barth, f.o guru - resenha 2

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BAR TH, Fredri k. 2000. O Gur u, o I ni - c i ador e Out r as Var i aç ões Ant r opo- l ógicas ( organização de Tomke L ask) . R i o de Janei ro: Contra Capa L i vrari a. 243 pp. Eliane Cantarino ODwyer Professora, UFF A publicação de uma coletânea de tex- tos do antropólogo Fredrik Barth no Bra- sil vem brindar-nos com uma obra ins- tigante, crítica dos dogmas e pressu- postos teóricos da disciplina, que abre novos horizontes para a prática da pes- quisa antropológica em outros univer- sos sociais e culturais reconhecidamen- te complexos, diferenciados e sincréti- cos como o nosso. Autor de uma produ- ção internacionalmente consagrada, Barth tem sido lido e divulgado no Bra- sil , basi cament e, at r avés da I nt r o- duçãoao livro Grupos Étnicos e suas Fronteiras, contribuição inestimável aos pesquisadores que trabalham com so- ciedades indígenas e outros grupos ét- nicos e minorias. Principalmente, nos casos em que a fraca diferenciação cul- tural desses grupos, imersos em uma estrutura de interação com outros sub- grupos de fortes marcadores regionais (como no Nordeste), desqualifica, do ponto de vista do observador externo, as identidades étnicas assumidas como indígenas ou comunidades de afro-des- cendentes que reivindicam do Estado brasileiro, na atualidade, o reconheci- mento do território que ocupam e de um status étnico distinto, de acordo com determinados preceitos constitu- cionais. Desse modo, a problemática da definição de um grupo étnico, de acor- do com as reflees de Barth, tem sido largamente empregada pelos antropó- logos que estão envolvidos com a ela- boração de laudos periciais nesse con- texto de aplicação dos direitos consti- tucionais. A edição em português dessa cole- tânea permite, igualmente, sua divul- gação para um público mais amplo, de estudantes e de especialistas que atu- am em outras áreas do saber em suas interfaces com a antropologia, como o campo disciplinar do direito. Para os antropólogos profissionais, o título do li- vro faz jus a seu autor, mesmo que guru e iniciador tenham sido termos original- mente empregados por Barth no con- texto de uma reflexão comparativa en- tre duas grandes regiões etnográficas, o Sudeste da Ásia e a Melanésia, sobre as noções de uma sociologia do conheci- mento que ajudam a esclarecer o modo pelo qual as idéias são moldadas pelo meio social em que se desenvolvem(:143). As categorias nativas de guru e iniciador são usadas, respectivamente, para indicar formas distintas de com- partilhar idéias e tradições de conheci- mento, através da falação ou do ocul- tamento, e podem ser pensadas como equivalentes ao papel assumido por Barth no campo do saber antropológi- co de “enfrentar novos desafios teóri- cos(:207) e participar do debate a par- tir do material etnográfico coligido nas suas pesquisas em diferentes regiões, como a Ásia, Oceania e parte da Áfri- ca, que serviram igualmente de ancora- gem às teorias e aos grandes temas da disciplina. Nos estudos sobre grupos étnicos no Brasil, inclusive nas condições de pro- dução do laudo antropológico, privile- giar o trabalho de campo tem permitido romper, a partir da investigação dos fa- tos empíricos, ao se levar em conta os argumentos e conceitos comuns pro- postos por Barth, com a premissa do raciocínio antropológico de que a varia- ção cultural é descontínua” (:25). É pos- sível, igualmente, abandonar a visão RESENHAS 168

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BARTH, Fredrik. 2000. O Guru, o Ini-ciador e Outras Variações Antropo-lógicas (organização de Tomke Lask).Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.243 pp.

Eliane Cantarino O’DwyerProfessora, UFF

A publicação de uma coletânea de tex-tos do antropólogo Fredrik Barth no Bra-sil vem brindar-nos com uma obra ins-tigante, crítica dos dogmas e pressu-postos teóricos da disciplina, que abrenovos horizontes para a prática da pes-quisa antropológica em outros univer-sos sociais e culturais reconhecidamen-te complexos, diferenciados e sincréti-cos como o nosso. Autor de uma produ-ção internacionalmente consagrada,Barth tem sido lido e divulgado no Bra-sil, basicamente, através da “Intro-dução” ao livro Grupos Étnicos e suasFronteiras, contribuição inestimável aospesquisadores que trabalham com so-ciedades indígenas e outros grupos ét-nicos e minorias. Principalmente, noscasos em que a fraca diferenciação cul-tural desses grupos, imersos em umaestrutura de interação com outros sub-grupos de fortes marcadores regionais(como no Nordeste), desqualifica, doponto de vista do observador externo,as identidades étnicas assumidas comoindígenas ou comunidades de afro-des-cendentes que reivindicam do Estadobrasileiro, na atualidade, o reconheci-mento do território que ocupam e deum status étnico distinto, de acordocom determinados preceitos constitu-cionais. Desse modo, a problemática dadefinição de um grupo étnico, de acor-do com as reflexões de Barth, tem sidolargamente empregada pelos antropó-logos que estão envolvidos com a ela-boração de laudos periciais nesse con-

texto de aplicação dos direitos consti-tucionais.

A edição em português dessa cole-tânea permite, igualmente, sua divul-gação para um público mais amplo, deestudantes e de especialistas que atu-am em outras áreas do saber em suasinterfaces com a antropologia, como ocampo disciplinar do direito. Para osantropólogos profissionais, o título do li-vro faz jus a seu autor, mesmo que gurue iniciador tenham sido termos original-mente empregados por Barth no con-texto de uma reflexão comparativa en-tre duas grandes regiões etnográficas, oSudeste da Ásia e a Melanésia, sobre as“noções de uma sociologia do conheci-mento que ajudam a esclarecer o modopelo qual as idéias são moldadas pelomeio social em que se desenvolvem”(:143). As categorias nativas de guru einiciador são usadas, respectivamente,para indicar formas distintas de com-partilhar idéias e tradições de conheci-mento, através da falação ou do ocul-tamento, e podem ser pensadas comoequivalentes ao papel assumido porBarth no campo do saber antropológi-co de “enfrentar novos desafios teóri-cos” (:207) e participar do debate a par-tir do material etnográfico coligido nassuas pesquisas em diferentes regiões,como a Ásia, Oceania e parte da Áfri-ca, que serviram igualmente de ancora-gem às teorias e aos grandes temas dadisciplina.

Nos estudos sobre grupos étnicos noBrasil, inclusive nas condições de pro-dução do laudo antropológico, privile-giar o trabalho de campo tem permitidoromper, a partir da investigação dos fa-tos empíricos, ao se levar em conta osargumentos e conceitos comuns pro-postos por Barth, com a “premissa doraciocínio antropológico de que a varia-ção cultural é descontínua” (:25). É pos-sível, igualmente, abandonar a “visão

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simplista de que os isolamentos social egeográfico foram os fatores cruciais pa-ra a manutenção da diversidade cultu-ral” (:26). Na concepção do autor não sedeve “considerar como característicaprimária dos grupos étnicos seu aspectode unidades portadoras de cultura”(:29). Para Barth, “ao se enfocar aquiloque é socialmente efetivo, os grupos ét-nicos passam a ser vistos como uma for-ma de organização social” (:31). Nessecaso, “a característica crítica” na defi-nição desses grupos passa a ser a atri-buição de uma identidade ou “catego-ria étnica” (:32) determinada por umaorigem comum presumida e destinoscompartilhados.

A organizadora da coletânea, Tom-ke Lask, na apresentação do livro (:7-23), faz referência às tomadas de posi-ção de Barth, ao seu empenho pessoal“em promover o papel do antropólogona vida pública” (:15). Sugere aindaque isso se aplicaria ao papel que os an-tropólogos no Brasil têm assumido emrelação ao reconhecimento dos direitosindígenas como grupos étnicos diferen-ciados. Pode-se considerar igualmenteilustrativo, no contexto desta resenha,pensar as implicações teóricas e meto-dológicas do pensamento de Barthquando aplicado ao reconhecimento dosdireitos constitucionais de outra mino-ria étnica, os chamados “remanescen-tes de quilombos”, termo de origem ju-rídica que a princípio parece mais afeitoàs definições historiográficas e compro-vações arqueológicas. Afinal, até recen-temente, o termo quilombo era de usoquase restrito a historiadores e demaisespecialistas que, através de documen-tação disponível ou inédita, procura-vam construir novas abordagens e in-terpretações sobre o nosso passado co-mo nação. A partir da Constituição de1988, quilombo adquire uma significa-ção atualizada, ao conferir direitos cons-

titucionais aos remanescentes de qui-lombos que, segundo o texto constitu-cional, estejam ocupando suas terras.Como não se trata de uma expressãoverbal que denomine indivíduos, gru-pos ou populações no contexto atual,seu emprego na Constituição levantauma questão de fundo: quem são os cha-mados remanescentes de quilombosque têm seus direitos atribuídos pelodispositivo legal?

Pode parecer paradoxal que os an-tropólogos, justamente eles que marca-ram suas distâncias e rupturas com ahistoriografia ao definirem seu campode estudos por um corte sincrônico no“presente etnográfico”, tenham sido co-locados no epicentro dos debates sobrea conceituação de quilombo e a identifi-cação daqueles qualificados como re-manescentes de quilombos para fins deaplicação do preceito constitucional.Acontece, porém, que o texto constitu-cional não evoca apenas uma “identida-de histórica” que pode ser assumida eacionada na forma da lei. É preciso, so-bretudo, que esses sujeitos históricospresumíveis existam no presente. O fatode o pressuposto legal estar referido aum conjunto possível de indivíduos ouatores sociais organizados segundo suasituação atual, permite conceituá-los,segundo a teoria antropológica mais re-cente, como grupos étnicos que existemou persistem ao longo da história comoum “tipo organizacional”, através deprocessos de exclusão e inclusão quepermitem definir os limites entre os con-siderados de dentro e os de fora.

A persistência dos limites entre osgrupos deixa de ser colocada por Barthem termos dos conteúdos culturais queencerram e definem suas diferenças.No capítulo “Grupos Étnicos e suasFronteiras” (:25-67), o problema da con-trastividade cultural passa a não depen-der mais de um observador externo, que

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contabilize as diferenças ditas objeti-vas, mas unicamente dos “sinais diacrí-ticos”, isto é, as diferenças que os pró-prios atores consideram como significa-tivas. Embora as diferenças possammudar, permanece a dicotomia entre“eles” e “nós”, marcada pelos seus cri-térios de pertencimento. Barth enfatiza“que grupos étnicos são categorias atri-butivas e identificadoras empregadaspelos próprios atores; conseqüentemen-te, têm como característica organizar asinterações entre as pessoas” (:27).

A centralidade dos conceitos de gru-po étnico e de etnicidade na leitura daobra de Barth, não esgota a novidadede suas contribuições, que possibilitamdesnaturalizar o mundo social, mas tam-bém os instrumentos do fazer antropo-lógico. É o que ocorre com as concep-ções antropológicas convencionais decultura. No capítulo inicial do livro, ve-mos que os pressupostos implícitos nouso desse conceito são transgredidos narelação de não-correspondência esta-belecida por Barth entre os limites so-ciais das unidades étnicas e o comparti-lhamento de uma cultura comum, quedeixa de ser considerada uma caracte-rística primária e definitiva na organi-zação de um grupo. A necessidade pa-ra a antropologia de “remodelar suasafirmações” é explicitamente colocadano capítulo “A Análise da Cultura nasSociedades Complexas” (:107-139). Os“pressupostos do holismo e da integra-ção” (:105) da maioria dos conceitos an-tropológicos, como sociedade e cultura,são questionados. O uso equivocado dotermo cultura deve ser testado “na aná-lise da vida real tal como ela ocorre emdeterminado lugar do mundo” (:108). Ailha de Bali passa a ser o local escolhidopara refletir sobre a “práxis antropoló-gica”. A diversidade de atividades, as-sim como a mistura do novo com o ve-lho em um cenário cultural sincrético,

permite questionar a linguagem do es-truturalismo com sua ênfase nas cone-xões e o pressuposto de uma coerêncialógica generalizada. Para Barth, na me-dida em que “as realidades das pessoassão culturalmente construídas […], oque os antropólogos chamam de cultu-ra de fato torna-se fundamental paraentender a humanidade e os mundoshabitados pelos seres humanos” (:111).Mas, em vez de focar a análise no inte-rior de universos fechados e de culturasdistintivas, é preciso explorar a varie-dade de fontes dos padrões culturais,que podem ser resultado de processossociais específicos. Em lugar de descar-tarmos as incoerências observadas ànossa volta, devemos confrontar o queé problemático e realizar a “tradicionaltarefa naturalista da antropologia deconstituir uma cuidadosa e meticulosadescrição de uma ampla gama de da-dos” (:114). A visão da cultura como flu-xo e correntes simultâneas de tradiçõesculturais (:123) defendida por Barth,não recoloca a questão das culturas“feitas de retalhos e remendos” do di-fusionismo. O que importa nesse argu-mento são as interpretações e os esque-mas de significação que só podem serentendidos corretamente quando rela-cionados “ao contexto, à práxis e à in-tenção comunicativa” (:131).

Ao ziguezaguear entre as seções dolivro, sem obedecer à ordem de sua ex-posição, seguimos outra possibilidadede leitura, sugerida pela própria reu-nião dos textos na coletânea, que nãopedem para ser compreendidos atra-vés de uma disposição linear do menosao mais inclusivo. Trata-se, ao contrário,de diferentes e variados planos de te-mas e questões que se entrecruzam nainterseção dos seus argumentos e refle-xões críticas.

As possibilidades criativas e os usosinovadores de Barth podem ainda rom-

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per fronteiras entre disciplinas e tra-dições de conhecimento. No posfácio(:239-243), escrito pelo cientista políticoMarco Martiniello, a questão da etnici-dade como problema social a ser en-frentado na atualidade, ao reverter acrença de que raça e etnicidade desa-pareceriam no contexto da moderniza-ção e pós-colonialismo, convida os ci-entistas políticos a colocar a obra deBarth na agenda de sua disciplina. Ou-tras fronteiras internas à antropologia,que separam o conhecimento produzi-do de outras formas de saberes aplica-dos, têm sido rompidas através da pro-blemática proposta por Barth – no Bra-sil, mediante a noção de uma antropo-logia da ação em que, diferentementeda chamada “antropologia aplicada”,menos comprometida com as popula-ções às quais se refere, o antropólogonão perde sua base acadêmica, comoportador de sólida formação na discipli-na, avaliado e reconhecido pelos seuspares da comunidade científica.

Em entrevista publicada na coletâ-nea (:201-228), Barth concorda que “fa-çamos uso de nossos insights para agirno mundo e transformá-lo” (:218), masadverte que “devemos deixar de enfati-zar tanto a etnicidade, pois ela pode re-presentar apenas um pequeno setorda herança cultural de uma pessoa”(:217). Por outro lado, “participamos deoutras comunidades de cultura que nãopodem ser descritas como étnicas”(:217). Sobre a politização desmedidadas identidades étnicas, Barth critica oschamados “empreendedores étnicos”,pois “eles utilizam de maneira inade-quada uma idéia excessivamente unidi-mensional de cultura e de identidadeadvogando-a para seus próprios finspolíticos” (:219).

FAUSTO, Carlos. 2000. Os Índios antesdo Brasil. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor. 93 pp.

Francisco NoelliProfessor, Universidade Estadual de Maringá

Este pequeno livro, voltado para a di-vulgação da arqueologia e etnologiaindígenas, apresenta com brilhantismoe erudição as linhas gerais da últimagrande síntese do campo, assim comoas perspectivas mais contemporâneassobre os povos situados na América doSul e no Brasil. Muito bem redigido, OsÍndios antes do Brasil não está centradona descrição, mas em modelos e proble-máticas, proporcionando a interessadose iniciantes um resumo da espinha dor-sal das teorias e debates que regerama heterogênea comunidade americanis-ta nas últimas cinco décadas. CarlosFausto parte do princípio de que “Tudosomado, é possível dizer que vivemosem uma ilha de conhecimento rodeadapor um oceano de ignorância. Sabemosmenos do que deveríamos, mas feliz-mente ainda podemos saber mais. Paraavançar, cumpre fazer as perguntascertas” (:9).

O livro apresenta as perguntasatualmente consideradas “certas”, con-trapostas às perguntas “erradas”. Estas,em parte, foram formuladas durante operíodo colonial e elaboradas definiti-vamente no grandioso modelo de JulianSteward no Handbook of South Ameri-can Indians, a partir de 1946.

A obra de Fausto é uma compactahistória das idéias americanistas, poisdisseca as estruturas teóricas e expõe asprincipais questões em debate nas últi-mas décadas. Revelando como Stewarde seus discípulos formularam hipóteses,desenvolveram suas pesquisas e chega-ram a determinadas conclusões, Fausto