bauer martin gaskell george

21
1/ » ^ o w-j

Upload: cassia-amorim

Post on 20-Oct-2015

53 views

Category:

Documents


8 download

TRANSCRIPT

  • 1/ ^ o w - j

  • 1

    QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES DO CONHECIMENTO EVITANDO CONFUSES

    Martin W. Bauer, G e o r g e Gaskell & Nicholas C. A.llum

    Palavras-chave: anlise de dados; a lei do instrumento; gerao de dados; modos e meios de representao; a situao ideal de pesquisa; del ineamento da pesquisa; interesses do conhecimento.

    Imagine u m jogo de futebol. Dois jogadores adversrios correm atrs da bola e, de repente , u m deles cai, rolando pelo cho. Metade dos espectadores assobiam e gritam, e a outra metade respira alivia-da, pois o possvel per igo foi superado.

    Podemos analisar esta situao social competitiva da seguinte maneira. Primeiro, existem os atores: os jogadores de futebol, 11 de cada lado, al tamente treinados, habilidosos e articulados em seus papis, com o propsito de ganhar o jogo; e os rbitros, isto , o juiz e os bandeirinhas. Este o "campo da ao".

    Temos depois os espectadores. Os assistentes, em sua maioria, so leais torcedores de u m time ou outro. So poucos os que no se identificam com u m ou outro dos times. Haver, contudo, u m ou dois espectadores que no conhecem o futebol, e so apenas curio-sos. As arquibancadas dos espectadores so o "campo de observao ingnua" ingnua no sentido de que os espectadores esto sim-plesmente assistindo aos acontecimentos no campo e so como que par te do prpr io jogo, que eles experienciam como se eles prprios estivessem jogando . Devido a sua lealdade a u m dos times, pensam e sentem dent ro de u m a perspectiva partidria. Quando um dos joga-

    17

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    dores cai, isto in terpretado pelos torcedores do seu time como uma falta, enquanto que para os fs do outro time no passa de u m erro pessoal e teatral.

    Finalmente, h a posio daqueles que descrevem a situao como ns o fazemos aqui. Temos uma curiosidade sobre a natureza tribal do acontecimento, do campo de ao e dos espectadores que esto sendo observados. Em termos ideais, tal descrio requer uma anlise fria da situao, que no tenha envolvimento com nenhum dos times. Nosso envolvimento direto pode ser com o futebol em ge-ral - seus problemas atuais e futuros. A isto ns chamamos de "cam-po de observao sistemtica". A part ir desta posio, podemos rela-cionar trs formas de evidncia: o que est acontecendo no campo, as reaes dos espectadores, e a instituio do futebol como um ramo do esporte, dos negcios ligados aos divertimentos ou ao co-mrcio. Evitar um envolvimento direto exige precaues: a) uma conscincia treinada das conseqncias que derivam do envolvi-mento pessoal; e b) u m compromisso em avaliar as observaes de algum metodicamente e em pblico.

    Tais observaes com diferentes graus de imparcialidade so a problemtica da pesquisa social. Por analogia, podemos facilmente estender este "tipo ideal" de anlise daquilo que podemos chamar uma "situao total de pesquisa" (Cranach et al., 1982: 50), a outras atividades sociais, tais como votar, trabalhar, fazer compras e com-por msica, para mencionar apenas algumas. Podemos estudar o campo de ao, e pergunta r que acontecimentos esto no campo (o objeto de estudo); podemos experimentar subjetivamente tal acon-tecimento - o que est acontecendo, como nos sentimos, e quais os motivos para tal acontecimento. Esta observao ingnua seme-lhante perspectiva dos atores e dos auto-observadores. Finalmen-te, ns nos concentramos na relao sujeito/objeto que brota da com-parao da perspectiva do autor e da perspectiva do observador, dentro de um contexto mais amplo e pergunta como os aconteci-mentos se relacionam s pessoas que os experienciam.

    Uma cobertura adequada dos acontecimentos sociais exige mui-tos mtodos e dados: u m pluralismo metodolgico se origina como uma necessidade metodolgica. A investigao da ao emprica exige a) a observao sistemtica dos acontecimentos; inferir os sen-tidos desses acontecimentos das (auto-) observaes dos atores e dos espectadores exige b) tcnicas de entrevista; e a interpretao dos

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    vestgios materiais que fo ram deixados pelos atores e espectadores exige c) u m a anlise sistemtica.

    O delineamento da pesquisa: gerao de dados, reduo e anlise

    til distinguir ent re quatro dimenses na investigao social. Estas dimenses descrevem o processo de pesquisa em termos de combinaes de elementos atravs das quatro dimenses. Primeiro, h o del ineamento da pesquisa de acordo com seus princpios estrat-gicos, tais como o levantamento por amostragem, a observao parti-cipante, os estudos de caso, os experimentos e quase-experimentos. Segundo, h os mtodos de coleta de dados, tais como a entrevista, a observao e a busca de documentos. Terceiro, h os tratamentos analticos dos dados, tais como a anlise de contedo, a anlise retri-ca, a anlise de discurso e a anlise estatstica. Finalmente, os interes-ses do conhecimento referem-se classificao de Habermas sobre o controle, a construo de consenso e a emancipao dos sujeitos do estudo. Estas quatro dimenses so mostradas na Tabela 1.1.

    Tabela 1.1 - As quatro dimenses do processo de pesquisa

    Princpios do delineamento

    Gerao de dados Anlise dos dados Interesses do conhecimento

    Estudo de caso Entrevista individual Formal

    Estudo comparativo Questionrio Modelagem estatstica

    Levantamento por Amostragem

    Grupos focais Anlise estrutural Controle e predio

    Levantamento por Painel

    Filme informal Construo de consenso

    Experimento Registros udio-visuais

    Anlise de contedo Emancipao e "empoderamento"

    Observao Participante

    Observao sistemtica Coleta de documentos

    Codificao

    Indexao

    Etnografia Registro de sons Anlise semitica Anlise retrica Anlise de discurso

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    Muita confuso metodolgica e muitas afirmaes falsas surgem da compreenso equivocada ao se fazer a distino en t re qualitati-vo/quantitativo na coleta e anlise de dados, com princpios do deli-neamen to da pesquisa e interesses do conhecimento. E mui to poss-vel conceber u m de l ineamento exper imenta l , e m p r e g a n d o entrevis-tas em p r o f u n d i d a d e pa ra conseguir os dados. Do m e s m o modo, u m del ineamento de es tudo de caso p o d e incorporar u m quest ionrio de pesquisa pa ra levantamento, j u n t o com tcnicas observacionais, como p o r exemplo es tudar u m a corporao comercial que passa p o r dificuldades. U m levantamento de g r ande escala de u m g rupo de minor ia tnica p o d e incluir questes abertas p a r a anlise qualitati-va, e os resultados p o d e m servir a interesses emancipatr ios do gru-po minori trio. O u podemos pensa r em u m levantamento aleatrio de u m a populao, coletando os dados atravs de entrevistas com grupos focais. Contudo, como mostra o l t imo exemplo, certas com-binaes de princpios de del ineamentos , com mtodos de coleta de dados, ocor rem com menos freqncia , devido s implicaes liga-das aos recursos. Defendemos a idia de que todas as quat ro d imen-ses devem ser vistas como escolhas relat ivamente independen tes no processo de pesquisa e que a escolha qualitativa ou quantitativa p r imar iamente u m a deciso sobre a gerao de dados e os mtodos de anlise, e s secundar iamente u m a escolha sobre o de l ineamento da pesquisa ou de interesses do conhecimento.

    Embora nossos exemplos t e n h a m includo a pesquisa de levanta-mento, nesse livro ns t rabalhamos pr inc ipa lmente com gerao de dados e procedimentos de anlise dent ro da prtica da pesquisa qua-litativa, isto , pesquisa no-numrica .

    Modos e meios de representao: tipos de dados

    Duas distines sobre dados p o d e m ser teis nesse livro. O mun-do, como o conhecemos e o experienciamos, isto , o m u n d o repre-sentado e no o m u n d o e m si mesmo, constitudo atravs de pro-cessos de comunicao (Berger & Luckmann, 1979; Luckmann, 1995). A pesquisa social, por tan to , apia-se em dados sociais - dados sobre o m u n d o social - que so o resultado, e so construdos nos processos de comunicao.

    Neste livro, dist inguimos dois modos de dados sociais: comuni-cao informal e comunicao formal . Alm disso, dist inguimos trs meios, atravs dos quais os dados p o d e m ser construdos: texto, ima-

    20

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    gem e materiais sonoros (ver Tabela 1.2). A comunicao informal possui algumas poucas regras explcitas: as pessoas podem falar, de-senhar ou cantar do modo que queiram. O fato de haver poucas re-gras explcitas no significa que no existam regras, e pode aconte-cer que o foco central da pesquisa social seja desvelar a ordem oculta do m u n d o informal da vida cotidiana (ver Myers, cap. 11, neste vo-lume, sobre anlise da conversao). Na pesquisa social, estamos in-teressados na maneira como as pessoas espontaneamente se expres-sam e falam sobre o que importante para elas e como elas pensam sobre suas aes e as dos outros. Dados informais so gerados menos conforme as regras de competncia, tais como capacidade de escre-ver u m texto, pintar ou compor uma msica, e mais do impulso do momento, ou sob a influncia do pesquisador. O problema surge quando os entrevistados dizem o que pensam que o entrevistador gostaria de ouvir. Devemos reconhecer falsas falas, que podem dizer mais sobre o pesquisador e sobre o processo de pesquisa, do que so-bre o tema pesquisado.

    Tabela 1.2 - Modos e meios

    Meio-modo

    Texto

    Imagem

    Sons

    Relatos "distorcidos" "falsos" ou encenados

    Informal

    Entrevistas

    Desenhos de crianas Rabiscos feitos ao tele' Cantos espontneos Cenrios sonoros Rudos estratgicos

    Formal Jornais, Programas de rdio Quadros Fotografias Escritos musicais Rituais sonoros Afirmaes falsas sobre uma representao

    Por outro lado, existem aes comunicativas que so al tamente formais, no sentido de que a competncia exige um conhecimento especializado. As pessoas necessitam de treino para escrever arti-gos de jornal , pa ra produzir desenhos para um comercial, ou para criar u m ar ran jo para uma banda popular ou para uma orquestra sinfnica. Uma pessoa competente pode ter estudado as regras do comrcio, muitas vezes para modific-las a seu proveito, o que se chama de inovao. A comunicao formal segue as regras do co-mrcio. O fato de o pesquisador usar os produtos resultantes, tais como um artigo de jornal , pa ra a pesquisa social, provavelmente no influencia o ato da comunicao: no faz diferena o que o jo r -nalista escreveu. Nesse sentido, os dados baseados nos registros

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    no t razem p rob lema . U m p r o b l e m a d i fe ren te surge, con tudo , q u a n d o os comunicadores d izem r e p r e s e n t a r u m g r u p o social que, na rea l idade, n o r ep re sen t am. O cientista social deve r econhece r essas falsas p re tenses de represen tao .

    Os dados formais recons t roem as maneiras pelas quais a realida-de social r ep resen tada p o r u m g rupo social. U m jo rna l represen ta at certo p o n t o o m u n d o pa ra u m grupo de pessoas, caso contrr io elas no o comprar iam. Nesse contexto, o j o rna l se torna u m indica-dor desta viso de m u n d o . O mesmo p o d e ser verdade pa ra dese-nhos que as pessoas consideram interessantes e desejveis, ou pa ra u m a msica que apreciada como agradvel. O que uma pessoa l, olha, ou escuta, coloca esta pessoa e m de te rminada categoria, e pode indicar o que a pessoa p o d e fazer no fu turo . Categorizar o pre-sente e, s vezes, p red izer fu turas trajetrias o objetivo de toda pes-quisa social. Neste livro ns nos concent ramos quase que exclusiva-mente no pr imei ro ponto : a categorizao do problema.

    A filosofia deste livro pressupe que no h "um m o d o timo" de fazer pesquisa social: no h razes convincentes pa ra nos tornar-mos pollsters (pessoas que conduzem pesquisas de opinio), n e m de-vemos nos to rnar todos focusers (pessoas que realizam pesquisas com grupos focais). O objetivo deste livro superar a "lei do ins t rumen-to" (Duncker, 1995), segundo a qual u m a criana que s conhece o martelo pensa que tudo deve ser t ra tado a marteladas. Por analogia, n e m o quest ionrio de levantamento, n e m o g rupo focal se consti-tuem no caminho rgio pa ra a pesquisa social. Este caminho pode , contudo, ser encont rado atravs de u m a conscincia adequada dos diferentes mtodos , de u m a avaliao de suas vantagens e limitaes e de u m a compreenso de seu uso em diferentes situaes sociais, di-ferentes tipos de informaes e diferentes problemas sociais.

    Estamos de acordo agora que a real idade social pode ser repre-sentada de maneiras informais ou formais de comunicar e que o meio de comunicao p o d e ser composto de textos, imagens ou materiais sonoros. Na pesquisa social ns consideramos todos eles como impor-tantes, de u m m o d o ou de outro. E isto que tentaremos esclarecer.

    Pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa

    T e m havido mui ta discusso sobre as diferenas entre pesquisa quantitativa e qualitativa. A pesquisa quantitativa lida com nmeros , usa modelos estatsticos pa ra explicar os dados, e considerada pes-

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    quisa hard. O prott ipo mais conhecido a pesquisa de levantamen-to de opinio. Em contraste, a pesquisa qualitativa evita nmeros, lida com interpretaes das realidades sociais, e considerada pes-quisa soft. O prott ipo mais conhecido , provavelmente, a entrevis-ta em profundidade . Estas diferenas so mostradas na Tabela 1.3. Muitos esforos foram despendidos na tentativa de jus tapor pesqui-sa quantitativa e qualitativa como paradigmas competitivos de pes-quisa social, ao ponto de haver pessoas que construram carreiras dentro de uma ou de outra, muitas vezes polemizando sobre a supe-rioridade da quantitativa sobre a qualitativa, ou vice-versa. Os edito-res foram rpidos em demarcar u m mercado e criaram colees de livros e revistas com a finalidade de perpetuar tal discusso.

    Tabela 1.3 - Diferenas entre pesquisa quantitativa e qualitativa

    Estratgias

    Quantitativas Qualitativas

    Dados Nmeros Textos

    Anlise Estatstica Interpretao

    Prottipo Pesquisas de opinio Entrevista em profundidade

    Qualidade Hard Soff

    correto afirmar que a maior parte da pesquisa quantitativa est centrada ao redor do levantamento de dados (survey) e de question-rios, apoiada pelo SPSS (Statistical Package for Social Sciences) e pelo SAS (Statistics for Social Sciences) como programas padres de anlise estatstica. Tal prtica estabeleceu padres de treinamento metodo-lgico nas universidades, a tal ponto que o termo metodologia pas-sou a significar estatstica em muitos campos da cincia social. Para-lelamente, desenvolveu-se u m amplo setor de negcios, oferecendo pesquisa social quantitativa para uma infinidade de propsitos. Mas o entusiasmo recente pela pesquisa qualitativa conseguiu mudar, com sucesso, a simples equiparao da pesquisa social com a meto-dologia quantitativa; e foi reaberto u m espao para uma viso menos dogmtica a respeito de assuntos metodolgicos - uma atitude que era comum entre os pioneiros da pesquisa social (veja, por exemplo, Lazarsfeld, 1968).

    Em nossos esforos, tanto em pesquisar, como em ensinar pes-quisa social, estamos tentando u m modo de superar tal polmica es-tril, entre duas tradies de pesquisa social aparentemente compe-

    23

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    titivas. Estamos procurando este objetivo apoiados em vrios pressu-postos, como os que se seguem.

    No h quantificao sem qualificao

    A mensurao dos fatos sociais depende da categorizao do mundo social. As atividades sociais devem ser distinguidas antes que qualquer freqncia ou percentual possa ser atribudo a qualquer distino. necessrio ter u m a noo das distines qualitativas en-tre categorias sociais, antes que se possa medir quantas pessoas per-tencem a uma ou outra categoria. Se algum quer saber a distribui-o de cores num j a rd im de flores, deve pr imeiramente identificar o conjunto de cores que existem no jardim; somente depois disso pode-se comear a contar as flores de determinada cor. O mesmo verdade para os fatos sociais.

    No h anlise estatstica sem interpretao

    Pensamos que incorreto assumir que a pesquisa qualitativa possui o monoplio da interpretao, com o pressuposto paralelo de que a pesquisa quantitativa chega a suas concluses quase que au-tomaticamente. Ns mesmos nunca realizamos nenhuma pesquisa numrica sem enfrentar problemas de interpretao. Os dados no falam por si mesmos, mesmo que sejam processados cuidadosamen-te, com modelos estatsticos sofisticados. Na verdade, quanto mais complexo o modelo, mais difcil a interpretao dos resultados. Escudar-se atrs do "crculo hermenutico" de interpretao, de acordo com o qual a melhor compreenso provm do fato de se sa-ber mais sobre o campo de investigao, para os pesquisadores qualitativos um lance retrico, mas u m lance bastante ilusrio. O que a discusso sobre a pesquisa qualitativa tem conseguido foi des-mistificar a sofisticao estatstica como o nico caminho para se conseguir resultados significativos.. O prestgio ligado aos dados nu-mricos possui tal pode r de persuaso que, em alguns contextos, a m qualidade dos dados mascarada e compensada por uma sofisti-cao numrica. A estatstica, como u m recurso retrico, contudo, preocupa-se com o problema relativo ao tipo de informaes que so analisadas: se colocarmos informaes irrelevantes, teremos es-tatsticas irrelevantes. No nosso ponto de vista, a grande conquista da discusso sobre mtodos qualitativos que ela, no que se refere pesquisa e ao treinamento, deslocou a ateno da anlise em direo a questes referentes qualidade e coleta dos dados.

    24

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    Parece que a distino entre pesquisa numrica e no-numrica , muitas vezes, confundida com outra discusso, isto , a distino entre formalizao e no formalizao da pesquisa (ver Tabela 1.4). A pol-mica sobre estes tipos de pesquisa muitas vezes ligada ao problema da formalidade, e baseada na socializao metodolgica do pesquisa-dor. O formalismo implica abstraes do contexto concreto da pes-quisa, introduzindo assim uma distncia entre a observao e os da-dos. Explicando melhor, o formalismo uma abstrao para propsi-tos gerais, til para o tratamento de muitos tipos de dados, contanto que determinadas condies sejam satisfeitas, tais como independn-cia das mensuraes, igual varincia, etc. A natureza abstrata do for-malismo implica uma especializao tal que pode conduzir a u m de-sinteresse total para com a realidade social representada pelos dados. Muitas vezes esse "distanciamento emocional", e no tanto os nme-ros em si, que leva pesquisadores com outras convices a no se sen-tirem bem com a pesquisa quantitativa. Como mostraremos a seguir, contudo, isso tem a ver com o fato de se lidar com um mtodo de pes-quisa especfico, mas pode ser discutido com mais proveito no contex-to mais amplo dos interesses do conhecimento. A pesquisa numrica possui u m amplo repertrio de formalidades estatsticas a seu dispor, enquanto que u m repertrio equivalente na pesquisa qualitativa no est ainda bem desenvolvido - apesar do fato de que seu antecessor, muitas vezes invocado, o estruturalismo, fosse muito forte em forma-lismos (veja, por exemplo, Abell, 1987).

    Tabela 1.4 - A formalizao e a no formalizao da pesquisa

    Quantitativa Qualitativa No formalizao Freqncias descritivas Citaes, descries, anedo-

    tas Formalizao Modelagem estatstica, por Modelagem

    ex. um livro de introduo terico-grfica, por ex. Abell (1987)

    Pluralismo metodolgico dentro do processo de pesquisa: alm da lei do instrumento

    Uma conseqncia infeliz da prtica de se centrar em dados nu-mricos no treinamento em pesquisa foi uma interrupo prematu-ra na fase de coleta de dados no processo de pesquisa. Com muitas pessoas competentes no tratamento de dados numricos, o processo de coleta de dados rapidamente reduzido s rotinas mecnicas do

  • s PESQUISA QUALITATIVA C O M TEXTO, IMAGEM E SOM

    . . . . . . . . . , , . . . . . . ^ . . . s s

    delineamento do questionrio e da amostra do levantamento, como j se esta fosse a nica maneira de se fazer pesquisa social. No h dvi- S da que muito se conseguiu devido ao ref inamento destes procedi- | i mentos, ao passar dos anos, e o status do levantamento (survey), como . o mais importante mtodo de pesquisa social justificado devido a isso. Nada justifica, contudo, sua condio como o nico instrumen- | j to de pesquisa social. Estamos aqui no per igo de sucumbir "lei do instrumento": d u m martelo a u m a criana, e todas as coisas no mundo devem ser marteladas.

    O que necessrio uma viso mais holstica do processo de pes-quisa social, para que ele possa incluir a definio e a reviso de u m problema, sua teorizao, a coleta de dados, a anlise dos dados e a apresentao dos resultados. Dentro deste processo, diferentes me-todologias tm contribuies diversas a oferecer. Necessitamos de uma noo mais clara das vantagens e desvantagens funcionais das diferentes correntes de mtodos, e dos diferentes mtodos dentro de uma corrente.

    A ordenao do tempo

    Um modo de descrever a funcionalidade dos diferentes mtodos orden-los em u m desenho que implique uma linha de tempo. Tradicionalmente, a pesquisa qualitativa foi considerada apenas no estgio exploratrio do processo de pesquisa (pr-desenho), com a |g finalidade de explorar distines qualitativas, a fim de se desenvol- j ver mensuraes, ou para que se tivesse certa sensibilidade com o |g campo de pesquisa. Formulaes mais recentes consideram a pes- :j| quisa qualitativa como igualmente importante depois do levanta- |g mento, para guiar a anlise dos dados levantados, ou para funda- | mentar a interpretao com observaes mais detalhadas (ps-deli- > neamento). Delineamentos mais amplos consideram duas correntes fe paralelas de pesquisa, tanto simultaneamente, como em seqncias oscilantes (delineamento paralelo; del ineamento antes-e-depois). Finalmente, a pesquisa qualitativa pode ser agora considerada como 5 sendo u m a estratgia de pesquisa independente , sem qualquer co- | | nexo funcional com o levantamento ou com outra pesquisa quanti- ^ tativa ( independente). A pesquisa qualitativa vista como u m em-preendimento autnomo de pesquisa, no contexto de um programa de pesquisa com uma srie de diferentes projetos.

    A funo independente da pesquisa qualitativa possui uma limi-tao que ns tentamos enfrentar neste livro. Embora seja possvel

    26

    J

    &

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    considerar a pesquisa numr ica e a no numr ica como empreendi -mentos au tnomos , o p r o b l e m a com a pesquisa qualitativa que ela u m "pesadelo didtico". Se comparados com a tradio de pesquisa numr ica , baseada na amost ragem, no quest ionrio e na anlise estatstica, os pesquisadores qualitativos, e os que pre ten-dem tornar-se pesquisadores qualitativos, encon t ram pouca clareza e orientao na l i teratura pa ra seus procedimentos . Embora isto es-teja m u d a n d o lentamente , med ida que a massa crtica de pesquisa-dores desta l inha est aumentando , a maior ia da l i teratura est ain-da p reocupada e m demarca r o terri trio legtimo deste procedi-mento metodolgico au tnomo. Esta retrica Iegit imadora levou a uma hiper t rof ia epistemolgica, or ig inando definies de posicio-namentos e contraposicionamentos den t ro de u m campo competiti-vo, com mais obscurantismo e ja rges do que com esclarecimento e, ao final de contas, foi de pouca serventia q u a n d o se trata de saber o que fazer quando se faz pesquisa qualitativa. At o presente momen-to, temos mui to apoio pa ra nos "sentirmos bem", face crtica tradi-cional, mas h pouca auto-observao crtica.

    Discurso independente dos "padres de boa prtica"

    A vantagem didtica e prtica da pesquisa numr ica sua clareza de procedimentos e seu elaborado discurso de qual idade no proces-so de investigao. U m discurso de qual idade serve a vrios propsi-tos numa investigao: a) pa ra estabelecer u m a base para autocrti-ca; b) pa ra demarca r u m a prt ica boa de u m a ruim, servindo como padres pa ra a reviso dos pares; c) pa ra ganhar credibil idade no contexto da credibi l idade pblica; d) pa ra servir como u m instru-mento didtico no t re inamento dos estudantes. Sem querer imitar li teralmente a pesquisa quantitativa, a pesquisa qualitativa necessita desenvolver equivalentes funcionais. A fim de reforar a autonomia e a credibilidade da pesquisa qualitativa, necessitamos procedimentos e padres claros pa ra identificar u m a boa prt ica e u m a prtica ruim, tanto atravs de exemplos, como de critrios abstratos. Este livro traz uma contribuio nesta direo.

    Elementos retricos da pesquisa social

    Historicamente, a cincia e a retrica tiveram uma relao difcil. A retrica foi vista pelos pioneiros da cincia como uma forma de em-belezamento verbal que necessitava ser evitado se algum quisesse al-canar a verdade do problema: veja o lema da Sociedade Real de

    27

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    Londres, nullius in verbis (nada nas palavras). Este ideal cientfico da descrio e explicao da natureza, sem recorrer a meios retricos, est sendo cada vez mais desafiado pela viso realista do que est acontecendo na comunicao no meio dos cientistas e entre cientistas e outros setores do pblico (Gross, 1990). O "deve" da cincia est obscurecendo o "" da cincia. Um elemento essencial da atividade cientfica "comunicar", e isto implica persuadir os ouvintes que al-gumas coisas so importantes e outras no. A persuaso nos leva es-fera tradicional da retrica como "a arte de persuadir". Por conse-guinte, ns consideramos a pesquisa social cientfica como uma forma de retrica com meios e normas especficas de engajamento.

    A anlise retrica incorpora os "trs mosqueteiros" da persua-so: o logos, opathos e o ethos (veja Leach, cap. 12 neste volume). O lo-gos se refere lgica do pu ro argumento, e os tipos de argumentos empregados. Opathos se refere aos tipos de apelo e reconhecimento dado audincia, levando em considerao a psicologia social das emoes. O ethos abrange as referncias implcitas e explcitas na si-tuao de quem fala, que estabelece sua legitimidade e credibilidade no falar o que est sendo dito. Deveramos, portanto, pressupor que toda apresentao de resultados de uma pesquisa u m conjunto dos trs elementos bsicos da persuaso, na medida em que os pesquisa-dores querem convencer seus pares, os polticos, as agncias de fi-nanciamento, ou mesmo seus sujeitos de estudo, da autenticidade e importncia de seus achados. No contexto de se comunicar os resul-tados da pesquisa, o ideal cientfico de uma retrica de pura raciona-lidade argumentativa, sem pathos ou ethos, uma iluso.

    Esta perspectiva apresenta vrias implicaes teis para nosso pro-blema da pesquisa qualitativa. Primeiro, sentimo-nos livres para con-siderar a metodologia da pesquisa social como o meio retrico, atra-vs do qual as cincias sociais podem reforar sua forma especfica de persuaso. O surgimento e a trajetria histrica desta forma de retri-ca na esfera pblica da sociedade moderna so, em si mesmos, pro-blemas histricos e sociolgicos. Em segundo lugar, libertamo-nos do obscurecimento epistemolgico que pesa sobre as discusses dos m-todos, e podemos nos concentrar em desenvolver comunicaes ve-rossmeis, dentro das regras do jogo cientfico. Em terceiro lugar, po-demos tratar a pesquisa quantitativa e qualitativa de modo igual, a partir destes pressupostos. Em quarto lugar, a retrica se desenvolve no contexto do falar e do escrever pblicos, o que nos lembra que o mtodo e o procedimento constituem uma forma de responsabilida-

    28

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    de pblica para a pesquisa que necessita ser exercida altura. E final-mente, o ideal cientfico no perdido, mas preservado, a part ir de u m a motivao coletiva pa ra se construir e conservar esta forma espe-cfica de persuaso cientfica - isto , manter uma retrica em favor do logos, reduzindo o ethos e opathos na comunicao. As regras do mto-do e os procedimentos pa ra se conseguir apresentar evidncia em p-blico nos pro tegem da supervalorizao da autoridade {ethos), e de apenas satisfazer ao pblico - dizendo-lhe o que quer ouvir (pathos). No dar ouvidos n e m autoridade, n e m ao pblico, continua sendo u m valor central de qualquer pesquisa que merea tal nome. Isto apenas relevante em contraste com outras formas de retrica da vida pblica, que diferem em sua combinao de logos, ethos e pathos. Os mundos da poltica, da arte e da literatura, os meios de comunicao e os tribunais, encorajam e cultivam formas de persuaso que so dife-rentes da forma como ela empregda na cincia. Atente-se que "di-ferentes da cincia" no significa "irrelevantes": notcias, ju lgamentos legais e boatos so formas importantes de comunicao embora difi-ram, em sua combinao de logos, pathos e ethos, do que normalmente considerado uma comunicao cientfica.

    Deste modo , consideramos os mtodos e procedimentos de cole-ta e de apresentao de evidncia como essenciais pa ra a pesquisa social cientfica. Eles de f inem o grau especfico de retrica que de-marca as atividades cientficas de outras atividades pblicas, e colo-cam com clareza a pesquisa den t ro da esfera pblica, sujeitando-a s exigncias de credibilidade. Os mtodos e os procedimentos so o meio cientfico de prestao de contas pblica com respeito evi-dncia. Temos , contudo, de pressupor uma esfera pblica que tenha l iberdade de permit i r u m a busca da evidncia sem censura, o que no p o d e ser assumido como algo dado (Habermas, 1989).

    Interesses do conhecimento e mtodos

    Mtodos quantitativos e qualitativos so mais que apenas diferen-as entre estratgias de pesquisa e procedimentos de coleta de da-dos. Esses enfoques representam, fundavientalmente, diferentes re-ferenciais epistemolgicos para teonzar a natureza do conhecimen-to, a realidade social e os procedimentos para se compreender esses fenmenos (Filstead, 1979: 45).

    Esta afirmao exemplif ica o pon to de vista de que enfoques quantitativos e qualitativos com referncia pesquisa social repre-sentam posies epistemolgicas p r o f u n d a m e n t e diferentes. Eles

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    m

    W-

    so, dentro de tal concepo, modos de investigao mutuamente jg exclusivos. Outra afirmao, contudo, que muitas vezes feita, refe- | re-se significncia crtica, radical ou emancipatria, implicada na escolha do mtodo feita pelo pesquisador. A pesquisa qualitativa , f muitas vezes, vista como u m a maneira de dar poder ou dar voz s pessoas, em vez de trat-las como objetos, cujo comportamento deve ser quantificado e estatisticamente modelado. Essa dicotomia in-til, como j vimos.

    Um modo alternativo de pensar sobre os objetivos da pesquisa social e sua relao com a metodologia levar em conta a filosofia de J rgen Habermas, apresentada em Knowledge and Human Interests (Conhecimento e Interesses Humanos, 1987). Habermas identifica trs "interesses do conhecimento", que devem ser compreendidos, a fim de dar sentido prtica da cincia social e de suas conseqncias na sociedade. Mas ele ressalta que no so as orientaes intencio-nais e epistemologicamente conscientes dos cientistas que fornecem a chave para tal compreenso. Ao contrrio, ele concebe os interes-ses do conhecimento como tradies "antropologicamente sedi-mentadas" (Habermas, 1974: 8). Os interesses constitutivos do co-nhecimento aos quais Habermas se refere so, de fato, as "condies que so necessrias a fim de que sujeitos capazes de falar e agir pos-sam ter u m a experincia que possa fundamenta r uma objetividade" (1974: 9). Ten tando t o m a r isso claro, ns descartamos a idia de que interesses, no sentido de Habermas, possam ser colocados "a servio" de qualquer enfoque metodolgico; ao contrrio, eles exis-tem, em primeiro lugar, como condies necessrias para a possibi-lidade da prtica de pesquisa, independentemente de que mtodos especficos sejam empregados:

    O fato de negarmos a reflexo positivismo (1987: VII).

    Em Knowledge and Human Interests, Habermas quer reconstruir a "pr-histria" do positivismo, para mostrar como a epistemologia, como uma crtica do conhecimento, foi sendo progressivamente mi-nada. Desde Kant, argumenta Habermas, "constri-se o prprio ca-minho sobre estgios abandonados de reflexo" (1987: VII). A partir do predomnio do positivismo, a filosofia no pode mais compreen-der a cincia; pois a prpria cincia que constitui a nica forma de conhecimento que o positivismo admite como crtica. A investigao kantiana sobre as condies de um conhecimento possvel foi substi-tuda por uma filosofia da cincia que "se restringe regulao pseu-

    30

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    donormativa da pesquisa estabelecida" (1987: 4), como o falsificacio-nismo de Popper. Habermas tenta reabilitar uma dimenso episte-molgica dentro da filosofia da cincia, "auto-reflexo crtica", atra-vs da qual a cincia pode se tornar capaz de autocompreenso (no-cientstica). E, ao fazer isso, argumenta Habermas, a cincia, e

    j particularmente a cincia social, capaz de revelar as condies que !/ possam impedir uma prtica de pesquisa crtica e emancipatria.

    Podemos agora voltar tipologia especfica de interesses que Habermas emprega. Atravs de uma interpretao de Marx, Peirce, Gadamer e Dilthey, Habermas identifica trs interesses constitutivos do conhecimento que esto na base das cincias "emprico-analti-cas", "histrico-hermenuticas" e "crticas". As cincias emprico-ana-lticas tm como sua base um interesse no controle tcnico. A luta perptua para controlar o m u n d o natural, necessria para a repro-duo de ns mesmos como seres humanos, leva-nos a formular re-gras que guiam nossa ao com propsito racional. Em outras pala-vras, o imperativo racional para a aquisio do conhecimento cient-fico sempre foi o de conseguir controle sobre as condies materiais em que nos encontramos e com isso aumentar nossa sade e segu-rana fsica e espiritual. Devido ao fato de nosso interesse pela natu-reza ser fundamenta lmente o de controlar suas condies, "este sis-tema de ao condiciona, com necessidade transcendental, nosso conhecimento da natureza ao interesse no possvel controle tcnico sobre os processos naturais" (McCarthy, 1978: 62). As cincias emp-rico-analticas procuram produzir conhecimento nomolgico. A pre-dio e a explicao possuem, portanto, uma relao de simetria. Leis universais fundamentadas empiricamente so combinadas com um conjunto de condies iniciais, que resultam em um conjunto de covarincias (previsveis) de acontecimentos observveis. Este um modelo que pode ser visto em muita pesquisa social quantitativa.

    As cincias histrico-hermenuticas, diz Habermas, surgem atra-vs de u m interesse prtico no estabelecimento de consenso. Para que a cincia (e, na verdade, qualquer outra prtica social) acontea, imperativo que haja compreenso intersubjetiva fidedigna, estabe-lecida na prtica da linguagem comum. A compreenso hermenu-tica (Verstehen) tem como finalidade restaurar canais rompidos de comunicao. Isto se d em duas dimenses: a primeira, no elo entre a prpria experincia de vida de algum e a tradio qual ele per-tence; e a segunda se d na esfera da comunicao entre diferentes indivduos, grupos e tradies. A falta de comunicao uma carac-

    31

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    terstica perptua e onipresente do m u n d o social, e se constitui num problema social bvio. A preocupao em restabelecer o entendi-mento mtuo torna-se ento, de igual modo, u m problema perp-tuo e onipresente. As cincias histrico-hermenuticas procederam de prticas em questes pblicas na poltica e na organizao de comunidades e de trabalho para produo - onde a vida individual e a organizao social so impossveis sem alguma estabilidade do sen-tido intersubjetivo. Estas so, pois, as condies que exigem o desen-volvimento das cincias culturais ou sociais. Habermas contrasta a fi-nalidade das cincias emprico-analticas com as cincias culturais (Geisteswissenchaften):

    As primeiras tm como finalidade substituir regras de comporta-mento que fracassaram na realidade com regras tcnicas testadas, enquanto que as segundas procuram interpretar expresses da vida que no podem ser compreendidas e que bloqueiam a recipro-cidade das expectativas comportamentais (1987: 175).

    O cientista cultural necessita aprender a falar a lngua que ele in-terpreta, mas deve necessariamente aproximar-se de tal interpreta-o de um ponto histrico especfico. E ao fazer isto, impossvel no levar em considerao a totalidade de interpretao que j est presente: o pesquisador entra no que poderia se chamar de "crculo hermenutico". O ponto a que tudo isso conduz, para Habermas, ao estabelecimento de consenso entre os atores. Este consenso ne-cessariamente fluido e dinmico, pois ele conseguido atravs de uma interpretao que evoluiu, e continua a evoluir, historicamente. Essa orientao consensual para se apreender a realidade social constitui o "interesse prtico" das cincias hermenuticas - cuja fi-nalidade (no dita) estabelecer as normas comuns que tornam a atividade social possvel.

    A esta altura, pode-se ver claramente como a clivagem quantita-tivo/qualitativo pode ser caracterizada como a que separa tcnicas de "controle", por u m lado, e de "compreenso", po r outro. Mas isto, na verdade, no confronta a afirmativa mais forte feita, muitas vezes, em favor da pesquisa qualitativa, de que ela intrinsecamente uma forma de pesquisa mais crtica e potencialmente emancipat-ria. Um objetivo importante do pesquisador qualitativo que ele se torna capaz de ver "atravs dos olhos daqueles que esto sendo pes-quisados" (Bryman, 1988: 61). Tal tipo de enfoque defende que necessrio compreender as interpretaes que os atores sociais pos-suem do mundo , pois so estes que motivam o comportamento que

    32

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    cria o prpr io m u n d o social. Embora isso seja certamente verdadei-ro, no se conclui que o resultado seja necessariamente uma produ-o crtica. Na verdade, pode-se imaginar uma situao em que tal "entendimento", da maneira como construdo, sirva de fundamen-to para o estabelecimento de mecanismos de controle social.

    Uma crtica bem-sucedida a que explica os fenmenos sob in-vestigao com mais sucesso do que as teorias aceitas at o momen-to. E ao fazer isto, ela deve desafiar pressupostos que at o momento tinham sido aceitos acriticamente. Corremos o risco, ao assumirmos um enfoque fenomnolgico, socioconstrucionista ou qualquer ou-tro enfoque qualitativo, de substituirmos acriticamente nossos pr-prios pressupostos, pelos de nossos informantes. Deste modo, por arte de u m "empiricismo por proximidade", a pesquisa qualitativa pode repetir os erros considerados, em geral, como sendo associa-dos a um positivismo acrtico.

    A esta altura Habermas , mais uma vez, til. Os interesses eman-cipatrios daquilo que Habermas (1987: 310) chama de cincias "cr-ticas", no excluem u m modo de investigao emprico-analtica: mas de igual modo eles vo mais alm que o entendimento hermenutico. A tese de Habermas a de que os interesses emancipatrios fornecem o referencial para se avanar alm do conhecimento nomolgico e da Verstelien, e nos permitem "determinar quando afirmaes tericas atingem regularidades invariantes da ao social como tal, e quando elas expressam relaes ideologicamente congeladas de dependncia que podem, em princpio, ser transformadas" (1987: 310). atravs de um processo auto-reflexivo que as cincias crticas podem chegar a identificar estruturas condicionadoras de poder que, acriticamente, se mostram como "naturais" mas so, de fato, o resultado de uma "comunicao sistematicamente distorcida e de uma represso sutil-mente legitimada" (1987: 371).

    Habermas v o per odo do Iluminismo como a idade de ouro da cincia "crtica", da astronomia at a filosofia. Mas o que distingue este perodo no simplesmente o fato de que ele marcou o comeo do "mtodo cientfico", mas que a aplicao da razo, como corpori-ficada no mtodo, foi inerentemente emancipatria, devido ao de-safio que ela colocou legitimao da Igreja e da hierarquia social existente. A afirmativa de Habermas , pois, que a razo (o que ns comumente entendemos hoje por racionalismo) em si mesma ine-rente a um interesse de conhecimento emancipatrio e que a aplica-o da razo fundamenta lmente u m empreendimento crtico. No

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    se deveria, porm, tentar compreender esta postura como uma pres-crio normativa a ser assumida pelos cientistas sociais "radicais", ao invs disto, ela u m caminho para se teorizar como, e por que, uma boa cincia, de qualquer espcie, pode ser uma atividade libertadora para a humanidade.

    Zygmunt Bauman, escrevendo na mesma linha de idias que Ha-bermas dentro da tradio da teoria crtica, apresenta uma sugesto prtica para a operacionalizao de u m enfoque de pesquisa crtica -"autenticao":

    0 potencial emancipatrio do conhecimento posto prova -ena verdade pode ser concretizado somente a partir do dilogo, quan-do os objetos das afirmaes, tericas se transformavi em partici-pantes ativos no processo incipiente de autenticao (1976: 106).

    A autenticao de u m a teoria crtica, deste ponto de vista, so-mente pode ser conseguida atravs da aceitao de sua importncia pelos que constituem seus objetos. Por exemplo, uma pesquisa qua-litativa que pressuponha a devoluo dos resultados aos par t ic ipan-tes do estudo pode conseguir, na verdade, tal resultado. E claro, che-ga-se aos limites de tal enfoque, quando os objetos da pesquisa so pessoas que j ocupam posies de poder ou de elite - como os pol-ticos, gerentes e profissionais. Em tais casos, os informantes podem ter interesses pessoais a defender e podem, por isso, procurar dis-torcer seus reais pontos de vista com respeito s interpretaes crti-cas feitas pelos pesquisadores.

    Mas a crtica no precisa ser, exclusivamente, o campo do enfo-que qualitativo. Estudos vitorianos sobre pobreza, tais como Po-verty: a Study o/Town Life (1902), de Rowntree, at ingiram um status crtico, podemos dizer, ao desvelar a extenso da pobreza em esca-la quantitativa:

    A classe trabalhadora recebe at 24 por cento menos de comida do quanto, conforme provado por peritos especializados, necessrio para a manuteno da eficincia fsica (1902: 303). um fato que pode muito bem causar grandes sofrimentos, que nesse pas de abundante riqueza durante um tempo de prosperida-de sem igual, mais que um quarto da populao esteja vivendo na pobreza (1902: 304).

    O trabalho quantitativo de Rowntree consistia em uma simples estatstica descritiva; mas ela se mostrou poderosa devido a sua habi-lidade em expor condies ocultas de pobreza e privao. Apresen-

    34

  • 1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

    taes de dados numricos chamam, f reqentemente , a ateno no discurso dos meios de comunicao; eles so recursos retricos. E isso se constitui e m u m m o d o pelo qual, pa r a citar Bauman, a teori-zao socil "brota da escrivaninha d o pesquisador e navega pelas guas infinitas da ref lexo popu la r" (1976: 107).

    Parece claro, ento, que se deve t a m b m levar em considerao a recepo dos resultados da pesquisa pe lo pblico p re tend ido (ou talvez no pre tendido) , como pa r t e da "situao total da pesquisa". Os achados de pesquisas realizadas com grupos focais sobre o consu-mo de lcool, p o r exemplo, possuem u m a significao diversa, de-p e n d e n d o do fato de eles serem publ icados na imprensa popular , como pa r t e de u m a campanha de sade pblica, com o f im de aju-dar alcolicos, ou se f o r e m usados p a r a d a r informaes s estrat-gias de marke t ing de u m a g rande cervejaria. Neste caso, a recepo dos achados p o r q u e m e pa ra que props i to u m pon to crucial. A recente controvrsia sobre o Censo dos Estados Unidos do ano 2000 u m exemplo o n d e os estatsticos, que estavam plei teando empre-gar u m a metodologia sofisticada de amos t ragem de estgios mlti-plos, quer iam corrigir a subestimao de minorias tnicas, inerente ao m todo const i tucionalmente consagrado de "contagem comple-ta" (Wright, 1998). A tempes tade poltica que se seguiu u m exem-plo onde u m a ref lexo pblica general izada sobre assuntos sociais relevantes foi desencadeada devido s claras implicaes de u m a metodologia de pesquisa quantitativa clssica.

    A implicao, ento, da tipologia d e interesses do conhecimento de Habermas que ns podemos considerar que o potencial crtico de diferentes metodologias de pesquisa, sui generis, no impor tan-te n o que se re fe re s discusses apresentadas nos captulos que se seguem. A pron t ido dos pesquisadores em questionar seus pr-prios pressupostos e as in terpretaes subseqentes de acordo com os dados, j u n t a m e n t e com o m o d o como os resultados so recebidos e por q u e m so recebidos, so fatores mui to mais importantes pa ra a possibilidade de u m a ao emancipatr ia do que a escolha da tcni-ca empregada .

    Referncias bibliogrficas

    ABELL, P. (1987). The Syntax of Social Life. Oxford: Clarendon Press. BAUMAN, Z. (1976). Towards a Criticai Sociology: an Essay on Common

    Sense and Emancipation. London: Routledge.

  • PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM

    BERGER, P. & LUCKMANN, T. (1979). The Social Construction of Reality (1968). Harmondsworth: Peregrine.

    BRYMAN, A. (1988). Qiiantity and Qiiality in Social Research. London: Unwin Hyman.

    CRANACH, M. von et al. (1982). Goal-directed Action. Cambridge/Lon-don: Academic Press.

    CRANACH, M. von (1982). The Psychological Study of Goal-directed Action. In: M. von CRANACH & R. HARRE (eds.). The Analysis of Acti-on. Cambridge: Cup, p. 35-73.

    DUNCKER, P. (1935). Zur Psychologie des produktiven Denkens. Berlin: Springer.

    FILSTEAD, W.J. (1979). Qualitative Methods: a Needed Perspective in Evaluation Research. In: T.D. COOK & C.S. REICHARDT (eds.). Qualitative and Quantitative Methods in Evaluation Research. Beverly Hills, CA: Sage.

    GROSS, A.G. (1990). The Rhetoric of Science. Cambridge, MA: Harvard University Press.

    HABERMAS, J . (1974). Theory and Practice. London: Heinemann. (1987). Knowledge and Human Interests. Cambridge: Polity Press. (1989). The Transformation of the Public Sphere. Cambridge: Polity

    Press [German original 1962, Luchterhand]. LAZARSFELD, P.F. (1968). An Episode in the History of Social Rese-

    arch: a Memoir. In: FLEMING, D. & BAILYN, B. (eds.). The Intellectu-al Migration: Europe and America 1930-1960. Cambridge, Mass.: Hup, p. 170-337.

    LUCKMANN, T. (1995). Der Kommunikative Aufbau der Sozialen Welt und die Sozialwissenschaften. Annali di Sociologia, 11, p. 45-71.

    McCARTHY, T. (1978). The Critical Theory of Jrgen Habermas. Cam-bridge: Polity Press.

    ROWNTREE, B.S. (1902). Poverty: a Study of Town Life. London: Mac-millan.

    WRIGHT, T. (1998). Sampling and Census 2000: the Concepts, Ameri-can Scientist, May 1998.

    36