barreiras, césar. crimes por encomenda

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  • 1Crimes por encomenda

  • 32 Crimes por enComenda

    Crimes por encomendaViolncia e pistolagem no

    cenrio brasileiro

    Csar Barreira

    Rio de Janeiro1998

    Quinta da Boa Vista s/n So CristvoRio de Janeiro RJ CEP 20940-040Tel.: (021) 568 9642 Fax: (021) 254 6695E mail: [email protected]

    Publicao realizada com recursos doPrograma de Apoio a Ncleos de ExcelnciaMinistrio da Cincia e Tecnologia

    Responsveis pela Coleo Antropologia da Poltica

    Moacir G. S. PalmeiraMariza G. S. PeiranoCsar BarreiraJos Sergio Leite Lopes

    Ncleo de Antropologiada Poltica

    NuA P

  • 54 Crimes por enComenda Copyright 1998, Csar BarreiraDireitos cedidos para esta edio

    Dumar DistribuiDora De Publicaes ltDa.Travessa Juraci, 37 Penha Circular

    21020-220 Rio de Janeiro, RJFax: (021) 590 0135

    Telefone: (021) 564 6869

    RevisoArgemiro de Figueiredo

    EditoraoDilmo Milheiros

    CapaSimone Villas Boas Irlys,

    companheira de uma trajetria de cumplicidades, com muita paixo.

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Barreira, CsarCrimes por encomenda: violncia e pistolagem no cenrio brasileiro/

    Csar Barreira. Rio de Janeiro: Relume Dumar: Ncleo de Antropologia da Poltica, 1998

    . (Coleo Antropologia da poltica; 3)

    Inclui anexos e bibliografiaISBN 85-7316-161-2

    1. Violncia Brasil. 2. Crime e criminosos Brasil. 3. Crime poltico Brasil. 4. Crime rural Brasil. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ncleo de Antropologia da Poltica. II. Ttulo. III. Srie.

    CDD 303.620981CDU 316.485.26(81)

    Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui

    violao da Lei n 5.988.

    B253c

    98-1688

  • 76 Crimes por enComendaagradeCimentos

    Este trabalho*, resultado da combinao de uma longa trajetria de pesquisa com enriquecedores e instigantes debates acadmicos, terminou alargando as minhas dvidas e gratides. exceo do perodo final de redao, que me exigiu um enclau-saramento total, os perodos anteriores foram extremamente participativos e coletivos. Neste sentido, os agradecimentos deste trabalho no representam um ato formal ou uma pea obrigatria no ritual acadmico, mas uma expresso calorosa e sincera desta longa trajetria.

    Os meus bolsistas foram, provavelmente, os atores principais dessa pea. Os materiais coletados em diversificadas fontes e em diferentes situaes deram um charme todo especial a este trabalho. Os desafios da pesquisa no necessariamente resolvidos aumentaram as minhas dvidas. Sou muito grato s cobranas dos bolsistas por uma melhor sistematizao do fazer pesquisa, nem sempre condizente com o meu temperamento. Recordo, portanto, uma longa lista: Antnio Pinheiro, Paula Tes-ser, Ademrio, Patrcia, Erivan, Andr Sebastio, Eveline, Junior, Fabner, Diocleide, Leonardo S, lcio, Carlos Luis, Janana, Mrcio Brasil (Belm) e Adelmo (So Lus). Todos, a seu modo, deram uma cota de colaborao com destaques especiais que devem ser sentidos por cada um.

    Agradeo aos colegas do Departamento que direta ou indiretamente me apoiaram na realizao deste trabalho. Registro particularmente a forma simptica com que re-ceberam a minha solicitao de afastamento. Gostaria de destacar a disponibilidade e a cordialidade de Ismael Pordeus, sempre atento em transformar estes ltimos dias de angstia de redao numa atividade leve e prazerosa. Minha lista de colaboradores enorme e passo agora a descrev-la de forma pontual. Agradeo portanto:

    A Auxiliadora Lemenhe, a nossa Dra, minha grande vice, que me deu total segurana e tranqilidade para ficar ausente, deixando o Departamento em melhores

    * Uma primeira verso deste trabalho foi apresentada como Tese de Titular, rea de Sociologia, na Universidade Federal do Cear. Agradeo s sugestes da banca examinadora composta pelos professores Moacir Palmeira, Jos Vicente Tavares dos Santos, Neide Esterci. Ozir Tesser e Jos Albuquerque Rocha.

  • 98 Crimes por enComenda

    mos. Meu muito obrigado.Nestes ltimos anos os debates, nos encontros e seminrios com Jos Vicente

    Tavares dos Santos, Srgio Adorno, Alba Zaluar, Theophilos Rifiotis, Stela Grossi e Lus Antnio Machado possibilitaram ricas e estimulantes descobertas de pesquisa carregadas de um calor humano, que tornou as distncias, deste Brasil, menores.

    Ao Moacir Palmeira, pelas instigantes discusses que me possibilitaram enriquecer cada vez mais o objeto estudado, deixando de lado os cnones acadmicos formais.

    Aos pesquisadores participantes do projeto Uma Antropologia da Poltica, do PRONEX, agradeo pelas frutferas discusses destes ltimos meses e pelas perspec-tivas acadmicas promissoras.

    Aos meus orientandos de Graduao, Mestrado e Doutorado pela torcida calorosa e compreenso desse afastamento temporrio. Agradeo em particular a Geovane Jac pela eficincia e disponibilidade na organizao da bibliografia.

    Aos informantes annimos que confiaram na discrio do pesquisador.Ao Vianey Mesquita, pela reviso sria e criteriosa, tornando este trabalho mais

    leve e elegante.A Rosngela, que com sua disponibilidade e eficincia, terminou sendo uma

    pea-chave na concluso deste trabalho, superando, a minha dificuldade em lidar com a tecnologia.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), que me propiciou nos ltimos seis anos uma bolsa de pesquisa fundamental para a realizao deste trabalho.

    Ao Dirio do Nordeste e jornal O Povo pela presteza e abertura de atendimento a minha solicitao de consulta aos ricos arquivos de notcias.

    Sou um poo de gratido e de dvidas a Irlys, companheira de uma eterna cumpli-cidade acadmica, carregada de afetividade e de discusses incentivadoras. Aos filhos Marina, Raquel e Bruno pela compreenso sempre necessria com o pai ocupado e pouco disponvel para as demandas cotidianas.

    Finalmente, gostaria de agradecer ao Frei Domingos, ao Frei Osmar, ao Frei Tito, Helosa e Vernica a acolhida carinhosa no Convento da Gruta em Guaramiranga, local onde passei meus dias de clausura.

    sumrio

    introDuo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    caPtulo iEntrevistando pistoleiros: as armadilhas simblicas da pesquisa . . . . . . . . . . . . . . 19 Pesquisando tema perigoso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19A escolha de informantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22Seduo e empatia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25A lgica da suspeita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29Cumplicidade e distanciamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

    caPtulo iiPistolagem e visibilidade pblica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35Uma campanha contra os crimes de pistolagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36A pistolagem no cenrio do Congresso Nacional: punio, crimes e denncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52A pistolagem como emblema eleitoral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

    caPtulo iiiPistoleiro ou vingador: construo das trajetrias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77Um pistoleiro: entre o prestgio e a morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77A saga de um pistoleiro: crimes no campo da honra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

    caPtulo iVPistolagem na literatura de cordel: imagens e representaes . . . . . . . . . . . . . . . . . 107Um cdigo de leitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109Imagens dos pistoleiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112A pistolagem em rimas de cordel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124Em busca de comparaes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

  • 1110 Crimes por enComendaintroduo

    Este livro pretende analisar o pistoleiro, um personagem da sociedade brasileira, originrio do espao social agrrio, a partir de sua insero no interior do sistema de pistolagem. Neste sentido, no s ser analisado o personagem em si, como tambm o sistema com suas redes de relaes sociais. Este tipo lendrio da sociedade brasileira, especificamente da nordestina, vem sendo, nos ltimos 30 anos, nomeado e definido de maneiras diferentes, atravs de fontes diversas. Deixa de ser personagem de lenda e passa a ser um ator das cenas violentas da sociedade contempornea.

    A imprensa, o Congresso Nacional e as novelas de televiso estampam, analisam e retratam essa figura que misto de real e imaginrio. Alguns dos nossos principais romancistas j nos brindaram com histrias de pistoleiros. Manuel de Oliveira Paiva, em Dona Guidinha do Poo, fala de dois personagens pistoleiros, ambos protegidos de uma grande fazendeira: um era homicida, encontrando-se foragido da justia; o outro era um negro, libertado desde o nascimento. Dona Guidinha, usando da sua autorida-de de protetora, contrata os servios destes para eliminar o seu marido. Sa Dona, vosmic bem sabe que para vosmic eu no arrecuso pra servio nenhum. Eu c estou acostumado a servir meus protetores (PAIVA, 1982, p. 128).

    Jorge Amado, em Tocaia grande fala de jagunos, bandidos, clavinoteiros e ca-pangas que trabalham nos entreveros mortais que dividiam os poderosos senhores. Neste romance, jovens fugitivos da justia, que ganhavam proteo e a confiana de famosos coronis, colocavam em cena mandantes e pistoleiros:

    Bom de mira, Dalvino passava por autor de um sem-nmero de mortes em tocaias armadas por conta de mandantes diversos. Quando o Coronel Dalton bateu as botas, consumido pela febre, a que matava at macacos, Dalvino se transformou em franco atirador, alugando repetio e pontaria a quem lhe propusesse trabalho e pagamentos (AMADO, 1984, p. 479).

    Nestes romances, alguns traos do sistema de pistolagem vo se configurando: a proteo de homens fora de lei para prestarem servios; o reforo dependncia

    caPtulo VDescortinando a pistolagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149Pistoleiro no mundo das ambivalncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154Pistolagem, uma mfia pobre? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160Violncia difusa, violncia no-monopolizada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162

    bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

    anexosO lugar da famlia no mundo do crime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173A pistolagem no cenrio contemporneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176

  • 1312 Crimes por enComenda

    e submisso dos dominados; a violncia como apangio do grande proprietrio de terra; e a valentia, a astcia e a destreza como caractersticas diferenciadoras de iguais.

    O pistoleiro que ser trabalhado neste livro no personagem fictcio, mas brao armado e autor material dos crimes de mando, de encomenda e de pistolagem. So crimes nos quais existe a figura do mandante ou autor intelectual, que subvenciona as aes.

    O mandante e o pistoleiro so faces de uma mesma moeda, que ocupam posies diferentes na escala social e no desfecho do crime. O pistoleiro pea de uma complexa engrenagem, denominada de sistema de pistolagem, caracaterizada por apontar uma rede de relaes prenhe de normas e valores sociais.

    Em trabalho anterior (BARREIRA, 1992), busquei entender as mudanas que ocorreram na base de legitimidade da dominao tradicional (WEBER, 1974) no serto do Nordeste do Brasil, privilegiando a compreenso das rupturas e continuidades na prtica poltica da classe dominante. O uso da violncia na reproduo do mando poltico e na sustentao do poder econmico era um dado recorrente, pon-tuando um dos aspectos de continuidade.

    A violncia destacou-se como uma das caractersticas marcantes da Regio, dando contornos s relaes sociais, imprimindo uma marca nas relaes entre dominantes e dominados. O arbtrio dos grandes proprietrios de terra fornecia as regras do jogo, nas quais o campons se adequava com uma atitude de submisso/medo e, ao mesmo tempo, percepo de que a violncia poderia ser acionada.

    Os famosos coronis da Regio eram a ponta mais visvel dessa violncia, tendo como atributo de sua figura o uso da fora como uma capacidade inerente. O coronel representava a onipotncia e impunidade dos proprietrios de terra (BARREIRA, 1992). O serto tinha, por outro lado, a marca do chamado banditismo social (HOBSBA-WN, 1975 e 1978), a exemplo do movimento cangaceirista do final do sculo passado e comeo deste. Os cangaceiros cristalizavam, na histria contada, nas narraes e na literatura de cordel, os protestos dos dominados do serto. A violncia do cangao fazia parte, ao mesmo tempo, de uma poca de intranqilidade e medo que incorporava os valores de coragem e de ousadia (LINS, 1997) integrados cultura sertaneja.

    Nesse contexto, tendo a violncia como elemento de continuidade dos traos de uma cultura dominante, a figura do pistoleiro era, sistematicamente, acionada para resolver os conflitos agrrios. O fenmeno, que existia desde o sculo passado, ganha destaque no incio da dcada de 1980, nas reas rurais no norte do Pas e nos sertes nordestinos, onde os pistoleiros eram chamados para desencadear e promover a ex-pulso de moradores do interior das propriedades, assassinando, tambm, efetivos ou potenciais lderes camponeses.1

    Na dcada de 1980, ganharam destaque nacional e internacional os assassinatos de Chico Mendes, lder dos camponeses do Estado do Acre; de Margarida Alves, lder camponesa e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande,

    Paraba; e do Padre Jsimo Tavares, religioso que trabalhava junto aos camponeses do Estado do Maranho. Todas estas mortes foram praticadas por pistoleiros a mando de grandes proprietrios rurais.

    Em 1986, no Municpio de Trairi (CE), foi concelebrada missa de stimo dia para trs camponeses assassinados por pistoleiros em conflitos agrrios. Naquela missa, chamaram ateno os relatos de crueldades denunciadas pelos camponeses que sobre-viveram chacina e uma reflexo de Dom Alosio Lorscheider, Arcebispo de Fortaleza--CE, sobre a situao dos pistoleiros, considerados como pequenos armados pelos grandes para assassinar outros pequenos. As falas levavam seguinte concluso: Na hora em que os pequenos, que so pagos pelos grandes, perceberem isso no vai mais haver esse tipo de crime. Trata-se, na realidade, de uma frase idealista, que no consegue dar conta da complexa relao submersa nesses crimes.

    Esses acontecimentos, entretanto, permaneceram martelando, cobrando uma anlise.

    Resolvi, desse modo, enfrentar o desafio de entender a pistolagem no interior dos conflitos agrrios, iniciando a pesquisa atravs do material divulgado na imprensa sobre esta conjuno de problemas. A pesquisa trouxe duas surpresas: a primeira, referente forte incidncia dos crimes de mando no interior do campo poltico; a segunda sur-presa que, em 1987, comearam a aparecer nos jornais do Estado do Cear nomes de famosos pistoleiros e de mandantes, em funo de uma campanha para acabar com a pistolagem no Cear.

    Esta campanha foi organizada pela Secretaria de Segurana Pblica do Estado, tendo como mote a verso da pistolagem como uma prtica atrasada que no deveria ter espao em um Estado moderno.2

    As primeiras incurses ao material de jornais levaram a concluir que os crimes de pistolagem esto geralmente ligados a duas grandes vertentes: o voto que materializa a reproduo do mando poltico; e a terra que preserva a dominao poltico-econmica. Encontra-se, tambm, a utilizao de pistoleiros em crimes passionais.

    interessante fazer novas incurses ao uso, mais especfico, do termo pistoleiro nestes crimes passionais (CORRA, 1983) a partir de uma regra referente afirmao de que a honra tem que ser lavada pela pessoa que se sente desonrada (PERISTIANy, 1965).

    Se a utilizao de pistoleiros nos assassinatos de adversrios polticos demonstra a importncia do voto, como sustentculo do poder, o assassinato de camponeses mostra a importncia que assume a propriedade territorial, deixando transparecer a voracidade da estratgia usada para sua manuteno.

    Nas questes ligadas luta pela terra, o grande alvo dos pistoleiros tem sido os lderes camponeses ou pessoas envolvidas na organizao e representao dos tra-balhadores rurais. Nas disputas pela representao poltica, o alvo a eliminao do opositor na esfera poltica partidria, tendo como cenrio as disputas familiares, to

    introduo

  • 1514 Crimes por enComenda

    presentes desde o final do sculo XIX.Uma dimenso instigante para se analisar o uso da pistolagem so as diferentes

    estratgias e os variados efeitos simblicos. Os crimes ligados terra que implicam a eliminao de lderes camponeses ou de agentes pastorais parece que se inserem num contexto de maior visibilidade. Essa visibilidade da ao, ou dos acontecimentos que antecedem o crime, tem como corolrio a idia de espalhar o medo, numa clara de-monstrao de poder. Os crimes, entretanto, que implicam a eliminao de adversrios polticos mantm um certo anonimato. Depois que os crimes so efetivados, existe, sistematicamente, uma campanha de formao de uma opinio pblica contrria vti-ma. Esta passa a ser acusada ou caluniada de diversos delitos, o que anula uma possvel sano pblica contra o assassinato. Em outras ocasies, o crime posto como sendo de outra natureza, no poltica.

    O jogo da poltica, com regras democrticas, representa uma conquista, um ga--nho o uso do poder simblico, envolvendo toda uma discusso, um jogo de palavras (BOURDIEU, 1989), e nunca a eliminao fsica do adversrio. Essa perspectiva no significa pensar o fenmeno da pistolagem como resduo de um passado atrasado. Para mim, foi fundamental entender os mecanismos de poder e processos sociais que estavam em jogo nessa prtica recorrente nos perodos eleitorais, no tempo da pol-tica (PALMEIRA, 1989), caracterizado como perodo de radicalizao das disputas entre as faces.

    As minhas preocupaes passavam por entender o uso da pistolagem como prtica do passado e do presente, indagando: o que havia de novo e de recorrente nessa prtica? Seria uma prtica de velhos costumes com nova roupagem? Se o campo da poltica tem como uma de suas regras a disputa e convivncia entre partes contrrias, qual o espao sociopoltico que ocupa a eliminao fsica do oponente? A pistolagem ocorre somente em reas onde o mando poltico se reproduz dentro de marcos tradi-cionais?

    A pesquisa caminhou, inicialmente, por vrias indagaes que, ao longo do tempo, foram sendo modificadas, aclaradas e incorporadas a outras.

    As preocupaes no ficaram mais restritas aos conflitos agrrios. Instigavam-me cada vez mais duas indagaes: por que existe uma recorrncia de solues violentas nos desfechos dos conflitos sociais? Qual o lugar de uma justia paralela, numa sociedade em que o poder judicial est, em princpio, institudo? Estas preocupaes estavam circunscritas a um mbito mais amplo: a existncia de pistoleiros atestaria a falncia de um processo civilizador? (ELIAS, 1994).

    Os crimes de pistolagem no aumentaram nas ltimas dcadas. Ocorreu, en-tretanto, maior divulgao e os crimes ganharam mais visibilidade. Passaram a ser nomeados e definidos. Foram ganhando status de objeto sociolgico, medida que saam de um lugar escondido e naturalizado.

    As relaes entre o uso da pistolagem e a reproduo do poder surgiram quase espontaneamente a partir do material divulgado. O pistoleiro era indigitado, principal-

    mente pela imprensa, como a ponta visvel de um iceberg, deixando clara a existncia de redes sociopolticas encobertas. A justia era acusada, sistematicamente, de parcial, nesses crimes, e os rgos de segurana apontados como coniventes ou omissos. Os mandantes apareciam como pertencentes classe dominante: grandes proprie-trios ru-rais, polticos e empresrios. Os pistoleiros eram originados do mundo agrrio, sendo constitudos de pequenos proprietrios rurais ou trabalhadores sem-terra. As notcias eram peas que iam se compondo e tornando mais complexo o nosso quebra-cabea.

    Os crimes de pistolagem deixam, hoje, de ser um fenmeno eminentemente rural, passando a ocupar espaos no cenrio urbano. As grandes cidades passam a ser o palco preferido desses crimes, possibilitando fugas mais fceis e um mais seguro anonimato. Os famosos cavalos, peas sempre presentes nos crimes de pistolagem, cedem lugar a possantes motos e os capacetes servem para excelentes disfarces.3 Nestes casos, h uma perfeita simbiose entre traos do rural-atrasado com feies do urbano-moderno.

    Pretendo, atravs do estudo do sistema de pistolagem e, mais especificamente, do personagem pistoleiro, dar uma contribuio para a compreenso da cultura brasileira e, de modo particular, da cultura sertaneja, ou, mesmo, uma cultura camponesa. Isso porque o pistoleiro uma pea central para se entender traos presentes na cultura do serto, marcada por especificidades, como: honra, valentia, vingana e lealdade.

    Tendo em vista entender o sistema de pistolagem em articulao com valores culturais, pretendo salientar aspectos da vida cotidiana do pistoleiro, atravs, princi-palmente, das falas, dos discursos, e, tambm, da literatura de cordel. Estas narrativas mantm forte substrato de realismo social, o que significa um ingrediente a mais para a aproximao com o fenmeno estudado.

    Neste volume, buscarei, em todos os momentos, relativizar alguns conceitos como, por exemplo, violncia, moralidade e honra, marcados fortemente por determinadas perspectivas tericas. Neste sentido, pretendo relativizar principalmente o conceito de violncia como conceito, em princpio, j dado. Seguindo uma trilha de Geertz, tentei compreender

    os conceitos que, para um outro povo, so do domnio da experincia prxima, e faz-lo suficientemente bem para coloc-los numa relao esclarecedora com os conceitos distantes pela experincia que os tericos construram para captar os traos gerais da vida social uma tarefa no mnimo delicada, ainda que me-nos mgica do que se colocar na pele de outra pessoa (GEERTz, 1983, p. 56; traduo livre).

    Provavelmente, no ser dada mais uma definio, e sim, sero delineados apon-tamentos que possibilitem uma melhor e mais rica qualificao do conceito.

    Uma definio sociolgica de violncia supe a negao de classificaes aprio-rsticas. A violncia gerada e reproduzida dentro de um contexto social.

    introduo

  • 1716 Crimes por enComenda

    A tentativa de alcanar a complexidade do problema inclui tambm a necessidade de superar oposies clssicas como: bem-mal, legal-ilegal e liberdade-opresso.

    Nesta mesma perspectiva, privilegiando a fala do pistoleiro, feito sujeito consti-tudo por valores presentes no campo da violncia, alguns conceitos adquirem novos e importantes significados, a exemplo da compreenso que se tem de punio, vingana, valentia e coragem. Como o pistoleiro est situado no interior das classificaes mo-rais dos crimes? Quando o crime se identifica com o sujeito da ao? Qual a escala de julgamento do crime no contexto dos outros crimes?

    Para Hannah Arendt, a

    dificuldade principal no juzo ser a faculdade de julgar o particular, mas pensar significa generalizar; portanto, trata-se da faculdade que misteriosamente combina o particular e o geral. Isto relativamente fcil se o geral dado como uma regra, um princpio, uma lei de modo que julgar seja simplesmente subsumir--lhe um particular. A dificuldade cresce se somente o particular dado e preciso descobrir o geral relativo a ele (ARENDT,1992, p. 380-381).

    Busquei, fundamentalmente, compreender como o prprio pistoleiro classifica o seu comportamento: o que aceito e o que negado. Nesta classificao, a operao principal era o seu entendimento sobre o que violncia. O que seria para ele uma ao violenta? Quais os valores, os ideais e as normas que eram afirmados?

    Pode a agresso fsica do pistoleiro ter um efeito positivo sobre a coeso social da sua comunidade? Ou seria nefasta e causadora de desagregao social?

    David Gilmore (1987) tenta compreender o papel da agresso na cultura rural de Andaluzia, regio situada no sul da Espanha. No necessariamente as suas concluses empricas, mas, principalmente, a forma de apreender a agresso traz algumas luzes para o entendimento desta conjuno de problemas. Gilmore nega as concluses con-vencionais que vem a agresso como inadequada ou causadora de desagregao. Para ele, a agresso, desde que seja dirigida e justificada pela cultura, pode ser socialmente benfica. As perguntas que Gilmore elabora so bem instigantes: o que um relacio-namento cercado de hostilidade, agresso e conflito? Pode haver uma estrutura para os sentimentos negativos, para a hostilidade e agresso na vida social de uma comunidade? Ter a agresso humana outro papel a desempenhar no trabalho da cultura, alm de pura destruio? possvel, obscuramente, uma estrutura de emoes negativas ter um efeito potencial sobre a coeso de uma comunidade?

    Fica difcil compreender a positividade das aes dos pistoleiros no corpo so-cial. Primeiramente, so agresses fora dos limites socialmente construdos, tendo em vista a eliminao fsica do oponente. Segundo, so aes realizadas mantendo o anonimato e destitudas, em princpio, de aspectos simblicos. Por ltimo, so aes que ocorrem, geralmente, fora do espao comunitrio, ou, mais claramente, em lugares diferentes do espao de moradia.

    Um aspecto importante que no existe apenas uma conduta dos pistoleiros (matam os seus desafetos e os desafetos de outrem). Tambm no existe nica expli-cao para as suas aes delituosas. Estes aspectos dificultam concluses apressadas e formais, situando o fenmeno dentro de uma complexa e rica rede de valores sociais.

    O pistoleiro poderia ser um agente social fora do lugar, do tempo e do espao, na medida em que reproduz uma situao de outra poca quando tais prticas eram comuns. Atualmente, a prtica da pistolagem est sendo profissionalizada e os pistoleiros no mantm laos afetivos com sua comunidade.

    Dentro das preocupaes de compreender os diferentes aspectos ou diversos ele-mentos presentes no sistema de pistolagem, surgem as relaes entre poder e violncia, ou poltica e violncia. O dado recorrente o uso da violncia na reproduo do poder. Para Max Weber (1974), existe um continuum entre poltica e violncia, na medida em que o Estado o lugar de coero legitimada. Mesmo que o Estado no se utilize unicamente da violncia, ela , sem dvida, seu instrumento especifico. Para Weber, o Estado consiste em uma relao de dominao do homem sobre o homem, fundada na perspectiva da violncia legitimada.

    Por outro lado, para Hannah Arendt (1973), os termos poltica e violncia se-riam, em parte, antagnicos, na medida em que a poltica o exerccio da democracia, do convencimento, da ao, do discurso, da palavra. A violncia na poltica , para essa autora, uma espcie de deturpao, uma ineficcia, cujo exemplo mais forte o totali-tarismo. Hannah Arendt questiona a violncia como a mais flagrante manifestao de poder. Para ela, a violncia aparece onde o poder est em perigo, ou, em outras palavras, todo o declnio do poder um convite aberto violncia.

    Estes dois pontos so importantes para se entender quais os espaos que a pisto-lagem ocupa numa sociedade moderna; uma sociedade moderna que, entretanto, deixa sinais visveis da ausncia de uma violncia legtima monopolizada e que continua mantendo um convite aberto violncia vinda de variados lugares sociais. possvel, ento, falar de um desordenado monoplio da violncia exercido por diferentes inte-resses que buscam reafirmar seus lugares ou resolver problemas litigiosos.

    O livro ficou dividido em cinco captulos. O primeiro um segmento metodolgi-co, onde narrada a etnografia da pesquisa (LAPLANTINE, 1996; PEIRANO, 1995). Este captulo tem como mote o significado de pesquisar temas perigosos. Descrevi todos os passos e etapas da pesquisa, tendo o trabalho de campo como ponto central. Nele ficaram concentrados os grandes dilemas e as grandes descobertas. O objetivo desta parte foi o de descrever as diferentes etapas percorridas no desvendar do objeto de estudo, deixando transparecer as falhas e os limites da pesquisa.

    O segundo captulo ficou reservado dimenso pblica da pistolagem, privile-giando a divulgao desse fenmeno nas pginas dos jornais, nas sesses do Congresso Nacional e no modo como ele aparece no tempo da poltica. Composto por trs partes distintas, o captulo tem como objetivo analisar a maneira como a pistolagem nomeada

    introduo

  • 1918 Crimes por enComenda

    em diferentes situaes. uma parte do estudo que ocupa um lugar importante na sua temtica geral pela riqueza e diversidade de elementos, que vo sendo produzidos para aclarar o fenmeno da pistolagem.

    O terceiro trabalhou, exaustivamente, a fala de dois informantes, que pareceram, aos meus olhos, casos paradigmticos para a compreenso do mundo do pistoleiro. Principalmente, neste segmento, foi incorporado o idealismo dos informantes, numa perspectiva de compreender o fenmeno com todos os elementos possveis, tendo ensejado a possibilidade de montar um quadro composto dos valores, ideais, fantasias e normas do mundo da pistolagem.

    O quarto captulo um mergulho ou um vo na literatura de cordel. Busquei, fundamentalmente, recuperar a riqueza destes folhetos na configurao do sistema da pistolagem. A literatura de cordel foi trabalhada como um exemplo das representaes sociais sobre o pistoleiro e seus cdigos.

    Com um carter conclusivo, no quinto captulo, busco analisar e compor a relao entre o sistema de pistolagem e o pistoleiro. Aqui, o pistoleiro foi apresentado com suas ambivalncias, como ocupante de um lugar negado e afirmado socialmente nas suas representaes. Tentei dialogar com as dvidas e inquietaes apresentadas no incio do estudo. Nesta parte, o pistoleiro foi discutido dentro do campo da violncia, verificando o seu lugar numa sociedade que vive o dilema entre o atrasado e o moderno.

    Neste livro, privilegiei o trabalho de anlise colada aos dados empricos. Esta op-o, se por um lado pode limitar as concluses, por outro, permitir novas interpretaes a partir da riqueza dos dados empricos, exaustivamente apresentados.

    Notas1 Somente no Estado do Cear, de 1984 a 1986, foram assassinados 13 trabalhadores rurais a mando de grandes proprietrios rurais, com o uso de pistoleiros. 2 Em 1986, eleito governador do Cear Tasso Jereissati, grande empresrio, que teve como principal propaganda poltica modernizar o Estado, eliminando os traos arcaicos e tradicionais que tinham como esteio os famosos coronis-polticos (BARREIRA, 1992).3 Um delegado de polcia civil, que tem como uma de suas especialidades prender pistoleiros, declara que, geralmente, moto que pra ao seu lado no trnsito motivo de grande preocupao. Neste momento, j estou armado, para me defender.

    Captulo i

    Entrevistando pistoleiros: as armadilhas

    simblicas da pesquisa

    Tenciono aqui proceder a uma discusso acerca das condutas metodolgicas que se fizeram presentes por ocasio das entrevistas. O contato com os pistoleiros deixou transparecer os limites, as dificuldades e os dilemas epistemolgicos da pesquisa. O relato das entrevistas constituiu uma tentativa de explicar as intenes e os princpios do ato de fazer pesquisa. Tentei ousar, fugir de alguns cannes, buscando solues que, para mim, pareciam improvisaes criativas. Mesmo assim, tenho conscincia de que permaneci dominado, em parte, pela fidelidade a velhos princpios metodolgicos que so freqentemente decorrentes, como o ideal da padronizao dos procedimentos, da vontade de imitar os sinais exteriores mais reconhecidos do rigor das disciplinas cientficas (BOURDIEU, 1997, p. 693). Continuei, tambm, atento s sutilezas quase infinitas das estratgias que os agentes sociais desenvolvem na conduta comum de sua existncia (BOURDIEU, 1997, p. 693).

    Ressalto o fato de que as relaes estabelecidas no percurso da pesquisa, com todas as especificidades, constituem relaes sociais que exercem fortes influncias nas informaes obtidas. Neste sentido, tentei estabelecer uma interao que me possi-bilitasse obter o maior nmero de informaes. Ao mesmo tempo, tentei no me situar na posio de avaliador, objetivando diminuir, ao mximo, a violncia simblica, bastante presente na relao entre sujeito entrevistador e sujeito entrevistado.

    Pesquisando tema perigoso

    Para desvendar a engrenagem do sistema de pistolagem fui arquitetando e mon-tando o ato de pesquisar. A cada dia, este tema se mostrava mais rico e complexo. Quando iniciei esta pesquisa, no tinha a verdadeira dimenso destes problemas e, hoje, a imagem que fao que entrei em um labirinto com diversas partes, um caminho rude e tortuoso com vrias entradas, que me levavam a outros compartimentos, comeo de novos emaranhados.

    Deparei-me com vrios impasses. Alguns pontos ou aspectos surgiram, inicialmen-te, muito fortes. Um deles, o principal, era como trabalhar com um objeto fortemente

  • 2120 Crimes por enComenda

    marcado por questes morais e de honra. Mesmo tendo conscincia de que um dos objetivos centrais da sociologia compreender o cdigo e a moralidade de outros grupos, como incluir na anlise cdigos que no se apiam nos valores bsicos da sociedade sem cair em um relativismo absoluto, em que tudo explicado e justificado?

    Outro ponto complexo referia-se a como trabalhar um objeto que est em situa-o permanente de julgamento, tanto no campo social, como no campo jurdico. Para o senso comum e alguns autores da academia, era um tema carregado de descrdito. Eu passava a ser visto ocupando um lugar de um investigador ou de um delegado de polcia: a pesquisa social era irrealizvel e perigosa.

    Surgiu, ento, outra indagao: como estudar um objeto classificado como sendo, em princpio, resultado do desvio de personalidade, de uma ao delinqente e fruto de um comportamento desviante e submetido, constantemente, a classificaes morais negativas? Se o crime por vingana carregado de valores, o crime de encomenda , em princpio, destitudo de valores ticos, sendo mediado, simplesmente, pela ganncia e pelo lucro fcil.

    possvel dizer que as cincias sociais, quando trabalham com os excludos da histria ou os processos de excluso, tm, no horizonte de suas reflexes, a recuperao das identidades desclassificadas. H uma espcie de identificao entre o investigador social e os excludos da histria. Assume-se dar voz aos excludos, a exemplo dos operrios, dos camponeses, dos favelados, das minorias sociais. possvel dar voz aos pistoleiros? Isto me levou a pensar: o que significa trabalhar com os excludos que esto fora dos cdigos de honra e de moralidade do pesquisador?

    Nesta pesquisa, privilegiei, fundamentalmente, a razo da descoberta sobre a lgica da prova (SANTOS, 1991), sendo sempre guiado pela curiosidade indutora do conhecimento.

    Tinha absoluta clareza de que a natureza do objeto estudado situava o pesquisador, ainda mais atento, s implicaes das vinculaes verso/verdade. Fundamentalmente, assumi a postura de comparar e relativizar as mltiplas verdades: a dos meios de comu-nicao, a autenticidade jurdica, a veracidade dos narradores e a verdade da literatura de cordel (VILANOVA, 1986).

    Optei por trabalhar em diversas frentes de pesquisa, iniciando por um levanta-mento das notcias veiculadas nos principais jornais do Estado do Cear (O Povo e o Dirio do Nordeste), como tambm alguns jornais de circulao nacional (Jornal do Brasil e Folha de So Paulo). Este material mostrou-se muito rico, tendo, entretanto, em princpio, dois problemas: o primeiro relativo definio vaga de pistoleiro, apontado como algum que mata por encomenda, sendo, tambm, qualquer assassino, principalmente o que usa arma de fogo para cometer o crime.

    Outro problema configurou-se no vis do modismo de que a imprensa escrita sofre, sobretudo, quando surge um homicdio com caractersticas de pistolagem. Este fato abre a possibilidade de que todos os assassinatos ocorridos em determinado perodo

    assumam a classificao de crimes de pistolagem. Estes dois problemas, interligados, levam a uma distoro do fenmeno, ocasionada tanto pelo exagero na incidncia, como pela falta de preciso conceitual. A imprensa bastante vulnervel influncia de uma linguagem do senso comum e, principalmente, de uma linguagem policial, que aponta, com freqncia, termos como: pistola e elemento. As caractersticas e os aspectos que compem a engrenagem do sistema so, por esse motivo, em parte, distorcidos.

    Entretanto, relativizados os exageros, as noticias da imprensa foram a porta de entrada, os umbrais do labirinto que me conduziram montagem de vrios casos de pistolagem. O estampar de nomes de pistoleiros e mandantes nos jornais me possi-bilitou ampliar o universo emprico para posterior triagem de casos selecionados,1 passveis de um aprofundamento. Quando o caso se ia configurando como crime de pistolagem, tornava possvel a montagem de complexos dossis, principalmente quan-do a vtima pertencia ao setor empresarial. Os dados se iam avolumando proporo que os interesses econmicos, em disputa, ganhavam mais fora. As famlias da vtima e do possvel mandante ofereciam primoroso ingrediente para o dossi, aparecendo em cena: credores, scios insatisfeitos, ex-esposas, heranas e, principalmente, o lado encoberto das disputas nas concorrncias pblicas.

    Outra frente da pesquisa foram os livretos de cordel, to ricos na representao popular sobre os crimes de encomenda. Logo que um assassinato ocorre ou um pistoleiro preso, aparece uma histria rimada que passa a fazer parte do acervo da literatura de cordel. Os casos paradigmticos de pistoleiros so transformados em histrias populares.

    Tive ento de acompanhar no s as asas da imaginao dos cordelistas como, tambm, os vos da literatura popular. Procurei, inicialmente, montar um arquivo sobre literatura de cordel que tivesse como tema central a violncia; folhetos que tinham como ponto comum histrias sobre cangaceirismo e banditismo, aparecendo em cena os famosos bandidos-heris.

    No segundo momento, partindo da categoria mais ampla, ou, em outras palavras, do ciclo do banditismo, detive-me nos folhetos que versavam sobre pistolagem. No so muitos, em comparao com os livros que tratam do cangaceirismo. So, entretan-to, suficientes para se fazer uma boa e proveitosa viagem. A literatura de cordel abriu diversas portas temticas, a exemplo das representaes sobre os bandidos-heris e os valores de honra, valentia e moralidade. Nas histrias rimadas, transparece a idia de que o denunciado no , necessariamente, o ato violento, e sim o que no aceito socialmente. A literatura de cordel possibilitou a compreenso das justias paralelas, que ocorrem fora do campo institucional, e, mais especificamente, da justia com as prprias mos.

    Trabalhei tambm as atas e os relatrios finais da Comisso Parlamentar de Inquri-to sobre Violncia no Campo, e da Comisso Parlamentar de Inqurito sobre Pistolagem. Entrevistei alguns deputados que participaram da CPI da Pistolagem. Nesta pesquisa,

    entrevistando pistoleiros: as armadilhas simBliCas da pesquisa

  • 2322 Crimes por enComenda

    busquei compreender qual o lugar que estas CPIs ocuparam no interior do Congresso Nacional e, fundamentalmente, nas atas. Procurei analisar como so feitas as denn-cias, quem denuncia e quem tem a fala autorizada para faz-las (BOLTANSkI, 1984).

    A escolha de informantes

    A pesquisa de campo pode ser dividida em dois grandes blocos: as entrevistas realizadas com pessoas pertencentes ao campo jurdico e policial, e aquelas com as pessoas tidas como pistoleiros.2

    No universo dos campos jurdico e policial, procurei entrevistar pessoas que tiveram uma participao nos processos que envolviam crimes de mando, ou em prises de pistoleiros. Foram entrevistados juzes, promotores, advogados e delegados de polcia. O acesso a estas pessoas foi possibilitado atravs de forte intermediao de terceiros; pessoas que tinham algum nvel de relacionamento pessoal ou profissional facilitaram e viabilizaram estes contatos. Para estes entrevistados, os objetivos da pesquisa eram fiel e claramente esclarecidos: sou professor da Universidade e estou estudando o sistema de pistolagem, os crimes de mando.

    Todas as entrevistas seguiram a mesma estrutura: uma primeira parte sobre a vida profissional do entrevistado e uma segunda sobre crimes de pistolagem. Os advogados destacavam o fato de atuarem como defensores de pessoas acusadas de mandantes ou de pistoleiros porque todo cidado deve ter direito defesa e mostravam um distanciamento dos seus clientes. O compromisso profissional guiava as suas aes.

    O princpio da ampla defesa, estabelecido pelo art. 5 da Constituio Federal, era sempre o argumento usado para justificar o amparo legal de um possvel pisto-leiro. Nas entrevistas, os juzes, os promotores e os advogados procuravam sempre levar a discusso para um campo jurdico formal. Os argumentos tinham como baliza as normas jurdicas, notadamente as leis gerais e os cdigos. Havia uma recorrncia a termos jurdicos, numa postura de separar uma anlise sociolgica (do pesquisador), de uma anlise jurdica (do pesquisado). A separao dos campos de conhecimento dava a tnica das respostas: isto quem sabe a polcia; ou, isto preocupao para socilogo. Outro comportamento presente era uma posio ativa e crtica diante da lei, propondo alteraes ou criando artigos como, por exemplo, todo crime deveria ser considerado hediondo.

    Para os promotores de justia, os mandantes e os pistoleiros, principalmente os primeiros, eram um dano para a sociedade e deviam ser severamente punidos. Os crimes de pistolagem diminuiriam desde que a minha justia, sem olhar cara nem corao resolva apurar com seriedade e punir os verdadeiros culpados. Porque tudo gerado pela impunidade (trecho da entrevista com um Promotor de Justia).

    Os delegados de polcia entrevistados destacavam os seus compromissos para com a sociedade, contribuindo para acabar com a pistolagem no Estado. O delegado que

    prendeu o Miranda destacou todo o empenho que teve para alcanar este feito. O seu empenho colocado como elemento diferenciador dos outros policiais.

    O importante que cada um se representava ocupando um lugar justo e necessrio na elucidao dos crimes de pistolagem.

    O segundo bloco de entrevistas foi realizado com pessoas que cometeram homic-dios, principalmente tidas como pistoleiros. As entrevistas foram obtidas em presdios pblicos ou nas suas residncias. Os presdios visitados foram o Instituto Penal Paulo Sarasate, em Aquiraz (CE), Penitenciria de Pedrinhas, em So Luiz (MA), e algumas cadeias pblicas do Estado do Cear. A escolha dos informantes que se encontravam detidos no se deu por nenhum conhecimento prvio, mas porque eles se encontravam na ponta do processo. Ou seja, nos grandes presdios, entrevistei pessoas das quais j tinha tomado conhecimento por notcias de jornais. Eram, em geral, presos que estavam em maior evidncia. Tambm entrevistei alguns pistoleiros atravs de indicaes. A indicao de terceiros era a primeira grande seduo (zALUAR, 1994a), que prosse-guia, caso aceitassem ser entrevistados. Os mediadores foram advogados ou pessoas que trabalhavam nos presdios, geralmente agentes penitencirios.

    Nas cadeias pblicas do Estado do Cear, exceto Fortaleza, usei outra estratgia de escolha. Procurava saber na direo dos presdios quem tinha cometido assassinato e em quais circunstncias. Desta descrio inicial, deduzia a aproximao ou no de um possvel crime de encomenda, tentando, logo em seguida, realizar a entrevista. Geralmente, os escolhidos aceitavam ser entrevistados, tendo, entretanto, uma grande variao na abertura e, principalmente, na disposio para falar. Algumas entrevistas foram suspensas ou interrompidas por uma total impossibilidade de comunicao entre o entrevistador e o entrevistado. Esta impossibilidade decorria das respostas monossi-lbicas ou atravs de rplicas do tipo no sei de nada e no estou compreendendo a pergunta.

    s vezes, o informante procurado surpreendentemente no se encontrava entre os detentos e surgiam outras possibilidades de entrevistas. Uma vez, iniciei uma conversa com um guarda penitencirio, perguntei por que ele tinha sido destacado para aquela cadeia e ele respondeu calmamente, por castigo. Tal castigo era conseqncia de uma acusao de haver sido intermedirio de um pistoleiro. Eu s fiz levar um pistoleiro para Fortaleza, para realizar um servio. A me colocaram neste fim de mundo. Contou, em seguida, diversos casos de pistolagem no Estado, sem, contudo, assumir nenhuma culpa. Explicou que foi escolhido para aquela misso (levar o pistoleiro) pelo fato de ser amigo de um poltico a quem deve muitos favores.

    Um entrevistado detento assassinou uma mulher que lhe desacatou publica-mente, cobrando uma dvida: se fosse um homem, eu teria partido para a briga, mas mulher... eu no ia bater, ento eu atirei. Nesta fala, transparecem as possibilidades de lavagem da honra. O desafeto, sendo homem, pode lavar a honra com uma briga. No caso, a noo de honra supera o princpio da vida e desigualdade, pois bater em

    entrevistando pistoleiros: as armadilhas simBliCas da pesquisa

  • 2524 Crimes por enComenda

    mulher aumenta a desonra.Procurei, durante as entrevistas nos presdios, manter o mximo de privacidade e

    discrio, solicitando que os funcionrios, ou outros presos, se afastassem. Mas nem sempre isto foi conseguido. Realizei entrevistas nas salas da direo dos presdios e no interior das celas. Procurei zelar pela minha integridade fsica, mantendo algumas precaues,3 nem sempre mantidas.4

    Somente com um preso fiz mais de uma entrevista. As entrevistas, sempre gravadas, duraram, geralmente, de duas a trs horas. Nas cadeias pblicas do Estado do Cear, realizei vrios dilogos que serviam para um conhecimento inicial, uma tentativa de encontrar informantes-chaves: os que praticavam os crimes que queria estudar (BE-CkER, 1993). Tais dilogos, mesmo gravados, no necessariamente, transformaram-se em entrevistas.

    As entrevistas realizadas com pessoas tidas como pistoleiros e que se encon-travam soltas tiveram sempre a mediao de terceiros. Nestes casos, recebi ajuda de amigos que tinham ligaes amistosas e de influncia sobre eles. A seduo, como diz Alba zaluar (1994a), foi mesmo demorada, no s para que acontecesse o primeiro encontro como tambm por conta das estratgias de pesquisas usadas. Durante a primeira entrevista, ou o primeiro encontro, no usava gravador e entabulava uma conversa bastante solta.5 Consegui visitar um informante quatro vezes, numa mdia de duas horas e meia de gravao.

    Procurei entrevistar no poderia ser de outra maneira pessoas que tinham fortes indcios de que participavam do sistema de pistolagem: haviam cometido assassinatos, tinham seus nomes divulgados em jornais, ou eram indicados por terceiros. Busquei, ento, persuadir, ou conquistar os informantes para que fornecessem elementos e dados para a minha anlise.

    Os informantes escolhidos no deixaram dvidas de que seriam reprovados no primeiro teste proposto por Becker, para verificar peas de evidncia. Eles tinham razes para mentir, esconder informao ou para falar pouco do seu papel no aconte-cimento ou da sua atitude diante deste (CICOUREL, 1990, p. 96). Como disse Ales-sandro Portelli, los acusados no eran inocentes criaturas (1986, p. 168), mesmo que, dentro da minha suspeio, me surpreendessem com a abertura que demonstravam para falar dos seus sentimentos e das suas vidas. Os relatos eram, geralmente, minuciosos, entrecortados por descries sensacionalistas de passagens violentas na infncia e na adolescncia. Eram relatos que pediam uma absolvio moral da sociedade e por, outro lado, colocavam um destino j traado, sem alternativa diante de um mundo violento. Nos relatos estava, tambm, sempre presente uma preocupao de no ser classificado como monstro social, destitudo de princpios morais. Estes princpios apareceram na classificao negativa de determinados crimes (assassinatos de crianas, de mulheres, de velhos e estupros), e numa valorizao famlia: aos pais, s mulheres e aos filhos.

    Outra lgica valorativa era a construo de homens trabalhadores e de pessoas

    no otrias. A esperteza e a astcia apareciam em vrias situaes do dia-a-dia, numa negao da possibilidade de serem enganados. A demonstrao do conhecimento do Cdigo Penal era um dado recorrente. Nestes discursos, estava sendo construdo o lu-gar do cidado. Um detento afirmou, categoricamente, antes, quando eu estava solto e no tinha sido julgado, eu no era ningum. Agora que eu fui julgado e estou preso eu sou um cidado.

    Seduo e empatia

    No jogo de conquista, na tentativa de levar o entrevistado a aceitar participar da pesquisa, desta relao de troca, usei de subterfgios e manipulaes. Apresentava--me como um professor que estava estudando as mudanas polticas no Estado; para outros, como algum que estava estudando o comportamento de pessoas que come-teram assassinatos; ou que estava estudando a situao dos presdios. As expresses pistolagem e crimes de encomenda foram totalmente abolidas das apresentaes da pesquisa. Achava que, fazendo qualquer referncia ao objetivo real da pesquisa, as fontes estariam fechadas e o estudo inviabilizado. A luta para quebrar ou diminuir o distanciamento era mediada por estratgias.

    A minha censura e a introjeo de que estava trabalhando com uma categoria estig-matizada transpareciam na hora em que chegava a um presdio e dizia que gostaria de conversar com presos que cometeram assassinatos. Em seguida, citava alguns provveis nomes, todos conhecidos pistoleiros. Ento os guardas dos presdios desvendavam meu pretenso disfarce, dizendo: O professor s quer conversar com pistola.6

    Privilegiei sempre entrevistar pessoas que eram tidas como pistoleiros, pessoas que tinham uma insero direta no mundo da pistolagem. Deixei em segundo plano as entrevistas com informantes que falavam sobre realidades e situaes de terceiros. Neste sentido, a minha hierarquia de credibilidade era dada pela prtica e pela vivncia no interior do sistema de pistolagem, diferentemente da situao colocada por Becker (1993), em que a hierarquia de credibilidade dada pelo lugar de superioridade no seio da organizao estudada. As descries de experincias, as histrias de vida e os relatos sobre o cotidiano ocuparam o centro das minhas preocupaes.

    As entrevistas eram, no geral, longas e semi-estruturadas, sendo formadas de duas grandes partes: uma primeira tentava dar conta da histria de vida do entrevistado, tendo como funo descontrair e adquirir maior confiana do informante. A segunda parte era um mergulho, o mais profundo possvel, no caso que me interessava. A passa-gem da primeira parte para a segunda era, geralmente, comandada pelo informante. Isto constitua tentativa de reduzir ao mximo a violncia simblica, tarefa que se pe mais difcil em situao de pesquisa, na qual a verdade do pesquisador e do informante tem dificuldade de ser plenamente revelada. Como a fala sobre os acontecimentos que me interessavam tinha sido aberta pelo informante, isto me dava o direito de entrar nos

    entrevistando pistoleiros: as armadilhas simBliCas da pesquisa

  • 2726 Crimes por enComenda

    detalhes, nos seus pontos de vista e, at, nos seus sentimentos. Tentei, assim, privilegiar a fala do informante: ouvir mais. Esta postura nem sempre foi seguida ou respeitada. As circunstncias e os ambientes em que se desenrolavam as entrevistas dificultavam, s vezes, tal atitude. A necessidade de mais detalhes e a busca de maior preciso entrecor-taram, muitas vezes indevidamente, a fala do informante. Com todas as preocupaes presentes de escutar mais e falar menos, as condies de uma comunicao violenta aparecem, claramente, escutando as gravaes e lendo as transcries das entrevistas.

    Usei diferentes tipos de pergunta, sempre na perspectiva de alcanar o mximo de empatia e obter mais informaes. Fazia perguntas sobre a sua infncia, a famlia e sobre os problemas sociais atuais (violncia, desemprego etc). Inseri nomes de perso-nagens que fazem parte da cultura sertaneja, como Padre Ccero e Lampio, procurando saber as opinies. Relatei situaes que envolviam assassinatos, estupros e assaltos, numa tentativa de saber o que eles pensavam. Busquei conhecer qual a opinio sobre honra, vingana, pena de morte, polcia e justia. Finalmente, pedia que fosse feita uma descrio do crime cometido, caso este tivesse sido assumido pelo informante. Indaguei sobre as acusaes que lhes eram imputadas.

    A alternncia entre perguntas de carter mais geral e as de natureza mais especfica, ou entre perguntas sem importncia e outras mais diretas, no evitou que a investiga-o (aqui, com a acepo cientfica, claro), se transformasse em um interrogatrio. O entrevistado passava, neste sentido, a ocupar o lugar de um ru, podendo a entrevista ser como uma pea de um processo judicial. Era premente, ento, a necessidade de uma correo de rota.

    Numa tentativa de amenizar a dominao estabelecida na relao sujeito-investiga-dor e sujeito-investigado, mesmo nas entrevistas no-diretivas (SANTOS, 1991), assumi em vrias situaes o lugar de interrogado. Esta foi a forma encontrada para diminuir uma comunicao violenta, na medida em que no era possvel se efetivarem as

    duas condies principais de uma comunicao no violenta. De um lado, quando o interrogador est socialmente, muito prximo, daquele que ele inter-roga, ele lhe d, por sua permutabilidade com ele, garantias contra a ameaa de ver suas razes subjetivas reduzidas a causas objetivas; suas escolhas vividas como livres, reduzidas aos determinismos objetivos revelados pela anlise. Por outro lado, encontra-se tambm assegurado neste caso um acordo imediato e continuamente confirmado sobre os pressupostos concernentes ao contedo e s formas de comunicao: esse acordo se afirma na emisso apropriada, sempre difcil de ser produzida de maneira consciente e intencional, de todos os sinais no verbais, coordenados com os sinais verbais, que indicam quer como tal o qual enunciado deve ser interpretado, quer como ele foi interpretado pelo interlocutor (BOURDIEU, 1997, p. 697).

    Na relao sujeito-investigador e sujeito-investigado, estava presente o problema do medo e da empatia. O medo no era s fsico mas, principalmente, de que uma pa-lavra, uma pergunta mal colocada ou vista como tal, quebrasse o elo que estava sendo construdo; um elo que tinha conscincia de que era frgil, mas que pela raridade de conquistas no deveria ser desfeito. A empatia, quando era percebida ou verbalizada, possibilitava momentos prazerosos do fazer pesquisa. Era o instante da descontrao; ocasio propcia para o pesquisador achar-se com o direito e encorajado para perseguir a verdade do pesquisado.

    Estava entrevistando uma pessoa, tida como pistoleiro, na sua residncia, quando entra um filho7 e diz: mas papai, o senhor no disse que no daria mais entrevista! E ele responde: mas eu topei, gostei do professor e pronto! E continuou: mas o senhor tambm no t perguntando coisa indiscreta... pode perguntar vontade. No tem isso no; qualquer coisa que o senhor quiser pode perguntar. Uma coisa bem in-discreta, pode perguntar. Eu s respondo se quiser, no ? A empatia aconteceu por conta de dois episdios: o fato de o vice-prefeito do municpio a que se vincula o caso do entrevistado haver ido at sua casa me apresentar e por um engano provocado por motivo de semelhana fsica:

    Olha, vou dizer o seguinte: eu tenho alergia pergunta. No gosto de rseo, nem de azul, caixo de anjo. Mas, desde que vi o senhor, que o senhor chegou aqui mais o vice-prefeito, a primeira vez que o vice-prefeito entra na minha casa, eu gostei do seu jeito, eu achei o senhor parecido com um amigo meu, meu padrinho, fazendeiro l no Castanho. A o senhor, sei l, parece que o senhor me toca l no calcanhar de Judas (sic). Parece que uma pessoa amiga. Podia at ser um parente meu. Eu acho que no nada demais dizer essas coisas para o senhor. Gostei do seu jeito e do seu amigo. Pode chegar aqui qualquer hora da noite, o senhor tem um amigo. Um juiz meu amigo queria at fazer um livro comigo mas eu no quis (Trecho da entrevista realizada em 06/06/1994).

    Com esta empatia declarada, acho que no penetrei nas grandes verdades deste informante. Ele, em nenhum momento, aceitou ter qualquer participao com o mundo do crime e, principalmente, com o sistema de pistolagem. Aceitou ter cometido um assassinato em legtima defesa. Afirmou no saber atirar, mesmo declarando que come-teu este crime com uma distncia de mais de 30 metros, eu podia errar ou acertar, mas acertei. Permaneceu fugido da polcia durante nove anos, tempo em que pegou a fama de pistoleiro e autor de todos os crimes acontecidos no Cear. Reside, atualmente, em uma pequena cidade do Estado e mostrou-se um homem pacato e caseiro. As verses dadas por umas pessoas que o conheceram so de que era um dos maiores pistoleiros da regio jaguaribana do Estado do Cear. At que aos 72 anos e por ter perdido uma viso, tornou-se intermedirio. Para ele, um crime s deve ser cometido em defesa da honra, no caso de estupro de uma filha ou uma neta. Sendo assim, o pai ou av que

    entrevistando pistoleiros: as armadilhas simBliCas da pesquisa

  • 2928 Crimes por enComenda

    teria de agir. Caso contrrio, se chamasse a policia, estaria aumentando a desonra. Todas as vezes em que eu fazia referncia a sua fama de pistoleiro, j citada em

    matria sobre pistolagem na revista semanal Isto , ele dizia: eu gostaria de saber o por qu desta fama. Este informante ressaltou que um dos seus mritos era o de passar confiana para os outros, contando vrias situaes.

    Uma foi quando se apresentou numa delegacia de uma pequena cidade do Estado e o delegado disse que ele estava solto, mas deveria ir se apresentar em Fortaleza e mandou que eu pagasse o nibus e fosse sozinho. Outra foi quando precisou comprar um carro a prazo e o proprietrio no exigiu nenhuma garantia. E, uma outra, quando chegou a sua atual cidade, e se apresentou ao gerente do banco, e este logo abriu uma conta pra ele. Esses casos mostravam a necessidade de se apresentar como legal dentro de um clima de ilegalidade em que foi construda a sua vida: morei 23 anos de frente para o quartel.

    Afirmou, categoricamente, eu no tenho medo de me levantar na vista de sua pessoa e dizer que sou direito, porque eu sou direito! Repetiu diversas vezes na entre-vista que a verdade se conta dez vezes e a mentira s se conta uma vez, sempre que contrapunha, a sua verso, a verso da imprensa sobre ele. Fazendo referncia revista Isto , ele diz: A revista s contou besteira, dizendo que eu era o chefo do Cear. Nunca fiz mal a ningum, sou um cabra respeitador. Aonde eu chego todo mundo me respeita e eu respeito todo mundo. Se tiver dois sujeitos brigando, eu aparto a briga e deixo os dois satisfeitos.

    As declaraes de empatia, se, por um lado, me reconfortavam, por outro lado no me levavam para um ufanismo de eliminao das distncias entre investigador e investigado. Tinha plena conscincia de que todas as estratgias, todas as artimanhas usadas para diminuir a distncia, continuavam fortes e eram intransponveis. Esta constatao me chamava a ateno para ter uma postura crtica e um questionamento constante diante dos mtodos e tcnicas de investigao. Isto me levava a questionar algumas falas, aparentemente as mais verdadeiras. Neste sentido, devemos proble-matizar, inclusive, as opinies, as mais espontneas, que aparentemente so as mais autnticas (BOURDIEU, 1997).

    A lgica da suspeita

    Nas pesquisas em que o limite entre a investigao sociolgica e a investigao policial muito tnue, o entrevistado v o entrevistador como algum que vai escutar e divulgar a verso que ele gostaria que se tornasse pblica. A entrevista uma opor-tunidade de o informante passar sua verdade: Essa reportagem que eu estou fazendo aqui com o senhor, se eu no fizesse, podia at ser melhor, mas podia ser pior. Porque o senhor s vai botar o que eu disser, no ?.8

    A entrevista o momento de se explicar, buscando uma justificativa para um pblico. uma espcie de contra-depoimento da verso que o entrevistado quer di-vulgar; verso que negao das informaes divulgadas na imprensa, ou mesmo, nos processos judiciais. Eu vou falar porque eu quero que o senhor saiba a verdade e no as mentiras que a imprensa conta de mim.9 o momento de falarem, de se fazerem ouvir. Nestas situaes, a assimetria e a hierarquizao prevalentes nas entrevistas so, em parte, desfeitas, e o entrevistado passa a comandar o depoimento. Em alguns casos,

    longe de serem simples instrumentos nas mos do pesquisador, eles conduzem, de alguma maneira, a entrevista e a densidade e a intensidade de seu discurso, como a impresso que eles do freqentemente de sentir uma espcie de alvio, at de realizao, tudo neles lembra a felicidade de expresso (BOURDIEU, 1997, p. 704).

    Existe um perigo permanente no ato de entrevistar pessoas que cometeram homi-cdios e, especificamente, que perpetraram crimes de pistolagem. No falo somente de um perigo fsico, mas, principalmente, de um perigo no campo da epistemologia. o risco permanente de assumir o ponto de vista do discurso jurdico, numa tentativa de conhecer a verdadeira verso, com base nas provas. Este perigo , em parte, avisado pelos informantes que vem o entrevistador como representante da justia.

    Outro perigo est no campo da identificao entre o entrevistador e o entrevistado. O fato de pesquisar pessoas em permanente e contnuo perigo, na iminncia da priso, de aumento das punies, ou ainda, de serem mortos, nos fez conviver desde o incio da pesquisa com a hermenutica da desconfiana (zALUAR, 1994b).

    O discurso dos entrevistados sobre suas inseres nos crimes de encomenda est diretamente balizado pela possibilidade de julgamento por poderes judiciais, incluindo os cdigos punitivos existentes no sistema de pistolagem. Neste sentido, possvel fazer a seguinte tipologia: presos que j foram julgados, presos que aguardam outro julgamento e possveis pistoleiros que se encontram soltos. Estas indicaes demarcam, nitidamente, os seus discursos, as suas falas.

    No primeiro caso, do preso julgado, aparece claramente a insero nos crimes de encomenda, mesmo que no surjam os nomes dos mandantes. Demarca-se o campo da lealdade e da proteo. A continuidade no sistema de pistolagem, quando solto, torna-se a garantia nica de permanecer vivo. Para eles, existe concretamente a possibilidade da eliminao de ex-pistoleiros, como queima de arquivo.

    interessante que, nas falas, aparece uma viso negativa do trabalhador assala-riado, em contraposio a eles (pistoleiros) que so bem remunerados. Justificam, em parte, os crimes, construindo uma imagem negativa das vtimas, sendo pessoas orgulhosas, ricas e avarentas. Buscam uma classificao moral dos seus crimes, no aceitando assassinar trabalhadores pobres. No se arrependem dos crimes, a no ser

    entrevistando pistoleiros: as armadilhas simBliCas da pesquisa

  • 3130 Crimes por enComenda

    que saibam, depois, que houve uma construo falaciosa da vtima como, por exemplo: quando o mandante d como caracterstica da vtima a falsa existncia de adultrio que na realidade, se configura como o desejo de eliminao da vtima por causa de herana.

    A hiptese de uma morte por falso motivo impede que o crime seja justificado por vingana ou benfeitoria pblica. Neste caso, as aes aparecem guiadas, naturalmente, pela coragem e pela ganncia do dinheiro.

    No segundo caso, do presidirio que aguarda outro julgamento, predomina um discurso dentro da legalidade, assumindo os crimes pelos quais foi julgado e condenado, como, tambm, os assassinatos que ocorreram dentro do campo da honra. Todos os possveis assassinatos assumidos ocorreram por vingana. Neste sentido, a polcia ou a justia aparece como culpada pelos assassinatos cometidos, em funo da omisso ou incompetncia.

    Eu s fiz vingana. Se houvesse a pena de morte, quem iria fazer a vingana era a lei. Agora, com a polcia a, s vo morrer mais pobres e inocentes. Se existisse a pena de morte, os que mataram meu pai e minha irm teriam morrido e eu no estaria aqui, e hoje eu seria um doutor. Eu acho que a maior parte das coisas acontece porque no tem justia.10

    O terceiro caso refere-se ao possvel pistoleiro, que se encontra solto e sem ordem de priso decretada. Ele no aceita que tenha nenhuma vinculao com o mundo do crime, principalmente com o sistema de pistolagem. Diz que pegou fama porque matou uma pessoa em legtima defesa. Esta vtima, segundo ele, assassinou um casal de velhos e vivia criando confuso, Ele devia morrer, mas eu matei em legtima de-fesa. Afirma em seguida: Eu acho que as pessoas gostam de mim, porque eu matei uma pessoa que matou um casal de velhos. Aparece, aqui, novamente, uma figura recorrente que a de vingador.

    As pessoas tidas como pistoleiros sugerem, geralmente, que se faa uma averi-guao sobre seus comportamentos, nas suas cidades de origem. dessas averiguaes que surgem as grandes falcias. O que no sabia atirar conhecido na sua cidade como frio assassino e excelente atirador: Aquele mata rindo.

    As entrevistas com os possveis pistoleiros foram conduzidas dentro da lgica da suspeita. Estava sempre com uma sensao ou, em outras palavras, tinha a convico de que eles estavam escondendo informaes e dissimulando situaes. Montei, ento, vrias estratgias e diversas armadilhas, no s para obter mais informaes, como especificamente esperando que alguns se declarassem pistoleiros. Esta declarao representava a possibilidade de conseguir um maior nmero possvel de dados dentro do meu quebra-cabeas; demonstrava, tambm, que os procedimentos metodol-gicos, as estratgias e os subterfgios tinham alcanado xito. Estava minha frente uma pessoa que praticava o comportamento esperado: aquilo que eu queria estudar.

    Entretanto, este assumido lugar de pistoleiro no anulava a lgica da suspeita, crian-do uma sensao de que ele estava me fazendo de bobo. Tal sensao decorria, em parte, da riqueza e detalhamento dos fatos que iam surgindo. As descries fantsticas e espetaculares passavam a dar o tom da fala, de uma fala que eu estava gostando de ouvir, mas que no tinha mais o controle sobre ela. Nesta situao, entretanto, o pro-blema relao sujeito-investigador e sujeito-investigado ganhava novos contornos: de confiana e de abertura. Comeava a me perguntar o por qu desta abertura. E formulei a pergunta: por que o senhor conta isto para mim? E ele respondeu: no tem novidade, eu no tenho vergonha do que falo, e o que eu j fiz eu no tenho medo de falar.11

    importante frisar o fato de que predominou nas entrevistas o lugar negado de pistoleiro atravs de dissimulaes e mentiras (zALUAR, 1994a). Um informante colocou-se sempre na defensiva, reafirmando no ser valente, ser um homem mole. Eu no sou contra ningum, quero levar minha vida, mas eu no sou contra ningum, no. Ressaltou que uma pessoa sem sorte. Acho que a gente nasce com a sina, porque eu fui o cara mais direito do mundo, voc acredita? Ele considerado, juntamente com o irmo, responsvel por quase dez crimes. Para ele, esta fama de-corre do fato de participar de poltica sempre ao lado de um candidato, ento o outro lado cria problemas. Este poltico deputado estadual e proprietrio rural e, segundo a imprensa, tem participao como mandante, em alguns crimes, e protege pistoleiros em suas propriedades. Mesmo com fortes indcios em participao em alguns crimes e na prpria rede de pistolagem, o informante nega qualquer envolvimento. E finalizou afirmando:

    Eu no sou uma pessoa diferente. Ave Maria! Sou um ser humano! Sou um camarada que faz muita amizade. Quero que o senhor v l onde eu morava, pra saber o meu temperamento. E pergunte: se ele algum dia pagou refresco, po, manga, cajuna para as crianas? s vezes eu rezo e peo para o anjo da guarda daquelas crianas, que eu matava a fome delas, rogo a Deus por mim. Eu fazia pensando neles. As pessoas se enganam muito com a gente. Meu corao bom demais, acredita? Eu choro pela criana pobre. Eu no me importo de pedir esmola no, agora se eu vir uma criana com fome, eu divido minha comida para elas. Eu acredito que um dia vou pra minha liberdade.

    Construiu todo o discurso baseado na lgica de sua inocncia, fundamentada nas suas caractersticas pessoais de bom pai de famlia, de ser querido por todos, por no ter ambio e, principalmente, pelos seus valores religiosos. Toda a entrevista foi entrecortada por exclamaes religiosas: Ave Maria!, Deus me livre!, ou pela salvao dos meus filhinhos!. Disse que rezava todos os dias no presdio, tendo que se esconder para rezar, para que os outros presos no lhe ironizem.12

    entrevistando pistoleiros: as armadilhas simBliCas da pesquisa

  • 3332 Crimes por enComenda

    Cumplicidade e distanciamento

    Um possvel distanciamento ou neutralidade do sujeito investigador questio-nado pelo sujeito investigado, quando este impe uma participao na entrevista. Tal participao exigida no s nas demandas de opinies, mas tambm por conta da expectativa de uma certa identidade e, mesmo, de uma cumplicidade. Esta cumplicidade aparece na tomada de posio diante de determinadas situaes: se isto ocorresse com o senhor, o que senhor faria? A tomada de posio representa uma possvel dvida diante de aes violentas, j realizadas, mas tambm de uma busca de compreenso dos sentimentos do pesquisador. Tal postura do entrevistado uma tentativa de quebrar a relao assimtrica, construda no processo de dominao no ato de entrevistar, na descoberta de uma linguagem mais uniforme. Neste sentido, era elaborada uma comuni-cao menos violenta. Numa postura ativa, o sujeito investigado questionava ou punha em dvida o meu direito de penetrar nos seus pontos de vista e nos seus sentimentos.

    Dentro da estratgia de obter maior nmero possvel de informao, usei de v-rias posturas, as quais demarcaram ou romperam os limites do meu envolvimento e da minha participao nas entrevistas. O conhecimento e o desconhecimento de fatos, de ocorrncia, e mesmo de personagens balizavam a minha postura. Em determinadas entrevistas, o demonstrar conhecimento sobre uma situao especfica, em que o en-trevistado teve participao, ou mesmo, num conhecimento prvio de uma situao mais ampla, era a postura, em princpio correta. Em outras entrevistas, o desconhecimento sobre os fatos narrados dava o tom. A no informao, ou mesmo uma ignorncia forada, me possibilitaram obter ricas e detalhadas explicaes. O desconhecimento sobre uma linguagem especial, dos informantes, em vez de ser um obstculo, ensejou minuciosos esclarecimentos.

    As diversas posturas adotadas na obteno de informao foram uma estratgia encontrada para questionar, constantemente, meus pressupostos metodolgicos. Tinha a clareza de que no controlava os efeitos da presena do pesquisador ou da influncia das perguntas, nos resultados obtidos.

    O sonho positivista de uma perfeita inocncia epistemolgica oculta na verdade que a diferena no entre a cincia que realiza uma construo e aquela que no o faz, mas entre aquela que o faz sem o saber e aquela que, sabendo, se esfora para conhecer e dominar o mais completamente possvel seus atos, inevitveis, de construo e os efeitos que eles produzem tambm inevitavelmente (BOUR-DIEU, 1997, p. 694).

    Tive conscincia, em todo o percurso da pesquisa, que estava pesquisando um objeto cheio de subterfgios e com diversas armadilhas. Esta conscincia me colocou numa posio muito instigante, metodologicamente, que era a de dvida e de incerteza. Neste sentido, os passos tomados foram mais comedidos e cautelosos. Isto pode ter

    prejudicado, impedido ou limitado grandes vos. Por outro lado, a reflexividade, o pensar pesquisando, me trouxe com toda nitidez os limites da neutralidade e do distan-ciamento nas pesquisas sociolgicas. As verdades ficaram cada vez mais no campo do relativismo e o ato de pesquisar mais estimulante e com menor quantidade de cnones.

    Notas1 O trabalho sobre a campanha para acabar com a pistolagem no Estado do Cear, que ser apresentado em outra parte, foi montado, exclusivamente, com material de jornal.2 No consegui entrevistar nenhum mandante, mesmo tendo tido vrios contatos com um ex--deputado estadual, que possui fortes indcios de participar da rede de pistolagem do Estado. Este se mostrou sempre bastante solcito, pelo fato de ter sido indicado por parentes ou correligionrios polticos; entretanto, sempre ocorria um imprevisto que impedia a realizao da entrevista.3 Em uma das vezes que fui ao IPPS fazia poucos dias que tinha ocorrido uma rebelio, na qual o arcebispo de Fortaleza, dom Alosio Lorscheider, tinha sido tomado como refm.4 Estava uma vez entrevistando um presidirio, quando este retira uma faca e comea, calmamente, a descascar uma laranja. Senti-me em um filme de suspense: de sutis e lentos assassinatos. O suspense, ou o filme, terminou quando me ofereceu um gomo de laranja. Ficou difcil foi contar com o mesmo auxiliar de pesquisa, para outras entrevistas, em presdios.5 Para uma pessoa que serviu de mediador, no era aconselhvel que, no primeiro encontro, portasse nenhuma bolsa ou sacola, para no suscitar nenhuma suspeita da parte do entrevistado. 6 Termo pejorativo que identifica os homicidas que fazem parte do sistema de pistolagem.

    7 Depois, soube que este filho j estava cometendo crimes de pistolagem.

    8 Presidirio acusado de praticar crimes de pistolagem. Est condenado a 30 anos de recluso e aguardando outros julgamentos.9 idem. 10 idem.11 Pistoleiro preso, condenado a 22 anos de recluso por crime de encomenda. 12 Presidirio, com ordem de priso decretada, aguardando julgamento. acusado de ter praticado um crime de encomenda. J cumpriu outro perodo, na priso, por ter cometido um assassinato, segundo ele, em legtima defesa.

    entrevistando pistoleiros: as armadilhas simBliCas da pesquisa

  • 3534 Crimes por enComendaCaptulo ii

    Pistolagem e visibilidade pblica

    Nas duas ltimas dcadas deste sculo, a pistolagem ganha visibilidade. Deixa o recanto do meio rural e ganha o domnio pblico, ultrapassando os limites da fazenda, da vila e da pequena cidade. A atuao dos pistoleiros deixa de ser restrita s reas rurais e as cidades passam a ser o grande palco. Os segredos do sistema de pistolagem vo sendo quebrados, desnudando uma complexa rede de atores e instituies.

    Nesta parte do livro, pretendo analisar trs situaes, referentes a momentos em que a pistolagem ganha visibilidade. A primeira situao uma Campanha para acabar com a Pistolagem no Estado do Cear, realizada no final de 1987 e incio de 1988, que teve como resultado importante oficializar a existncia de crimes desta na-tureza. O fenmeno passou a ocupar o lugar de questo de segurana para o Estado. A segunda situao a ser analisada a realizao de uma Comisso Parlamentar de Inqurito sobre Pistolagem, no Congresso Nacional. Esta Comisso foi instalada em 1994, inicialmente com os trabalhos sendo restritos rea conhecida como Bico do Papagaio; em seguida, a sua atuao foi ampliada para outros recantos do Pas. A terceira situao trata do estudo das Eleies Municipais de 1996, no Municpio de Maracana, no Estado do Cear, que colocaram em cena candidatos oriundos dos rgos de segurana do Estado e suas campanhas entrecortadas pela temtica da pis-tolagem. A poltica eleitoral do Municpio de Maracana teve como um dado concreto o fato de o seu primeiro prefeito, em 1987, ter sido assassinado, com fortes indcios de crime de pistolagem.

    Em cada caso analisado, foi privilegiada uma fonte de pesquisa. A anlise da Campanha da pistolagem foi baseada, principalmente, em material da Imprensa do Estado do Cear; no estudo da CPI, foram utilizadas as atas das reunies da Comis-so; a anlise das eleies municipais baseou-se, fundamentalmente, em entrevistas e observaes feitas na cidade de Maracana.

    Estas trs situaes tero duas ordens de preocupao. Uma ser interna, ten-do em vista a compreenso de questes especficas de carter tcnico ou emprico suscitadas pelo material de pesquisa. A outra privilegiar a anlise dos diferentes aspectos que convergem para a compreenso do sistema de pistolagem. As trs situ-

    aes, neste sentido, funcionaro como fornecedoras de elementos na montagem do quadro do fenmeno. A importncia, em princpio, destes estudos, de natureza to dspar, a possibilidade de que ofeream elementos para enriquecer a compreenso da pistolagem.

    Uma campanha contra os crimes de pistolagem

    Ns vamos acabar com os pistoleiros no Cear. Em qualquer muncipio onde estiver um, a polcia est l para traz-lo preso, seja protegido por quem for. (Declarao do Secretrio de Segurana Pblica do Estado do Cear, jornal O Povo, 29/12/1988).

    Em 1988, desenvolveu-se, em todo o Estado do Cear, ampla campanha para acabar com o crime organizado e, especificamente, com o crime de aluguel ou pis-tolagem. A campanha, organizada pela Secretria de Segurana Pblica, teve grande divulgao em todo o Estado, principalmente no serto rea onde ocorreu a maioria dos casos dos crimes e nas principais cidades.

    Desmantelar a pistolagem um dever perante toda a sociedade d a tnica da campanha, que teve como perodo ureo junho de 1988 a maio de 1989.

    Com um ano de campanha, os resultados foram significativos: mais de 30 pessoas presas, entre pistoleiros e mandantes de crimes.

    Esses resultados propiciaram vrias manchetes nos principais jornais do Esta-do Pistolagem sofre baixas no Cear. Diariamente, eram estampados nos jornais fotografias de famosos pistoleiros e de mandantes, pertencentes a tradicionais famlias do Estado.

    Essa campanha tornou visvel os criminosos de aluguel e os seus mandantes, conseguindo pr em evidncia o aparato policial, e, especificamente, o Secretrio de Segurana Pblica e os seus principais assessores.1 A polcia procurava recuperar uma base de credibilidade perdida pelo aumento da violncia no Estado e, principalmente, pela omisso ou conivncia diante dos crimes de pistolagem. Mostrando um aparato policial moderno, racional e eficiente, no chamado mutiro contra a violncia, a polcia adequa-se, perfeitamente, a uma nova postura do governo do Estado para mediar os conflitos pela lei e eliminar as prticas de um sistema coronelista (BARREIRA, 1992). Esta campanha teve forte marca simblica de confronto entre duas ordens, entre duas prticas polticas: dos empresrios (moderna) e dos coronis (atrasada).

    Esta campanha que imps uma baixa na pistolagem possibilitou, tambm, que a instituio do crime organizado, com sua complexa rede de relaes sociais, fosse sendo desfiada e desvendada.2

    Todo um quadro delineador desse fenmeno, atravs das denncias, ganha uma dimenso pblica.3 A complexa rede do crime de aluguel, como denominado,

  • 3736 Crimes por enComenda

    desnuda-se aparecendo em cena ou, mais especificamente, nas pginas dos dirios: o pistoleiro, o ajudante do crime, o intermedirio da ao e o mandante, que so os principais personagens do drama. So atores com papis distintos e com situaes sociais delineadas a partir de um quadro sociopoltico mais amplo, ganhando destaque as relaes polticas e familiares que esto no centro das atenes.

    Pontualmente a campanha coloca em cena: a pistolagem como uma rede de atores e instituies; a relao entre a pistolagem e o exerccio da poltica; o sistema de cumplicidade e a aceitao da pistolagem como fazendo parte

    de regras do jogo poltico; o papel do sistema judicirio na elucidao e punio do crime.As descries dos crimes deixam transparecer, por um lado, a existncia de forte

    violncia, principalmente em reas rurais, dando destaque justia pelas prprias mos e ao mundo do arbtrio, que se reproduz fora das relaes institucionalizadas. Por outro lado, suscitam uma discusso sobre o sistema policial e judicirio do Estado: o sistema de punio existente no Cear frente a determinados crimes.

    Os pistoleiros so enfocados nas notcias no como criminosos comuns mas as-sassinos de alta periculosidade, submetidos a uma hierarquia nas classificaes morais do crime.

    A narrao dos crimes, coladas s matrias dos jornais, longe de demonstrar uma objetividade descritiva, cheia de adjetivaes, onde o reprter assume tambm uma posio moral. Pode-se dizer que a matria tem uma certa funo de denncia, no sentido de tornar pblico o que vinha sendo ocultado. Para observar a riqueza dessa linguagem, tentarei, ao mximo, reproduzi-la no relato das situaes analisadas.

    A atuao dos pistoleiros, como escrevi na introduo, est ligada diretamente a duas situaes: ao voto, que materializa a reproduo do mando poltico, e terra, que preserva a dominao econmica. Nas questes de terra, o grande alvo tem sido os lderes camponeses ou pessoas envolvidas nos trabalhos de organizao e representao dos trabalhadores rurais. Nas disputas pela representao poltica, o alvo a elimina-o do opositor na esfera poltico-partidria, tendo como litigantes grupos familiares.

    Nesta parte, analisarei, especificamente, os crimes que ocorrem na disputa pelo mando poltico.

    Ganham destaque trs casos de pistolagem ocorridos em regies diferentes do serto do Estado do Cear, tendo como dado comum o fato de serem situaes em que a disputa poltica foi o mvel fundamental, em grande parte, mediadas por intrigas familiares.

    Preso o maior matador de aluguel do Nordeste

    Foram onze longos anos de espera, perseguio e persistncia. Mas, enfim, o sonho

    pistolagem e visiBilidade pBliCa

    se realizou. O Delegado Fred Caetano,4 da Polcia Civil, prendeu Miranda, o frio pistoleiro que, de uma s vez, para exemplificar seu desejo de matar, executou quatro pessoas. Esteve vrios anos escondido na fazenda de Domingos Rangel, latifundirio que tem vastas extenses de terras no Par, norte do Pas. Ontem, nos Sertes dos Inhamuns (CE), rendeu-se lei. Sob a mira de revlveres, o as-sassino no pde cumprir a promessa de suicidar-se caso percebesse que poderia ser agarrado pela polcia (O Povo, 07/08/88).

    Era ponto de honra para o Delegado, conhecido como caador de Miranda,5 realizar a priso do pistoleiro. Para cumprir essa misso, preparou-se durante um longo perodo, divulgando sua pontaria como sendo o grande trunfo para aquele que quisesse sobreviver. A fama de ser certeiro atributo tanto do delegado quanto de Miranda.

    No dia 6 de agosto de 1988, Miranda, conhecido por diferentes codinomes An-tnio Galego, Rato Branco ou Toinho Galego estava preso.

    A priso do maior pistoleiro do Nordeste revestiu-se de alta significao, demons-trando que a Campanha tinha um resultado concreto. Miranda no era um pistoleiro comum. Os seus principais crimes foram cometidos com grande visibilidade. Em um deles, conhecido como a Chacina da BR, foi eliminada toda uma famlia de polticos, havendo um dado, carregado de simbolismo, que foi o ato de decepar uma orelha da vtima como prova, historicamente conhecida, do servio cumprido. Outro aspecto que Miranda tinha como principal rea de atividade a regio Jaguaribana, tida como um reduto sagrado, onde reinam a impunidade e um poder poltico e econmico que sobrevive custa de violncia.

    Miranda tinha como agravante poltico o fato de ser tido como protegido e ser membro de uma antiga famlia de tradicionais polticos. Esta famlia, que possua fortes ligaes com dois dos mais conhecidos coronis do Estado (Virglio Tvora e Adauto Bezerra), estava em franco processo de desaparecimento da vida poltica. Um dos seus principais lderes era considerado, anteriormente, o rei do voto da regio. A relao de troca era construda, segundo a imprensa, entre voto e impunidade.

    As matrias, nos jornais, que antecederam a priso dos pistoleiros, marcavam fortemente a relao entre crimes de mando e poder poltico tradicional. A proteo dada a pistoleiros por inescrupulosos polticos dava o tom das denncias: Polticos e a sorte protegem o maior pistoleiro do Nordeste (O Povo, 23/07/87).

    Os percalos trilhados pelo delegado que elegeu como ponto de honra prender o maior pistoleiro do Nordeste eram sistematicamente divulgados: Persistncia, a arma do caador de Miranda. Em entrevista publicada no jornal O Povo, o delegado afirma que durante todos esses anos (dez anos) no desisti de prend-lo. Por diversas vezes fiquei chateado, ao voltar de uma viagem, gastando o dinheiro do Estado sem conse-guir prender o Miranda. Mas isso passava logo e dias depois eu comeava tudo outra vez (07/08/87). Os disfarces de vendedor ambulante, de comprador de gado e outros

  • 3938 Crimes por enComenda

    foram, constantemente, utilizados para conseguir alcanar o seu intento. Para Miranda,

    A verdade que ele no passou esse tempo todo me procurando como dizem por a, isso folclore. Morei muito tempo na cidade de Jaguaribe, dentro da rua (isto , no centro da cidade). Toda a polcia sabia que eu morava l e sabia onde era a minha casa e nunca foi l. Passei seis anos morando l, andando pela rua normalmente, fazendo feira, negociando com o gado, em todas as festas na BR 116 eu estava dentro. No verdade esta conversa... (O Povo, 10/11/91).

    Outra polmica, dentro do sensacionalismo da priso, ocorreu em relao ao n-mero de assassinatos cometidos pelo pistoleiro, chegando a 89 crimes. Esta polmica est mais nas afirmaes do Secretrio de Segurana sobre a periculosidade do preso. Para Miranda, isto foi uma jogada poltica.

    Eu quero que ele desvende esses crimes para que a sociedade saiba. Tudo foi coisa montada na cabea dele, na poca da minha priso, j pensando na eleio pela frente. Ele fez toda campanha em cima do meu nome. Nunca fez nada, nunca mandou construir uma escola, nada. A nica coisa que ele fez foi me prender. Fez a campanha toda em cima de mentiras (O Povo, 10/11/91).

    Embora haja indcios de envolvimento do pistoleiro com mandantes, ele nega esse fato.

    Uma das marcas de Miranda a seqncia de ligaes que tem, como ponto de origem, com o assassinato de seu ex-patro, grande proprietrio de terra da regio de Jaguaribe (CE), e pertencente a uma famlia de polticos do Estado. Essa cadeia de crimes entrecortada por vrios outros assassinatos ocorridos por diferentes motivos, inclusive em outros estados do Nordeste.

    Alm dos crimes confessados, ele executou dois pistoleiros pernambucanos que ousaram vir ao Cear enfrent-lo numa disputa de vida ou morte. Tambm acusado de ligaes com a Famlia Mendes, tendo eliminado um ex-Deputado, no Municpio de Catol do Rocha, na Paraba (O Povo, 07/08/88).

    Nos seus depoimentos, Miranda revelou, para a polcia, indcios de participao em pelo menos 24 crimes de pistolagem nos Estados do Cear, Paraba e Rio Grande do Norte, ocorridos nos ltimos 11 anos, perodo em que ele era fugitivo da justia.

    Miranda classificou, sempre, seus crimes como sendo de vingana e no homic-dio qualificado pela surpresa e torpeza, sem chances de defesa para a vtima; tambm afirmava no praticar crimes de pistolagem, retirando o carter frio e impessoal que caracteriza os crimes de aluguel, mediado simplesmente pelo dinheiro. Existe, neste sentido, uma tentativa de envolver o homicdio em aspectos afetivos, morais e emocio-

    pistolagem e visiBilidade pBliCa

    nais. O ru deixa de ser frio, calculista e inumano prenhe de emoes socialmente reconhecidas como justas.

    Para o seu advogado, o acusado

    autntico e corajoso ao declarar que eliminou Ivan Natal porque este havia morto (sic) seu pai, pessoa que mais havia lhe ajudado, digno que isso seja registrado nos anais desta Casa (...) acentuando que o ru natural da regio de Jaguaribe, por no ter um pai que lhe desse condies de estudar, encontrou na pessoa de Carlos Damio um cidado que o estimulou a enfrentar a vida com dignidade e custa do trabalho honesto. Eram amigos que se respeitavam. Carlos Damio era para Miranda como Jesus Cristo para os apstolos, tudo isso dentro de uma amizade que completou mais de uma dcada (O Povo, 08/11/88).

    Dentro desta postura de vingador, mantendo uma lealdade a possvel mandante e pelos vrios crimes, Miranda passa a fazer parte das representaes contidas no imagi-nrio popular, que reforam sua valentia e coragem. Ele seria uma espcie de repetio de Lampio, atravs do qual os setores populares projetam os prprios valores. Foram feitos quatro folhetos de Literatura de Cordel sobre Miranda: A priso do pistoleiro Miranda, O julgamento de Miranda, A carta de Miranda sociedade e Miranda, o maior pistoleiro do Nordeste. A priso do pistoleiro Miranda teve sua primeira edio (500 exemplares) esgotada em poucos dias, exceto na regio do Jaguar