. verdade, era mesmo circular e sem sada, masManolo lhe dava uma nfase que a tornava obrigatria. Os que tinhamdinheiro e poder nunca cederiam. No tenham iluses, rapazes, essa no a burguesia escandinava que vai reduzindo seus dividendos para podersobreviver. Esses a vo apelar para a milicada, mesmo que a milicadaacabe por devor-los. Constitucionalistas? Legalistas? Vergonha ou pudorde usar uniforme ou de tapar a careca com um quepe? Deixem de sacan-agem, caros compatriotas. Tudo isso pretrito imperfeito. Vo nos ata-car e liquidar como se fssemos guatemaltecos, nem mais nem menos.De modo que temos que lutar com o partido deles em outro campo queno seja o do mero debate poltico. Temos que combater o partido e

  • enfiar um monte de gols neles. Nem que seja de fora da rea. Essa met-fora agradou especialmente a Santiago, que comeou a se interessar apartir desse momento. E Manolo insistindo e insistindo, colocando todomundo no mesmo saco (tango habemus: se uma mosca igual a umcipreste),7 porque o que ele queria era a mudana, no s na conversa,mas nos fatos, cita textual. E no lhe importavam muito os meios (se Je-sus no ajuda que ajude Sat),8 o essencial eram os fins. Isso me soa fa-miliar, comentou Silvio com ironia marginal. E acredita que vamosdesaloj-los, perguntava Santiago, chupando a bomba, mas em relativasurdina. No, respondia sem vacilar Manolo, to eufrico que parecia es-tar vendendo futuro. No, no vamos conseguir, vo nos arrebentar, vonos botar em cana, vo nos esmagar, vo nos liquidar. E depois, inquiriaSilvio, queimando etapas entre a ironia e a perplexidade. Ele, Rolando,tinha se limitado a levantar as sobrancelhas com saudvel ceticismo. Edepois nada, estalava o dinamismo do orador. Nada de imediato, mas avitria, a deles, ser uma vitria de Pirro. Ganharo e no sabero o quefazer com o trofu. Vo ganhar nos papis e perder o povo. (Palminhasde aplauso na ala feminina.) Vo perd-lo definitivamente. E olhandocom certa provocao para Silvio, continua achando que estou maluco,hein? No mnimo, disse o outro para relaxar um pouco, todos estamos, eento Manolo levantou-se e deu-lhe um abrao de molusco cefalpodecom oito tentculos, ou seja, de polvo, segundo Larousse. Enquanto isso,Mara del Carmen e Tita, j recuperadas, riam entre lgrimas, como doisarco-ris. Mas Santiago estava insolitamente srio e explicou em seguidaque, colocada nesses termos, a luta era apenas moral, e a mim que meimporta ser um vencedor tico se vo continuar existindo favelas e lati-fndio e camarilha bancria e ostentao, se eu me metesse nessa brigaseria para ser um vencedor real. timo, disse Manolo, mas todos quere-mos ser vencedores reais, no pense que est descobrindo a plvora, sque a questo no querer, mas poder. E mais uma vez Silvio se exalta,percebeu agora que o objetivo de Manolo era mais amplo, a coisa no eraquerer nem poder, mas foder. Risinho na bancada feminina, e os

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  • nhoques esto prontos, ai que rpido, vamos que seno passam doponto, e eu que estou com a barriga cheia de mate, acontece que vocs seempolgam discutindo e no se do conta de que beberam duas garrafastrmicas inteiras, que zona, vamos aos nhoques, senhores, aos nhoques,esse tinto parece de missa do galo, sensacional, e voc acha que depois darevoluo continuar havendo nhoques, hein?

    7 Si igual es una mosca que un ciprs. Do tango Ya a mi, qu?, de Anibal Triolo e CatulloCastillo. (N. da T.)

    8 Si Jess no ayuda que ayude Satn. Do tango Pan, de Eduardo Pereyra e Celedonio E.Flores. (N. da T.)

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  • Dom Rafael (Com a ajuda de Deus)

    Fechar os olhos. Como queria fechar os olhos e comear de novo e abri-los depois com a tardia lucidez que trazem os anos, mas com a vitalidadeque no tenho. Deus d nozes a quem no tem dentes, mas antes, muitoantes, deu fome a quem os tinha. Bela trapaa de Deus. Afinal, os refrespopulares so algo assim como um currculo divino. Deixa estar que amo de Deus vai te pegar de jeito: virulncia e fria. Deus os cria e elesse juntam: conspirao e perseguio. A Deus o que de Deus e a Csaro que de Csar: partilha e pro rata. Como Deus manda: prepotncia eimprio. Deus passou longe: indiferena e menosprezo. F em Deus ecacete no resto: parapoliciais, paramilitares, esquadres da morte etc. SeDeus quiser: poder ilimitado. Deus nos livre e guarde: neocolonialismo.Deus castiga sem pau nem pedra: tortura subliminar. V com Deus: mscompanhias.

    Fechar os olhos, mas no para meus pesadelos correntes, pormpara tocar o fundo das coisas. L esto as imagens, as eloquentes, as spara mim. Cada uma delas como a revelao que no entendi nematendi. E no se pode voltar atrs. Pode-se guardar o aprendido, mas depouco serve.

    Fechar os olhos e ao abri-los encontr-la. Qual delas? Uma umrosto. Outra um ventre. Outra ainda um olhar. Quantas mais? Noamor no h posturas ridculas nem pedantes nem obscenas. No amortudo ridculo e pedante e obsceno. Tambm a norma, tambm atradio.

    De repente o passado se torna luxuoso, no sei por qu. Meucorpo que tive, o ar que respirei, o sol que me iluminou, os alunos que

  • ouvi, o pbis que convenci, um crepsculo, uma axila, um pinheiroondulante.

    O passado se torna luxuoso e no entanto apenas uma desilusode tica. Porque o pobre, mesquinho presente s ganha uma e decisivabatalha: existe. Estou onde estou. O que este exlio seno outrocomeo? Todo comeo jovem. E eu, velho reiniciante, rejuveneso. Es-calada de vivo, veterano professor, arquivo de palavras. Estou con-denado a rejuvenescer. ltima melhora, dizem os cretinos. Estou fraco,porra. Na minha terra eu diria caralho, mas tambm estava fraco. Docaralho porra, ptria grande esta Amrica. E um filho preso.Tristemente preso, porque se sente dinmico e otimista e vital e no temmuitas razes para esse singular estado de esprito. Meus sentimentos os-cilam, ora, ora. Estou onde estou e ele est onde est. Pobre filho. Sepudesse trocar com ele. Mas no me aceitam. No sou suficientementeodioso. No quis derrub-los, desarm-los, venc-los. Ele sim o quis, efracassou. Se eu pudesse entrar l para que ele sasse, talvez eu no ficasseto mal. Aos sessenta e sete no iam me torturar, acho. Bem, nunca sesabe. E fecharia os olhos l tambm e assim me livraria das grades. Equem sabe pudesse tocar o fundo das coisas. Mas no. Estou onde estoue ele est onde est. Fechar os olhos e ver meu filho, mas abri-los e v-la.Qual? Provavelmente a do barco. Ou a da rvore. Ou a do pssaro. Deusas cria e elas se separam. Se eu fosse Deus ordenaria terminantementeque comparecesse a da rvore. Mas no sou, e Lydia comparece.

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  • Feridos e contundidos (Um medo terrvel)

    Graciela ps um ponto final no relatrio do segundo semestre. Respirouprofundamente antes de tirar o original com sete cpias da mquinaeltrica. No havia mais ningum no escritrio. Tinha trabalhado trshoras extras. No para cobr-las, mas porque o chefe estava em apuros,era boa gente e o prazo para a entrega do relatrio do segundo semestrevencia no dia seguinte.

    Juntou a ltima folha com as trinta e trs restantes. Amanh primeira hora distribuiria original e cpias em oito pastas. Agora estavacansada demais. Deixou tudo na segunda gaveta, ps a capa de plsticosobre a mquina de escrever e olhou as prprias mos, sujas de carbonopreto.

    Entrou um instante no banheiro, lavou cuidadosamente asmos, penteou-se, passou batom por cima do anterior, j desbotado eseco, olhou-se no espelho sem sorrir para si mesma, mas levantou leve-mente as sobrancelhas como quem se interroga ou se questiona ousimplesmente para verificar seu grau de cansao. Uniu por um momentoos lbios recm-repintados e emitiu um suspiro incuo. Em seguidavoltou mesa de trabalho; da primeira gaveta extraiu a bolsa, tirou ocasaco de um cabide e vestiu. Abriu a porta, saiu para o corredor, masantes de apagar a luz e fechar, deu uma olhada geral. Tudo estava emordem.

    Quando a porta do elevador se abriu, espantou-se. No esperavaencontrar ningum e l estava Celia, tambm surpresa.

    H sculos que no a via. O que est fazendo no escritrio auma hora dessas?

  • Tive que bater o relatrio do segundo semestre. E eraenorme.

    Voc faz muitas concesses a seu chefe. Qualquer dia dessesvai acabar dormindo com ele.

    No, meu bem, pode ficar tranquila. No meu tipo, mas boa gente. Alm do mais, nem pediu que eu fizesse esse trabalho. Ecomo se isso no fosse suficiente, no ficou comigo no escritrio.

    No precisa se justificar, querida. Era brincadeira.Chegaram rua. Havia muita neblina e a consequente irritao

    dos motoristas. Quer tomar um ch? Um ch exatamente no. Mas talvez um drinque. Cairia bem

    melhor depois de minhas trinta e quatro pginas com sete cpias. Assim que se fala. Viva a evaso!Sentaram-se juntas janela. De uma mesa vizinha, um homem

    jovem e elegante deu uma olhada investigativa. Bom disse Celia em voz baixa. Parece que ainda somos

    dignas de uma olhada. Para voc isso estimulante ou deprimente? No sei. Depende muito do meu estado de esprito e tam-

    bm, por que no?, da aparncia de quem olha. E esse, especificamente, estimulante? No. Menos mal.O garom depositou suavemente os dois copos. Sade. Sade e liberdade. Est bem. mais completo. E alm disso acho que era a palavra de ordem de Artigas. mesmo? Como sabe disso? Se tivesse vivido os anos que vivi com Santiago, voc tambm

    seria doutora em Artigas. Para ele sempre foi uma obsesso.

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  • Celia aproveitou para tomar um golinho. Quais so as ltimas notcias? As de sempre. Escreve regularmente, salvo quando casti-

    gado por uma coisa qualquer. Est com bom nimo. E h alguma esperana de que o soltem? Motivos haveria. Mas esperanas, no muitas.A rua era, naquelas horas, uma realidade pouco menos que

    hipnotizante. As duas mulheres ficaram um bom tempo caladas olhandoos automveis, os nibus repletos e tambm as senhoras com cachorros,os mendigos com cartazes explicativos, as crianas maltrapilhas, os bonsmoos, os policiais. Celia foi a primeira a se desprender daquela rotinaespetacular.

    E voc? Como se sente? Como suporta uma separao tolonga? Fez uma pausa. Se no quiser, no responda.

    Na realidade, gostaria de responder. O problema que notenho resposta.

    No sabe como se sente? Sinto-me desajustada, desorientada, insegura. Parece lgico, no? Pode ser. Mas j no me parece to lgico quando tento re-

    sponder a sua segunda pergunta. Essa de como suporto a separao. O que acontece? Acontece que vou simplesmente suportando. Simplesmente

    demais. E isso no normal. No estou entendendo, Graciela. Voc sabe que timo casal formvamos, Santiago e eu. Sabe

    tambm como sempre nos identificamos na poltica. Tnhamos a mesmaposio. Embora ele esteja em cana e eu aqui. Quando o levaram, penseique no poderia suportar. Nossa unio no era apenas fsica. Tambmera espiritual. No tem ideia de como precisei dele nos primeirostempos.

    No mais?

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  • A coisa no assim to fcil. Continuo amando. Como nocontinuaria depois de dez anos de excelente relao? E acho horrvel queesteja preso. E tenho plena conscincia do que essa ausncia significapara Beatriz.

    Sim, tudo isso fica num dos pratos da balana. E no outro? O problema que a separao forada tornou-o mais terno e

    a mim, ao contrrio, ela me endureceu. Resumindo em poucas palavras(e isso algo que no confesso a ningum e que me custa confessar at amim mesma): preciso cada vez menos dele.

    Graciela. Sei o que vai me dizer: que injusto. Eu sei perfeitamente.

    No sou to estpida a ponto de no saber. Graciela. Mas no posso me enganar. Continuo a ter muito afeto por

    ele, mas como poderia ter se fosse uma companheira de militncia, nosua mulher. Ele vive desejando meu corpo (sempre d a entender emsuas cartas) e eu, em troca, no sinto necessidade do dele. E isso faz comque me sinta, como dizer?, culpada. Porque na verdade no sei que di-abos est acontecendo comigo.

    Pode haver uma explicao. Claro, est pensando que tenho outro. Mas no tenho. Tem certeza? Ainda no tenho. Por que acrescentou ainda? Porque a qualquer momento pode acontecer. O fato de que

    no sinta necessidade concreta do corpo de Santiago no significa que omeu esteja inerte. Celia: faz mais de quatro anos que no fao amor comningum. No lhe parece um exagero?

    No sei. No sei. Claro, voc tem Pedro a seu lado. E gosta disso. Por sorte.

    Pode, porm, saber o que teria acontecido se passasse quatro anos semv-lo ou toc-lo, sem ser vista ou tocada por ele?

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  • No sei e no quero saber. Acho justo que se negue a enfrentar gratuitamente um con-

    flito que no seu. Mas sei o que acontece comigo. No tenho outro re-mdio seno saber. E posso garantir que no fcil, nem cmodo, nemagradvel.

    E j pensou em contar para ele, pouco a pouco, carta a carta? Claro que pensei. E me d um medo terrvel. Medo? De destru-lo. De destruir-me. Sei l...

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  • Intramuros (O complementar)

    Ter notcias suas como abrir uma janela. O que me conta de voc, deBeatriz, do Velho, do trabalho, da cidade. Tenho em mente os horriosde todos, assim posso organizar minha visualizao a qualquer momento:Graciela agora est escrevendo mquina, ou o Velho vai terminar suaaula nesse instante, ou Beatriz est tomando um caf da manh apres-sado porque se atrasou para a escola. Quando se tem que ficar irre-mediavelmente parado, impressionante a mobilidade mental que sepode adquirir. Pode-se ampliar o presente tanto quanto se quiser, oulanar-se vertiginosamente para o futuro, ou dar marcha a r, que maisperigoso porque l esto as lembranas, todas as lembranas, as boas, asregulares e as execrveis. L est o amor, ou seja, est voc, e as grandeslealdades e tambm as grandes traies. L est o que a pessoa podiafazer e no fez, e tambm o que podia no fazer e fez. A encruzilhada naqual o caminho escolhido foi o errado. E a comea o filme, quer dizer,como teria sido a histria se tivesse tomado outro rumo, aquele que foidescartado na poca. Geralmente, depois de vrios rolos, a pessoa sus-pende a projeo e pensa que o caminho escolhido no foi to equivoc-ado e que, por acaso, e numa encruzilhada semelhante, a escolha de hojeseria a mesma. Com variantes, claro. Com menos ingenuidade, evid-ente. Com mais alertas, por via das dvidas. Mas mantendo, isso sim, orumo primordial. Esses grandes espaos em branco so normalmente zo-nas de desalento, mas em outra acepo so proveitosos tambm. Nos l-timos e penltimos tempos antes da internao forada, tudo aconteceude maneira to atropelada e em meio a tantas tenses, rodeado por tantasurgncias implacveis, por tantas decises a tomar, que no havia tempo

  • nem nimo para reflexo, para pensar e repensar sobre nossos passos,para olhar com clareza para ns mesmos. Agora sim, h tempo, tempodemais, insnias demais, noites demais com os mesmos pesadelos e asmesmas sombras. E a tendncia natural, e tambm mais fcil, perguntar-se de que me serve o tempo agora, para que esta meditaotardia, atrasada, anacrnica, intil. E no entanto serve. A nica vantagemdesse tempo baldio a possibilidade de amadurecer, de ir conhecendo osprprios limites, as prprias debilidades e fortalezas, de ir se aproxim-ando da verdade sobre si mesmo, e no se iludir acerca de objetivos quenunca se poderia alcanar e, em compensao, aprontar o esprito, pre-parar a atitude, treinar a pacincia para obter o que algum dia poder es-tar ao alcance. Nessa altura se consegue, nestas peculiarssimas condies,afundar na anlise e me atrevo a confessar-lhe algo: embora no possafazer um plano quinquenal de meus pesadelos, posso sonhar acordado eem captulos. E assim vou debulhando, esmiuando o que quis e o quequero, o que fiz e o que farei. Pois algum dia poderei voltar a fazercoisas, no acha? Algum dia deixarei esse estranho exlio e me reinteg-rarei ao mundo, no? E serei algum diferente, creio mesmo que algummelhor, porm nunca inimigo do que fui ou do que sou, mas antes com-plementar. Sim, ter notcias suas como abrir uma janela, mas ento med uma vontade quase irreprimvel de abrir mais janelas e, o que maisgrave (que loucura), de abrir uma porta. Sem dvida, estou condenado aver as costas desta porta, seu lombo hostil, duro, inexpugnvel, con-cretssimo, mas nunca to slido quanto um bom argumento, quantouma boa razo. Ter notcias suas como abrir uma janela, mas ainda no como abrir uma porta. Talvez repita demasiado a palavra porta, masprecisa entender que aqui essa palavra quase uma obsesso e, emborapossa lhe parecer incrvel, muito mais obsessiva que a palavra grade. Asgrades esto a, so uma presena real, admitida, compreendida em todaa sua chata magnitude. Mas as grades no podem ser outra coisa seno oque efetivamente so. No h grades abertas e grades fechadas. Em com-pensao, uma porta muitas coisas. Quando est fechada, e sempre

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  • est, a clausura, a proibio, o silncio, a raiva. Se abrisse (no para umrecreio ou para um trabalho ou para um castigo, que so vrias outrasmaneiras de estar fechada, mas para o mundo) seria a recuperao darealidade, da gente querida, das ruas, dos sabores, dos cheiros, dos sons,das imagens e do tato de ser livre. Seria, por exemplo, a recuperao devoc e de seus braos e de sua boca e de seu cabelo e ah, de que adiantatentar dar voltas em um trinco que no cede, em uma fechadura em-pedernida. Mas certo que a palavra porta est entre aquelas que maisvm baila por aqui, mais ainda que as outras palavras que esperam atrsdesta porta, pois todos sabemos que para chegar a elas, para chegar s pa-lavras filho, mulher, amigo, rua, cama, caf, biblioteca, praa, estdio,praia, porto, telefone, imprescindvel transpor a palavra porta. E ela,que sempre nos mostra as costas, mas est aqui, nos olha frrea e sectria,cruel e durssima, sem nos fazer nenhuma promessa, sem nos dar nen-huma esperana e fechando-se sempre em nossos narizes. No entanto,no nos deixamos vencer assim sem mais nem menos, ns tambm or-ganizamos nossa campanha anticlausura, e escrevemos cartas, consider-ando simultaneamente o destinatrio e o censor, ou projetos de cartaonde, por hbito, continuamos a nos autocensurar, mas somos umpouquinho mais ousados ou mastigamos livres monlogos como este quejamais chegar ao papel e a seus limites. Mas um dos matizes mais not-veis e positivos dessa campanha justamente fazer promessas a nsmesmos, dar-nos esperanas (no as incrveis e triunfalistas, mas as aus-teras e verossmeis), imaginar que abrimos a porta em nossos narizes. svezes, podemos jogar xadrez ou cartas, mas nem sempre. Ah, mas temoso direito de jogar futuro e, claro, nesse jogo de azar sempre guardamosuma carta na manga ou reservamos um xeque-mate originalssimo esecreto que no vamos desperdiar no jogo cotidiano, mas na grandeocasio, por exemplo, quando enfrentarmos Capablanca ou Alekhine,no vamos dizer Karpov, pois esse afinal existe e alm do mais seu nomepoderia ser riscado. Tambm falamos de msica e msicos, sempre equando no nos levem, a meu companheiro de turno ou a mim, para

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  • outra parte com a msica. Mas a ss ou com algum, posso recordar, porexemplo, minhas vrias glrias de espectador. E assim, conto ou, no maisanacoreta dos casos, conto-me que vi e ouvi Maurice Chevalier no Sols,j veteranssimo o sujeito, mas ainda bem-humorado e to gentil que nosfazia acreditar que improvisava cada uma de suas piadas pr-histricas; evi e ouvi Louis Armstrong na Plaza e ainda posso repetir a convincentehumanidade de sua rouquido; e vi e ouvi Charles Trenet em no sei queCentro espanhol da rua Soriano, todos sentados numas cadeiras quepareciam de restaurante e ns, os guris, no cho e ele, o francs, um pou-co afetado, mas hbil, cantando o que anos mais tarde vim a saber que sechamava La mer ou Bonsoir jolie madame, e vi e ouvi Marian Anderson,no lembro mais se no Sodr ou no Sols, mas guardo bem ntido oporte daquela negra enorme e dulcssima, instalada como um mantra natrgica assuno de sua raa; e muito depois vi e ouvi Robbe-Grilletdizendo to