bauman, zygmunt. entrevista

6
BAUMAN, Zygmunt. Entrevista. Acessado em: 05 de fevereiro de 2015 Disponível em: http://www.contioutra.com/entrevista-zygmunt- bauman-e-possivel-que-ja-estejamos-em-plena-revolucao/ O sociólogo polônes Zygmunt Bauman, em entrevista à MGMagazine traduzida para o português e publicada pelo site Fronteiras do Pensamento, fala, aos 89 anos, sobre o mundo atual e como entende os efeitos da modernidade sobre as pessoas. “As consequências são a austeridade, o aumento do desemprego e, sobretudo, a devastação emocional e mental de muitos jovens que entram agora no mercado de trabalho e sentem que não são bem- vindos, que não podem adicionar nada ao bem-estar da sociedade, porque são uma carga”, diz. MGMagazine: O senhor imaginou que poderia se tornar uma estrela midiática em nível global? Zygmunt Bauman: Certamente não. Mas não sou uma estrela. Quando eu morrer, o que provavelmente acontecerá logo, com certeza morrerei como uma pessoa insatisfeita, que não alcançou seu objetivo. MGMagazine: Por quê? Zygmunt Bauman: Porque tratei de transmitir certas ideias durante toda a minha vida, que tem sido muito longa. E quando olho pra trás, existe toda uma montanha cinza de esperanças e expectativas que morreram ao nascer ou faleceram muito jovens. Não tenho nada para me gabar. Tento juntar palavras para dizer às pessoas quais são os problemas, de onde eles vêm, onde se escondem, como encontrar ajuda para resolvê-los se for possível. Mas são palavras. E não nego que são poderosas, porque a nossa realidade, o que nós pensamos que é o mundo, esta sala, nossa vida, nossas lembranças, são palavras. Mas, apesar de ter vivido tantos anos, não consegui resolver o problema de transformar as palavras em carne. Hoje, existe uma enorme quantidade de pessoas que querem a transformação, que têm ideias de como tornar o mundo melhor não somente para eles, mas também para os outros, mais hospitaleiro. Mas na sociedade contemporânea, na qual somos mais livres do que nunca, ao mesmo tempo somos também mais impotentes do que em qualquer outro momento da história. Todos sentimos a desagradável experiência de ser incapazes de mudar qualquer coisa. Somos um

Upload: guilherme-milkevicz

Post on 09-Sep-2015

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

bauman

TRANSCRIPT

BAUMAN, Zygmunt. Entrevista.Acessado em: 05 de fevereiro de 2015

Disponvel em: http://www.contioutra.com/entrevista-zygmunt-bauman-e-possivel-que-ja-estejamos-em-plena-revolucao/O socilogo polnesZygmunt Bauman, em entrevista MGMagazinetraduzida para o portugus e publicada pelo siteFronteiras do Pensamento, fala, aos 89 anos, sobre o mundo atual e como entende os efeitos da modernidade sobre as pessoas. As consequncias so a austeridade, o aumento do desemprego e, sobretudo, a devastao emocional e mental de muitos jovens que entram agora no mercado de trabalho e sentem que no so bem-vindos, que no podem adicionar nada ao bem-estar da sociedade, porque so uma carga, diz.MGMagazine: O senhor imaginou que poderia se tornar uma estrela miditica em nvel global?Zygmunt Bauman:Certamente no. Mas no sou uma estrela. Quando eu morrer, o que provavelmente acontecer logo, com certeza morrerei como uma pessoa insatisfeita, que no alcanou seu objetivo.MGMagazine:Por qu?Zygmunt Bauman:Porque tratei de transmitir certas ideias durante toda a minha vida, que tem sido muito longa. E quando olho pra trs, existe toda uma montanha cinza de esperanas e expectativas que morreram ao nascer ou faleceram muito jovens. No tenho nada para me gabar. Tento juntar palavras para dizer s pessoas quais so os problemas, de onde eles vm, onde se escondem, como encontrar ajuda para resolv-los se for possvel. Mas so palavras. E no nego que so poderosas, porque a nossa realidade, o que ns pensamos que o mundo, esta sala, nossa vida, nossas lembranas, so palavras. Mas, apesar de ter vivido tantos anos, no consegui resolver o problema de transformar as palavras em carne. Hoje, existe uma enorme quantidade de pessoas que querem a transformao, que tm ideias de como tornar o mundo melhor no somente para eles, mas tambm para os outros, mais hospitaleiro. Mas na sociedade contempornea, na qual somos mais livres do que nunca, ao mesmo tempo somos tambm mais impotentes do que em qualquer outro momento da histria. Todos sentimos a desagradvel experincia de ser incapazes de mudar qualquer coisa. Somos um conjunto de indivduos com boas intenes, mas entre as intenes e os projetos e a realidade tem muita distncia. Todos sofremos agora mais do que em qualquer outro momento pela falta total de agentes, de instituies coletivas capazes de atuar efetivamente.MGMagazine:O que mudou?Zygmunt Bauman:Quando eu era jovem, todos os meus contemporneos, de esquerda, direita ou centro, coincidiam em um ponto: se chegamos ao governo ou fazemos uma revoluo, sabemos o que fazer e como fazer atravs do poder do Estado. Agora, ningum acredita que o governo pode fazer algo. Os governos so vistos como instituies que nunca cumprem suas promessas. um grave problema. Porque significa que, embora saibamos como criar uma sociedade mais humana e no momento abandonamos a esperana de poder projet-la, a grande pergunta, para a qual no tenho resposta, quem vai transform-la em realidade.MGMagazine:Viver em um mundo lquido, o que isso significa exatamente?Zygmunt Bauman:Modernidade significa modernizao obsessiva, viciante, compulsiva. Modernizao significa no aceitar as coisas como elas so, e sim transform-las em algo que consideramos que melhor. Modernizamos tudo. Voc pega as suas regulaes, seus objetos, e trata de moderniz-los. No duram muito tempo. Isso o mundo lquido. Nada tem uma forma definida que dure muito tempo. Deve-se dizer que fundir o que slido, transform-lo em lquido e mold-lo de novo era uma preocupao da modernidade desde o princpio, mas o objetivo era outro. Arbitrariamente, mas acredito que de forma til, situo o incio da modernidade no ano de 1.775 no terremoto de Lisboa, seguido de um incndio que destruiu o que restava e em seguida umtsunamique levou consigo tudo para o mar.MGMagazine:Por que nesse terremoto?Zygmunt Bauman:Foi uma catstrofe, no s material, mas tambm intelectual. As pessoas pensavam, at ento, que Deus tinha criado tudo, que tinha criado a natureza e disposto leis. Mas, de repente, veem que a natureza cega, indiferente, hostil com os humanos. No se pode confiar nela. O mundo tem que estar sob direo humana. Substituir o que existe pelo que se pode projetar. Assim, Rousseau, Voltaire ou Holbach viram que o antigo regime no funcionava e decidiram que tinham de fundi-lo e refaz-lo de novo no molde da racionalidade. A diferena em relao ao mundo de hoje que no o faziam porque no gostavam do que era slido, e sim, pelo contrrio, porque acreditavam que o regime que existia no era suficientemente slido. Queriam construir algo resistente para sempre que substitusse o oxidado. Era a poca da modernidade slida. A poca das grandes fbricas empregando milhares de trabalhadores em enormes edifcios de tijolos, fortalezas que iam durar tanto quanto as catedrais gticas. No entanto, a histria decidiu um caminho muito diferente.MGMagazine:Tornou-se lquida?Zygmunt Bauman:Sim. Hoje a maior preocupao da nossa vida social e individual como prevenir que as coisas sejam fixas, que sejam to slidas que no possam mudar o futuro. No acreditamos que existam solues definitivas, e no s isso: no gostamos delas. Por exemplo: a crise que muitos homens tm ao fazer 40 anos. Ficam paralisados pelo medo de que as coisas j no sejam como antes. E o que mais lhes d medo ter uma identidade aferrada a eles. Uma imagem que no se pode tirar. Estamos acostumados com um tempo veloz, certos de que as coisas no vo durar muito, de que vo aparecer novas oportunidades que vo desvalorizar as existentes. E isso acontece em todos os aspectos da vida. H duas semanas, as pessoas faziam filas durante a noite pelo iPhone 5 e agora mesmo esto fazendo pelo 6. Posso garantir que em dois anos aparecer o 7 e milhes de iPhones 6 sero jogados no lixo. E isso dos objetos materiais funciona da mesma forma com as relaes pessoais e com a prpria relao que temos conosco mesmos, como nos avaliamos, que imagem temos de nossa pessoa, que ambio permitimos que nos guie. Tudo muda de um momento a outro, somos conscientes de que somos transformveis e, portanto, temos medo de fixar qualquer coisa para sempre. Provavelmente, seu governo, como o do Reino Unido, convoca seus cidados a serem flexveis.MGMagazine:Sim, convoca.Zygmunt Bauman:O que significa ser flexvel? Significa que voc no est comprometido com nada para sempre, mas sim pronto para mudar a sintonia, a mente, em qualquer momento no qual seja requisitado. Isso cria uma situao lquida. Como um lquido em um copo, no qual o mais leve empurro muda a forma da gua. E isso est em todos os lugares.MGMagazine:Quais o senhor acredita que so os efeitos desta nova situao nas pessoas?Zygmunt Bauman:H alguns anos, os jovens iam trabalhar para a Ford ou a Fiat como aprendizes e podiam acabar ficando ali pelos prximos 40 anos se no se embebedavam ou morriam antes. Hoje, os jovens que no perderam a ambio depois de ter amargas experincias de trabalho sonham em ir ao Vale do Silcio. a meca das ambies de todo homem jovem, a ponta da lana da inovao, do progresso. Voc sabe qual a mdia de um trabalhador de uma empresa do Vale do Silcio? Oito meses. O socilogo Richard Sennet calculou, h uns anos, que o trabalhador mdio mudaria de empresa onze vezes durante a sua vida. Hoje, essa quantidade inclusive maior. As geraes que emergem das universidades em grandes quantidades esto ainda buscando emprego. E se encontram, no tem nada a ver com suas habilidades e expectativas. Esto empregados em trabalhos precrios, temporrios, sem segurana, sem carreira. Ento, a principal maneira pela qual nos conectamos com o mundo, que a nossa profisso, nosso trabalho, fluida, lquida. Estamos conectados apenas pela gua. E no se pode estar conectado por isso, ocorrem inundaes, fugasMGMagazine:Por isso voc diz que passamos do proletariado ao precariado?Zygmunt Bauman:H no muito tempo o precariado era a condio de vagabundos, sem-teto, mendigos. Agora, marca a natureza da vida de pessoas que h 50 anos estavam bem instaladas. Pessoas de classe mdia. Com exceo do 1% que est acima de tudo, ningum pode se sentir seguro hoje. Todos podem perder as conquistas alcanadas durante sua vida sem aviso prvio. No faz tantos anos, seis, o crdito e os bancos entraram em colapso e as pessoas comearam a ser despejadas de suas casas e seus trabalhos. Antes disso, os otimistas falavam de orgia de consumo, as pessoas pensavam que podiam gastar dinheiro que no tinham porque as coisas seriam cada vez melhores, assim como seus rendimentos, mas tudo isso desabou. As consequncias so hoje os cortes, a austeridade, o alto nvel de desemprego e, sobretudo, a devastao emocional e mental de muitos jovens que entram agora no mercado de trabalho e sentem que no so bem-vindos, que no podem acrescentar nada ao bem-estar da sociedade, que so um peso.MGMagazine:Aumenta o que o senhor chama de vidas desperdiadas.Zygmunt Bauman:Cada vez h mais. Mas que, alm disso, as pessoas que tm emprego experimentam a forte sensao de que existem altas possibilidades de que tambm virem resduos. E, mesmo conhecendo a ameaa, so incapazes de preveni-la. uma combinao de ignorncia e impotncia. No sabem o que vai acontecer, mas nem mesmo sabendo seriam capazes de preveni-lo. Ser o resto, um resduo, uma condio ainda de uma minoria. No entanto, impacta no somente os empobrecidos, mas tambm setores cada vez maiores das classes mdias, que so a base de nossas sociedades democrticas modernas. Esto atribuladas.MGMagazine:As classes mdias vo desaparecer?Zygmunt Bauman:Estamos em um interregno. A palavra foi usada pela primeira vez na histria da Roma Antiga. O primeiro rei lendrio foi Rmulo, que reinou por 38 anos. Essa era a expectativa de vida das pessoas, ento, quando ele morreu, pouca gente lembrava do mundo sem ele. As pessoas estavam confusas. O que fazer? Rmulo lhes dizia o que fazer. E se houvesse outro, ningum sabia o que ele lhes pediria. Gramsci atualizou a ideia de interregno para definir uma situao na qual as antigas formas de fazer as coisas j no funcionam, mas as formas de resolver os problemas de uma nova maneira efetiva ainda no existem ou no as conhecemos. E ns estamos assim. Os governos vivem presos entre duas presses impossveis de reconciliar: a do eleitorado e a dos mercados. Eles tm medo de que, se no agem como as bolsas e o capital mvel querem, as bolsas quebraro e o dinheiro ir a outro pas. No se trata apenas de que possa haver corrupo e estupidez entre os nossos polticos, mas sim que essas situaes os deixam impotentes. E, por isso, as pessoas buscam desesperadamente novas formas de fazer poltica.MGMagazine:Como os indignados?Zygmunt Bauman: um bom exemplo. Se o governo no cumpre, vamos praa pblica. Mas uma boa tentativa que no traz muito resultado. Estamos tentando. Tentando criar alternativas praticveis para atender s necessidades coletivas. O interregno por definio transitrio. Eu acredito que no viverei para ver o novo arranjo, mas sua vida estar repleta de buscas por essas alternativas. Porque este perodo de suspenso, no qual muitas coisas vo mal e temos poucas ideias para resolv-las, no eternamente concebvel.MGMagazine:Ser que j no estamos lquidos demais?Zygmunt Bauman:As mudanas vm e vo. Muita gente est hoje convencida de que j existem alternativas, mas que so invisveis porque ainda esto muito dispersas. Jeremy Rifkin fala da utilidade pblica colaborativa. Benjamin Barber publicou o livroSe os prefeitos governassem o mundo, no qual diz que os estados esto acabados, que foram uma boa ferramenta para a separao, a independncia e a autonomia, mas que em nossos tempos de interdependncia devem ser substitudos. Que as instituies locais so capazes de enfrentar os problemas muito melhor, tm a dimenso adequada para ver e experimentar sua coletividade como uma totalidade. Podem levar adiante lutas muito mais efetivas para melhorar as escolas, a sade, o emprego, a paisagem. Pede um tipo de Parlamento mundial de prefeitos das grandes cidades. Um Parlamento onde as pessoas falem e compartilhem experincias que so altamente parecidas. E as mudanas podem j estar aqui. Minha tese, quando eu estudava, foi sobre os movimentos operrios na Gr Bretanha. Pesquisei nos arquivos do sculo XIX e nos jornais. Para minha surpresa, descobri que at 1875 no se mencionava que estava acontecendo uma revoluo industrial, havia apenas informaes dispersas. Que algum tinha construdo uma fbrica, que o teto de uma fbrica desabou Para ns, bvio que estavam no corao de uma revoluo, para eles, no. possvel que, quando voc for entrevistar algum dentro de 20 anos, essa pessoa lhe diga: Quando voc entrevistou o Bauman em Leeds, vocs estavam no meio de uma revoluo e o senhor perguntava a ele sobre mudanas.