balandier, georges. o poder em cena[1]

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!Ice livro ou plrte dei. . rr : , r !1/ I1nlo pode .er reproduzido por qualquer meio .....t: (: .

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AI: N • ItRQISTRO ~

~fiLg~Campus Universitário - Asa Norte '" DAT~ .,

70.910 - Brasilia - Distrito Federal ~ ~

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DOAÇÃOEAE1CH I UFMQ

Impresso no Brasil

Editora Universidade de Brasilia

Copyright © 1980 hy Éditions Balland

Direitos exclusivos de edição em lingua portuguesa:Editora Universidade de Brasília

Capa:Arnaldo Camargo Machado Filho

EQUIPE TÉCNICA

Editores:Lúcio Reiner, Manuel Montenegro da Cruz,

Maria Rizza Batista Dutra e Maria Rosa Magalhães.Supennsor Gráfico:

Elmano Rodrigues Pinheiro.Superoisor de Reoisão:

José Reis.Contra/adores de Texto:

Antônio Carlas Aires Maranhão, Carla Patrícia Frade Nogueira Lapes,Clarice Santos, Fernanda Borges, Laís Serra Bátor, Maria del Puy Diez de Uré Helinger,Maria Helena Miranda, Mônica Fcrnandes Guimarães, Patrícia Maria Silva de Assis,

Thelma Rosane Pereira de Souza, Wilma G. Rosas Saltarelli

Ficha Catalográfica(Elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília)

B171 P Ralandier, GeorgesO Poder em Cena. Trad. de Luiz Tupy Caldas de Moura.

Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982 © 1980.

78p, (Coleção Pensamento Político, 46).

Título original: Le pouvoir sur scenes.

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SUMÁRIO

aCAPÍTULO 1

PREFÁCIO ······································ .

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CAPÍTULO 2

O Drama ····························,···

A Confusão , . u

CAPÍTULO 3 O Inverso , . 4iCAPÍTULO 4 A Tela ..... , ..... ··········,····················· 81

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PREFÁCIO

/o político comanda o real através do imaginário, num espetáculo em qUI 11

cenas se sucedem, ora refletindo constrangimentos originados no passado ao nfYIlda cultura, ora em decorrência de transformações sociais, cuja intelegibllldad.Georges Balandier apreende ao surpreender o nível profundo das relações IOClaJlque dão o sentido da ação, a par das estruturas oficiais, as aparências superfIclail,controladas diretamente pelo poder. O poder é concebido como um jotodramático que permanece ao longo dos tempos e ocorre em todas as sociedadlt.Para o autor, os terroristas, por exemplo, vão buscar na morte a sacralízação de IUUidéias; os sacrifícios e o sagrado levam tanto à desordem, quanto à ordem como Overso e o reverso de uma medalha são indissociáveis.

Sem recorrer a modelos, Georges Balandier penetra na dinâmica de cadasociedade, dando sentido às imagens codificadas, universalizando o especifico,comparando situações em termos de tempo e de espaço, afastando-se do modeloda análisé dualista, tão ao gosto das ciências sociais, em que uma dada civilizaçlo,aconsiderada mais avançada, é apresentada como parâmetro, meta' para o.integrantes das outras civilizações. Toda sociedade tem a sua própria dinâmica e aação dos homens tem nelas sentido específico, universal. Balandier, recorrendo lsociologia, à antropologia e à história, tem o mérito de demonstrar a semelhançados mecanismos do poder em várias civilizações, contrapondo espaço e tempo,valorizando o conceito de alternativas que possibilitam a escolha da orientação diação a partir de diferenças que, juntamente com os valores, oferecem o sentido daorganização social e da política. .

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Georges Balandier, que atualmente ensina sociologia e antropologia lVoSorbonne, onde substituiu Georges Gurvitch na cátedra, iniciou sua carreira d,pesquisador no Continente africano. No plano da sociologia, sua obra culminoucom a publicação de SociologieActuelle de l'Afrique Noire e com Sens et Puissance, livro d,ensaios de alto cunho teórico. Com Anthropologie Politique eAnthropo-logiques lanç ••••no domínio da antropologia, avançando, desde então, para a área da cienc~1política e do ensaio, através de Histoires des Autres, e agora com esta obra que IEditora da Universidade de Brasília tem a satisfação de apresentar aos leito rei dilíngua portuguesa. .

Prol Fernando Mou"',Brasilia, junho dt J 911,

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o DRAMA

Por trás de todas as formas de arranjo da sociedade e de organizaçlo do.poderes encontra-se, sempre presente, governando dos bastidores, a "teatrocrJ.ocia". Ela regula a vida cotidiana dos homens em coletividade. É o regimlpermanente que se impõe aos diversos regimes politicos, revogáveis, suceuivo ••Ela deve este nome a um russo de múltiplos talentos e atividades, ml.desconhecido - exceto de Beckett que recebeu sua influência ao estabelecer oteatro da zombaria - Nicolau Evreinov. Sua tese, expressa a partir de ilustraç&••extremamente variadas, monta um tribunal teatral para todas as manifestaçOel daexistência social, notadamente as do poder: os atores políticos devem "pagar .IUtributo cotidiano à teatralidade".

o argumento é menos recente do que o termo que o denomina. Shakelpelrtjá lhe tinha dado o simbolo: "O mundo inteiro é uma cena"; e suas peçuprincipais são o comentário dramático das formas em que as práticas coletiva •••revelam, as dos participantes e as dos confinantes dos poderes e das ações social ••Um jogo encenado a fim de mostrar os jogos da sociedade, que os faz e desfaz; umasociologia que não depende de enunciação, mas da demonstração pelo drlml. ;

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Esta última expressão tem, de sua origem grega, um duplo sentido: O de qire o de representar o que está em movimento a fim de provocar a descob~él.-til,.verdades escondidas em todos os assuntos humanos. A constaração do parenteleoexistente entre as palavras "teoria" e "teatro" completa a lição, pois transmi~"mesmo ensinamento. Ela sugere que o primeiro modo de teorizar é de car•• r,dramático. A vida social, as transposições efetuadas pelos atores do drama e' Iteoria têm ligação; juntos, compõem e expõem uma mesma ordem de realídad ••Âcidade grega antiga, os grandes mitos e o teatro que os apresenta estiO .mcorrespondência. Esses, pelo jogo dos personagens reveladores -Prom~n!lU,Édipo, Antigona, na primeira fila - tornam ayarentes os princípios que governama vida coletiva, os debates e conflitos que engendra. Tirando uma conclulloradical, certos politólogos contemporâneos localizam a verdade do poder nosubstrato das grandes mitologias mais do que no saber produzido pela sua prôprl&ciência

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o Imagln6rlu Ilumina pols o fenômeno poltuco: Nem dúvida de dentro, poisque dele ~ IIIIIU flUl'lr consthuinte. Todo sistema de poder é um dispositivodestlnado a produzir efeitos. entre os quais os que se comparam às ilusões criadaspehu lIuNôcN do teatro, As imagens propostas por Maquiavel identificam oPrínclpe ao dcmiurgo ou ah herói; elas sacralizam seus empreendimentos,tornando-o cúmplice da instituição sagrada estabelecida - a religião e suascerimônias. No entanto, a transposição requerida pela prática política é de outraespécie: o Florentino, por sua própria experiência, inclusive a de autor dramático,conhece a relação íntima de parentesco entre a arte do governo e a arte da cena. Astécnicas dramáticas não são utilizadas exclusivamente no teatro, mas também nadireção da cidade. O Príncipe deve se comportar como ator politico paraconquistar e conservar o poder. Sua imagem, as aparências que tem, poderão.lIlm corresponder ao que seus súditos desejam encontrar nele. Ele não saberia(l'uvernar mostrando o poder desnudo (como está o Rei no conto) e a sociedade emUIIIII transparência reveladora. Tomemos pois o risco de uma fórmula: a aceitaçãoresulta em grande parte das ilusões da ótica social.

Maquiavel tentou interpretar este fenômeno insólito, produzido em Florençaem fins do século xv - a ditadura de Savonarola. O exemplo é demonstrativo.Com efeito, nada parecia favorecer o sucesso deste monge dominicano inflamado,que se tornou o artesão solitário de uma revolução social, econômica e política. Elesurgiu, "inspirado por Deus", em uma cidade dominada pelo ateísmo. Ele prega emoraliza. Ele diz o que é "o governo natural de Florença". Ele lança éditos edomina sem participar diretamente, a vida política, através das instituições.Savonarola mobiliza o povo, encontra apoio nas artes, organiza uma propagandaque provoca a adesão e formação dos "novos cidadãos". Ele dramatiza habil-mente, suscitando as encenações de rua. Ele restabelece o Carnaval, fazendo deleUIII meio de moralização; ele faz transformar as canções libertinas em hinos da"milícia da virtude". Ele espalha as fogueiras da vaidade, queimando os sinais deluxo e com eles o mal. Mas, a grande festa das aparências é situada em outro plano.A religião é empregada para uma transformação política total. Florença é colocadadebaixo da realeza do Cristo e o monge inspirado, em "embaixada junto àVirgem", faz de sua profecia um programa. Ele constrói uma cidade divina, ele já amostra, sua pregação transforma o imaginário em presença. Savonarola fala e éobedecido. A mecânica empregada para produzir efeitos é a máquina oratória. Opoder adquirido é teatral na acepção mais imediata do termo. Nasce de uma voz,no sentido lirico de termo. P. J. Salazar, em um estudo recente, considera queFlorença é então submetida a "uma ditadura da voz". É com este desempenho queo imaginário e a ideologia se tornam ilusões realizadas.

O grande ator político comanda o real através do imaginário. Ele pode, aliás,manter-se em uma ou outra destas cenas, separá-Ias, governar e produzirfumespetáculo. Como Luís XIV em seus divertissements, o Rei se torna comediante.A ópera francesa se edifica sobre um terreno político. O Balé Cômico da Rainha,

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o Poder em Cena ,produzido em outubro de 1581 por ocasião do casamento do duque deJoyeUI'com a cunhada de Henrique llI, foi uma das primeiras manifestações deite dpo,Ele marca a ruptura com as práticas das "Entradas Principescas" ou doa IIIntlr-médios" à italiana. É uma representação centrada inteiramente no Rei, RIU"rando em seu carro-camarote. A ópera do século XVII, segundo a exprelllo d.P. J. Salazar em seu trabalho consagrado às ideologias da ópera, manifesta o mitoafirmando a "perfeição da cidade, do Estado, da natureza monárquica", Ela.concebida como uma expressão estética perfeita, uma arte mimética da naturtllfisica e da sociedade monárquica. Sua ordem e esplendor mostram suas virtude.similares, e finalmente, um mundo acabado de que o monarca é o centro aparent ••Desde os mecanismos da natureza descritos pela fisica cartesiana, até as maqul·narias e reconstruções básicas da ópera e os dispositivos do Estado mantido. peloRei, tudo se encontra em correspondência. O imaginário clássico projeta sobre .1.cena, onde se desenrola o drama lírico, as representações de uma ordem. ondetudo é harmonia. Produz esta ilusão, e, fazendo-o, a justifica.

O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência nlc)'controlada teria uma existência constantemente ameaçada; o poder expOICOdebaixo da iluminação exclusiva da razão teria pouca credibilidade. Ele nloconsegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justificação racional. 11.só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pellmanipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial. Elcaloperações se efetuam de modos variáveis, combináveis, de apresentação disociedade e de legitimação das posições do g~verno. Logo que a dramatur,l.política traduz a formulação religiosa, ela faz uma réplica da cena do poder ou umlmanifestação do outro mundo. A hierarquia é sagrada - como o diz a etimoloFI"e o soberano depende da ordem divina, dela fazendo parte ou recebendo O 'tumandato. Logo o passado coletivo, elaborado em uma tradição, em costumJ,;taorigem da legitimação. É uma reserva de imagens, de símbolos, de modelo. d.ação; permite empregar uma história idealizada, construída e reconltruldasegundo as necessidades, a serviço do poder presente. Este gere e assegura IIU'privilégios colocando em cena uma herança.

É, entretanto, o mito do herói que acentua com mais freqüência a teatralidadlpolítica; ele engendra uma autoridade mais espetacular do que a rotineira, que ~.looferece surpresas. O herói não é desde logo considerado como tal porque seria no·tadamente "o mais capaz" - de assumir o encargo da soberania, como afirmaCarlyle. Ele é reconhecido em virtude de sua força dramática. Dela deriva IUIqualidade e não do nascimento ou da formação recebida. Ele aparece. "'1provoca a adesão, recebe o poder. A surpresa, a ação, e o sucesso são as tre, lei. dodrama que lhe dão existência. Ele deve ainda respeitá-Ias na condução do gO.verno,manter-se no próprio papel, mostrar que a sorte permanece sua aliada contrltodos. Nas formas contemporâneas,' o herói muda de figura; ele é mono.companheiro da fortuna do que mestre da "ciência" das forças históricas, Ele II

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conhece, ele pode dominá-lu e tornar .eu. efeitos positivos; todas as manifes-taÇOl'8 exteriores do poder são feitas a fim de dar esta impressão. O recurso aoImaginário está na convocação de um futuro em que o inevitável se transformaráem vantagem para o maior número de súditos. As luzes da cena do futuroIluminam a do presente.

Todos estes processos, isoladamente ou mais freqüentemente associados,definem funcionamentos políticos reconhecidos. Um deles se situa à parte, poisque luas potencialidades dramáticas são mais fracas. É o modo democrático que sebasela na representação e em que o poder resulta da regra majoritária. Ele nãodepende ordinariamente nem da conivência dos deuses ou do respeito datradição, nem do surgimento do herói ou do controle das correntes históricas.Depende da arte da persuasão, do debate, da capacidade de criar efeitos quefavoreçam a identificação do representado ao representante. Ele dramatiza pelaeleição, ocasião que uma "partida" nova parece ser jogada. A intensidade da açãoresulta da incerteza quanto à maioria, sua manutenção ou sua mudança; omomento espetacular é o das crises de governo. Ocasionalmente, a surpresa -vulgarmente denominada um "golpe" - quebra a rotina, espanta e dá vantagens.As novas técnicas dão meios mais poderosos à dramaturgia democrática, os damídia, da propaganda e das sondagens políticas. Elas reforçam a formação dasaparências, ligam o destino dos homens de poder tanto à qualidade de sua imagempública quanto às suas obras. Denuncia-se então a transformação do Estado em"espetáculo", em teatro de ilusão. O que se encontra assim submetido à critica,considerado como perversão, não é senão o aumento de uma propriedadeIndissociável das relações de poder.

Uma amplificação idêntica pode se realizar independentemente do concursoda tecnologia contemporânea, pois que é da natureza de certos regimes recorrer aefeitos extremos para sustentar o domínio. É o caso das sociedades totalitáriasonde a definição política - isto é, a submissão de todos e de tudo ao Estado -leva afunção unificadora do poder ao seu mais alto grau. O mito da unidade, expressopela raça, pelo povo ou pelas massas torna-se o cenário da teatralização política.Ele mobiliza e recebe sua aplicação mais espetacular na festa que põe a naçãointeira em situação cerimonial. Durante um curto período, uma sociedadeimaginária, e, conforme a ideologia dominante, pode ver e viver. O imaginário"oficial" mascara a realidade e faz sua metamorfose. A festa nazista, à qual nãofaltam nem mesmo os poderosos simbolismos cósmicos, é a ilustração lembrada('0111 mais freqüência. Ela apaga as discriminações sociais, ela elimina o discurso emproveito do sortilégio, é quase uma comunhão, ela leva quase à alienação. J.nu vignaud diz que ela substitui a sociedade civil por uma "fusão delirante". Elatransforma um povo inteiro em uma multidão de figurantes fascinados pelo dramaem que os envolve o senhor absoluto do poder.

Nos países de regime socialista onde prevalecem o Estado e o poder pessoal, afesta dá ensejo à sociedade de se mostrar "idealmente" de modo espetacular. Os

o Poder em Cena ,desflles, tanto militar como civil, são expressões cerimoniais do dogma e dipedagogia dos governantes. Neste caso, o 1.° de Maio socialista i! bem mal. do qUIuma simples festa do trabalho. Ele reúne, ele iguala, ele alia em um momento Opovo e seus chefes na exaltação das realizações comuns. Mostra o poderio,notadamente o das armas; ele celebra os desempenhos tidos como realizado ••menciona o que falta fazer. Ele remodela os atores sociais, engajando-os em umespetáculo em que representam não o que são, mas o que devem ser em função doque o Estado, e, portanto, o partido espera deles. É o aspecto mais notável de umldramatização mais geral que personifica as categorias ou entidades: o Plano e 01dados econômicos, o proletariado e sua ditadura, o imperialismo e leu.cúmplices.

As situações e as circunstâncias, não somente a natureza dos regimes, podemcontribuir para acentuar a teatralidade política. A América Latina, essencialmentenão igualitária e aberta aos efeitos da dominação exterior, produziu - e ainda tema hipertrofia do poder, de um modo que associa a tragédia, de que sofrem 01povos, e o grotesco autocrático, com que os governantes enfeitam sua medíocrl-dade. Alguns escritores latino-americanos, Garcia Marquez, Alejo Carpentier, ROIBastos, mostram estes heróis de encruzilhada estabelecidos na cena nacional, o,ndese cruzam seus próprios delírios e o destino doloroso dos que lhes estiosubmetidos. Roa Bastos, em seu romance "Eu, o Supremo", transforma ummomento da história do Paraguai em um verdadeiro mito do poder total. O senhorda "Ditadura Perpétua" é o modelo absoluto de todos os governantes abuslvOI,delirantes, que reduzem a ação e a palavra políticas a um drama barroco,

É assim que são classificadas as práticas de muitos dos novos Estados tropicai"Elas teatralizam em excesso, elas montam seus cenários sobre a pobreza ~Imaioria dos súditos, elas mascaram poderes sem controle. A procurada grandezlse transforma em nefasta grandiloqüência, freqüentemente ruinosa. Na Guln.Equatorial, um ditador se diviniza, na África Central um Presidente "víralícíe"imita Napoleão, em Uganda, um militar elevado à culminância torna-se ummarechal do arbitrário e do imprevisível. A morte e o grotesco, segundo o nOIlOponto de vista, se aliam nos jogos de um poder que nos parece sem limite e semregra. Alhures no Irã, o furor religioso desce às ruas e. depois se instala. Eledramatiza, moraliza, executa, submete, entretém a ilusão de uma revoluçãepermanente - quando arrisca substituir a ditadura e os excessos da tradição aos dimodernização negocista. Já se disse que o revolucionário, desde que triunfa e I'estabelece para governar se torna uma caricatura. É que há uma passagem dicomunhão libertadora para a dominação instituída, do ato que sacrifica e destróium poder ao de fundação que estabelece um outro. Durante este periodo 'rl••transfiguração, todos os caracteres ficam de qualquer modo deformados peloaumento, e, especialmente pelo .aspecto dramático da instituição política. 01regimes arbitrários motivados pelos próprios excessos, não saem deste estado; nOIoutros ele é apagado pela ação do tempo sob o efeito do que hoje chamamo.normalização.

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10 Otol'lfl'

Todo poder polltlco obtém finalmente a lubordln.çlo por meio da teatral i-dade, mais aparente em certas sociedades do que em outrlll, pula que suasdiferenças de civilização as tornam desigualmente "espetaculares". Representa emtoda acepção do termo a sociedade que governa. Ele se mostra como suaemanação, ele lhe assegura sua apresentação no exterior, ele devolve uma imagemidealizada desta sociedade e portanto aceitável. No entanto, a representaçãoimplica em separação, em distância; ela estabelece hierarquias; ela muda os queestão em diferentes cargoSl e esses dominam a sociedade fazendo dela umespetáculo onde ela deve (ou deveria) se ver aumentada. As manifestações dopoder não se acomodam bem com a simplicidade. A grandeza ou a ostentação, adecoração ou o fausto, o cerimonial ou o protocolo geralmente as caracterizam.

o poder utiliza, aliás, meios espetaculares para marcar sua entrada na história(comemorações), expor os valores que exalta (manifestações) e afirmar sua força(execuções). Este último aspecto é o mais dramático, não somente porque põe emação a violência das instituições como porque também sanciona publicamente atransgressão dos interditos decretados como invioláveis pela sociedade e seupoder. A praça da Greve foi palco deste drama produzindo a representação de umsacrifício pela força,' e que tem um valor de exemplo para o público assistente eparticipante. Os grandes julgamentos políticos, em seu desenrolar, na apresen-tação, levam a dramatização a seu mais alto grau de intensidade. Eles impõem umaencenação, um cenário, papéis, instâncias secretas e violências, revelações e efeitosde surpresa que levam geralmente à confissão do acusado. Recorrem aoextraordinário, inclusive no arranjo do cerimonial judiciário. São calcados emuma lógica implacável, mas seu funcionamento provoca emoções ~ desde areprovação até a cólera e o ódio populares. Eles transformam durante algum tem-po a cena política em um teatro trágico, pois que a meta do drama é a morteflsica ou moral daqueles que o poder acusa em nome da salvaguarda da forma edos valores supremos da sociedade. '

O poderio político não aparece unicamente em circunstâncias excepcionais.Ele se quer inscrito duravelmenre, imortalizado em uma matéria imperedvel,expresso em criações que manifestem sua "personalidade" e seu brilho. Ele dirigeuma política de lugares e obras monumentais. A monarquia de Luís XIV se mostra,fala e se glorifica pelo Castelo de Versalhes, que se constrói, e na ópera que seconstitui como drama lírico. Cada "reinado", mesmo republicano, marca de ummodo novo um território, uma cidade, um espaço público. Ele arranja, modifica eorganiza, segundo as exigências dos proveitos econômicos e sociais de que éguardião, mas, também, para não ser esquecido e para criar condições para suascomemorações futuras. Ao centro das ilusões produzidas pelo poder se encontra acapacidade de escapar aos assaltos do tempo. Tão inevitável como os embaraçosnaturais ele quer ser fator de continuidade, ele apresenta as provas de sua duraçãoem face dos homens e das gerações que passam, de seus súditos que morrem.

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o Poder em Cena 11

Inversamente, uma capital nova materializa uma nova era; ela monra 01princlpios de um empreendimento coletivo; é o espetáculo que o poder oferece d.nação em atividade e dele próprio. Um decreto a cria, principalmente para lheconferir uma força expressiva. Brasília é a ilustração mais importante. A mal. demil quilômetros do litoral, onde se situam as cidades históricas, sobre um planutode vegetação escassa, abandonado a rebanhos nômades, a capital federal do BrallIfoi edificada em 4 anos. Ela tem a forma de um gigantesco avião pousado perto deum lago igualmente artificial. Ela excede as medidas, em relação ao espaço e 10tempo; dissolvida na imensidão, para ser repesentativa de um país-continente; navertical sobre um território vazio e plano, e construidasegundo um modernlsmede vanguarda, para afirmar a antecipação do futuro. E sempre inacabada a fim deque este tenha sempre lugar. Brasília apresenta o poder em uma "encenação" deNiemeyer: emoldurando uma praça imensa, dedicada aos 3 poderes públlces,erguem-se os palácios do Governo, daJustiça e do Parlamento; ligada a ela, umavasta esplanada em que se escalonam os Ministérios. O resto compõe 01bastidores, sem limites precisos, as maquinarias que desempenham as funçOI'indispensáveis - diplomacia, cultura, assuntos econômicos, exército e resid~ncia.,Pode-se ver a hierarquia das classes e dos empregos; um sistema de diferença cuj.expressão espacial é regulada pelo poder. Ele é o regente e o ator, por conta dahistória.

As cidades formadas através de um longo período histórico compõem-se demúltiplas cenas construídas pelos regimes sucessivos. Apresentam um espagl)urbano onde abundam os símbolos e as significações. Roma é uma delas. Não foipor acaso que Freud acalentou o projeto de visitá-Ia e estudou sua topografiaapaixonadamente. Ele pressentia que o essencial ali estava inscrito. Para começar,o que denuncia as origens da cidade chamada eterna: um mito e um homicfdlo,uma fundação traçando o espaço da civilização, um nascimento - o de um poder,"imperium". Esta cena original permaneceu como inspiração no decorrer dOIséculos: de Pedro edificando um império espiritual, dos construtores da ltilllmoderna unificada, de Mussolini fazendo surgir no espaço romano seu sonhoimperial. Em seguida, os cenários dos diferentes períodos se embaralham. C,Delacampagne, procurando descobrir a "geometria louca" de 'Roma, revelou IIestranhas ligações que associam os tempos da Loba no princípio aos doflorescimento barroco do século XVII e depois aos da modernidade. O que I.encontra nestas caminhadas é sempre o poder e o sagrado; cada época inscrevendosua maneira de se ligar e de se mostrar no que as precedentes edificaram. É bemsignificativo terem sido os papas construtores do século XVI, empresários da f~edo poder, os que fizeram nascer de seus sonhos uma remodelação da cidade, aindaatual.

No decorrer de sua história toda cidade se enriquece de lugares aos quais podeser atribuída uma função simbólica, recebida por destinação ou em virtude dealgum acontecimento. São os teatros onde se apresenta a sociedade "oficial" t,

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12 Oeorlel Balandler

inversamente os em que se "manifesta" o protesto popular. A topografia simbólicade uma grande cidade é uma topografia social e polftica; a Bastilha designa oscomponentes sociológicos das classes e das atividades, ao mesmo tempo em que éum espaço aberto às demonstrações de reinvidicação ou de revolta. Certos lugaresexprimem o poder e impõem seu ar sagrado melhor do que qualquer explicação.A basílica de São Pedro de Roma, valorizada pela praça de colunatas concebida porBernini, é um cenário que provoca veneração e temor. Aí, a liturgia se tornaparticipação e espetáculo, uma consagração da onipotência de Deus como da do.soberano pontífice, outrora senhor de um império. No México, a vasta praçaZocalo, que cerca o Palácio Nacional, no centro da cidade, é um lugar decelebração. Todos os anos, no dia 15de setembro, às 11 horas da noite, diante deuma multidão de algumas centenas de milhares de pessoas, o Presidente daRepública reitera do balcão do palácio o grito de revolta lançado pelo padreMiguel Hidalgo, iniciador da Independência em 1810. Ele oficia; o povo-um coroimenso - responde por um "Viva!" a cada uma de suas fórmulas. Soam os sinos e osfogos de artifício iluminam a festa. Com este ritual periódico, os dirigentes setornam guardiões da continuidade mística da Revolução. Eles criam a ilusão dapermanência revolucionária. A praça Vermelha em Moscou é sem dúvida um dosmais fascinantes espaços simbólicos remanescentes, um teatro político dos maiselaborados. Ela já era o centro da cidade primitiva. O Kremlin lhe dá um de seuslimites - cidade do poder fechado, antiga sede religiosa em sua praça das Catedraisonde os czares eram coroados, depois coração de um novo império iluminadopela estrela vermelha. O sagrado desaparecido - São Basílio, edificado naextremidade sudeste da praça por iniciativa de Ivan, o Terrível, transformado emmuseu pelas autoridades soviéticas - se opõe ao novo ídolo vindo da Revolução _Lenine imóvel em seu mausoléu de mármore guardado por sentinelas e por ondepassam as multidões mudas em procissão. E ainda os nichos da muralha doKremlin onde estão encaixados os despojos dos personagens ilustres, as tumbascobertas de relva onde repousam os heróis mortos e Stalin. Dois centros governamesta configuração polftica: um oculto (no interior dos muros), onde se assenta opoder, outro visível (à frente dos muros) constituído pelas tribunas onde se posta ahierarquia suprema por ocasião das manifestações oficiais. É incontestável quetodo o poder se mostra neste teatro. O espetáculo visual é suficiente, não sendonecessárias as palavras.

O silêncio e uma linguagem própria definem a expressão verbal do poder e sãouma das condições da arte dramática. Constituem em parte sua substância. Visamo efeito mais do que a informação e procuram a influência duradoura sobre osindivíduos, o que permite ao discurso político terum conteúdo fraco ou repetitivo,pois o que importa é a maneira de dizer e de ser ambíguo; a polissemia assegurainterpretações múltiplas de audiências diferentes. Reconhecido e dominado, opoder das palavras engendra uma retórica; isto é, o recurso a um léxico específico,a formas e estereótipos, a regras e modos de argumentação. Estes hábitosidentificam um regime, dele são constituintes parciais e contribuem para o seu

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estilo. Há uma eloqüência parlamentar, ridicularizada na França republicanadesde o século XIX. Há uma linguagem intensamente codificada dos dirigente.comunistas que tem de ser decifrada para perceber a "Unha" adotada e o elcadodas relações de força no seio dos governantes. Uma personalidade excepcionalpode impor a marca de sua palavra ao poder. De Gaulle foi, segundo o cliché daépoca, um "estilista" no governo, dublado por um ministro "do Verbo e doGesto", Malraux. Criticavam-no de ter uma política baseada sobre a crença n.proclamação. A palavra, pela sua força e seus efeitos, ilusiona para conseguir que Iidéia se realize; e também para manipular na teatralidade e na ambigüidade, iverdade que nestes domínios a maestria foi absoluta.

Estas características aparecem na superfície; na análise em profundidade Ilinguagem do poder revela outras. Desde logo, ela se tem como válida além da vidaimediata, banalmente cotidiana. Ela se refere a algo além, em direção do panadoe/ou do futuro: aos fundadores, a uma carta inicial easeus principios, às imagen. esímbolos, ao progresso, à mudança, a um programa impondo desde logo a genlodo futuro. Em certas sociedades tradicionais estudadas pelos antropóloges, apalavra dos poderosos não vem deles, mas dos antepassados que se exprimem porseu intermédio. Estes ditam a Lei que será traduzida em comandos. O imagintrloinforma o governo do reaL.Nas sociedades modernas avançadas, a validaçlo •explicitamente "técnica" e, em graus diversos, ideológica. Ela parece ter esvaziadoo imaginário; aparentemente torna-se ainda mais explicativa. De fato, o discurlotécnico modificou sobretudo o modo de produção das imagens e dos efeitol,

A linguagem do poder contribui necessariamente para tornar manifesta. I'diferenciações sociais, e em primeiro lugar, as que separam os governantes do.governados e muitas vezes até o ponto extremo em que a palavra política nãc .1transmite diretamente, mas gradualmente, e por intermediários. Em multolreinos antigos da África o soberano nunca se exprimia nem ouvia sem recorrer Ium porta-voz. As palavras do poder não circulam como as outras. A eUIpropriedade se liga uma segunda, que faz da linguagem política, a despeito diimpressões contrárias que querem identificá-Ia a um ruído, ao vento, umllinguagem que se deve considerar "discreta". Ela necessita uma comunicaçlocalculada; procura efeitos precisos; não desvenda senão uma parte da realidade,pois o poder também deve sua existência à apropriação da informação, do."conhecimentos" exigidos para governar, administrar, e para exercer seu doml-nio. Os governantes gostam do segredo, o que é às vezes justificado pela razlode Estado; e os governados sabem que "algumas coisas lhes são ocultadas". A artedo silêncio é parte da arte política. Houve reis que foram mestres tradicionala ouque só foram notados sob este único aspecto pelos observadores estrangeiro I -

como o soberano do brilhante reino do Benin, na África Ocidental, apresentadosob a figura de um personagem imóvel e mudo. Nas sociedades modernu Ocontraste se acentua com freqüência entre as manifestações públicas do poder, Iaparição, a aparência, o ruído da periferia, e o silêncio do centro onde se efetua o

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governo. A prolixidade sobre o acessório mascara o silêncio sobre o essencial, emparte ou no todo.

Os sistemas políticos e as encenações do poder estudados pelos antropólogosconstituem uma documentação rica pela sua diversidade e uma referêncianecessária em vista do esclarecimento de aspectos até então desconhecidos. O quese impõe desde logo é o fato da apresentação espetacular da vida social não seseparar de uma representação do mundo, de uma cosmologia rraduzida em obrase em prática. A China imperial, universo dos signos por excelência, é deles a maisrefinada das manifestações. M. Granet explica em "O Pensamento chinês" que opalácio imperial se situava no centro do país e que comportava em seu própriocentro um edifício sagrado, a "casa do calendário". Esta representava a terra porsua base quadrada, e o céu, pelo seu teto redondo. Seus quatro lados correspon-dem aos orientes, suas doze aberturas aos meses do ano. Ela representa todo ouniverso. O imperador deve, no decorrer dos dias, circular em volta destafiguração do mundo a fim de manter a harmonia no seu reino e de sustentar a paz ea prosperidade para seus súditos.

Os Astecas, fundadores do México quando os Capetos reinavam na França,geradores de poder e de glória aos olhos de seus vizinhos, criadores de umimpério, ligaram indissociavelmente a economia política e a economia cósmica. C.Duverger, em um livro de título inquietante "A flor letal", mostra como estaassociação foi exagerada, indo até ao paroxismo e ao paradoxo. No México antigo,todas as gestões - a da cidade, a do império e a do Cosmos - se ligam; são um todoúnico, Os homens têm o encargo de assegurar a marcha do mundo, porque elacondiciona seu destino e o porvir de sua sociedade. A interpretação asteca sebaseia numa obsessão permanente da entropia, do desperdício, do fim do futuro.O cosmos engendra sua própria decadência, o tempo se desintegra, a energia seesgota "no calor da vida". Esta física e esta metafísicatrágicas são acompanhadaspor uma sociologia que não o é menos: a sociedade também sofre a lei da usura e asforças sociais se erodem. Nem um povo parece ter dado uma dimensão tãodramática ao problema da ordem. Eis o drama - a ameaça pesa sem tréguas sobretudo que só existe como sua conseqüência.

A resposta deve ser permanente, total, sem negligência nem vacilações, eprogramada em detrimento do indivíduo que o coletivo subordina de modoabsoluto. Ela depende primeiro de uma economia de energia, na acepção maisampla do termo. A moral asteca impõe uma codificação rigorosa doscompor-tamentos, ela se traduz em uma planificação completa de todas as condutas. Ojogo em sua gratuidade, os desvios e a marginalidade em sua não-conformidadesão proscritos como despesas inúteis. A energiaJ.ndividual é inteiramente posta aserviço da comunidade. Esta "boa" gestão não basta - é preciso o aperte de energianova, recarregar o universo e com ele a sociedade. Os sacrifícios humanosconstituem a tecnologia empregada para este fim. Eles fazem vida com a morte,

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eles captam ritualmente forças vitais que seriam destinadas à disslpaçlo lem luafreqüente realização. A sociedade asteca é deste modo dramatizada intesral·mente; as cenas de sacrifício são montadas para as manifestações das cerimOnial'para as solenidades públicas convidando o povo para uma espécie de teatro dacrueldade. Os guerreiros fornecem as vitimas e aterrorizam os estrangeirol,efetuando sua captura. Os sacerdotes sacrificadores alimentam os deu.e. qUIgovernam os signos, os elementos e a natureza, os homens e a sociedade; e1••associam a elite à comunhão por ocasião dos repastos antropofágicos que .1seguem aos sacriflcios. C. Duverger diz que o povo asteca recebia a violênda dOIsacrifícios com um sentimento de "fascinação assustada". Todo O sistema do,poder, em uma abundância de símbolos e ritos, está a serviço de uma ordemdevoradora que liga solidariamente o universo e o mundo humano. O sacriflclo 61solução adotada para a conservação permanente desta ordem canibal.

O exemplo é radical; parece-nos absolutamente exótico e bárbaro apesar dobrilho da civilização asteca. É preciso saber que os poderes tradicicnals temsempre o duplo encargo da ordem das coisas e da ordem dos homens e que dllloresulta um desdobramento de símbolos e cerimônias de uma riqueza profull,uma multiplicação de prescrições e interditos, uma dramatização generalizadl'tendo como cenários a natureza, as cidades e as aldeias. A racionalização poUtiCInão apaga inteiramente os antigos costumes. Todos os períodos de crise grav.repõem tudo em causa, até provocar a formulação de uma nova teoria da natureza,inclusive da natureza do homem. A primeira Revolução francesa o demonstrou,As sociedades contemporâneas regidas pela racionalidade técnica tornam- se dinovo e aparentemente mais responsáveis pela gestão do mundo natural, do meioem que se inserem os agrupamentos humanos. Elas abrem o Espaço e ai I'entregam às rivalidades de poder. Elas exploram uma forma de energia. - a doátomo - trazendo em si a capacidade de destruição absoluta ou, quando mal.pacificada, o risco. Elas sentem a limitação de recursos em matérias-prima ••energéticas, e estão envolvidas em uma guerra econômica endêrnica.: Ela. lidescobrem - e o confessam mais ou menos - culpadas de poluições e degradaç&1Ida natureza. O Drama se recoloca em uma cena cujos limites ultrapassam I'fronteiras da sociedade. Reaparecem as entidades negligenciadas: Hélio!, nocentro das novas festas solares torna-se um mensageiro do futuro. Entretanto aligação poder/natureza se mostra de um modo mais cotidiano. Na gestão: Iadministração de Los Angeles gere o ar da aglomeração;, os ministros doAmbiente começam a ser, aqui e acolá, responsáveis pela boa ordem do meionatural. No protesto: as lutas teatralizadas asseguram a defesa contra as poluiç&e.industriais e contra o estado antinatural criado nas megalópoles em expansão. Ocombate ecológico, recorrendo aos símbolos e espetáculos, também fornece Iprova de que o poder é o culpado. Ele visa definir a economia de outro modo (noque se relaciona com a natureza), as relações sociais e o regime político que I'exprime.

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A lição antropológica, pois que baseada principalmente no estudo dassociedades da tradição, sublinha até que ponto o poder resulta do jogo dasdiferenças, de' sua simbolização e de sua manifestação espetacular. É sabido que opoder separa, isola, fecha. Acima de tudo ele muda os que a ele têm acesso. Aentronização é uma modificação. Os Reis são feitos. A .antropologia políticaafricanista disso tem dado demonstração, repetidas vezes, mesmo no caso depequenas sociedades sem aparato e de governo discreto. No Togo setentrional, ochefe do clã dos Moba não tinha acesso a seu cargo senão depois de um retiro aolado dos altares protetores. Ele aí era formado, sagrado e recebia as insígnias. Ele setornava "outro", sendo marcado fisicamente por uma mutilação sexual, receben-do um novo nome, aprendendo um código de conduta específico que lheimpunha especialmente não mais falar a não ser pela língua de um intermediário.

As grandes realezas antigas obedeciam a este processo de maneira maisconstrangedora e mais dramática. O soberano Yatenga, governando um dos reinosMossi do Alto-Volta, não era, em uma primeira fase, mais do que o chefe de todosos chefes. Ele só podia receber a qualidade de rei depois de um itinerário iniciáticode longa duração, através de uma parte do reino, a que tem os lugares simbólica ehistoricamente fortes. Durante o percurso a pessoa real se formava e o poder realse acentuava. O ato decisivo e último se realizava onde fora estabelecida a primeiraresidência do fundador do Estado. O rei estava então definitivamente feito. Eraexposto em pleno dia sobre a "pedra do poder", apresentado ao povo montadonum garanhão que simbolizava o novo reinado e coberto de vestimentas brancasespeciais. Sua volta se fazia em triunfo e ele recebia todas as marcas de submissão.O rei, no decurso destas provas formadoras, "assimilava" o espaço e a históriaMossi. Ele os incorporava: termos da mesma raiz designam, ao mesmo tempo, abusca iniciática, o reino, o soberano; o sentido radical é: comer, alimentar.

A informação africanista abrange inúmeras descrições comparáveis. No reinode Loango, na periferia do império Kongo, o rei é eleito e passa por um noviciado.Durante os 7 primeiros anos do reinado, ele não é um soberano em toda aplenitude, ele "fica chocando". Ele diz receber as "forças" - os poderes que não sereduzem somente à capacidade de obter a subordinação - fazendo um retiro juntoaos sacerdotes e adivinhos. Ele tem a obrigação de governar de uma maneiraexemplar. Ao fim deste período probatório ele recebe a última, formação, aconsagração e o assentimento dos poderosos, no curso de um périplo de muitosmeses nas 7 províncias do reino. Ele deve vencer muitas provações iniciáticas eflsicas, compreendida a da reserva em face de uma virgem que participa de suacompanhia. Ele visita os santuários mais venerados, ele faz sacrifícios entre osquais alguns têm criancinhas por vítimas. No final, a entronização mostrapublicamente, com fausto, o rei completo; ela o sagra, lhe dá a sede, as vestesdistintivas, seu nome de reinado; ela manifesta a fidelidade dos chefes, mastambém os limites da autoridade do soberano.

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Nestes regimes tradicionais, em que abundam os símbolos, a tran.fisuraçl.oprovocada pelo poder e a encenação da hierarquia se tornam evidente •. Tudo ••relaciona ao soberano, se simboliza e se dramatiza por ele: relações com ouniverso, no mundo exterior, no território politico, no passado e portanto nlhistória, na sociedade e em suas obras. Ele está no centro da repre.entaçlOIpalácio, cortesãos, desdobramento de força, cerimonial e festa, marca. didiferenciação e comportamentos codificados. Mais ainda, ele mesmo IIpelo .1101corpo" , lugar de representação. Modificações físicas, às vezes sexuais, podem •••••lhe impostas. O poder o "veste" ou fixa sua figura sobre a superfície de sua pele, Osoberano Loango, pintado de ocre e de caolim, desde a fronte até os anelhol,torna-se um registro onde o poder se inscreve em signos e motivos. De tudo latoresultam duas conseqüências principais. Diferenciando de modo absolutO, .opoder torna sagrado, separa, põe os súditos de lado, como os fiéis em face dudivindades - bem que a política e a religião se aparentam. Requerendo eUItransformação radical, o poder impõe um procedimento para efetuá-Ia. As carta.dinásticas permitem designar um soberano entre os pretendentes; em seguida faltafazer um rei, esperando eventualmente desfazê-lo: pela revolta, pelos ataquI.insidiosos, pela prova de seus erros - entre os quais os de ordem a.lelapresentando risco de contágio.

As sociedades da modemidade estão, sob estes aspectos, mais próxima. ditradição do que parece. Elas mudaram o modo da representação, mas não tocaflmno essencial. Um candidato ao cargo supremo não pode irromper, surgir dodesconhecido, a não ser em circunstâncias excepcionais que façam dele um herói.salvador.

Se não, deve ter sido preparado, ter adquirido uma imagem pública, uml"dimensão nacional", uma credibilidade resultante de provas de sua iniciaçlo.de seus sucessos anteriores. Vencedor, ele terá a obrigação de representar com o.recursos de um cerimonial, de governar, manifestando sua competência e '1.11"sorte", de dominar, mostrando que mantém o controle das "forças" - compr ••endidas as próprias. Sua condição física deverá ser revelada espetacularmente, plllnatação, pela caça, pela corrida ou por qualquer outro desempenho. Ela ~ umdado político, e sua decadência aparente afetará o nível da opinião públicafavorável.

A lição da história completa a da antropologia, restabelecendo modo. didramatização social e política menos desconcertantes. O contraste mais choc,lntlé, sem dúvida, o de um Ocidente medieval que pratica a teatralização generall".rhlda sociedade, e de um Ocidente da Renascença que "representa", principalmente,pela festa com a colaboração das diferentes artes. Esta última como instrumento dopoder, efetua a transposição dramática dos eventos históricos, a traduçlosimbólica das relações políticas e sociais e a encenação da ideologia.

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As sociedades medievais eram todas impregnadas de imaginário; G. Dubymostrou seu conteúdo e suas funções. A Idade Média começa quando" Roma nãoera mais do que um cenário arruinado no Ocidente", mas a fascinação romanasubmete então os Barbáros. Ela se define no comportamento da Igreja que impõeà consciência coletiva, durante séculos, "uma representação glo bal da sociedade".Esta repete o Reino de Deus sobre a terra; seu centro é o rei, guia do povo cristão,garantia da ordem, protetor dos pobres e da Igreja que poderá substituí-lo quandofaltar a autoridade real; sua unidade acaba traduzida, com referência ao planodivino, em um arranjo hierárquico das funções religiosa, guerreira e produtiva. Oterceiro registro do imaginário se abre com as grandes transformações do séculoXI, que farão das cidades ressurgidas as cenas do poder, da riqueza e da criação.Três fontes alimentam deste modo, no curso do tempo, as sociedades emmovimento que se criam produzindo uma ordem figurativa própria, suas imagense seus espetáculos.

J. Duvignaud as qualifica de "sociedades visuais"; tudo aí se mostra e serepresenta, as práticas sociais se realizam com uma dramatização permanente. Oslaços sociais estabelecidos com uma encenação rigorosa fazem de cada encontropúblico uma representação. As circunstâncias da vida individual - nascimento,casamento, morte- se traduzem em atos representáveis, exemplares ou exaltantes.As festas, montadas como verdadeiras liturgias cívicas, põem em cena ashierarquias constitutivas da sociedade, a fim de expô-Ias e confirmá-Ias, ou decontestá-Ias simbolicamente nessas pantominas sagradas que são a celebração doAsno ou a dos Doidos. As condições, as paixões, as emoções se representam: nostorneios, os jogos de sociedade e de amor. Uma "superabundância de efusõesreligiosas e de pavor sagrado", segundo a fórmula de J. H uizinga se manifesta sobformas extravagantes, hiperbólicas, dramáticas. As reliquias dos santos tornam-seatração de uma espécie de canibalismo metafórico e ostentatório. Os poderososopõem por vezes uma humildade teatral, momentânea, ao luxo e à magnificênciade sua existência habitual.

O poder aparece progressivamente em cena, inclusive debaixo de sua formarepressiva no momento das execuções capitais, no curso das quais a hierarquizaçãosocial é exposta e o "exemplo" convertido em espetáculo. O final da Idade Médiafoi rico de manifestações públicas em que os poderosos figuram como persona-gens de uma representação que a sociedade oferece a si mesma. Elas substituem aordem real pelas aparências e asseguram aos heróis do drama prestígio e respeito.Elas Ihes dão de volta o assentimento e a obediência em troca das demonstraçõesde poder e de continuidade do poder.

A Renascença fez da representação uma arte, essencialmente polltica,praticada em casa dos príncipes e nos logradouros públicos. São as festas porocasião dos nascimentos e dos casamentos, as celebrações e solenidades da corte,os jogos, as consagrações, as "entradas" e os triunfos, mas também os cortejos

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o Poder em Cena I'cívicos das grandes cidades, o teatro de rua e as transposições romlnelcu quetransmitem um ensinamento indireto. N o século XVI, a expressão comporta aindaelementos medievais, mas sob a influência da Itália os elementos antlquadoa 110progressivamente substituídos. As novas fórmulas se impõem em França duranteo reinado de Henrique 11. Cada entrada real nas cidades associa a evocaçlomitológica a uma exaltação da monarquia e de sua missão; o jovem soberano 6apontado na dupla figura de um imperador romano e de um defenaor dicristandade, do descendente dos Troianos e de rei da nação reconhecida comofilha mais velha da Igreja. De fato, forma-se um repertório comum a toda a Europaocidental. A transformação dos temas, dos símbolos e da linguagem aroatiCl, •acompanhada de uma focalização do poder. Tudo se mostra e se diz que tenhlrelação a ele: o poder imperial de Carlos V, as rivalidades, o antagonismo entre areligião romana e a reformada, a carta das cidades, as descobertas de um mundoaberto às conquistas e a propagação da fé.

A vitória de Carlos V em Bolonha, em 1530, marca o apogeu de seu poder,consagrando sua conquista da Itália. A ruas são um cenário que dá ao esplendorimperial seu antigo plano; de um lado, os arcos de triunfo, os troféus, as alegoria.lembrando as proezas dos heróis e imperadores da Antiguidade; de outro lado, utendas, estandartes e brasões evocando as vitórias do soberano, em meio ao.emblemas e insígnias do papado, pois os dois atores centrais da representação 110o imperador e o papa Clemente VII que o coroa e consagra. Uma ponte de madeiraconstruída para a ocasião permite a visão da cerimônia do espetáculo à multídãe,Entretanto, o ensinamento principal é dado pelo cortejo triunfal que se segue. Adignidade imperial e a dignidade papal se mostram em grande aparato. t umalonga e suntuosa procissão onde figuram cardeais, bispos, principes seculartl,embaixadores, governadores, representantes de Bolonha com os estandarte.flutuantes da cidade, delegados de Roma, funcionários e gente de serviço,conselheiros e "doutores", um milhar de homens de armas "bem montado a etriunfalmente trajados". Enquanto isso, um arauto, ao longo do percurso atiramoedas de ouro e de prata ao povo - gritando "Liberalidade! Liberalidadel",sendo-lhe respondido: "Império! Império!". A cerimônia completa a feita!banquete dos poderosos, sendo as sobras atiradas à multidão, regalo do povo querecebe carne, pão e vinho de dois leões e de uma águia bicéfala, transformados emfontes.

Esta representação total, de que é cena uma cidade inteira, é uma ação pollticade múltiplos aspectos. Ela afirma a união necessária dos dois poderes, o espiriwaLa..o temporal. Ela expõe a potência espiritual em toda sua glória incitando-a 1- iralém, pela conquista dos infiéis e pela expansão da cristandade. Ela transportltproduzindo o espetáculo enganador de uma Europa unificada pelo reconheci-mento do prestígio e da força de Carlos V. Ela subordina pelo fausto. Depoi.,dobra-se num engajamento político decisivo, para submeter a Itália, reduzindoseus príncipes à condição de governadores imperiais. Os súditos sentiram O

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poderoso efeito do espetáculo em que os dominadores desenvolveram suasestratégias.

As "entradas" italianas ilustram a monarquia absoluta, as do Norte (Flandres),qualificadas de "alegres", fazem da cidade e do povo parceiros do príncipe naencenação e na representação. Enquanto as estátuas e as pinturas guarnecem ocenário na Itália, aqui os quadros vivos compostos pelos cidadãos apresentam acidade e sua história como montanhas legendárias e alegóricas. Estes últimospodem dar lugar ao nu feminino, como foi visto por Dürer em Antuérpia durante aentrada de Carlos V. Um duplo cortejo - o do soberano e o da cidade - permite aesta expor-se com o desfile dos notáveis, dos diferentes corpos e categorias sociais.A festa oficial dá muita margem à exuberância dos divertimentos populares e àespontaneidade, à quermesse. Se a cidade se "entrega", às vezes sob a formasimbólica de um coração ardente oferecido ao príncipe por uma donzela, ela não émenos áspera ao exprimir a vontade de manter suas liberdades e seus privilégios.

Nestas circunstâncias, a própria cidade se faz pedagoga coletiva e ensina aosoberano, requerendo sua fidelidade. Por metáforas, alegorias ou espetáculos,Gand lembra, dez anos depois de uma rude repressão, que o dever do príncipe é ode assegurar a felicidade de seus súditos. Bruges apresenta um elogio damonarquia com duplo sentido, graças a uma alegoria liberando o trabalho dasruínas da guerra. Ypres faz um quadro de agradecimento ao príncipe pela paz queirá instaurar. Douai instala o Trabalho (sob a forma de um moço vigoroso) numtrono, ao lado da Munificência e da Justiça. Os temas inspiradores tomam-se maisofensivos quando o fausto e a quermesse não conseguem mais iludir sobre umasituação tornada mais crítica. A guerra, as desigualdades, o afrontamento social; eo conflito religioso ocupam então o proscênio.

A dramatização política não desaparece quando começam as revoluçõesmodernas na Europa. Os acontecimentos a rejuvenescem; ela consagra, elacomemora, ela difunde as "idéias" novas e procura adesões através do espetáculo;ela compõe a cerimônia trágica dos sacrifícios de fundação, mostrados pelasexecuções na guilhotina e as jornadas de sangue da Revolução Francesa. Mirabeaupleiteou em favor da organização de festas públicas; as antigas alegorias deentradas reais serão substituídas pelas que representem a liberdade conquistada eas grandes ações realizadas. Danton - sabendo que todo poder tem uma cargasagrada - exigiu que as festas cívicas tivessem um conteúdo religioso, mas estareligiosidade deve ser a da sociedade nova, a da própria República. O que se pedeclaramente é a instauração de uma religião política. Robespierre reconheceu nosistema das festas nacionais o mais poderoso meio de regeneração da fraternidade.De fato, a sociedade é levada ao seu próprio culto e o povo, logo que decretadosoberano, se vê submetido a um Soberano metafórico de que o novo poder setoma necessariamente vigário.

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o Poder com Cena 21

A colocação da teatralidade politica em evidência, sua consagração e seul rltol,não é uma maneira oblíqua de reduzi-Ios a aparências e jogos ilusórios. t umaresultante, tudo concorre para isto - desde as relações sociais definidas pelosistema de produção até as constituídas pelos valores e imaginário coletivos. Se no.lembrarmos que toda sociedade está sempre em evolução, jamais acabada, quesua unidade só é realizada pela imagem imposta justamente pelo poder domi-nante, que suas pretensões e prescrições nunca estão inteiramente de acordo com Irealidade vivida, pode-se compreender melhor a necessidade de produzir efeitolque tenham uma função de compensação. A sociedade não depende exclusl-vamente da coerção, das relações de força legitimadas, mas também do conjuntode transfigurações de que é, ao mesmo tempo, o objeto e a realizadora. Sua ordempermanece vulnerável; ela é portadora de perturbações e de desordem, geradorctlde ardis e dramatizações que mostram o poderem negativo.

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A CONFUSÃO

A ordem das sociedades diferencia, classifica, hierarquiza e traça 05 limite.proibidos por interditos. Contém e condiciona os papéis e os modelos de conduta,Ela pode ser "embaralhada", desprezada, simbolicamente invertida, se nloderrubada. A astúcia supremaé converter estas ameaças em vantagem, em meio d.fortalecimento; é preciso fazer o papel do fogo, reconhecendo as leis de umaterrnodinâmica social que exprime a função da desordem no próprio selo daordem.

Esta tem a vantagem inicial, pois que subordinou as consciências. O delvloprovoca a vergonha a culpabilidades aos próprios olhos e a censura aos olhes de'outros, mesmo antes da lei manifestar seus rigores. Estes constrangimentos temsuficiente força própria para impor um estilo, uma maneira distinta a umacivilização ou a uma coletividade. O exemplo mais utilizado, a ponto de elwgasto, é o do Japão, onde o ridículo é causa de ostracismo e a humilhação púbUcase transforma em vergonha suicida. Esta obsessão pelo julgamento exteriorequivale à do pecado (e pois do Juízo Final) no Ocidente. A equivalência nlo 6,aliás, exclusiva. A perda de face não assolou somente o Oriente. Madame de Stallconstatava em seu tempo que o ridículo se tornara na França a "arma mais terrlvelque se pode empregar".

A opinião dos outros, às vezes encenada, faz lei. Assim, os antigos esquimó. diGroenlândia recorrem ao duelo cantado para regular um conflito entre doi.oponentes. Esses se enfrentam em face da assembléia tribal reunida para ojulgamento e para o espetáculo. Estão engajados em uma guerra de palavru, d.zombarias, de insultos e de obscenidades. A aposta é o ridículo; ele provoca.decisão com grande desvantagem para quem a sofre - pois, socialmentediminuído, a solidão ou o exílio são seu destino. Esta luta verbal, espetacular, podetomar a forma de um jogo de alto risco, como no sul da Itália onde éconhecídc sobo nome significativo de" A Lei". R. Vailland fez disso o tema dominante de um d.seus romances. Os jogadores escolhem um chefe para cada grupo e impõem IUUregras e seu domínio; ele insinua, censura, insulta, atenta contra a honra de leU.adversários. Sua arte de provocação depende do julgamento das testemunhal e

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suas vitimas devem obedecer l\ lei sem se mover. É um jogo do poder, levado aoextremo do arbitrário, utilizando o ridículo como única arma.

É um dos meios dos poderosos conseguirem a conformidade. Um antro-pólogo, P. Radin, constata que preserva a ordem tirânica, melhor do que poderiamfazê-lo as injunções mais coercitivas. Os Índios da Planície, na América do Norte,recorriam à ameaça do ridículo para engajar seus guerreiros em empresas queexigissem uma bravura excepcional. Os Índios Tlingit do Alasca distinguiam osatos criminosos dos atos "vergonhosos". No caso destes, seus autores eramridicularizados por cantos e por efigies colocadas em lugares públicos; a sanção eratão pesada que freqüentem ente induzia os culpados a se deixarem morrer.Passava-se o mesmo com os Ashanti em Gana. A ridicularização garantia, mais doque qualquer outra forma de repressão, o respeito da tradição. Era um ataque sutilque permitia despojar um homem de sua auto-estima e do respeito de seusassociados, e, do qual não havia escapatória senão pelo suicídio, admitido nestecaso, como na guerra, para evitar a captura e a servidão. Estes exemplos são"exóticos", mas o fenômeno é geral e o temor do ridículo é imanente, seu ataquemata simbólica ou realmente e com tanto ou mais eficiência quanto maior aprojeção social da vítima.

Entretanto, os membros do poder são menos vulneráveis que os Outros. Sobreeste ponto, são ainda os Ashanti que nos dão lima lição. Quando um dentre eles éofendido pelo chefe, e deseja revidar, medindo todos os riscos, ele recorre a umaencenação que lhe dá uma compensação pública. Com a cumplicidade de um dosseus amigos ele encena uma briga violenta em presença do chefe, injuria-o e oridiculariza. É uma sutileza que não engana ninguém, o ofendido revidou, oamigo não foi atingido, a autoridade recebeu indiretamente e, em seu detrimento,a critica. De fato o poder tem de dar espaço a esta, contê-Ia ou transformá-Ia. EmRoma as pasquinadas eram um exutório- mais ou menos bem aceito; quando opapa Adriano VI se zangou e quis mandar derrubar a estátua do Pasquim em queestavam afixados textos satíricos, observaram-lhe que assim a sátira seria exacer-bada. Dos cartazes romanos aos jornais murais da China Sustenta-se e espalha-se atradição, desse modo de expressão crítica e de sua manipulação. Os satiristascoletivos (no anonimato das literaturas populares) ou individuais (mais perigo-samente) tentam marcar os limites do poder pelo ridículo. O censor pode ocuparlima posição reconhecida em convenções e usos que contém os estragos de seuataque. Uma vez por ano, as figuras públicas mais importantes dos Estados Unidossão submetidas a um jogo de zombaria que as torna risíveis, mas em ambientesemifechado. É no momento do banquete do Gridiron Club, organização quereúne cerca de cinqüenta correspondentes de imprensa' estabelecidos emWashing-ton. Algumas centenas de políticos notáveis, inclusive o Presidente, sãoronvidados. Os participantes, em trajes de noite, assistem durante o banquete aot'spC'táculo em que os jornalistas fazem a caricatura e a ridicularização dosjlod('rosos. O assalto é político, a obscenidade e as alusões sexuais não têm lugar,hC'1TI corno as indiscrições, pois a informação transmitida aos jornais é filtrada. A

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.itlra permanece connnadaao ellenclaJ no circulo do poder, como a do bobo dacorte outrora.

A ordem social parece ter todas as regalias, compreendida a cumpllcídade da.ccnsciências, fora d08 períodos críticos. No entanto, ela ~ vulnerável: cletrb da(fichada das aparências, trabalha a desordem, o movimento transforma e a u.urldo tempo degrada. O jogo da verdade é muito perigoso i embora o bufão tenhalicença para dizê-Ia, é o modo da irrisão que a torna menos ofensiva. O s píntcres,durante muito tempo tiveram como temas as "cenas de poder", introduzindogrotescos, doidos, bufões ou mascarados. Isto é, o reverso do aparato, do poderseguro de si mesmo e de sua grandeza. Entretanto, essas figuras não permanecemsomente como nascidas do artifício e da arte, elas restituem uma realidade que nlol' própria nem de uma época nem de uma civilização.

O imaginário coletivo lhes deu vida no interior de mitos, de que P. Radin podeafirmar se prenderem "aos mais antigos modos de expressão humana". Umpersonagem genérico age, engendra e se transforma, ora em Deus ou em her61,como em bufão, é ° "Trickster" (trapaceiro), assim chamado pelos mit610go.anglo-saxões em lembrança de uma velha palavra francesa da mesma origem:"triche". Ele vai embrulhar tudo e focalizar tudo; os limites se apagam, I'categorias se misturam, as regras e obrigações perdem sua força. Os empreendi-mentos do herói podem fazer do mito o equivalente de uma sátira, de uma crltlclirônica da sociedade e do tipo de homem que ela modela. Entre ós IndíosWinnebago, o ciclo de Wakdjunkaga narra os incidentes e acontecimentos que-sob a influência do herói - atingem as injunções sociais mais fundamentais. Ochefe não se comporta de maneira conveniente, não cumpre os interdito.(notadamente os de caráter sexual), saqueia os lugares sagrados, erige seu penl.como emblema da autoridade durante a festa anual onde lembra os "ideais" disociedade. Certos rituais são apresentados em modo de paródia: a cerimônia dacompetição, entre clãs, cujo alvo é a chefia, os procedimentos e constrangimento.que marcam a vinda da puberdade, as práticas para atrair as bênçãos dos esplritcs,os usos impostos durante as operações de guerra. Em todas estas ocasiões, o herélperturbador provoca o incidente ou a transgressão e disso ri em completaimpunidade. Os mitos do "Trickster" ou trapaceiro tiveram ampla difusão nlAmérica do Norte; eles transportam ao tempo das origens ou do passado extremoo que desatualiza a crítica e torna a sátira aparentemente inofensiva; eles relatam o.feitos e as culpas e, gestos de um herói dificilmente identificável, divino em certo.aspectos, sempre errante, ignorando os limites do bem e do mal, poderosamentesexuado, engajado ~m aventuras caracterizadas pela astúcia e pelo dolo. É peloindefinido, o inesperado, o movimento que embaralha o discernimento que .,exprime imaginariamente este desrespeito da ordem, dando-lhe a aparência deuma figura capaz de transformação e de pilhéria sacrílega.

Jung propôs o comentário psicológico destas observações antropológicas. Eleatribui ao mito do Trapaceiro uma eficácia terapêutica de outra natureza, a de!

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evocar as falhas das sociedades dos primeiros tempos e os aspectos "inferiores" decaráter dos indivíduos. Não haveria dissolução da ordem pela zombaria, masprodução de imagens negativas, incitando ao esquecimento destas inferioridadesoriginais - e, portanto, ao reconhecimento positivo do que os ulteriores desen-volvimentos da sociedade trouxeram. Em uma perspectiva freudiana, os comen-taristas contemporâneos põem em evidência a função de liberação dos impulsossexuais e agressivos que, normalmente reprimidos pela sociedade, não podemformular-se a não ser de maneira indireta e sem risco de desintegração social. Oque se encontra em jogo são as "domesticações" iniciais pelas quais começou aconstituir-se a ordem social: a da sexualidade e a da violência, assim como asinstituições de parentesco e de autoridade que as efetuam sob a proteção deproibições imperativas.

Nos debates envolvendo o homem e a sociedade que lhe impõe uma ordem, apersonagem do Trapaceiro permite exprimir pelo mito das incertezas e recusas, aintrodução imaginária da turbulência em um mundo de códigos e constrangi-mentos. Esta figura ocupa uma posição central tanto quanto os mitos popula-rizados pelas literaturas orais e nos que regem o sagrado e as práticas rituais. As"Legendas da Guatemala" de M. A. Asturias relatam as aventuras de Guacamayo,"pássaro multicor como a mentira", falso deus e conseqüentemente enganador.Ele engana pela palavra, ele "liga" com a sua língua, ele procura.causar a ruína dosdeuses, dos quais, um dos mais antigos - Kukulkan, a Serpente de plumas. Ele criaa ilusão, mas ao mesmo tempo desilude, pois" ele vê as coisas como são" quandoestá embriagado. As tradições africanas também falam numa entidade turbulenta;assim, nos COntos de animais, onde a Lebre e a Aranha freqüentem ente oapresentam, mantendo as aventuras nos quadros da vida cotidiana. As peripéciasresultam da astúcia, dos enganos, das ciladas armadas ao poder; elas introduzem,diz D. Paulme, "o movimento e a vida" em um mundo que ficaria paralisado. Emum nível superior, cenas mitologias africanas fazem surgir entre os deuses e oshomens um Perturbado r divino.

Assim é Legba, presente no universo religioso do Benin e no da deportaçãonegra para as Américas. No Daomé antigo ele aparece como o último nascido deuma divindade primitiva andrógina. Ele não recebeu o encargo de nenhum setorda criação, mas é capaz de dominar as línguas, de ser o intérprete entre os deuses, eentre estes e os homens. Como ele é o deus da comunicação, ele tem o dom daubiqüidade e pode estar em ação em toda pane. Ele tem lugar em todos os gruposde culto e em todas as casas. Ele está associado aos pontos de encontro e depassagem - às encruzilhadas, aos logradouros públicos e às portas das casas. Eleestá ligado à sexualidade, aos símbolos fálicos, à "potência". Ele está essencial-mente aliado à adivinhação, à comunicação com o futuro, à palavra de Fa - senhordo destino.

O corpo de narrações organizado por H. Aguessy dá uma descriçãomultiforme de Legba. Aliás, seus numerosos nomes mostram que se trata de uma

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o Pod.r em C.na .,fllfUra capu de tran.rormaçOe. condnua •. O espaço, 11 regra., 11 CIU!IOrial nIolhe Impõem limitei; ele escapa Àsobrigações e às empresas, U diltinçOe. entre Obem e o mal, e sua liberdade total o faz, às vezes, comparável a um doido; f: o "I.rbom-mau". Está associado ao movimento, aos desequillbrios e a05 acidente.; ,I.opõe sua lndisciplina divina à "disciplina" da ordem social e universal. Ele podedistribuir a felicidade ou a desgraça, perturbar, construir ou destruir - o quetambém lhe vale o nome de Destruidor. Ele age com astúcia, prega peça.,embrulha; é um deus maligno, que não se pode assimilar ao Maligno cri.tlo, tsujeito à cólera: os sacrifícios e os ritos servem para acalmá-lo. Ele pratica a ironiaque quebra as aparências e desfaz as ilusões.

Tendo a capacidade de intervir em toda pane, de ser por conhecimento ecálculo senhor de todas as situações, Legba tem a de lograr todos os conatran-gimenros que definem a ordem do mundo e da sociedade. Ele provoca a açlo d.uma liberdade parcial e introduz a possibilidade de não ser totalmente subjugadopela necessidade do destino e pela força dos poderes. O mito, de que ele f: umarepresentação importante, tem um significado político manifesto; numerOIUhistórias o apresentam em relação com um portador do poder, que pode ler opróprio rei. Ele é o único que ousa opor-se ao deus superior, a grupos de deuses, aosoberano, à família real, e aos dignitários. Esta capacidade ofensiva se manifeuasob três formas principais: a ironia que deprecia o poder e suas hierarqulas, 1rebelião que mostra que o poder não é intocável e o movimento que introduz 1perturbação da mudança no seio da ordem.

Legba é poderoso. pelo movimento, enquanto o soberano que governa oantigo Daomé dispõe de um poder absoluto e controla um Estado, imobilizandoas posições sociais. Atribuem-lhe a capacidade de conceder a qualquer homemmeios para melhorar ou piorar o seu destino. Nem o rei escapa a esta injunção, e aela se submete, pois que o "seu" Legba é considerado mais fone. Covemantes esúditos se encontram debaixo do governo do deus, que subordina o poder pollticoe apresenta um ensinamento capital: sem o movimento, sem reconhecer e gerir I.desordem que ele não pode deixar de engendrar, a ordem reduziria a sociedade aoestado de um astro frio.

As produções do imaginário tomam forma, materializam-se nas instituiçõe ••nas práticas; mas, ao mesmo tempo, elas são tratadas em proveito da ordem sociale do poder que a guarda. O arranjo das situações públicas inscreve-as em umespetáculo onde o ritual mais rigoroso pode coexistir com a improvisação mal.desenfreada. A ridicularização desempenhada transforma-se então em drAmllsagrado e às vezes "selvagem" (ou regressivo) em certas de suas manifestações,

A ilustração perfeita é feita pelos antropólogos no estudo do personagem e da.funções do Bufão (ou Palhaço) nas cerimônias dos Índios americanos. Ele ••apresenta em muitas sociedades estabelecidas na América Central e na Am~ric. do

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Norte. A ironia, a paródia e a transgressão definem sua posição particular - e seuemprego. J. Steward recenseou os dominios e temas segundo os quais seorganizam em geral estes dramas da ruptura social. O primeiro acordo se prende aotratamento burlesco do sagrado. O Bufão ritual não respeita nada nem ninguém;sua licença é total, sua impunidade a mais completa e seu ataque é tanto mais fortequanto mais venerado o objeto que visa. Entre os Pueblo, ele introduz a paródia eo cômico na cerimônia e faz o que é ordinariamente tabu. Entre os Zuni, elecomunica com os deuses com falta de respeito - por exemplo, imitando umaconversação telefônica e utilizando uma linguagem vulgar. Na Califórnia, osBufões dos Maidu transferem o burlesco para o ritual, a fim de zombar dos padrese dos notáveis. Esta irreverência sacrilega se inscreve na cerimônia de que compõecom freqüência o contraponto. O segundo conjunto de temas é centrado nasexualidade e na obscenidade, com tal intensidade que certas sociedades foramqualificadas como "fálicas". Os Palhaços sagrados dos Zuni (os Koyemsi) empre-gam simulacros de pênis, transgridem os interditos e encorajam a licença sexualdurante certas cerimônias; eles também provocam a repulsa e o .escândaloextremos, consumindo detritos, pedaços de pequenos animais vivos, urina eexcrementos, representando a selvageria e a bestialidade. Entre os Hopi, oburlesco sagrado introduz no curso da ação ritual cantos lascivos, gestos equivocoscom travestis, exibições de imitações de pênis e de vulvas, cópulas simuladas atésobre os altares. Para os Índios das Planícies, a palhaçada se caracteriza peladesobediência aos interditos sexuais, as simulações indecentes e os comporta-mentos obscenos. A liberação se toma grotesca pelo exagero, a ruptura da ordemcotidiana toma o aspecto de um espetáculo humoristico. Um terceiro grupo detemas prende-se ao infortúnio. O Palhaço da cerimônia se apresenta doente,decaído, miserável e maltrapilho. Ele joga com a imundície, a nudez, a desgraçafísica e a decrepitude da idade avançada até o absurdo. Ele faz das desgraçasindividuais um drama irrisório. Os três registros principais segundo os quais oBufão compõe seu papel e seu texto não são dissociáveis, embora a maior oumenor associação de um ou de outro diferencie o tipo de sociedades e de culturasamerindias. Eles colocam cada homem, no momento do espetáculo da cerimônia,diante dos sistemas de forças que compõem sua condição: o Sagrado que osubmete, o Sexo que nutre seus impulsos, a Fortuna que produz a incerteza e orisco.

o Bufão da cerimõnia dá imagem à ambigüidade - ele rompe a ordem e ele éseu fator. Ele entra no grande jogo dos poderes. Entre os Zuni, ele é parte da"hierarquia" que governa as coletividades. Em razão de sua própria singularidadeseu nascimento é escandaloso, é tido como incestuoso; sua força resulta decapacidades sobrenaturais; seu personagem é o de um palhaço risível e ao mesmotempo de um herói. Também, em razão dos comportamentos que sua função lheimpõe - ele dispõe de uma licença absoluta e pode portanto violar todos osinterditos, mas está submetido a uma disciplina e vive com um risco real durante otempo da sua função. A ambivalência está sempre presente, compreendidos os

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.lntlmentO,. que In.p1rai de um lado o respeito, a reverencia, a afelçl.oi de outro, oódio e () medo que levam 11 aplacá-lo com presentes. Entretanto, segundo Bunl.l,intérprete do cerlmonlallsmo Zuni, ele I.!respeitado e amado como pOUCOI chef ••o alo, o que lhe dá autoridade no debate dos negócios da comunidade. Ele b, 10mesmo tempo, () que libera por delegação, sem que a sociedade possa reprimir utrln8j(rcssões e o que contribui para a manutenção da ordem social. Ele 6 umtrlfllformador da desordem, por meio da teatralização ritual.

Como a sociedade nunca está segura de sua ordem, a função de Bufão sagrldo.e encontra presente e assumida na maioria das formações sociais de podertradicional; na Ásia, na África, na Oceania, como nas Américas, e, às vezes dentrode um complexo de práticas exprimindo uma civilização de simbolismo abun-dante. É o caso da Mongólia e do Tibet, universo de exuberantes imagens. Entre 01mongóis, os bardos, recrutados em todos os meios sociais, exprimem louvores ecríticas em recitativo épico - suas narrações atacam e escarnecem os abuIOI epretensões dos dominantes, nobres e sacerdotes. No Tibet, são freqüentei Ucerimônias de proteção contra a ofensiva dos demônios ou de expulsão do mal e didesordem pelo processo da vitima emissária. A mais importante, nas festas de Inonovo em Lhasa, deve liberar o povo das influências nefastas e contrapor-se 10poder devastador de uma "fraternidade" demoníaca, inimiga do Estado tibetano eda Igreja budista. Todas as forças negativas são canalizadas para dois homens, queem seguida são expulsos cerimonialmente da capital. Esses personagens pardocipam de uma paródia demoníaca; são vestidos de peliças grosseiras, levamchapéus pontudos, têm a cara enlambuzada metade de branco, metade de pretojeles perambulam pelas ruas e se apossam dos objetos que lhes chamam a atençlo,Durante a primeira fase das cerimônias, eles gozam o privilégio de uma liberdadeIncontida, e fazem rir antes de se tornarem instrumentos de uma purificaçlocoletiva. No Tibet, a narrativa leva à religião pela interpretação e inspiração dobardo, e pelas práticas populares tanto quanto das cerimônias. O ritual, as festal eos jogos correspondem aos temas dominantes da narrativa e exprimem, emconjunto, um modo de representar o mundo e a sociedade, sua ordem e os agentelque a ameaçam. A gesta de Joru-Gesar, comentada por R. A. Stein, é uma durnais'reveladoras. O herói é uma figura de transformações; criança divina prestelldesaparecer, é mantido sobre a terra e se torna o "vilão Joru", perseguido.lançado em mútiplas aventuras. É condenado ao exílio e à freqüentação dOIdemônios, dos quais toma a aparência monstruosa e captura o poderio depois d.ter eliminado alguns deles. Ele é comparado ao chefe dos mendigos ladrões d.moças. Ele se comporta como soberano, como demônio, como bufão, Ele se apóiana força da ilusão e em sua própria natureza - permanece divina - a fim d,triunfar de suas provações. Ele prega peças aos homens, ele corre com os deu.ea.ele conversa com os demônios e os desafia nos dados, enganando-os em leu.jogos. A magia, o dolo, a farsa desconcentram e desarmam. Finalmente o herói.aIvitorioso e se transforma gloriosamente em rei; as aventuras permitiram-lhedominar a "natureza demoníaca" em proveito da coletividade. De um certo modo~ um salvador; seu demonismo apresenta uma imagem inversa da do Meti.to d.

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Ooêthe; suas ações não destroem, elas revigoram. Isto explica porque sua epopéiaestá ligada a cerimônias e festas para o apaziguamento e a regeneração dasociedade.

A imagem do Bufão não ocupa somente as cenas das sociedades "exóticas" edas sociedades do passado. Ela se manteve em nossos jogos, nossas tradiçõespopulares, nossos textos. Ela volta com força. Entre as cartas de jogo utilizadas naEuropa, é usado o coringa, em hábitos de bobo da Corte. É nos jogos de "tarots"que apresenta seu significado mais rico, doido, mendigo escandaloso, vagabundousando um cinto de ouro evocando o zodíaco, impelido para um. horizonte ondese perfila uma indicação do caos. Esta figura brinca com as aparências e com arealidade escondida, com a ordem e com a desordem; não se lhe pode fixar umaposição, pois onde quer que esteja, "erra", desordena e ordena o curso do jogo. Ocampo das constatações pode ser ampliado, pois o Bufão nunca abandonou a cenafolclórica, literária e pictórica. Rei dos mendigos, rei do carnaval, rei respeitado edesprezado, ele é, segundo M. Szabolcsi, a "figura que vê a ordem em seu vigor eem sua caducidade". Do teatro de Shakespeare, com Falstaff e os personagensfazendo a mímica da loucura a fim de dizer a verdade, ao teatro de Musset e deVictor Hugo dando lugar à "malícia" do bobo da cone, da obra de MaxJacob eApollinaire à de Michaux, utilizando a provocação do palhaço; o destruidor deaparências percorreu sua longa caminhada. Às vezes, até o ponto do escritor seidentificar com ele, como James Joyce se qualificando como "palhaço irlandês" e"grande farsista do universo". Na pintura, o percurso não é menos longo, pois queleva até às traduções contemporâ.neas do personagem por Picasso, Ensor, Chagall,ou por Miró, criando um povo de arlequins. Esta figura exprime uma rei-vindicação de liberdade, Contra os constrangimentos e a força da ordem e daverdade, contra as ilusões segundo as quais se organiza o grande jogo dassociedades.

Mas, deve-se enxergar mais longe - a função real do bufão é ambivalente _como o é o próprio personagem. Ele mostra que as classificações impostas pelasociedade e pela cultura podem ser confusas; ele parece destruir para reconstruirde modo diferente; ele cria na desordem; ele apresenta uma imagem adoidada eheróica da aventura individual, conduzida fora das convenções sociais. Já foifreqüentemente notado que ele lidera por procuração. Seu espetáculo ironiza emtodas as suas manifestações, sendo uma força sacrílega por excelência, a queninguém ou nada resistem. Seus excessos derrubam as censuras mais constran-gedoras, por vezes até o extremo da obscenidade e da violência "selvagem". Elepode ser chamado de "grande sacerdote dos rituais psicológicos", atualizando econtrolando as energias individuais domesticadas pela sociedade. A transgressão élimitada pelo ritual, não se confundindo nunca com a orgia.

A função catártica do Bufão é freqüentemente sublinhada _ ele é um liberadorde tensões, ele trabalha para a regularização das relações sociais. Embaralhador de

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CartAI, ele ~ tambem fator de ordem. Ele suprime 11 disciplinas e contribui par.reltAur'-11I. Ele transforma, por meio do imaglné,rlo e do espetáculo, o. fatore.real. da ruptura em figuras dramáticas. Ele se torna portador do anti-soclal- o qUIpode aparentà-lo com a vitima emissária - e ~ mensageiro das contestações e da.verdades incongruentes. No entanto, a violência a que se entrega ~ uma paródia, •• hlpérbole a desarma. Ele mostra o que sucederia a uma sociedade em que unormas, interditos e os códigos se dissolvessem: uma regressão até a selvageria queele Imita em alguns dos seus exageros, um abandono aos "monstros" semelhante.lqueles com que o imaginário tibetano povoa a cena humana. Ele se encarrega didesordem, das turbulências inc'ividuais e coletivas, assim como o chefe e lac.r-dote' cuidam da ordem e da conformidade; e não é sem motivo que os tr~. levamvestirnentas, simbolizando suas funções. Cabe-lhe a parte do fogo, mas a fim deexringui-lo, não se pode reconhecer nele a prefiguração do revolucionário ou me ••mo a do rebelde.

Com o bobo da corte, aparece o parceiro direto do poder. Sua filiação parlclremontar à Antiguidade; o hábito de manter Bobos ou Bufões doméstico. foiverificado na Pérsia, em Susa e em Ecbatana, no Egito, onde pinturas andl'"decorando túmulos, mostram ricos notáveis acompanhados de personag.n.contrafeitos e grotescos. Do Oriente, o emprego passa para a Grécia e depois pariRoma. Mantém-se na casa de pessoas poderosas e de fortuna, a fim de "fazer rir"durante as refeições; é a princípio reconhecido como proveniente das arte. dadiversão. Na Idade Média, se torna a encontrar o bufão doméstico nos solares, comos barões, no convento e na igreja, ao lado dos abades e dos bispos. Depois, no.clrculos dos príncipes e dos reis, onde ele muda de natureza, ao ocupar umaposição dentro de uma instituição política. Na França, os Bobos da corte entramlogo na familiaridade dos soberanos. Hugo, o Grande, em meados do século X, 6acompanhado por um deles durante suas expedições; São Luís mantinha multo.em seu palácio, assim como Felipe-Augusto que acabou por expulsá-los por ClU'1de seus excessos. No entanto, somente no século XIV é que o emprego de Bobo foioficializado e incluído no orçamento do rei; o primeiro a ocupá-Io parece ter .IdoGeoffroy, mantido por Felipe V. A partir de então, todos os reis tiveram Bobo.titulares escolhidos entre numerosos pretendentes. O último a ocupar esta funçlofoi Angély, colocado ao lado de Luís XIII, e depois de Luis XlV. Ele praticava Iinsolência com tal vigor que seus danos na corte multiplicaram seus inimigo ••provocaram sua expulsão. Ele não foi substituído e o cargo, definitivamente, foisuprimido.

A sucessão dos Bobos da cone é conhecida, de maneira quase tão precisa comoa dos reis que os acolheram em sua companhia. Eles aparecem nas narrativas do.cronistas e na obra dos escritores do tempo. Bonaventure des Périers evoca o. diroda de Luís XII e relata muitas de suas expressões. Brantõrne, Guillaume Bouch,ce N oel du Fail relatam as proezas e mistificações de um deles que ficou célebre lobHenrique II e no curso dos dois reinados seguintes. Outros foram celebrado. por

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Ronsard e Marot. Rabelais qualificou estes personagens de "marósofos" ou Bobos- sábios. Depois são abandonados pela curiosidade literária, e só são relembradosno século XIX. Triboulet, que manteve seu emprego junto de vários reis enotadamente de Francisco I, tomou-se a figura central do drama de Victor Hugo,O Rei se Diverte. Chicor, ilustre debaixo de Henrique lU, reaparece em doisromances de Alexandre Dumas, A Dama de Monsoreu e Os Q.uarenta e Cinco. OBobo e o Príncipe servem para mostrar o poder sob o duplo aspecto da força e dazombaria, da fortuna e do infortúnio; eles formam um par dramático.

O Bobo da Corte não se assinala somente pelas desgraças físicas mas tambémpor uma roupagem e atributos que simbolizam certos aspectos do seu emprego;ele é a cópia irrisória do rei manifestando seu poderio pelo aparato e o seu poderpelas "regalias". A descrição padronizada de suas vestes já foi feita freqüente-mente, embora cada um dos titulares do cargo tenham imprimido sua marcadistintiva. Ele leva uma jaqueta de cores confusas onde predominam o amarelo e overde, recortada em ângulos agudos, com um calção no mesmo estilo. Seu cintopermite levar uma espada de madeira dourada ou uma argola, às vezes presa àextremidade de uma vara. Ele se cobre com um capuz pontudo com duas grandesorelhas ("orelhas de asno") a que estão presos guizos. "Ele tem na mão um bastãocom um boné idêntico, insígnia principal de seu cargo, o seu cetro. Ele é rei, masna paródia, até o detalhe das delicadezas que lhe permitem tratar o soberano como"seu primo". Em face do poder na majestade ele figura o poder no grotesco e assimelimina a possibilidade de conceder uma alternativa aceitável.

Para ser Bobo da Corte, é necessária uma formação especial. É precisoeducação física, ter conhecimentos de música e dos instrumentos (rebeca ousanfona, trompa ou gaita de foles), saber compor peças em verso e canções, adquirira arte do desafio e da palavra pronta e memorizar um bom repertório de históriaspara contar. Aos que não tinham esta educação dava-se um professor qualificado.O ilustre Triboulet teve por orientador Michel Le Vernoy, encarregado de prepará-10 para desempenhar seu papel com talento e brilho. Educação rude, recorrendoaos golpes e às chicotadas pela qual o Bobo recebia todos os elementos de sua arte,inclusive a capacidade de apresentar-se bem nos cortejos reais. Tribouletparticipou na "entrada" de Luís XII em Ruão, "montando um lindo cavaloajaezado com suas cores e levando o seu bastão das boas festas"; ele tambémacompanhou seu soberano até a Itália, por ocasião da expedição COntraVeneza.:Toda a formação do Bobo é concebida, tendo em vista os contrastes. Sua naturezao situa do lado da feiúra, dos animais e dos monstros, mas ele adquire as técnicasfísicas - seu corpo toma expressão; sua aparência o faz parecer um insensato, masele chega a um certo domínio das palavras _ a fala é seu instrumento.

A biografia mais completa, se não a mais autêntica, é a de Tribouler, nascidonos arredores de Blois e ingressando muito jovem na COrtedos Valois. O pai deClernenr Marot, Jean, valete e historiógrafo de Luis XII fez um retrato poucolisonjeiro deste Bobo: fronte estreita, olhos grandes, nariz grande, dorso leve-

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mente encurvado, "bebo de cabeça mlddal tio I'bio aol ainta anOI, como nol.em que nasceu". A fama de Triboulet ~devida principalmente 'lua carrelrajUMIde Francisco I de quem ele foi o bufão, o sãbío pelo bom-senso, o censor •• ,.vezes, o conselheiro. Sua posição na cone era brilhante; ele afirmava nlo qull'll'troct-Ia por uma coroa ducal ou por uma mirra episcopal; ele se dizia "Imhorseberano de todos aqueles de quem zombava". Suas peças e suu piadu - alaumuprovavelmente apócrifas - são contadas em grande número. Mostram-no jopnMojogo da verdade e do desrespeito em grande impunidade; ele quebra 01c6c:Uto••u conveniências, abate momentaneamente as fronteiras entre as concUçOttsocíais, ele tem o privilégio de tudo dizer e de tudo fazer na capa da fadela • elafarsa. Ele zomba do dero como da nobreza.; sua "loucura" o toma incapu cItcrime e portanto imune à sanção, se não às cacetadas. No entanto, é espantolo qUIeste Bobo possa ser um conselheiro politico escutado e assistente de certas IIIJ6tIdo Conselho real. Quando Francisco I preparou a campanha do MUane. qUIterminou com o desastre de Pavia, diz-se que Triboulet havia-o aconselhado d, lipreocupar menos com os meios de entrar na Itália e mais com os dela laIr.

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Victor Hugo lançou o Bobo ilustre no grande debate político depois de 1"1,pela "pequena frase sediciosa" dando um título ao seu drama histórico: O lei.Diverte. A peça é suspensa e depois proibida por ultraje aos bons costumes, :& Iocasião de denunciar este "pequeno golpe de Estado literãrio", de ridiculari.ar O"medo singular de tudo o que marcha, de tudo que se move, de tudo que fala, ditudo que pensa", e de se explicar. O Bobo apresentado pela exposição dramitica6como os das cones reais quanto ao movimento, à transgressão, bao escândalo, muVictor H ugo o mostra primeiramente sob o aspecto de uma figura maldita, de umparceiro no jogo do vicio e da vinude. Ele definiu o personagem de Triboulet noprefácio redigido imediatamente depois da proibição. Éum s~r disforme, dom.mau; ele odeia seu soberano, os senhores, todos os homens; ele passa o tempOatacando-os e destruindo-os; ele deprava o rei, corrompe-o, impele-o à tirania e.vicio - ele o reduz ao estado de "fantoche todo poderoso"; ele espalha na cidade.ocontágio do deboche. Ele é amaldiçoado devido a um insulto grave e será adnpdo"na única coisa que ama no mundo", em sua filha que ele criou "para a vinudi".

,..O melodrama requer que o mau seja abatido - o que é uma idéia mo ••

Entretanto o bufão que desempenha o papel de Mefistófeles, além de não ter.capacidade, o que é uma inversão da função histórica, ele se transforma em ••••mau", o "demônio negro que aconselha o patrão". Como caracterlsdcu .,.emprego subsistem: a deformidade que discrimina o Bobo, a liberdade de palaWa(a Hngua afiada) que lhe permite dizer verdades sem receio de castigo; o jop elaguerra contra os poderosos, permanecendo fortemente "encouraçado"; a dcpro-ciação do papel e a atenção constante que devem prestar ao personagem aqu_que se encontram sob seus ataques; o bobo da cone marca os limites do poder e.categoria nos mesmos lugares em que aquele se exerce e esta se mostra. Ele ~também, de modo permanente, que o poder, que não é exercido segundo· ia

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convenções e o aparato prescrito, descamba para o ridículo. Ele fornece, pelaprova contrária, a demonstração de que a força das aparências é uma parte da forçados governantes.

o Bufão popular se apresenta sob uma outra figura, embora as respectivasfunções se possam repetir. Tem também uma longa história. Já era encontrado emAtenas, membro de uma confraria que se reunia no templo de Hércules. EmRoma, ele se diversifica em tipos como o "Manducos", monstro horrível edisforme, de boca pavorosa, evocado por Rabelais no quarto livro do Pantagruel. Emcompanhia de dois Bufões-mulheres, ele se juntava ao cortejo dos generaisvencedores, participando com cantos de zombaria, levados às vezes até ao insultodo triunfador. Entrementes, os dois comparsas introduziam temas de embriaguêse obscenidade; o triunfo e o fausto eram assim acompanhados pelo espetáculo desua inversão. Na Idade Média, o Bobo "do povo" entra nas festas, nas pantomimassacras, abatendo o decoro pela farsa, quebrando a rotina do cotidiano pelocômico, confundindo tudo, até no interior das catedrais. Mas o Pelotiqueiro e oBufão também vão se tornar "atores". Desde os últimos anos do século XVI, umtrio Célebre ocupou os tablados do Hotel de Borgonha - Turlupin, Gros Guillaumee Gautier-Garguille; ele atraía os espectadores com gesticulações grotescas,gracejos picarescos e também por "conversas" onde simulava a inocência política.No cenário do teatro o personagem perde sua vulgaridade, adquire refinamento esedução com as máscaras elegantes da Comédia italiana da Renascença. Arlequim,Scaramouche, Pantalon, Scapin ou Marinette e Co'lombina são os descendentespolidos dos críticos impuníveis e dos quebradores de aparência; eles têm umemprego; só lhes resta o folguedo, a irreverêntia e a burla. Em França, as cenas debulevar apresentam no século XIX novos tipos burlescos e a charge política seexprime por outros meios, pela imprensa e pela caricatura. Os excessos dopassado sobrevivem nas artes e literaturas populares; o poderoso não está maissujeito à ironia corrosiva dos Bufões profissionais, e é somente o Guignol que tocano gendarme, escarnecendo assim da lei e da ordem.

O Doido reconhecido, instituído, livre até a licença total, se opõe ao doidoencerrado, rejeitado, insensato; ele é distinto e agente de dissolução, diferente emarcado até no corpo, fora do comum, mas não da sociedade que lhe atribui umpapel e função. Ambos se definem pela distância em que se estabelecem emrelação às normas, às conveniências, às regras do jogo social, à conformidade; masum constrói o seu isolamento e aí se mantém, e o outro não está à parte, senão paraefetuar um "trabalho" dentro da sociedade. Entre os dois se situam todos os grausde não-conformismo, diferentemente tolerados, segundo as formações sociais e ostipos de regimes políticos. Ora o indivíduo em apreço é reduzido ao estado deBufão desempregado, publicamente depreciado, ora é afastado como alienado esubmetido a tratamento. Neste caso a réplica social se efetua por meiosdramatizados - uma reapropriação ritual de caráter iniciático, ou quase. Nassociedades tradicionais, esta "terapia" teatral opera, às vezes, vigorosamente.

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Basta uma só ilustração relativa aos jâ mencionados Moba do Toga setentrional:quando uma mulher manifestava excesso de autonomia, era considerada inluA·cientemente disciplinada e lhe era imposta uma reclusão de três meses em umacasa privada de 1uz,' e seu serviço feito por uma pessoa do exterior; uma medlcaçloprovocava a sua passividade, durante a qual ela tinha de aprender disciplinas navale receber sinais corporais distintivos de seu novo estado; no momento de sua salda,ela se revelava cortada de seu passado, atacada de uma espécie de amnésia e dócilàs injunções de sua posição social redefinida. Para ela era um outro nascimento nasociedade e para a comunidade uma reapropriação. Nas sociedades modernasde poder totalitário, a normalidade e o conformismo são antes de tudo deordem política. O afastamento por desvio também o é. Nas formas extre-mas, seu tratamento leva à anulação fisica ou social, ao encerramento ímpos-to pela ordem de concentração, à equivalência estabelecida entre o dissiden-te e o louco, fundando a psiquiatria política. No entanto, a dramatizaçlonão é excluída. A crítica pública pode ser apresentada em cenas populares,expressa na animação dos cortejos que escoltam os dissidentes ou os vencidos. quefazem então papel de Bufões humilhados, maltratados, e de bodes expíatóríos,Cativos do poder ou dele excluídos, eles são abatidos pelo ridículo e a humilhaçãotanto como pelas sevícias. A réplica social pode também efetuar-se de maneiradramática e iniciática nos chamados centros de reabilitação, onde as personali-dades são desmontadas e reconstruídas e os corpos submetidos a "disciplinas" e Imarcas novas. Em todas estas circunstâncias sobressai um modo com que aisociedades e seu poder tratam o repelido, expressão individual da desordemnutrida pela sua ordem. Quanto menos lhe dão lugar, sob formas reconhecidas oudomesticadas, mais elas recorrem à violência totalitária.

A questão da repulsa é indissociável da da verdade, que repele tudo o que aiaparências sociais escondem. Neste particular, nenhuma verdade pode ser dita.Ela pode ser proferida na solidão ou recorrendo a rodeios e ardis. As aparênclasprovindo do imaginário coletivo podem quebrar as que a sociedade produz,convertendo assim as ilusões que mascaram a realidade em verdades mostradas demodo ilusório, por metáforas, figuras, alegorias e fantasmagorias. Certas festas daaantigas cidades do Norte exprimem este duplo jogo das aparências. As deOmmegang em Antuérpia com freqüência tomaram o aspecto de um teatro daiverdades populares. Assim, em 1561, é revelada a ligação entre a deflagração duguerras e as novas condições econômicas. O ciclo, alternando a guerra e a paz, apobreza e a riqueza, dá o esquema de um espetáculo alegórico que é uma sátira dacupidez e do furor guerreiro e ensina menos a resignação do que a necessidade deuma regeneração. Estas festas do Norte ajudaram a decifrar o enigma (apresentadopela sociedade e pelo "mundo") até ao ponto em que se torna interpretação dairepresentações insólitas, grotescas, absurdas da ordem das coisas. Foram vistos ai"elementos bruegelianos" que incitam a pesquisar o sentido latente, além da faltade sentido aparente.

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No espetáculo de rua, a verdade se torna pública debaixo de uma máscara; nocírculo do Príncipe, ela parece "desmascarada", liberada e solícírada. O Doido ouo Bufão da COrteparece estar lá para dizê-Ia ou fazê-Ia ver aos poderosos; mas ele écontido pelo papel que seu personagem lhe impõe; só a sua palavra é que é livre. Alição antropológica esclarece, ou completa, a da história neste particular.Nos antigos reinos Wolof do Senegal, uma das quatro principais condiçõessociais é a das pessoas de casta inferior, mas não obstante ordenada segun-do uma hierarquia interna rigorosa. Na parte ínfima desta situação inferior,se encontram os que desempenham as funções de serviço, e entre eles os Bufões.Eles não recebem título nem denominação particular, mas estão ligados aossoberanos com a obrigação de "dizer a verdade". Eles podem formulá-Ia, pois queadquiriram o domínio da palavra; eles têm o dever de dizê-Ia ao rei. A arte daspalavras é a da comunicação, das ligações estabelecidas entre as coisas e os homense entre estes. Praticando-a, o Bufào das CortesWolof é também um "especialista derelações sociais". Ele desempenha o papel de intermediário entre as pessoas e osgrupos e intervém para ajudar a resolver as questões dificeis. Suas funçõescontrastam com sua condição social depreciada, segregada, encerrada nasfronteiras da casta. Éjustamente porque ele se encontra de um certo modo fora dojogo, que tem a possibilidade de contribuir para arbitrar e regular os negócios dacoletividade, e de fazer brotar as verdades que não podem depender de seusinteresses, ainda mais aceitáveis, pois que mostradas com a arte do mestre dalinguagem e do divertimento. .~!,li

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O Doido da Corte ensina ao príncipe. Ele lhe revela os limites e os artificios dopoder. É por meio dele que os palácios se abrem às informações ocultadas pelocírculo, que as deficiências do soberano são despojadas da hipocrisia que as vela,que a ironia e a farsa temperam a certeza dos poderosos. É também por seuintermédio que a decoração e o aparato são apresentados tanto em sua necessidadecomo em sua fragilidade. Basta deixar aparecer o grotesco para que sejamconfundidos, mas ao mesmo tempo desejados por causa do ridículo que osubstitui. Assim como basta - processo utilizado pela literatura satírica _ tornarmanifestas a fraqueza do herói, a vaidade e orgulho de suas pretensões para que setorne um herói de fancaria, um "doido" cujas atitudes não dão medida dos seusdesempenhos. O Doido da Corte mostra ao príncipe as ciladas dos encargos dopoder. As das palavras, com as quais brinca, zomba, critica e desilude. As dasrelações sociais, sujeitas ao jogo dos cálculos e das manipulações que eledesmascara pelo efeito de suas próprias mascaradas. As do encerramento dopoderoso, que podem levá-Io ao exercício de um poder alienado ou à fuga para aloucura, de que o repertório shakespeariano fez um movimento essencialmentedramático, ou ainda o ridículo supremo, encarnado pelo Augusto do circo,vestindo o "Augustus", senhor do mundo, com os atributos da estupidez.

Nas sociedades que chegaram à modernidade, ou conduzindo seu progresso,o lugar do Bufão ou do Doido pode parecer vago; o último refúgio se encontraria

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entlo no conaervat6rl0 das culturu populares. t precise observar que 01 meia.'"expreulo, difundindo-se e multiplicando-se, abrem novos espaçol aol jOlOlUliberdade devastadora da ordem e do conformismo. A principio com 11m•••latlriea, a caricatura, cujo progresso no fim do século passado resulta da crlaçlo elagrande imprensa e do reconhecimento da liberdade de opinião, não obltant. 01azares de que foram vitimas os satiristas pollticos depois de Daumier e GrandivU1"Na França, depois do nascimento explosivo da" chocarrice" gráfica, em prlnclpiolda Monarquia de Julho até aos renascimentos de 1968 e dos anos recentel, •caricatura política pode conservar sua eficácia corrosiva, sua carga de Ironiaviolenta e, às vezes, desabrida, chegando até a agressividade sexual. Durante ocurso destes períodos históricos reaparecem temas e tipos dominantes, Oanticlericalismo e o antimilitarismo vêm de longe, pois a caricatura medieval j'mostra monges indecentes e cavaleiros insólitos; o anticolonialismo, a denúncia d.violências policiais, a emancipação feminina, o racismo, a vida política e a a.perelldo cotidiano aparecem com a caricatura moderna. Estes temas são exprellol porfiguras típicas, já clássicas (o militar, o padre, o burguês) ou mais recentementeconcebidas (o simplório, o esnobe, o frustrado, etc.), por transposições IUbld·tuindo as figuras humanas pelas de animais, segundo um processo empregado porGrandiville, por personagens reduzidos, elementares, embutidos no universo daicidades, das máquinas, dos poderes burocratizados. E depois a caricatura - nalinguagem comum - é também, sobretudo, o retrato-charge que ridiculariza 01membros do poder ê os transforma em Bufões do povo, como o-fez André GIll,metamorfoseando Thiers em "filha de Madame Angot". O imaginário satírico I'introduz, à sua maneira, no conhecimento do grande jogo da ordem e d.desordem, da conformidade e da contestação. Como no cerimonial bufão, .1.recorre à inversão das situações, à irreverência e a todas as espécies de licenÇU. 11.passa à ofensiva, utilizando as forças do cômico e do ridículo, com a melmaambigüidade, pois libera uma crítica que é desarmada pelo riso.

O circo, o teatro, as telas também apresentam personagens que perturbamtoda a lógica social, contradizem as convenções e a moral comum, revelam OqUIestá oculto, pelo exagero e pela farsa; são palhaços ou comediantes buríesccs, 01primeiros constituem o fim da linhagem dos palhaços sagrados, mascaradOI,fantasiados. Eles estão em via de extinção, deixando de vez em quando umvestígio ilustre (Grock) ou provocando a ascensão de uma figura inesperada. comorecentemente, a de Marc Favreau, o palhaço Sol, que encanta com o Jogo el.palavras. Ele as desfaz, separa-as, associa-as contraindo-as, desvia-as de I'Usentido e tira deste trabalho espantoso proposições dissonantes, mas verdadeiru.Os comediantes burlescos descendem dos Bufões populares; eles criam um"tipo", um personagem; eles recorrem a todos os recursos da arte do espeticul0primitivo; eles criam efeitos com toda liberdade, sem nenhuma preocupaçlo d.progressão dramática. O cinema lhes deu técnicas suplementares e uma Flnd.audiência; o jogo das ilusões desmitificantes se reforça e atinge maior alcance, Aliberdade de Carlitos e de Keaton se manifesta sob o aspecto de um perp6tuo

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afrontamento do fraco (do "pequeno") e das forças que impõem a ordem domundo e da sociedade; ambos revelam os constrangimentos da lei, física ou social,girando-a; eles opõem a figura da irredutibilidade insensata à do adaptadosubmisso. No correr dos anos da década de trinta, a sátira se torna mais precisa, elavisa o acontecimento e seus atores, ela faz a caricatura e deforma a fim de mostraros monstros dos novos "tempos modernos": o trabalho acorrentado, a crise, ofascismo, o desprezo da vida humana. Mais recentemente, com os filmes de Lewise de Tati, mostram as transformações de uma sociedade enlouquecida pelaprodução e pelo consumo que levam ao desaparecimento do personagem por trásdas decorações da modernidade. N este último estágio, o cinema burlesco nãoagride mais somente os valores enganadores da sociedade (assim, a." santa" famíliaamericana nos filmes dos irmãos Marx ou de W. C. Fields) ou o poder louco(Carlitos - Hitler), mas também um homem qualquer mostrado em suainexistência consentida. O Doido não está mais nas cortes, ele está na rua.

Convém agora indagar quem está ao lado do príncipe, quem lhe faz conheceras verdades que os administradores, os tecnocratas, os homens das cifras e dassondagens de opinião não lhe transmitem. O problema não teria alcance seadmitíssemos como Benda que o Estado Moderno, monstro frio, "dotado deordem" não tem o que fazer da verdade. Este dom não nos parece tão certo e nem afunção da irreverência tão vã. Cada partido, inclusive o do poder, conta comquebradores de aparências - eles em baralham as cartas, desvendam parte do queestá oculto e, em outras palavras, dramatizam; se eles perturbam muito, sãochamados de avatares dos Turlupins e dos Bufões de outrora. Estes músicosdissonantes não deixam, porém, de participar plenamente do jogo político. Asituação dos criadores, dos "intelectuais", cuja atividade gera o movimento etambém a desordem, é mais ambígua. Associados ao poder, nele só ocupam umpequeno lugar, o de preposto, de acordo com as fórmulas e o estilo do regime; elescontribuem mais para a manutenção das aparências do que para o seu desven-damento, Solicitadores do poder, eles não guardam a distância suficiente que lhespermitiria transmitir as verdades inconvenientes. Separados, eles arriscam de semarginalizarem cada vez mais - pregadores no deserto - pois que a publicidade desuas obras depende principalmente de circunstâncias externas, ou de seremlevados à dissidência, ao exílio interno, depois ao. afrontamento que os quebraráou expulsará se pertencem a uma sociedade totalitária. Já se disse que "entre obufão e o opositor" não há lugar para eles. Em um caso, sua turbulência só toca aordem superficialmente, no outro ela trabalha em profundidade, sustentandouma componente de liberdade escondida no interior do sistema. A divisão não étão simples, pois as sociedades mais desenvolvidas provocam a tecnificação dacultura e os próprios poderes tecnocráticos já ingressaram em uma produçãocultural, ideológica, conforme sua linguagem, a das cifras e dos códigos. O espaçoreservado ao movimento livre, à "desordem'.', às contestações regeneradoras sereduz; a sociedade parece não ter mais do que uma só dimensão - a daconformidade -, o estar achatada sem aquelas profundidades, onde trabalham as

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forC;1I perturbadoras, () inesperado, a experi~ncia inovadora. De fato, nlo exlltl.i~lema sem contra-sistema. As tendências de normalização mais completare~pondem, em relações de exclus:\o reciproca, às que exprimem a negac;lo mallradicalizada. São as reivindicações e experimentações marginalizadas cuja mul·tiplicação foi provocada pelo Maio francês de 1968. Elas tentam derrubar todllllbarreiras de domesticação social, liberar tudo, levar aos extremos os direltol lindividualidade. Elas estabelecem uma inversão social permanente mais do que

uma revolução permanente.

O jogo da ordem e da desordem, do conformismo (exigindo a adesão vislvel.formal às suas regras) e da mudança (dando lugar à novidade e ao inesperado), lidesenrola em todas as sociedades. Nenhuma consegue um controle integral; nllsituações de crise grave e durável, cada um dos dois termos visa o desaparecimentodo outro, em um afrontamento tendendo para a guerra santa. Todas as sociedadel_ até estes tempos de modernidade avançada - reconheceram e temeram noimaginário e na realidade a liberação dos processos explosivos. Elas instalarlmdispositivos que permitem transformá-Ios, derivá-Ios, expulsá-Ios, com sucellOIdiferentes segundo os casos e as conjunturas, mas sempre parciais.

O perturbador, ator dos mitos e dos contos, o Bufão da cerimônia do padrepara a cura da desordem, o Doido das cortes e das ruas se inscrevem neste rol. tl ••são encarregados da verdade: debaixo da ordem social, a desordem; debaixo duinstituições, a violência; debaixo do poder investido da função de manter Iestabilidade, o movimento; debaixo da unidade, as fraturas irreduúveis. Entre-tanto, toda verdade que não pode ser manifestada deve ser tratada. Ela -elrãencerrada, confinada; alguns a vêem, a mostram, a fixam no interior das estrat~IUe dos círculos do poder; o Doido do rei, como também sua roda, contribui a pari Imanifestação e utilização desta verdade cativa. Quando ela não podia ser reduzidl,era liberada condicionalmente e lançada nas dramatizações do ridículo, opostallldramatizações solenes, cerimoniais, do poder. O Bufão sagrado regulava •animava estas teatralizações. Foi ainda o desarmamento pelo ridículo que,tratou,de outras maneiras, as verdades escapadas. Elas se tornavam então em sonhol depoeta (ou de "jogador de bolas"), proposições deslocadas e fora das realidadel,proposições que fogem ao governo da razão ou do mero bom senso. Cldasociedade, a seu modo, defme as verdades que tolera, os limites que ela impOe 10que não está em sua estrita conformidade, o espaço que ela concede à liberdademodificadora e à mudança. Ela não cessa jamais de restabelecer demarcaçOel, d.reavivar os interditos, de reproduzir os códigos e as convenções.

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o INVERSO

A ordem e a desordem da sociedade são como o verso e o anverso de umamoeda, indissociáveis. Dois aspectos ligados, dos quais um, à vista do senlocomum, aparece como a figura invertida do outro. Esta inversão da ordem nlo 6sua derrubada,.dela é constitutiva, ela pode ser utilizada para reforçá-Ia. Ela faz aordem com a desordem, assim como o sacrifício faz a vida com a morte, a "lei"com a violência apaziguada pela operação simbólica.

A informação antropológica mostra o amplo espaço concedido ao processo dainversão. Ele intervém na definição....das categorias sociais, em sua repartição emsuperiores e inferiores, em "boas" e "más". O dominado, o dependente, ocupamdesse modo, no sistema das representações coletivastradicionais, a posição inverla(e desvalorizada) da do dominante e do senhor. É o caso freqüente na justificaçloda partilha desigual, instaurada segundo o critério de sexo.J. Middleton apresen-tou debaixo desta forma a "teoria" dos Lugbara de Uganda. Ela situa a mulherdo lado da natureza. selvagem e não da paisagem humanizada, do tempo e doespaço, diante dos homens, das coisas, e, não das pessoas, das alianças, mais doque das relações reguladas pelo parentesco e pela descendência, da agreuloinsidiosa, e, não, da conivência estabelecida com os ancestrais. A lista daicaracterísticas femininas parece tanto mais significativa,porquanto todos os .eulelementos são concebidos "em termos de inversão" em relação a seus hom6logo.da série masculina. O recurso a este precedimento serve para designar tudo que.mau, tudo que contribui para enfraquecer, modificar ou destruir as base. diordem Lugbara. Segundo este modo de legitimação da desigualdade dos sexo.,"as mulheres são o mal": "elas causam a perturbação entre os homens". Elu .10,portanto, mantidas à distância dos negócios importantes, salvo as mais idos•••irmãs de notáveis - aquelas cujo estatuto social é mais elevado e cujo estatutobiológico, sobretudo, as aproxima dos homens.

A inversão da inversão pode, porém, ser provocada para fins políticos e/ourituais. Em muitas das realezas tradicionais da Africa dos grandes lagos, figurufemininas - qualificadas como rainhas pelos primeiros observadores - e.tIoassociadas ao soberano. Elas sobem ao poder, porque, de certo modo assexuada.,

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constrangidas a permanecer castas, ou a não procriar, são assemelhadas aosgrandes chefes, cujos COstumes respeitam. Sua feminilidade é amputada, elas seestabelecem na ambivalência: mulheres representando a metade feminina (eperigosa) da sociedade e chefes identificados aos homens detentores do poder e daautoridade. Certas práticas cerimoniais, determinando a fecundidade e a fertili-dade são amplamente difundidas na África Negra, até o Marrocos. Elas têm porcaracterística comum apagar a presença masculina durante a sua realizaçã;); asmulheres OCupam o cenário social e todas se conduzem ao inverso das regras queregem Sua conduta habitual; algumas desempenham o papel dos homensapoderando-se dos signos e símbolos da masculinidade, da virilidade. Assim, asmulheres mostram ao mesmo tempo sua figura positiva _ elas se encarregam dareprodução -, e sua figura negativa - elas quebram os COstumes prescritos ederrubam uma ordem que as faz menores e subordinadas, ritualmente perigosas,associadas à impureza, ao mal, à feitiçaria. Sua rebelião simbólica pela inversão

. dos papéis impõe o reconhecimento que elas assumem no seio da sociedade. Suadesordem, conduzida "segundo o rito", inscreve~se na ordem estabeleci da peloshomens, ainda que desfavorável para elas.

O processo de inversão também intervém, ainda que menos aparente, nocampo das relações de desigualdade, não-regidas pela discriminação sexual.Voltemos ao mundo Lugbara. A ordem das gerações aí prevalece Com vantagempara os "primogênitos", "homens importantes", guardiões do COstume e inter-cessores exclusivos junto aos ancestrais. Eles têm a autoridade e a capacidade ritualde intervir em proveito de toda a comunidade. Deve-se manifestar-Ihestemor e respeito. É a definição ideal da relação; de fato, uma hostilidade velada,mas perfeitamente reconhecida se manifesta, tão bem como duas imagens sociaisinvertidas representam o "primogênito". De um lado ele é o que dispõe depoderes que lhe permitem agir em nome e a serviço de todos. De outro lado ele éo que utiliza uma feitiçaria, desviando estes poderes, a fim de atingir fins pessoais eegoístas. A guerra insidiosa entre as gerações situa-se, assim, e, principalmente,sobre o terreno do sagrado e sobre aquele em que o feiticeiro arma suas ciladas. Osantigos ameaçam invocar os espíritos ancestrais para castigar a desobediência, o .não-conformismo dos jovens. Ao COntrário, estes recorrem à ameaça de umaacusação de feitiçaria, abrangendo tudo que é considerado abuso de poder. Doiscódigos, duas linguagens são utilizados: os da religião para ditar e provocar aconformidade e os da feitiçaria para exprimir a contestação e manter o poderdentro de seus próprios limites.

O Bufào desaloja o que está oculto e a desordem embrulha as categorias;porém ele sai da ordem na passagem de seus empreendimentos. O feiticeiro ocupao universo do escondido, manipula a desordem, inverte as condutas e convençõessociais; seu trabalho é negativo do ponto de vista da comunidade. Aliás, é o quepermite suspeitar dele ou identificá-Io, de lhe dar uma existência ao mesmo temporeal e imaginária. Ele é o agente de inversão da sociedade; ele provoca as ações em

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o Poder em Cena 41desacordo com o costumei ele arruína as pessoas, "devorando-as" por dentro, urelações sociais, perturbando-as, a natureza, esterilizando-ai ele sacrifica o.mandamentos sociais à satisfação dos apetites e das ambições do indivíduo, eleempresta sua figura a tudo o que ameaça a comunidade insidiosamente - ao quenela se volta contra ela; ele é o inimigo Intimo mascarado. O imaginário o define,.,crendices lhe dão corpo, as práticas o armam de técnicas.

Ao apontar o feiticeiro, as coletividades tradicionais localizam seu mal. ~ neltemomento que intervém o processo de inversão que faz do positivo com o negativo,as forças de coesão social com as de desagregação. Isto se efetua de dois modo.principais. Pelo temor, o medo, inspirados pelo risco de ser suspeitado defeitiçaria. Esta autocensura contém as tentações de derrogação, corrige aicondutas, retifica os desvios que poderiam recolocar em causa a definição dllrelações sociais. Outra maneira é a da dramatização do sacrifício que se organizaquando da procura e do castigo do feiticeiro. A suspeita lhe impõe "provas", entreas quais, a do veneno é, freqüentem ente, utilizada; a sanção o condena •eliminação. É o momento intenso do drama, que faz do feiticeiro um bodeexpiatório, papel que lhe é sempre conferido em extrema intensidade, enquantoque o Bufão só excepcionalmente o sofre, a menos que levado até a morte.Designando publicamente, e, depois, eliminando o autor da crise - o que ~ tidocomo "estrangeiro" e agente do "mal", segundo as normas - a comunidade .erefaz e a autoridade se reforça. A culpabilidade do feiticeiro inocenta todos 01outros e, principalmente, os membros do poder. Seu sacrifício contribui para umavolta à ordem dramatizada pelo ritual da execução, a uma restauração dllinstituições e dos pensamentos que as legitimam. Durante algum tempo, aeliminação do culpado restabelece uma espécie de sociedade purifícada, Aoperação do sacrifício transformou uma comunidade enfraqueci da, minada peladesordem engendrada, em uma comunidade regenerada. O poder se nutriu comsuas próprias fraquezas ou com seus próprios excessos.

Um passeio pelo Ocidente europeu em fins da Idade Média revela umautilização mais ampla e mais trágica da acusação e da depuração social. Entlo,relata R. Mandrou, "as angústias ... puderam acender centenas de fogueiral,dizimar as aldeias e as províncias". O primeiro manual geral especializado naperseguição da "heresia da feitiçaria e da magia diabólica" , o guia dos tribunais dainquisição: o "Martelo das Feiticeiras", foi publicado nesta época, no século XVItornou-se um sucesso de livraria, reeditado a cada vez que retomavam as caças aOIdemoníacos. Ele comporta uma teoria do malefício, uma ilustração dos casos, umcódigo criminal abreviado para uso dos inquisidores. Ele permite focalizar umsistema de representações e uma mentalidade coletiva, as práticas consideradascriminosas e sua repressão pela autoridade eclesiástica.

O universo social de que trata o manual é um mundo de transição em que oredator reconhece o trabalho da desordem e do mal. Ele o descreve com mai.

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freqüência em termos de inversão. A natureza é a presa das calamidades, seusbeneficias, segundo a ordem normal, se tornam maleficios sob a ação das "más"intenções. As relações sociais fundadas na solidariedade hierarquizada dasfunções se abrem às influências nefastas, transformando-se: a classe mercantil emascensão é perigosa, porque comporta os amuletos; os bandos armados nãosomente pilham, como também são sacrílegos e cúmplices das feiticeiras; ospobres mais miseráveis juntam Suas revoltas à agressão feiticeira. O lugar dos bonsCOstumes por excelência - a casa e sua grande família - não é poupado. Tudo sepõe de cabeça para baixo: a mulher, perigosa, se não é mais recatada, assumeimportância; os homens se abandonam à loucura do amor e à fornicação; adesordem sexual se estabelece; os ritos do nascimento são ocasião para práticassacrilegas e aparecem crianças com monstruosidades. As reuniões e as festividadescoletivas asseguram o triunfo do pecado e se transformam em orgias. A própriamorte se espalha de maneira desordenada, tornando-se má; ela é a sanção dasfaltas cometidas pelos agressores da ordem, uma violência louca e injusta. Estemundo, às avessas, é o das catástrofes. Ele é assim, porque a "lei" não é maisrespeitada, nem mesmo no seio da Igreja.

De acordo com o guia dos inquisidores, a obra nefasta resulta do trabalho dosmembros de uma contra-Igreja. Eles realizam assembléias selvagens, imitam(invertem) os ritos ~ as práticas prescritas e insultam a cruz. Eles revi vem opaganismo nos dias mais santos do ano. Eles confiam Sua saúde física à terapia doscurandeiros. É a teoria da conspiração diabólica. O redator não leva em Conta ascondições do tempo. Ele coloca todo um imaginário sobre a realidade, drama-tizando-a, a fim de justificar a solução dramática dada ao restabelecimento dai'ordem - a supressão dos agentes da perversão pelo fogo. Tudo é tomado segundoas categorias do positivo: a ordem e o conformismo, e, do negativo: a desordem e odesvio. A inversão, que troca um dos registros pelo Outro, é uma subversão dasociedade, da civilização e, mais do que isso, da natureza. A análise léxica domanual é significativa neste particular, pois mostra que as palavras mais freqüentes(presentes até trinta vezes em uma mesma página) são as associadas à palavra"mal": mal, desgraça, malefício, maléfico, ete. Estabelece-se com certeza que adesordem do mundo é maléfica, diabólica, que o homem que para ela contribuiou a ela se abandona, está fora de si, possuído pelos demônios, atirado dasociedade para o povo das trevas. O duplo registro (bom/mau) é a balança que jogade um para outro, é ilustrado por gravuras da época.

Portanto, trata-se de compreender o movimento, a dinâmica política, queprod uz e designa os desviados, a fim de servir à causa da ordem. A mulher, mulhertraiçoeira e mulher diabólica, ocupa entre eles o principal lugar, pois que ollegat.Ívo faz parte de sua natureza. São requeridas feiticeiras para que o mal sejalocalizado e impedido de alastrar-se; é preciso que elas sejam destruídas, nãosomente para que o mal seja eliminado com elas, mas também para que haja umsacriflcio de reparação em face de Deus, de purificação, à vista da coletividade. Este

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últ imo aspecto, não é o menor, pois a feitiçaria está inscrit.a em um sistema decorrespondências associando-a ao mal e à impureza, à obscenidade, à sexuall·dade, liberada de sua codificação social- e, de um certo modo, à liberdade louca, Ido "asno selvagem" ou do monstro se entregando aos ajuntamentos deme-níacos. O desviado é exibido, condenado, para mostrar que sua perversão ~ totalJnenhum desvio é possível sem engajar todo o resto e a sociedade em seu séquito. Areparação do mundo invertido resultante do trabalho feiticeiro revela uma opçlo:a de uma sociedade fechada e estável, e não a de uma sociedade aberta 10movimento e ao inesperado. A recolocação em mãos religiosas é total, e, portanto,política, em um 'sentido totalitário, utilizando com a violência todos os recursos doimaginário para reabsorver sempre os espaços da não-conformidade, da liberdadee da mudança.

A modernidade não eliminou completamente estes recursos, porquanto. Isociedade e seu poder não podem evitar a confrontação da ordem e da desordem,da conformidade passiva e da liberdade modificadora e, tanto menos quanto 01tempos presentes se caracterizam pela transição, as incertezas e a ansiedade, comoos do século xv europeu, embora em outro nível de desenvolvimento. As formalmudam, mas o processo de designação e de neutralização do culpado permanece.Os irreduóveis, por condição ou por opção, são considerados agentes nefastos ouinimigos internos, como o eram os feiticeiros de outrora. Se sobrevém uma crl,egrave, eles são apontados, "sacrificados", 'a fim de que o poder seja reconhecidocomo não culpado e que a própria coletividade, inocentada, reforce sua coesãe.São os regimes totalitários que recorrem mais constantemente a esta dramatizaçâo dosacrifício; sua ordem é extremamente sacralizada; seus fracassos são obra de"criminosos" internos ou externos; '-seus súditos são obrigados à conformidademilitante ou resignada. A inquisição política substitui a religiosa, sem a exaltaçlomística alimentada pela convicção de estar a serviço de Deus. Nas sociedade.modernas mais avançadas, chamadas permissivas em virtude de suas caracrerísti-cas, os marginais e os dissidentes podem se exprimir de maneira aparente ou 11vezes oculta ou su bterrãnea; eles transtornam as relações estabelecidas pelà ordem"normal" com a natureza, o sexo, o trabalho, a economia, o poder, os valores; elelrecorrem ao esoterismo, aderem às novas religiosidades, provocam o reapare-cimento de práticas desaparecidas - até a volta ofensiva do "satanismo" no caioamericano. O irracional e suas "feitiçarias", a espontaneidade e suas experirnen-rações, minam a ordem da sociedade tecnológica e burocrática; mas, provocamtambém, e mais fortemente, reações de rejeição que contribuem para a manuten-ção da conformidade.

O poder tem a capacidade de manipular diretamente e em proveito próprio Oprocesso da inversão. A antropologia política tem apresentado, sob este aspecto,análises que infletiram as interpretações teóricas atuais e reavivaram a curiosidadehistórica pelas instituições do passado que reforçavam a norma e a lei pela práticade "atos ao contrário" - rituais da inversão ou da rebelião dramatizada. Aw

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soci(~dadcs da Antiguidade revelam uma utilização bem antiga destes mecanis-mos. As Kronia gregas como as Saturnais romanas provocam uma inversão dasrelações de autoridade, convertida em regeneradora da ordem social. ComoRoma, a Babilônia recorre a um rei de zombaria e dramatiza a volta das posiçõesde relevo por ocasião da festa das Saceas. N esta ocasião, enforca-se ou crucifica-seum escravo, o que desempenhou o papel de soberano, dando ordens, usando asconcubinas da casa real, abandonando-se à orgia e à luxúria. Este poderdesencadeado é um falso poder; ele é mostrado teatralmente como um fator dedesordem; ele impõe a necessidade de restaurar o reinado regular, e é a este últimoque é oferecido o sacrifício do falso rei.

o poder está sujeito a ameaças constantes: a da verdade que quebra o quadrode suas aparências; a da suspeita que o obriga a manifestar sua inocência; a dodesgaste que o obriga a revigorar-se periodicamente. A parada é a dramatizaçãoque atinge seu mais alto grau de intensidade durante os períodos de vacância dopoder, durante os interregnos nas realezas tradicionais, estudadas pelos antro-pólogos. A morte do rei parece restabelecer a desordem inicial, liberando as forçasperigosas no centro do universo e no seio da sociedade; ela faz surgir as violências,as cóleras e os medos. Nas ilhas Sandwich, logo que o desaparecimento dosoberano se torna público, o povo se entrega a uma espécie de furor e cometedepredações. Nas mesmas circunstãncias, nas ilhas Fidji, as tribos invadem acapital e aí promovem a desordem. Na África Negra, estas práticas, provocandouma explosão de licença - como se todos os súditos se encontrassem provisoria-mente fora da lei - são muito difundidas.

Nos reinos do Benín, na África Ocidental, a notícia da morte do rei (da"partida do pai") inicia um período de turbulência e de luto. Desaparecido ohomem-deus que controla a ordem, parece que nada pode impedir a obra dedestruição; uma fórmula convencional diz: "é noite" no país. Os primeirosobservadores estrangeiros constataram nestas circunstãncias o desregramento deCostumes, a multiplicação de roubos e assaltos de toda espécie, em plenaimpunidade provisória, as epidemias de vingança e de assassínio; um destescronistas observa que tudo se passa "como se a justiça tivesse morrido com o rei".Ela reaparece mais forte, mais pesada, com a posse do novo soberano, e, em certoscasos, depois de uma última inversão dos papéis, regulada, cerimonial mente, nodia da entronização. Entre os Yoruba, em Oyo, a multidão tinha, então, aliberdade de bater e insultar o rei novo conduzido ao seu palácio. Manifestaçãosimbólica de um último acesso da liberdade desenfreada, pois que, freqüente-mente, se formavam dois cortejos, a fim de desviar para um personagem substitutoas sevicias dirigidas Contra o soberano.

N a Costa do Marfim, os Agni da região ocidental formaram reinos de pequenaextensão onde a capacidade dos reis depende da manutenção e da gestão de umaforça de efeitos favoráveis ou desfavoráveis, segundo o uso que dela é feito; uma

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força e.•pecíflca adquirida pelo ritual da enrronização, ameaçada de esgotamento e<.jue deve ser mantida pela cerimônia. É o objetivo das grandes festas poli ticalperiódicas. Esta força da ordem é "retirada" do soberano morto a fim de .ertransmitida a seu sucessor. Entrementes, é a desordem, expressa de maneiradramática em uma primeira fase. Os camponeses representados por seus chefe.têm um direito particular de perturbar a capital. Os "grandes" representam ofuror, e tornam os súditos responsáveis pelo desaparecimento do rei, exercendorepresálias nas aldeias; eles matam o gado e agridem as pessoas. As hierarquias 110misturadas e o reinado dos abusos violentos parece aberto.

A desordem se manifesta mais cerimonial mente em uma segunda fale.Recorrendo a uma inversão total, a ordem dos homens livres é substituída pelesdescendentes de "cativos". Apenas morto o rei, antes mesmo que a notícia sejapublicada, este poder invertido se organiza, tomando posse das moradas reais. todecalque do outro; ele comporta um "rei", que afirma: "hoje, sou eu que dominoo mundo", uma "rainha", seus "dignitários e notáveis". Este soberano do mundo,ao contrário, imita em tudo o rei desaparecido; ele se apodera das vestes, das jóia. edas insígnias do morto; ele respeita seus interditos e seu código de conduta; ele tebeneficia do cerimonial real; ele comanda e sanciona - enquanto a vida polltlcacorrente é atribuição de um regente oculto; ele tem acesso aos celeiros, mas não ao.bens e aos tesouros reais. Ele é a dublagem paródica do verdadeiro rei. O queimporta mais, pois que mais significativo é o exercício do poder sobre I

transgressão e o excesso. Os falsos potentados são sacrílegos; eles zombam dosoberano defunto depois de se terem apoderado, no leito mortuário, do.paramentos da realeza; então, eles se empanzinam, quando a austeridade do luto ~de regra; eles violam os interditos impostos aos súditos pelas circunstâncias. Ele.praticam a irreverência às pessoas mais veneradas e às instituições mais conside-radas. Eles exercem um poder arbitrário, animado por espírito revanchista; dizemque seu poder é "malvado". Juntam-se a irrisão, o mal e a desordem. O fim de .eureinado coincide com o dos funerais reais. Então, o poder "malvado" é eliminadoe o novo rei é acolhido pelos aldeões com um desejo de ordem. C. H. Perrot, querelatou estas práticas, aí vê, na realidade, "um jogo em que nenhum do.participantes é enganado" - é uma paródia. Mas é, necessitamos dize·lonovamente, o grande jogo do poder. Ele mostra, pela dramatização ritual, que nlohá outra alternativa para a ordem estabelecida pela lei do rei do que o ridículo, Oarbitrário e a ameaça de caos. A inversão de papéis leva a uma realeza de zombaria,a um sistema de regras falsas e a uma sociedade que é a sua própria caricatura.

No reino de Loango, vizinho e em certa época parte do império Kongo, amorte do rei provoca o temor da volta da desordem inicial, depois o rejuvene ••cimento da realeza em benefício do novo reinado. Quando dos funeral.simbólicos - o cadáver do soberano tendo sido previamente enterrado - dollpartidos em armas se afrontam em uma guerra ritual que não exclui a violêncla ereiteram as lutas que fundaram a dinastia. O partido do rei é necessariamente

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vitorioso: pensadas as feridas e enterrados os mortos, a sucessão pode serpreparada. A inversão aparece também em uma seqüência do cerimonial,prinripalmenrc no momento de uma dança sagrada, quando homens e mulherespraticam a transgressão dos usos e interditos, impostos à sexualidade. Osparceiros arregaçam suas tangas, entregam-se a uma pantomima sexual e cantamcanções obscenas. A vara ("grande como umatocha de resina ... , como a tromba deum elefante"), a vagina ("sulco" onde "semear", lugar das "secreções"), o clitóris("!(rande como o de uma elefanta"), tornam-se as figuras deste drama cantado einterpretado. Entrementes cada um "vê Bwali (o reino) ir-se (morrer)".

A desordem, de onde a ordem extrai as forças que a revigoram, é aquiinterpretada em dois cenários: o da guerra que se relaciona ao tempo da violênciaíuudadora, e a da sexualidade devolvida ao estado "selvagem". São os dois temasprincipais pelos quais a sociedade exprime sua organização; são as duas fontes deonde ela recebe a energia que a constitui, transformando-se que são assimrcativadas ritualmente. No começo, a violência e a sexualidade eram livres; fazê-Ias reaparecer com a cerimônia do drama é reatualizar este período primitivo, é.permitir à sociedade - portanto, a seu poder - de se reavivar, interpretando aprópria gênese. É conduzir o processo da inversão do tempo, até seu pontoextremo, até ao momento em que nasce a ordem social, a fim de captar o vigorprimitivo.

Estas ritualizações, pelas quais se representa o drama do poder vacante, sãotodas reguladas pelas leis da inversão e da hipérbole, do excesso. Os interditos e ascensuras são substituídos pela licença desenfreada ou orgíaca; ao direito, aviolência, ao decoro e aos códigos das conveniências a paródia e a irreverência, aopoder conservador o arbitrário e perturbador. Sob estes aspectos os atorescoletivos do espetáculo ritual desempenham seus papéis à moda dos Bufõessagrados; mas, eles engajam mais a sociedade e seu sistema de autoridade, elestomam parte em uma dramatização nacional. A vacância do poder engendra umdrama desta espécie em todas as sociedades e sob todos os regimes. Nesteparticular, a lição antropológica é um eco profundo de nossa atualidade. A épocada sucessão é um tempo de suspense dramático nos países totalitários, em virtudedas incertezas e dos temores que provoca. A crise governamental, ou a simplesameaça de uma partida, gera uma dramatização política nos países multiparti-dários. Um acontecimento que provoque o desarranjo dos aparelhos do poder eda autoridade - como aconteceu durante o Maio francês - acarreta manifestaçõescomparáveis às organizadas pelos rituais de inversão; com esta diferença denatureza que Ihes advém do inesperado e não da programação social, é que seuresultado é incerto. Estas épocas são períodos de efervescência; não há nada firme,() movimento se propaga por toda parte, embrulhando os códigos e as convenções,a sexualidade rompe seus entraves, a palavra se libera e instaura o reinado da"tagarelice", a violência se ritualiza e a irreverência é a forma de agressão não-

violenta. A imaginação, a criação espontânea abarrotam o vazio do poder.

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Entretanto, esta inversão festiva não pode sustentar-se, ela se gasta. O poderreaparece e toma o controle da drarnatização, onde tem a oportunidade de IUIrestauração, a ocasião de proceder a uma "limpeza" de uma sociedade comaspectos vestustos, assim como o novo rei das sociedades tradicionais tira didesordem instituída, durante o interregno, meios para reavivar a força da realezl.

O poder dispõe de um meio regular de se "pôr à prova", e de mostrar seu vigorpor ocasião do término dos grandes rituais periódicos. No domínio antropol6glco,a primeira referência é o "Incwala" dos Swazi (África Oriental do Sul), grandecerimônia nacional anual, descrita por H. Kuper, instituição complexa para a qualdiversos comentaristas propuseram interpretações concorrentes. Entretanto, Odado dominante não está sujeito a estas variações: trata-se de um drama político ecósmico, em que o soberano tem o papel central, submetendo-se a uma agreSlloritual que lhe permite definir-se e reforçar-se efetivamente. A cerimônia dadramatização come0rta duas fases. A primeira abre a capital à pilhagem simbólicados padres e expõe o rei a manifestações de hostilidade; os cantos sacros falam no"ódio" do povo; o jogo político é apresentado sob o ponto de vista das oposiçõej edas coalizões - o rei e o Estado contra os súditos, estes levantados contra aqueles, orei aliado ao povo contra os príncipes rivais, e estes associados à plebe contra o rel,Destas provas, o soberano sai vencedor; ele triunfa e se encontra reforçado; ele ~denovo o Touro, o Leão. A segunda fase do ritual marca o desaparecimento dipolítica em proveito do cosmos. Ela associa o rei às forças e aos ciclos naturais, t.práticas provocadoras de vida e de fertilidade, à cerimônia do consumo dOIprimeiros frutos. Ela é conduzida pelo soberano em uma espécie de prévia quemanifesta solenemente os diversos estatutos sociais e as hierarquias por elesregidas. A ordem social é exposta nesta circunstância, exibida e recolocada no seuestado no mesmo momento em que se consolidam os laços com o cosmos e Inatureza. No entanto, a ambigüidade da pessoa real persiste. O rei permaneceobjeto de veneração e, ao mesmo tempo, de temor ou de medo. Ele é mostradoem sua singularidade, separado, detentor de um poderio temível que o liga 1ordem do mundo e à ordem dos homens. Ele é o bastião erguido contra o perigode uma volta ao caos; o sentido último do ritual é afirmar e revitalizar esta funçlotemível e necessária.

No Tibet, esta mesma ligação dos ciclos naturais com os ciclos social. ~expressa durante a cerimônia de celebração do Ano Novo. Ela se insere em umcomplexo de manifestações públicas que recorrem aos processos de inversão e deridicularização, de expulsão (do ano velho e de seus males e perigos) e do bodeexpiatório ou "Resgate" do mundo demoníaco. R. A. Stein relata romn f-regulada esta prática. O Rei do Resgate - às vezes, representado por dohpersonagens - é provisoriamente investido de todos os poderes, até ao ponto deprovocar o Dalai Lama e de se entregar a ações arbitrárias nas ruas da capital. Elerecebe das mãos dos mendigos e dos representantes da casta vil dos coveiro. IIoferendas das autoridades. Tudo fazendo ao contrário, ele atrai os males di

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coletividade e deles se encarrega simbolicamente. Ele os transporta por ocasião deuma "viagem", que começa por uma breve cerimônia em honra da divindadeprotetora da cidade, seguida de uma procissão. O cortejo é conduzido por ummendigo, que leva uma figurinha de massa que representa o Dalai Lama e apontaos perigos que os ameaçam. Seguem-se o Rei do Resgate, escoltado por mendigose delegados da casta reprovada, sacerdotes mascarados, portadores de cruzes deAbra, às quais foram transferidas parcialmente as ameaças ao povo e seusgovernantes, monges, membros das principais escolas tântricas da capital, umsacerdote de um poderoso oráculo, cercado por seus assistentes e mantido emestado de transe; enfim, para fechar o cortejo, um dos mais elevados dignitários doclero budista tibetano.

Esta procissão inverte de algum modo a ordem das posições sociais; afigurinha do Dalai Lama não é mais do que um simulacro, permitindo os malesque poderiam atingir o. soberano, é uma armadilha das forças maléficas edemoníacas; o Rei do Resgate não pode ser senão um falso rei, irrisório, um bodeexpiatório, levando para a morte ou para o exílio seu fardo de influências nefastas ede pecados; os reprovados compõem o seu círculo. Eles, juntamente, expulsam omal para fora dos muros da capital e, de um modo mais geral, para fora dasociedade - purificada e renovada ao abrir-se o ano novo. Participando da guerracontra os "demônios", mostrando a ordem invertida ligada ao reino do mal, daimpureza e da 'irrisão, o poder ainda se inocenta e reaviva. Cada ano ele apagaritualmente os vestígios da desordem, que são também os das mudançasnascentes. Ele contém a desordem, reconhecendo-a ao pagar-lhe um resgate.

A breve substituição do verdadeiro poder por um falso pode ser o meio paracomunicar àquele as reclamações e aspirações que não o alcançam no cursoordinário da vida política. Uma tradição marroquina mantida até uma data recenteo revela claramente: cada ano, em Fez, ao termo do trabalho universitário emQ1trawiyne um Sultão dos "tolba" (estudantes de ciências religiosas) é escolhido.Ele tem o encargo do "governo" durante uma semana inteira. Ele recebe umaresidência e móveis, vestimentas, alimentos, cavalos e servidores. Na ocasião, ele éacompanhado por um cortejo pela cidade, aparecendo a cavalo, protegido peloseu círculo, acompanhado de arautos, de dançarinos e bajuladores. Ele éreconhecido pelo clero e "aceito" pelo próprio soberano. Ele conduz os negócios,exceto os que dizem respeito à política geral do país; ele nomeia para diversoscargos, exceto para os do Makhzen, o que lhe permite conferir vantagens a suaprópria linhagem; ele efetua visitas de inspeção, regula conflitos, recompensa,castiga ou agracia. Sua autoridade não é paródica, é uma censura, rompendo aordem do poder, uma abertura provisória concedida à iniciativa. Seu brevereinado é uma ocasião para fazer indiretamente sugestões ao verdadeiro Sultão epreparar estratégias propícias à realização de suas próprias aspirações.

Sua realeza precária tem incontestavelmente um sentido político; o processode designação o mostra: ela é complexa e requer o suporte de relações pessoais,

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uma posição no campo das forças pollticas e sociais. Sobretudo, ela nlo ••compreende senão por referência à própria definição do soberano marroquíne,Ele é o Comandante dos crentes, chefe espiritual da nação (Umrná), Chefesupremo que dispõe da bênção (Baraká), donde a veneração de que é objeto. Ele ~o oficiante (Irnã) que recebe respeito e submissão. Ele é o "Alim", "bloencarregado de supervisionar a aplicação da lei muçulmana. Esta última qualidadeé partilhada com os doutores da Qarawiyne, de quem recebe uma legitirnação, eque ele consulta. Os "Alims", constituindo um corpo de teólogos e de letradol,participam dos poderes e símbolos de prestígio, têm acesso às riquezas e dispOemde capacidade para controlar e contestar as decisões do rei. Éjustamente a eles quese assemelha o Sultão dos" tolba", que se inicia no saber guardado por eles. Ele Ilofigurante do seu poder durante um curto período, com o apoio popular provocadopela festa de sua designação. Em um sistema de domínio total, ele introduzmovimento sem risco de ameaçá-Ia. A alternativa ao poder estabelecido perma-nece um simulacro, mas de incapacidade limitada, pois que. este exprime .1sugestões e propõe as iniciativas de um governo efêmero por meio indireto.

A inversão pode ser desviada, tornar-se permanente, enquanto meio d.contestação absoluta, porém, com freqüência o é por uma transposição imlll.nária, introduzida por uma iniciação. No Rwanda antigo, na África Oriental, Oregime de monarquia autocrática, estabelecido sobre uma desigualdade funda-mental e sobre cortes hierárquicos, provocou esta espécie de reação, e tanto mal.quanto a dureza da vida cotidiana aí também é interpretada como expressão daagressividade de ancestrais perseguidores. Tudo o que participa do poder, aqui eno além, tem a possibilidade de contribuir para a manutenção deste estado deinsegurança. Surge então do imaginário coletivo um herói mítico, Ryangornbê, dequem C. Vidal diz em seus estudos rwandeses, que ele aparece no decurso de"todas as operações simbólicas". Ele é efetivamente a figura central de um ritual deinversão, ao qual terão acesso, mediante conselho de um adivinho, todos os queforam iniciados, exceto o rei. O soberano real não pode reconhecer, nem •potência, nem a supremacia do herói saído do mito e reinando sobre os espírlteechamados Imandwa, seus companheiros. Tudo é transformado por Ryangombêi asociedade desigual em fraternidade iniciática, a ordem em desordem, a submissão emsuperpotência. Seu culto apaga as relações autoritárias e a censura. Produz-se aiuma negação teatral do poder real e de sua ordem, das desigualdades fundamen-tais, dos domínios segundo critérios de sexo e idade, das preeminências regidupelo parentesco, das regras que governam a sexualidade e a decência. A práticaritual abole tudo o que faz a sociedade rwandesa e sua civilização; é umaultrapassagem pela qual os adeptos se identificam com os companheiros deRyangombê e se imaginam capazes de vencer os poderes e os domínios mal.solidamente estabelecidos. Eles são "outros", a ponto de falarem uma outralíngua, iniciática. É a liberação absoluta no imaginário; os iniciados pretendem"comportar-se como cães" - eles opõem a ordem rude das hierarquias e d.1desigualdades reais, a desordem mística que afasta as ftonteiras do impossível. No

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entanto sua insubmissão ritualizada não parece afetar o jogo dos poderes; eladesarma a rebelião, enfrentando-a com as cerimônias.

o personagem do Perturbador e os atores da inversão sacrílega, orgíaca,também OCuparam a cena social da Europa medieval. Eles praticam uma liturgiaao contrário, introduzem fraturas no tempo e nelas inserem as "estações" dalicença e da bufonaria. A hierarquia eclesiástica vê nestas manifestaçõesexplosivas, liberadoras, uma herança do paganismo e a ocasião de realizar umverdadeiro "sabbat de feiticeiras". Os papas, notadamente Inocêncio 111, denun-ciam estas "pantomimas e loucuras que ridicularizam o clero", e a Faculdade deTeologia de Paris fulmina em diversas ocasiões essas festas às quais se associa umaparte do clero. Durante muitos séculos - até meados do século XV, todos os bisposfranceses são regularmente prevenidos - estas práticas introduzem a subversão nascerimônias, o ridículo, o desregramento dos costumes até nos lugares sagrados, aolado dos altares. Invertendo a ordem da Igreja, conseqüentemente, tudo sejustifica; introduzindo a festa, a dança, a mascarada no interior das catedrais, estasliLurgias invertidas tornam a sociedade, seus códigos e limitações precários. Adesordem festiva substitui a ordem das condições sociais, das posições "determi-nadas" e das condutas prescritas.

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No curso da primeira Idade Média, manifesta-se esta volta das Saturnaisquando se retalham nas origens o ciclo litúrgico (a natividade) e o ciclo do tempo"natural" (o Ano Novo). A princípio com discreção, uma celebração do nasci-mente do Cristo, os princípios, a renovação e ajuventude. A igreja se abre entãoaos cantos e à dança associando os padres - o baixo clero e seus diáconos _ e asrrianças. Um "Bispo das crianças" (episcopus puerorum) é eleito, vestido deparamentos semelhantes aos do Pontífice. No tumulto dos festejos, um cortejo oleva ao palácio episcopal, onde ele distribui sua benção de uma das janelas, àmaneira pontiflcía, A mesma manifestação se organiza com os subdiáconos,favorecidos pelas danças realizadas para os outros dignitários da hierarquiaedesiãsríca, Sob esta primeira forma, a inversão é contida em seu estado mínimo;da dá lugar ao poder dos "inocentes", ela libera as forças novas, elas substituem asolenidade da cerimônia pela turbulência da festa. No entanto, trata-se, menos deurna perturbação provisória da ordem social, do que um recurso, de uma voltasi rnbólica àjuventude da sociedade e de sua Igreja, ajustada à abertura de um novociclo anual.

Em fins do século XII, estas práticas se transformam em uma licença sacrílega:a Iesta ou missa dos Doidos realizada nas cidades com catedral, dando lugar à1'1('ição de um Bispo, Papa ou Rei dos Doidos. Dá-se então uma inversão total dasmaneiras habituais, e certos relatórios eclesiásticos mencionam "abominações eíl~'("')(~S vergonhosas em número tão grande" que dessacralizam os lugares santos,"não somente pelas zombarias nojentas, como pelo sangue derramado". O altod(~ro é despojado de suas funções em proveito do clero de irrisão, que Ocupa os

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u~cntoMda catedral. A partir deste momento, subverte-se a ordem da cerirnõnla, Oollcio é conduzido de maneira burlesca, aberto ao sacrilégio c aos comportarnen-tos orgíacos, Máscaras de faces grotescas, vestidos W!110 mulheres, personagen.buíõcs ou animais, dançam, cantam e se entregam a pantomimas indecente. nocoro; eles comem seus alimentos engordurados, espalhados sobre o altar, CIl'lUilUO() padre celebra a missa; eles queimam cordões de couro de sapatos velho. emlugar dos bastonetesde incenso; eles jogam aos dados; eles correm e saltam emtodos os sentidos. A catedral é entregue à agressão da festa popular e a profanaçâase torna uma liberação absoluta, uma licença selvagem. Um "doutor" de Auxerrejustifica esta explosão liberadora pela parábola dos tonéis que devem lerperiodicamente abertos: o clero não é senão um amontoado de barricas de vinhovelho que, certamente, explodiriam se o vinho da sabedoria tivesse de trabalharsem alívio ao Serviço Divino.

No decurso de século XVI tudo se apaga lentamente, mas antes, uma terceiratransformação se efetuou com a festa do Asno - comemorando inicialmente a fUlade Maria para o Egito e celebrada principalmente na França. Em Beauvais, O Amoé conduzido em procissão até o interior da igreja, onde ocupa simbolicamente umlugar central no serviço da missa; todas as partes do oficio são concluídas comzurros das congregações e da assistência; o Asno é celebrado por cantos em latim eem francês; o próprio padre substitui o Ite missa est por três zurros, c i\

assistência dá graças a Deus da mesma maneira. Esta insistência provoca o maiorentusiasmo. Em muitas cidades, o Asno é tratado como um príncipe da Igrejaldurante a procissão ele é levado debaixo de um pálio com dourados, carregado porveneráveis cônegos e escoltado por pessoas vestidas com hábitos de festa como porocasião do Natal. Um escorregão simbólico, mais ou menos disfarçado, associa oAsno ao próprio Cristo, tanto mais facilmente quanto uma conhecida tradiçloestabelece a mesma relação para o Deus dos Judeus e os poderes recebidos por suadelegação, uma tradição que se encontra novamente nas pinturas que ridícula-rizam a crucificação. A inversão da ordem ritual é levada aos limites da blasfêmia,Nietzsche passou estas fronteiras - fazendo esta alusão explícita - quando eletratou da festa do Asno como paródia da missa, escandalosa e blasfemat6ria IlIl

quarta parte do "Assim falou Zaratustra".

Estas práticas provocaram interpretações concorrentes, que não somente a.dos historiadores da Idade Média, como se o de que se tratasse fosse responder.este enigma: porque a Igreja, apesar das defesas da hierarquia, esteve emconivência ativa com os atores de sua própria zombaria? A solução mais freqüentefaz alarde de uma memória cultural que conservou traços dos antigos costume.que, como as Saturnais, transformam a subversão da cerimônia em uma forma derelação ao sagrado e à "lei". Uma segunda proposição leva a considerar a ordemproveniente da instituição eclesiástica em sua relação de tensão com dois pólen Oque o Sagrado define por sua exigência e rigor vividos, em parte, como excesso: Oque o poder par6dico e festivo cria provisoriamente e que, pode-se dizer, é falho,

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Entre estes dois extremos - um que ela venera, o outro que ela tolera naambigüidade - a Igreja estabeleceria uma ordem medida, a sua, equilibrada porefeito destas solicitações contrárias. As interpretações mais recentes vêem nestaspráticas associadas ao catolicismo medieval a forma particular de fenômenos decaráter geral, sejam fatos de funcionamento psicológico, sejam fatos de funcio-namento social. No primeiro caso, tratar-se-ia de afrouxamento regular dastensões, do abrandamento provisório das censuras às quais a Lei que define asociedade constrange o indivíduo. No segundo caso, o que se encontraria emcausa, é a acomodação da relação entre as forças de conservação e as forças demovimento, poder e contestação, ordem e desordem. Na Europa da Idade Média,a Igreja era um lugar privilegiado, onde tudo se exprime, se funda e se valida; não-é, pois, surpreendente que ela tenha se tornado também num cenário onde semanifeste uma contestaçào popular dramatizada. É uma subversão cíclica,codificada, ritualizada e ao mesmo tempo festiva. Ela libera no jogo de cena, elanão solapa as instituições. Aliás, é significativo que, a partir do século XVI, quandoas grandes transformações afetam o Ocidente e seus sistemas de-poder, se produzaum deslizamento do religioso para o político. As festas do príncipe ilustram opoder e as "folias" se tornam principalmente assunto da Corte.

No Carnaval se tornam a encontrar alguns dos componentes que acabam deser considerados, mas associados a outros, em fórmulas complexas e variáveis, deacordo com as províncias ou os países. A época carnavalesca é aquela em que umasociedade inteira se mostra, se libera pela imitação e pelo divertimento, se abre aosataques e às críticas por meio de transposições toleráveis, e se entrega parodica-mente ao movimento a fim de com ele alimentar sua ordem. Tudo se diz nodisfarce, tudo se valida pela união estreita do sagrado e do bufão, A inversão é oprocesso que permite virar o tempo no avesso, metamorfosear a escassez emabundância, o acabamento em consumo, romper as censuras e as conveniências,em proveito da festa, dar lugar às contestações, dissolvendo-as na irrisão e nadiversão coletiva. O desfile é o modo pelo qual a sociedade urbana se mostra, seexpõe ao espetáculo. Jean Bodin, em sua" República", evoca no fim do século XVIesta sociologia das cidades, proposta em vista dos basbaques, durante umaprocissão. A frente do cortejo, o "rei", separado, fora do mundo comum que sesegue: o clero, os representantes do poder municipal, os membros da ordemmilitar, os titulares do fórum, os médicos e os farmacêuticos, o "povo soberanodos criados", os negociantes, todos os encarregados do Sustento material dacidade, e depois, os representantes das artes e diversões. Esta sociologia exibida emseu lugar no Carnaval pode tornar-se uma arma política, voltando-se contra os quea manipulam.

E. Le Roy Ladurie, em seu estudo sobre o Carnaval de Romans em 1580,manifestou as implicações políticas desta prática e revelou os antagonismos que aíse exprimem, até a explosão trágica, então provocada pelo grande medo dasautoridades. Nestas circustâncias, a paródia não desarma mais as tensões sociais e a

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o Poder em Cena "festa se torna Iiberadora de violências. O período carnavalesco começa peloconvite "às armas e equipagens", a fim de organizar os desfiles. Formam·11"reisados" ou reinos debaixo da autoridade de um "rei" - cuja figura ~ associada atoda uma simbólica popular, e que dispõe de "of1ciais", de uma "guarda", de umséquito. Estas imitações da realeza exprimem os componentes sociais da cidade.regulam a participação nos cortejos, nos ritos, nas festas e banquetes do penododo Carnaval. Tudo deveria concorrer para a liberação festiva e expulsão simbólicados males da cidade- cujo processo e a eliminação do manequim carnavalesce 110a última realização. No entanto, o furor dos camponeses se espalha na campanharomanesa e o descontentamento dos artesãos agita a cidade; os jogos de inverno,depois o Carnaval de fevereiro de 1580, se transformam em fronda, em seguida emrevolta e em ofensiva repressiva. A terapia festiva falhou - plebeus e burgueses seafrontam.

Os reinados paródicos se multiplicam e se opõem segundo esta clivagem. AIdanças e os folclores populares tomam uma significação política; a irreverência e ainversão exprimem uma exigência de redistribuição das riquezas em pro\ eito dOIjovens e dos pobres. Os rumores mais fantásticos correm em Rornans; nutrido.pelo medo surgido do imaginário coletivo, eles apregoam o massacre di' elite, arepartição dos bens e a partilha das mulheres. Os notáveis, por meio de leupróprio "reisado", respondem e tentam manter a função do Carnaval: revelar oabsurdo e o ridículo na inversão da sociedade, apagar as subversões pelos ritol emanifestações festivas. Mas nada se passa como de costume, pois que o resultado"trágico. Na Segunda-Feira Gorda, a dança degenera em combate e, o capitão da.Ligas, chefe popular, desaparece de morte violenta. A Terça-Feira Gorda é rubra,provocando uma quase guerra civil; os conflitos encenados, as expuls~elpurificadoras e os assassínios simbólicos se transformam em realidade, em ajultede contas. A ordem reforçada resulta. não da festa, mas da violência; a inverllofracassada degenerou em subversão, e, depois, em reação brutal: nas semanuseguintes a estes acontecimentos, os notáveis relembram seu medo e se ocupam darepressão.

O imaginário coletivo e as práticas ritualizadas que governa têm, não somente,uma eficácia simbólica, como também um alcance político. Elas produzem umarepresentação da sociedade que é, ao mesmo tempo, uma ilustração e umacontestação. Elas se apresentam para serem vistas e criticadas; quando muito, omanequim do Carnaval evocará de modo paródico a classe dominante questíe-nada ou será vestido ridiculamente "à semelhança do inimigo do momento"; napior hipótese, os atores do drama carnavalesco levarão seu papel a sério e não lerlomais opostos metaforicamente, mas realmente, como aconteceu em Romana em1580.

O Carnaval permanece sempre um meio de liberação e de expressão popular,No Brasil, é um dos grandes rituais nacionais; ele se opõe, em sua liberdade, IUI

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espontaneidade, seus excessos, suas manifestações, à cerimônia política daSemana da Pátria e às ritualizações constrangedoras da Semana Santa. Ele sereporta a um tempo que não é nem o da história e nem o do ciclo litúrgico, aotempo indefinido do sagrado difuso, do sobrenatural, do imaginário. Ele procedepor inversão: substituindo o dia pela noite, o domínio privado pela rua, a medíocrecondição real pelo papel desempenhado na identificação de grandes personagens.Ele metamorfoseia o universo social das cidades, abertas as procissões das Escolasde Samba e as danças. Por meio de disfarces, o Carnaval dá vida a figurasmarginais ou imaginadas, estranhas à sociedade brasileira atual. Ele transtorna asclassificações sociais ao azar dos encontros e da insólita conjunção dos perso-nagens imitados. Ele cria uma ampla comunidade temporária, onde tudo se tornapossível, onde as hierarquias e as convenções da vida ordinária se dissolvem. Elelibera na brincadeira e na farsa, indo até a licença; ele dá lugar à improvisação, àinvenção desenfreada. O Carnaval brasileiro dá a impressão de uma sociedadeonde os cortes sociais, as desigualdades, os poderes estão temporariamente expul-sos. Ele mostra uma sociedade fraterna e festiva debaixo da que regula rigorosa-mente a vida cotidiana, e através desta ilusão contribui para a aceitação destaúltima. Ele a revigora periodicamente, pelo reinado da "fantasia" em desempenhoàs vezes levado até ao transe, pelo movimento resultante de todas as liberaçõesindividuais. Como constata R. da Marta, o Carnaval "fala" de uma mesmaestrutura social, ilustrada pelos grandes rituais nacionais, engrandecendo aordem, seus valores, seus códigos, suas hierarquias; mas ao contrário: ele inverte osistema de papéis e de posições que classificam os indivíduos, para melhorconsolidá-Ios em seu lugar "depois do fim do rito".

Durante o século XIX, certos observadores das festas antilhanas qualificaram-nas de Férias dos escravos; elas suspendem o trabalho e a rude lei da plantação. M.G. Lewis, inventor do terror gótico na literatura, autor do Célebre romance "OMonge", foi um deles. Ele acabava de herdar duas propriedades açucareiras naJamaica; aí desembarcou, na Costameridional, em 19 de janeiro de 1816; ele assistea celebrações do fim e do começo do ano, que obedecem aos mesmos princípiosem todas as Índias Ocidentais. A cidade pertence então aos escravos de todas ascategorias, a rotina cotidiana é quebrada e os senhores estão entregues aoabandono doméstico. A mecânica da inversão também funciona lá: a ruanormalmente controlada é entregue aos ajuntamentos, a noite interdita àsmanifestações de escravos, lhes é franqueada, os ritos ancestrais reprimidos sãopraticados em todos lugares e os modelos culturais da África perdida reaparecem,a parada e a rivalidade no fausto dos Costumes e na produção dos espetáculossubstituem o desnudamento cotidiano e a disciplina dos plantadores. Estes, paraatender seus próprios interesses, são obrigados a participar _ eles devem dar,repartir, contribuir para o desperdício, auxiliar o grande consumo de alimentos eas diversões. Durante alguns dias, a subversão festiva afrouxa as tensões sociais,apagando os constrangimentos e mascarando a miséria servil. Diz-se que ela operacomo uma válvula de segurança.

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Entretanto, os que fracassam no funcionarnente não são jamais excluídes, e o.patrões o sabem. Certas figurações ilustram este risco. Os "Actors-boya" daJamaiea, mascarados e fantasiados, armados de chicotes, desempenham a cena decombate e de assassínio ou comandam o coro dos "estômagos faminto.".Enquanto os "John Canoes" conduzem uma outra mascarada, aterrorizante,ameaçadora pela agitação das espadas de pacotilha e a exaltação alimentada aálcool. Os grupos femininos entram na competição a fim de afirmar lua"superioridade na beleza, na graça, no costume e na canção"; eles rivalizam e leafrontam; introduzem uma pequena luta na festa que se pode tornar em umaguerra na sociedade, em um motim. Esta liberação ameaça, tanto mais tornar- ••geradora de violência, quanto introduz a abundância (muito passageira) e a licençadepois de um período de trabalho rude e quase de penúria; ela dá a ocasião deconverter a festa orgíaca em revolta. De fato, um estudo recente das rebeliões ecomplôs nas Antilhas Britânicas mostrou que 35% entre eles se situam nos último.dez dias de dezembro. No entanto, a supressão das "Saturnais de escravo.",quando tentada, teve conseqüências mais trágicas e imediatas. A função de terapiasocial- servir à ordem, revigorando-a - é, incontestavelmente, mais importante doque o risco da ruptura.

Desaparecidas durante algum tempo, estas festas e o Carnaval antilhanoreaparecem ou tentam reviver adaptadas às novas condições e não somente ••exigências da economia de turismo. Uma pesquisa conduzida na pequena ilha deAntígua mostra como o Carnaval, renascido em 1957, se tornou uma manifestaçlonacional oficial. Ele reencontra suas funções permanentes - fazer prevalecer Ifusão igualitária sobre as separações hierárquicas, a espontaneidade sobre a rotinl,a liberdade sobre o constrangimento, a comunidade sobre o encerramento nalestruturas. Para o essencial, ele recorre aos mesmos meios, à parada e à licençlsexual, à ostentação e à pândega, à dança, ao jogo e ao teatro de rua, 1extravagância na fantasia e à sofisticação provocante. Porém, esse Carnavalreaparecido comporta algo a mais. Ele contribui para definir, na teatralizaçlo,uma sociedade e uma cultura em formação, uma especificidade da ilha noconjunto caraíba, uma identidade negra em face da ocidentalização do modo devida cotidiano, uma certa integridade cultural contra a importação de modelesestrangeiros. Os heróis das jogadas carnavalescas são, na desordem festiva, oequivalente profano dos inovadores religiosos que dirigem os ritos de "revitall·zação". Eles canalizam forças necessárias para o estabelecimento de uma nOVIordem; eles as liberam para tomá-Ias mais utilizáveis para isto.

Os" sacerdócios" e os ritos, que realizam esta tranformação da desordem emordem, operam sempre dentro de limites, variáveis segundo os tipos de sociedade.Fora destas fronteiras, está o espaço das resistências, das rebeliões e, além, O da.revoluções no porvir. Estas visam o estabelecimento de uma outra ordem. Aquela.desafiam com o espetáculo a que existe - seu primeiro objetivo é a provocaçlo e ademonstração da vulnerabilidade dos poderes existentes, da impotência relativa

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dos poderosos. A desordem latente se manifesta parcialmente por seus efeitos: elaé mostrada, não por ser invertida, mas por ser mantida e explorada. Atores muitodiferentes contribuem para isto, desde o herói popular - o "Trickster", trapaceiro- agindo pelo desrespeito às regras e interditos, até o fora-da-Iei que cria e impõeum poder rude. Todos são geradores de representações imaginárias, de mitos, e dedramatizações pelas quais seus empreendimentos têm ressonância.

O exemplo americano, a partir dos anos que se seguem à Guerra Civil, é umaespécie de revelador com grande aumento. Face a uma sociedade nova, suportadapor um grande espaço ainda não dominado, formada na diversidade e desigual-dade competitiva, lançada na conquista de suas fronteiras, na realização de suamodernização e no estabelecimento de uma ordem que substitui a da "escravo-cracia". Em tudo, os limites são imprecisos. Em toda parte, o movimento provocaa instabilidade das regras e dos códigos sociais; o indivíduo é exaltado em seusdesempenhos e em sua força de realização, que não excluem a violência. Esteconjunto de condições provoca o desenvolvimento de uma mitologia moderna epopular. Certas figuras tomam forma e força simbólica: o hérói perdido do Sul, oladrão nobre, o reparador de injustiças, o homem armado, tomando-se indiferen-temente fora-da-Iei, bandido social ou xerife. Estas epopéias violentas alimen-tarão, depois, as imagens cinematográficas.

O revoltado, consagrado herói popular, é produzido segundo convençõesbem estabelecidas do imaginário. Sua carreira não tem por origem o crime, mas ainjustiça. É para lutar contra esta que ele entra em rebelião. Sua violência é repa-radora, ele corrige os abusos, ele pilha os ricos a fim de assistir os pobres. Seuempreendimento só recorre ao assassinato em circunstâncias de legítima defesa oude justa vingança. Ele nunca prejudica a seu povo, é respeitado, admirado,encorajado e auxiliado. Ele é considerado invulnerável e sua morte só poder.esultar da traição. Portanto, ele desaparece, lançado em empresas longínquas; elenão morre, ele entra em uma Outra legenda. Jesse James não foi morto, ele seencontra algures, na Califómia; Bi1Jythe Kid não foi massacrado, ele vive entre osmexicanos; assim também Butch Cassidy e o Sundance Kid escaparam a todas asarmadilhas - eles gozam de um retiro pacífico.

Estes "inimigos da sociedade", de seus constrangimentos e sobretudo de suaordem proprietária, tomam-se heróis positivos por efeito da imaginação popular.Eles realizam e dramatizam por suas ações a revanche dos fracos, dos desprovidos,dos humilhados, dos refratários às mudanças. O que eles são e fazem importamenos do que a possibilidade de se identificar a eles e de lhes atribuir uma virtudecompensadora de sua conduta Eles devem possuir ou adquirir caracteresfavoráveis a esta verdadeira transfiguração. Foram notados traços físicos comunsaos rebeldes americanos mais legendários, notadamente a Cor dos cabelos (louros)e dos olhos (azuis ou cinzentos), observando que a simbólica popular os associa àjuventude, à pureza, ao prestígio e ao senso de honra. Seu andar, sua distinção,

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o Podcr em Cena 5.levam a desculpar suas faltas e a glorificar suas proezas; eles são assemelhado. i.llguras das legendas ou das mitologias - Q,uantrill, impiedoso em seu. rei de.mortíferos, místico da violência, guerrilheiro de uma guerra civil perdida, foiconhecido sob o nome de "Apolo louro das planicies". As vestes são escolhld •• deacordo com a encenação, marcando-o como uma personalidade fora do comum; •o costume de fino tecido negro, o chapéu negro, a gravata de lacinho negro e acamisa branca, que os western depois popularizaram; é também a roupade dand)',às vezes, enfeitada com uma flor, em que Billy the Kid se tomou ilustre. A roupanão basta. Insígnias afirmam a soberania destes rebeldes - a bengala de metalfolheado com que Bat Masterson impunha sua disciplina, o arreiamento damontaria e, sobretudo, as armas raras e sugestivas da personalidade. Todos e.te.elementos propícios ao trabalho do imaginário são reforçados pelas circunnln·cias; a epopéia violenta é de curta duração, pois os heróis da revolta morrem joven.- sua imagem, portanto, não é alterada pela passagem dos anos e a lenta corro.1odas rotinas; o espaço aberto à suas empresas é o da" selvageria" , onde a rebelilo .econverte em dessocialização voluntária e se funda sobre a fraternidade viril do.insubmissos à lei e à ordem. Na prática, eles vão ao extremo na crítica selvagem dasociedade, embora sob constante risco de morte. Eles fazem disto uma ac;1odramática que a tradição popular oral relata como uma Saga, uma epopéia daresistência.

Os rebeldes primitivos, os bandidos sociais aparecem em todos os tempo. eem todas as sociedades; E-=-,Hobsbawn abriu a galeria de seus retratos. Eles .10perturbadores da ordem e, por este motivo, se beneficiam da conivência dos que arecusam ou sofrem por causa dela. Eles introduzem um movimento, a inversão devalores, apropriações, hierarquias, em sociedades em que as posições individual.estão estagnadas; eles devastam os códigos e as conveniências. É o caso da Europadas ordens ou estados, onde Farroupilhas insubmissos se tornam heróis do povo.têm acesso ao conservatório da memória coletiva. É também o caso da América duplantações e dos grandes domínios. No Brasil, ao domínio inexorável do.proprietários fundiários, que fixam seus limites territoriais pela negoclaçloarmada, replica a violência dos bandos conduzidos por revoltados, convertido.em justiceiros, em defensores ou salvadores dos oprimidos. Um deles, Lampilo,bandido serni-honrado, conquistou a celebridade no Nordeste, terra das securecorrentes e da fome; a literatura de cordel exalta suas proezas, as canções Olouvam, as gravuras populares o mostram em seu estranho traje. Esta tranlfor-mação do personagem real, violento e rústico, em herói quase sacralizado é devidaà hagiografia popular. Ela estabeleceu um parentesco de aparências entre obandido social e o condutor de revoltas rnessiânicas - numerosas no Brasil- quetraduz as cóleras camponesas em guerra santa. Porém, a realidade profunda"diferente. Um se limita à agressão dramatizada, à provocação predatória, que oressentimento dos desprovidos metamorfoseia em epopéia reparadora; ele nlotem outro projeto, senão a violência dirigida contra os poderosos e os rico •. Ooutro espalha as devastações do fogo místico, subverte, anunciando uma

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sociedade mais justa e mais santa, cuja vinda é preciso acelerar. Ele mobiliza forçassociais por meio do imaginário, ele dá à revolta um conteúdo simultaneamentereligioso e político.

A passagem das indústrias e das cidades ao estado de sociedade não aboliuestas reações; modificou-Ihes as formas e diversificou seus meios de expressão. Omotim urbano, na Europa do século XIX, provocou intermitências do poder,revolveu tudo, durante breves períodos, fez aparecerem governos efêmeros darua. Isto contribuiu à reafirmação da ordem; mas, desta vez, a dramatização nãopermaneceu metafórica, ela se tornou uma tragédia com vítimas reais. O motimtem uma função política; ele fracassa sempre e morre com a repressão, mas fixalimites às dominações; na Inglaterra, durante o longo governo dos conservadores,ele produziu este efeito - e o regime se definiu então como o ~e uma oligarquia,cujo poder é por ele temperado. O motim tem mentores, nascidos das circuns-tâncias. De modo independente, surgem figuras mais solitárias e com melhordeterminação política, como as dos revoltados com teses: os insurretos que Vallestransformou em modernos heróis do povo, os anarquistas que estabelecem oespetáculo de uma relação destruidora com a sociedade. A cidade é sua matriz,como o é para os marginais e para os agentes da criminal idade politica organizada;mas, estes entram no funcionamento da grande máquina do poder, como mostrana Itália a participação da "honrada sociedade" no jogo das competições -" elesservem à ordem, ao mesmo tempo em que se servem de suas fraquezas.

A ofensiva total do terrorismo é uma outra manifestação urbana, atual, doafrontamento ritualizado da ordem e da desordem. De certo modo a Itáliacontemporânea a banalizou, tanto pelo número de assaltos, como por umacapacidade particular de se acomodar. Seus terroristas são, com mais freqüência,jovens, herdeiros de uma violência individual e coletiva que tem uma longahistória. Eles a põem a serviço de uma destruição do Estado e de seus tribunais.Eles têm uma concepção elitista de sua função; têm uma tal certeza que se traduzem uma organização de seita militar; eles dramatizam o contraste entre aclandestinidade e as ações violentas conduzidas como um espetáculo ou, em certascircunstâncias, como um sacrifício. Sua estratégia é reveladora: alimentar o caos nasociedade, manter a insegurança pela agressão física, jogar com a desordem a fimde forçar o Estado à ordem extrema, totalitária, a fim de provocar sua rejeição e depoderem colocar-se "à frente das massas". Isto vale dizer - quebrar os meca-nismos corretores, sem os quais uma ordem chega a se encontrar ameaçada porseus próprios excessos. Morávia, em diversas ocasiões, tentou chegar "à verdadedo terrorismo". Ele acredita atingi-Ia mais na profundidade, refugiada debaixodas conjunturas e dos acontecimentos: os terroristas" começam lá, onde os outrospolíticos acabam, isto é, pela morte, porque sentem necessidade de sacralizarsuas idéias". Assim, o curso da história não se teria mudado fundamentalmente; ogrande debate da ordem e da desordem se relacionaria sempre ao sagrado e aossacrifícios que lhe dão existência e força.

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ATEIAAtualmente, os técnicos participam dos negócios, os tomadores de dec\IOel

(como se diz) racionalizam as escolhas, os planejadores orientam, os dados ale)guardados em bancos e os computadores calculam, a política se torna explicatlva afim de mostrar os limites do razoável; e no entanto a representação continua, Omistério pelo qual um poder se constitui e subordina permanece intactOI"operadores" o formam, efeitos o mantêm e sustentam, práticas rituais marcam oseu lugar _ à parte - e o tornam espetacular. Como no tempo das sociedadelarcaicas ou tradicionais. A entrada na era do desencantamento parece não haverabalado nada a afirmação de Valéry de que o domínio do político é aquele em que"tudo se sustenta apenas por magia" conserva sua força. A reivindicaçao deracionalidade, a tecnização dos meios do poder não modificam este campo de aCiloem que a razão e a ciência têm pouco a ver e a fazer. Porque a relação polldcapermanece de uma outra natureza, que ela se estabelece sobre outra coisa: 01dispositivos simbólicos, as práticas fortemente codificadas conduzidas segundo airegras do ritual, o imaginário e suas projeções dramatizadas. É através dell ••artifícios que se efetua o domínio da sociedade, enquanto que o da natureza lerealiza segundo convenções e procedimentos diferentes: produzem as imagens deuma supra-realidade que não coincidem com aquelas que a realidade social

poderia impor - se isso fosse possível.

Fellini, modernizando uma velha verdade, projeta a sua obra a fim de exaltar ogigantesco espetáculo que o homem se auto proporciona. Disso, o poder atual temsua parte, herdeiro de costumes bastante antigos, usuário e inventor de noVOIinstrumentos resultantes de desenvolvimentos acumulados da técnica e daorganizaçãO. Permanece situado em outra cena:, separada de todas as que a vidacotidiana compõe, ocupada por atores que sua luminosidade transfigura, Ai,despontam palácios, símbolos são expostos, rituais são cumpridos, realizam"'1paradas; como no passado próximo e longínquO. Com efeitos aumentadOI emdeterminadas circunstâncias, tornadas mobilizadoras pelo fato das Comemo"rações ou dos acontecimentos, pois as massas podem agora ser assoeiadal tdramaturgia politica. Os regimes totalitários dispõem de regentes que fazem omelhor e mais constante emprego desse ator coletivo, maciço.

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A demonstração de poder recorre sempre à manifestação de poderio. Mas estaúltima tornou-se mais impressionante. Ela resulta de aparelhos, de dispositivoscomplexos, do comando de forças à ação temível ou terrificante. Ela afetasobretudo a existência de cada um dos indivíduos, na medida em que o Estadomultiplicou as suas intervenções e funções. A função política está mais aparen-temente ligada ao poder de vida, ao poder de morte; e apenas ela, já que nãodepende mais do decreto dos deuses ou do consentimento de seus ancestrais. Osgovernados se reconhecem menos como representantes do que responsáveis pelascondições, boas ou más, que regem o Curso de sua vida. Sob esse aspecto, eles secolocam numa relação semelhante àquela que' estabeleciam os poderes tradi-cionais, mas a justificam pelos meios racionais e técnicos à disposição dosgovernantes, não mais através dos meios rituais recebidos com a ocupação política., I

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As figuras atuais do poder implicam a afirmação da competência. Esta podenão bastar; ela é mantida no interior de estreitos limites em razão da multipli-cidade crescente de assuntos; ela não cria sozinha a adesão e a confiança daspessoas - ela contribui para isso. Suas aparências são mais de ordem técnica do quede ordem simbólica, diferentemente das que revestia nas sociedades do passado.Ela requer sobretudo Q recurso a processos de fabricação dos responsáveis, aoperações que efetuam a pass,agem da cena social para a cena política e tornandomanifesta a mudança de papel. A eleição e ainda menos a designação, ratificada ounão nos casos dos regimes totalitários, não chegam a provocar essa transformação;elas a confirmam ou a tornam possível a fim de que se façam e se imponham àspersonagens políticas do primeiro escalão e notadamente àquela dentre aquelasque simboliza o poder supremo. Devem ser mais competentes do que apenasmandatários, devem servir de apoio aos anseios e às representações coletivas.Continuam a se beneficiar do capital simbólico produzido pela sociedade econtribuem para a sua formação. Para alguns dentre eles, a morte não suprime essafunção; ela faz do "grande homem" morto um Símbolo político puro. Nos paísescomunistas, esta prática é institucionalizada; os funerais de dignitários sãocaracterizados pela glorificação dos desaparecidos, marcam o seu acesso a umaOutra vida, à imortalidade cívica, uma vez que os heróis não morrem. O mortocomo indivíduo desaparece por trás da significação política de sua vida; ele setransforma numa imagem, a de um modelo de inspiração para as gerações futuras.O político alimenta, assim, a mitologia que lhe dá sentido e força.

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A multiplicação e a difusão dos meios de comunicação modernos modifi-caram profundamente o modo de produção das imagens POlíticas. Elas podem serfabricadas em grande quantidade, por ocasião de acontecimento ou decircunstãncias que não têm necessariamente um caráter excepcional. Elasadquirem, graças aos meios audiovisuais e à imprensa escrita, uma força deirradiação e uma presença que não se encontram em nenhuma das sociedades dopassado. Elas se tornam quotidianas; isto quer dizer que elas se tornam banais e sedesgastam, o que exige renovações freqüentes ou a criação de aparências de

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novidade. ENta primeira e lumirla enumeraçlo de no VII condlçOel d. funcio·namenro da imaglstica polltlca balllll para marear as diferença. com li Iltua;t ••anteriores. O universo político parece mais aberto ao ver dOI /itovernadol, ti,perde urna parte do mistério que se ligava a sua natureza de mundo oculto.secreto, mas ele continua assim, o que acontece é que suas apartmdal cada diamanifestadas provocam uma queda de curiosidade e um certo desencantamentO,As técnicas audiovisuais de que dispõe o poder permitem uma dramatlllçlopermanente, ou quase, e, assim, menos dependência do ciclo anual do cerimonialpolítico. Melhores equipados para produzir imagens, os governantes le encon.tram, entretanto, na situação paradoxal de ver essa capacidade enfraquecer-se porseu próprio uso. Eles têm que aprender a dominar uma nova tecnololll dosimbólico e do imaginário, uma nova forma de dramaturgia polftica. Exprell&l. ,fórmulas foram lançadas para qualificá-Ias (ou desqualificá-las): "médlapelltl-que", "art op", indústria do espetáculo político.

R. G. Schwartzenberg propôs essa enunciação e dirige a denúncia do que e1.designa. Segundo ele, as idéias foram substituídas por personagens que captlm •atenção e sacodem a imaginação; eles têm empregos em um repertório em querepresentam o herói, o homem comum (identificável com o governado "médle"),o líder de "charme", o pai, a mãe (chamada de "mulher política''). A.circunstâncias fazem e desfazem esses personagens, provocam a suceulo depapéis, condicionam as figuras diferentes da autoridade. A passagem se dá. de um.arte política mais teatral e melhor ajustada ao tipo de poder ilustrado pelo heróipara uma arte política moldada pelo cinema e pela televisão. Para um modo derepresentação que se organiza à maneira do "star system" e encontra na impren ••

, um agente de reforço. Segundo Schwartzenberg, a dramaturgia politica contem-porânea se diferencia cada vez menos do espetáculo de imagens; o poder estA "emevidência" .

Convém reiterar que qualquer universo político é um cenário ou mal.genericamente um lugar dramático em que são produzidos efeitos. O que mudousubstancialmente, há algumas décadas, foram as técnicas que podem ser utilizada.para tal finalidade, cujo emprego se modifica segundo os tipos de sociedades, O.regimes totalitários a elas recorrem, mantendo uma forte sacramentação do podlr,um aparato cerimonial, uma teatralização das grandes manifestações coletlvlIl 01meios de comunicação permitem sobretudo provocar a imitação, suscitar e exalcara conformidade. Os regimes que permanecem, em graus variados, baseado. nopluralismo e na competição fazem um uso mais complexo e mais diversificado d.nova tecnologia política. Foi principalmente a seu respeito que Schwartzenbel'lelaborou a sua teoria do Estado-espetáculo. Eles têm a obrigação comraditOril dimostrar a cena política, mantendo à distância os efeitos de perspectiva. a.dramatizações sem as quais o poder se auto-aboliria. A civilização dos meio. d.comunicação perrnite-lhes dar a ver mais do que a pensar, conduzir uma poUtiaada imagem que se toma necessariamente emprestado à arte do espettculo. O

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poder não é mais associado a uma figura longínqua, moldada pelo mito inicial, oimaginário coletivo e a tradição, mas a uma elaboração que dá aos responsáveisuma presença e um renome, fazendo-os personagens capazes de provocar a maisampla adesão. A cena parlamentar não é mais um universo quase fechado, ela éproposta aos olhos dos telespectadores que se tornam efetivamente espectadores àdistância do drama montado para eles - o mais freqüentem ente sob a forma deuma breve confrontação das "estrelas" políticas. As eleições, além do efeito de"suspense" que produzem, são ocasião de manifestações festivas, de campanhasorquestradas por managers, de dramatizações programadas. Os debates têm aaparência agnóstica dos desafios instituídos nas sociedades tradicionais; assondagens repetidas ampliam a competição e fazem da incerteza uma forçadramática; as previsões difundidas a partir da comunicação dos primeirosresultados levam o drama a seu ponto máximo de intensidade, 'em seguida a suaqueda. Sem a televisão, o rádio, a imprensa de grande circulação, esta teatralizaçãoda democracia perderia sua força e seu alcance nacional; ela seria sobretudoconduzida nas múltiplas cenas locais. No entanto, é preciso lembrar a constataçãojá repetida: as possibilidades de multiplicar as imagens políticas introduzem ohábito e o desapreço dos indivíduos-espectadores.

Para limitar esse debílitamento, o poder e seus adversários devem recorrer atodos os recursos atuais da dramaturgia polí tica, provocar a renovação (e tambéma inflação) das imagens. Nos períodos turbulentos, o acontecimento cria asocasiões e força a atenção pelo que contém de inesperado ou de inquietante. Nosperíodos mais calmos, os pseudo-acontecimentos fabricados servirão para sebuscar os mesmos resultados: operações (ou "golpes") que recorrem ao efeito desurpresa, confrontações de líderes, sondagens que exprimem a variação daspopularidades, personagens políticas que exageram o seu papel e que exibem suasemoções, conferências de imprensa que comportam revelações reais ou aparentes,ete. Na sociedade dos meios de comunicação, a empresa política se alimenta doacontecimento, é o motor das dramatizações que a constituem e mantêm. Nassociedades anteriores era o contrário; o poder dramatizava a longa duração, amanutenção da tradição, a perenidade de seus próprios sucessos e os aconteci-mentos se achavam de qualquer modo ocultados pelo artificio dessa encenação.

A modernidade se caracteriza não apenas pela irrupção do acontecimento e doefêmero, mas também pela consideração do futuro, das tendências provocadorasde grandes mudanças; as simulações e os cenários do futuro introduzem umatensão dramática no exercício da vida política presente; aí, eles incorporamtécnicas tranqüilizadoras (por exemplo, traçando o horizonte para o ano 2000) e oaleatório. Sob este aspecto também as sociedades anteriores manifestam suadiferença; elas se apoiavam no passado, reiteravam certos acontecimentos,comemoravam e celebravam. Nos dois casos, o efeito pretendido é o mesmo: trata-se de apaziguar o presente e de tranqüilizar, quer acentuando-se a continui-dade, quer tornando-se o futuro menos temível dando-lhe uma forma definida eaceitável. O poder conserva a sua função de desativar as angústias e os medos.

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Ap61 haver marcado ai dlllemelhançal. cabe indicar o que ~ e •• enclalmtnWmantido no uníverso polltlco e as contradições que disso resultam, A cenolrafllpolltica, a produção de imagens e de efeitos, os processos que alleluram Ipassagem ao estado de detentor de poder continuam sendo necel.ldadet. Âocupação simbólica da função soberana deve ser conservada. ainda que liaparências técnicas sejam multiplicadas. Ela pode ser atribulda a uma figura quereina, mas não governa ou não conduz a polltica corrente; o que ~ atualmente ocaso dos regimes de monarquia mantida e, num grau menor, das "repóbllclImonárquicas". Uma dissociação separa então. pode-se dizer, o poder supremo,guardião dos simbolos, recurso extremo e/ou responsável por domlniol re.erv ••dos, pelo poder de gestão quotidiano. Este está sujeito diretamente ao aI.alto ducriticas e às reações da opinião; opera à maneira de uma tela protetora, Em .uuformas modernas, essa partilha é semelhante àquela que indica as delcrlç6'1antropológicas de certas sociedades tradicionais. O soberano ou o chefe é. entla,um personagem definido pelo simbolismo poderoso de que ele é o sustenttcula •uma figura essencialmente positiva; ele enfrenta sozinho os perigos do poder, el ••o fiador do bem coletivo, ele está situado fora dos conflitos que poderiamcomprometê-Io e enfraquecer sua imagem. Um dignitário, que é de alguma formaseu sósia acessível e vulnerável, intervém na gestão dos negócios e assegura ••regulamentação dos conflitos; preserva a figura aparente do poder de tudo O quepoderia alterá-Io na condição de símbolo de ordem e de unidade.

Os poderes modernos não eliminaram os investimentos míticos necessàrlolaseu funcionamento; eles mudam as formas e se tornam sobretudo reivindicadorelnos períodos de crise em que a "magia" política sofre uma crise de eficácia. Doinício do século XIX ao fim do século atual, os mitos políticos proliferaram, .1colocaram em campos opostos e depois se apagaram uns aos outros. Eles nascemprincipalmente das revoluções, exaltam o corte que levou os "antigos regime,.",abolem o simbolismo e as figuras imaginárias àqueles. Mostram os novos ator ••históricos _ a nação, as classes, o Estado moderno - e os transformam ementidades geradoras de religiões políticas. Eles fazem surgir do novo univerlOindustrial e urbano as figuras da mudança, quer para exaltar o progresso e lialegorias que compõem o seu cortejo (Ciência, Tecnologia, Indústria, Com~rcio),quer para anunciar o advento de uma outra sociedade provocado pela força elosocialismo. Eles associam ao triunfalismo dos burgueses conquistadores o tema ell"missão civilizadora", do exemplo dado para ter acesso ao caminho da hlltôrllprogressiva, de onde nascerão por reação e por rejeição as imagens da libertac;lo,Uma imagística tão ativa que terminará por alcançar o próprio cerne dusociedades dominadoras contra as quais se dirigia, por operar em seu pr6prlOseio estimulando as diversas reivindicações de descolonização anterior, AIdesilusões e as crises da modernidade fazem surgir ou ressurgir outras figura. domito: a raça, o povo, as massas, o império, a missão histórica. Elas dramatizam 10extremo, mobilizam, lançam na aventura de uma nova história a ser construlda, Aexpansão econômica das últimas décadas provoca o retorno das imaKen. el.

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sucesso e de desempenho, de superação constante do impossível. A ciência, porsuas aplicações cumulativas e contínuas, a racionalidade das técnicas e dasorganizações, as conquistas do futuro tornam-se as formas constitutivas desseimaginário otimista. A chegada daquilo que foi rotulado de sociedade de consumofez da vida quotidiana a cena em que se multiplicam os efeitos dessa imagística, emque se exerce a sua fascinação; tudo parece tornar-se acessível e consumível: ascoisas, os serviços, os símbolos, o tempo (sob a aparência de lazer), o espaço (graçasaos novos meios de mobilidade) e até mesmo a vida (pelo recuo das fronteiras damorte e, de uma certa maneira, a escamoteação desta última). O consumidor apagao cidadão; o que produz, segundo as interpretações que somente são contradi-tórias nas aparências, uma despolitização progressiva ou uma politização doquotidiano, portanto, generalizada. As contestações dos anos sessenta, em seguidaàs freadas de crescimento econômico no curso da última década, dissipam essaimagem. O debilitamento das ilusões ainda não deu lugar a novas figurasimaginárias; ele sobretudo despertou os temores e os medos e reorientou a atençãopara os lugares do poder.

O investimento mítico permanece sendo uma necessidade política, mas astransformações rápidas das situações nacionais e internacionais o tornam cada vezmais difícil e incertos os seus resultados. A sucessão dos mitos capazes de"sustentar" os governados, de provocar seu consentimento ou sua conivência, seacelera. O tema da mudança se torna, ele próprio, um componente maior queserve ou contesta o poder, eIY!versões concorrentes ou opostas: as de umamodernidade sem ruptura, de uma "desconstrução" revolucionária, de umacriação contínua de um novo tipo de sociedade. Nenhum dos atores políticosconfrontados pode ignorar que a mudança gera imagens que desempenham umpapel decisivo nas estratégias de poder. Esta acentuação, que impõe aosresponsáveis encarregados e aos pretendentes, que apareçam na figura do melhorcondutor da mudança, não exclui a manutenção de imagens mais permanentes,como as que afirmam a unidade (da nação, do povo), o agrupamento, arcpresentatividade, a detenção do mandato majoritário.

Exigências contraditórias - e portanto papéis e figurações sem grandesligações - se impõem aos atores políticos do mundo presente. Nas sociedades emque a técnica, a economia e a organização prevalecem ou estão em vias disso, elesdevem parecer capazes de comandá-Ias. Eles estão submetidos à racionalidade dacompetência; é em nome desta que eles fixam o limite do possível e do razoável,que eles determinam os objetivos, que eles escolhem e tomam as decisões.Entretanto, eles só podem dar a impressão de poder recorrendo ao imaginário, aoirracional, ao simbólico, às armadilhas das esperanças dos governados. É a lei dopoder, constante, mas, mais pesada nas circunstâncias atuais. Nos países maisdesenvolvidos, a sociedade se transforma em uma "grande sociedade anônima"onde as relações se despersonalizam: o realce da autoridade só pode ser obtidopela personalização dos que a detêm. Os tempos de crise ou de dificuldades pouco

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"solúveis como 11 cmf'rentadal pelol paliei em desenvolvimento, requeremtambém (e em grau superior) urna personalização e uma dramatizaçlo do podll',A gestão técnica não basta para produzir estas imagens, tanto quanto nl.o chllaldar a ilusão de um domínio com pleto. Ela tenta programar o futuro, mas a direçlodo presente lhe escapa em grande parte. Pela primeira vez no curso da hilt6rla,tudo está em transformação, no interior e no exterior de cada nação. O movimentoassalta as estruturas e as organizações em toda parte. É sobretudo do exterior quevem o inesperado, que pode tomar o aspecto incompreensível ou irracional. AInações desenvolvidas dominantes, que impuseram seus interesses, seus c6digo.,sua racionalidade, até uma data recente, se espantam (no sentido etimo16gico) coma erupção de acontecimentos indecifráveis segundo suas categorias. Elas delco·bremo imprevisível (assim como a crise petrolífera duradoura) e o inexplictvel(assim como a força de uma religião - o Islã - capaz de transtornar as sccíedadese de abater ou ameaçar os poderes constituídos). O aparecimento do incontroltvelenfraquece a imagem do poder técnico, e o conduz a se revestir de aspectos mal.geradores de confiança, a recorrer a meios que contradizem sua racionalidacle.

Estes meios são dados pelas mídia modernas que lhe impõem sua pr6prlalógica. Nas sociedades tradicionais, sociedades vocais, as dramatizações sociai. epolíticas são, de algum modo, da natureza das coisas; elas são feitas defuncionamento e manifestações quase cotidianas. A generalização do escrito, doimpresso, modifica profundamente esta situação; é o recurso a um meio que lipode chamar de "frio", parodiando as categorias de Mac Luhan. A demonstraçlosubstitui a argumentação e, a tomada global, imediata e emocional substitui Oabstrato, o analítico. A idéia prevalece sobre a imagem, a ideologia sobre o.dispositivos simbólicos e as práticas que fazem ver. A revoluçao eletrônica criauma nova ruptura e provoca a volta parcial de antigos hábitos. O rádio estabelece aonipresença da palavra, permite a dramatização sonora, torna possível a domina"ção de audiências numerosas e o estabelecimento de uma espécie de radiocracia. Atelevisão provoca a invasão progressiva pela imagem que suplanta a palavra; a telatorna-se o lugar onde tudo pode ser mostrado sob um aspecto dramático para quese formule um julgamento, de acordo com o conselho de Maquiavel, a partir doque é "visto". A persuasão política depende menos da argumentação do quedaquilo que é manifestado espetacularmente com o auxílio da arte da televisão, Apolítica se faz pela difusão cotidiana de imagens e "o meio é a mensagem". Opoder dispõe assim de uma verdadeira tecnologia das aparências, que lhe permitIproduzir ao mesmo tempo a impressão de uma certa transparência; de suscitar aconivência passiva ou ativa de numerosos governados-espectadores com osentimento de uma liberdade de determinação - em face da imagem introduzldano universo privado - e de uma possibilidade de participação - graçu •.•intervenções que lhes são propostas. Os espetáculos da tela impõem também umnovo tipo de ator político (o "telepolítico") nas sociedades de regime plurali.ta ••uma nova apresentação da figura da autoridade suprema, no caso dos reglm ••totalitários. Eles permitem uma dramatização permanente, adaptável às circun ••

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tâncias e aos objetivos. Eles trazem para a dramaturgia política uma unidade delugar, sendo visíveis no mesmo momento em um sem-número de lares. O poderdeve se manter onde está a imagem, e, ele é tentado a apossar-se do seu controle senão do monopólio.

Ás "representações" pelas quais os governantes atuais procuram a adesão ou asubmissão dos governados, replicam as que introduzem a desordem na ordemestabelecida, o movimento nas instituições conservadoras, a dissidência noconformismo. As mídia dão a capacidade de politizar toda atividade, e paralela-mente, a cOntestação poderá utilizar tudo que é possível dramatizar nos espaços dasociedade que lhes são acessíveis. Os regimes totalitários tendem à eliminaçãocompleta destas zonas abertas; eles constrangem - como já mostrava Dostoievski-à ação subterrânea, à marginalização e à dissidência; tanto maior a intensidadedramática e o valor exemplar do que se torna visível. Os regimes pluralistas, demodo desigual, em função do grau de liberdade que instauram, ligam asdramatizações da oposição instituída às do poder. As co'nfrontações organizadaspelas mídia, debates, sondagens, manifestações espetaculares dos partidos,reuniões, campanhas eleitorais, debates parlamentares, e os efeitos de surpresa eas palavras inesperadas revelam como esta ligação é estreita, impossível deromper-se, pois que resulta da própria natureza do sistema político. A princípio,os adversários se enfrentam num mesmo terreno, recorrendo aos mesmos meios.Seguem-se dramatizações particulares, às vezes infrações demonstrativas, quereforçam a ação normal da oposição - multiplicação das cadeias de transmissãopor rv, implantação de emissoras - "rádios livres", publicações circunstanciais,iniciativas culturais propícias a uma encenação política, etc, A contrapolítica devetambém fazer-se política da imagem e do imaginário, produzir efeitos e serprovocadora de emoções.

Sob este aspecto, o novo radicalismo italiano é a ilustração mais notável; seualcance ultrapassa de muito a importância estatística definida por seus efetivos epelo número de seus representantes eleitos. Deste grupo, diz-se que em poucosanos se tornou o "empecilho das viravoltas" do mundo político, embora se mostredefensor dos direitos CÍvicose do estado de direito. Ele também se apresenta de outrosmodos, e em múltiplos lugares de reivindicações, entre os que, os partidos bemestabelecidos classificam como secundários e onde se encontram em causa asexualidade, a ecologia, e a engenharia nuclear, a instituição militar, e a práticaparlamentar bilíngüe. Ele inventa uma dramaturgia po!ftica estranha à tradiçãoitaliana, ele faz da imaginação e da surpresa os principais instrumentos de suaação. Os procedimentos do movimento radical foram denunciados por esta razão;eles recorrem ao exagero a fim de chamar a atenção; eles levam à prática doespetáculo de provocação; eles criam acontecimentos que, considerados pelasmfdia, têm uma ressonância e uma publicidade às quais um pequeno partidoraramente, ousa pretender. Rompendo as boas maneiras, não se submetendo àsconvenções, o radicalismo italiano recorre à transgressão do quadro da legalidade

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• recul. O enclauluramento Id.o16lico • partldtrlo. Seul CrltiCOI conllderam ~\llele não mantém mal. do que um I:!untamento de bufOes. O qualificativo 16 IlrIaaceítável se compreendido na acepção técnicajá precisada. Aplica-se, POIIIIOI qUIltom pOl' função revelar espetacularmente o que esconde a fachada das locledl4l',mostrar a desordem mascarada pela ordem, fazer surgir dramaticamente Omovimento que escapa à dornesticação pelas estruturas, instituições e cOltuml.,Neste sentido, o radicalismo italiano proporia menos uma alternativa do qUIprovocaria a volta do Perturbador, agente da liberdade, na cena polítlca contem.porãnea,

A dramatização generalizada, ultrapassando, portanto, os limites do campopolltico estritamente definido, é uma característica das sociedades eletr6nlcUIonde quer que nasça, as mídia podem garantir sua difusão, e, seja qual for IUIorigem, ela pode receber uma significação política. Das formas da vida cotldlanlaos produtos e eventos culturais, tudo pode contribuir, fornecendo um pretextoou um suporte. Certas iniciativas de ritmo desconcertante marcam claramente Ivontade de utilizar todas estas possibilidades. O teatro moderno, que ampllol.llUIaudiência com o auxílio das mídia, recorre entre outros processos ao. diprovocação e da zombaria; ele faz prevalecer a imagem, a sensação, a inten.idad.dramática sobre a idéia e a demonstração. De acordo com Adamov, a autoridade"de cima" está ligada ao jogo de forças obscuras e imprecisas, à animaçlo d.personagens singulares, de seres-limites. O teatro de zombaria choca, joga com Irevolta, opõe a liberação pelo onirismo à acomodação imposta pelo "real". ComArrabal, o teatro-pânico restabeleceu o reinado do barroco; ele utiliza a profulloe a confusão, o excesso e a falta de medida, o grotesco; libera as forças cauvu,destrói os interditos e as inibições, procura o choque selvagem. A violenélasimbólica torna-se de novo o meio de exprimir a repulsa. Nestas novas verl&"do drama, afirma-se a vontade de uma volta às formas primitivas do teatro; Iimprovisação (o "happening") e o irracional aliam-se ao cerimonial, ao rituall Oefêrnero e o dionisíaco encontram-se exaltados. Assim reaparece, pelo artiftclo·dt.cena e pela arte do comediante, a função de que se encarregava o Buflo rhulInas sociedades tradicionais. É sempre o jogo da desordem oposto a todos os faCOrl.de ordem e conformidade. Derivado da prática do teatro (e, notadamente da dtBrecht), a "arte sociológica" concebida por F. Forest, H. Fischer eJ. P. Th6venoctenta inserir a dramatização critica nos quadros da vida cotidiana. Deaejammergulhar de novo a arte na realidade social, "até o pescoço", tirá-Ia da situaç&oque a fez imagem de uma "boa consciência da sociedade política". Seu.procedimentos são a criação artificial de acontecimentos, a provocação, 00inesperado cuja erupção se dá nos lugares mais diferentes e freqüenternente mal.comuns. Trata-se de desbanalizar, de romper a passividade em face de reaç&l.determinadas pela sociedade, de fazer surgir as perguntas desconcertantes, Ocampo fechado da arte é ultrapassado e freqüenternente perdido de vista. t o papeldo "Trickster" que reaparece através dessas experiências, desses drama. provo-cados. A teatralização do cotidiano destroça a magia dos poderes, anula o ef.lto

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das aparências, perturba as conivências geradoras de conformidade. O fim:transformar a sociedade passiva em uma sociedade questionada.

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NÇ>entanto, todas essas dramatizações permanecem produtos da arte ou deartifícios. Há outras que nascem mais espontaneamente. Uma campanha eleitoralpode tornar-se Oportuna para introduzir a zombaria na vida política ou paraformular perguntas consideradas incongruentes. A reivindicação ecológicatambém soube utilizar essa possibilidade, entre outras, tanto por ocasião da últimaeleição presidencial na França, como durante as primeiras eleições européias. Asformas de ação, que se querem diferentes das consagradas pelos usos políticos,são, de um certo modo, ritualizadas e o laço com a natureza é sacralizado. QuandoR. Dumont foi candidato à Presidência, ele fez menos a solicitação de um cargo doque aproveitou a ocasião para uma demonstração por atos simbólicos; ele nãoconduziu uma candidatura, ele exerceu um sacerdócio. A terra, a água, o frutotornam-se as espécies sob as quais se realiza então a relação de comunhão. O que éposto em movimento, dramatizado, mostrado, é uma nova mitologia naturaloposta às construções produzidas pela Razão dos técnicos e organizadores. Estacontestação "mitecnologisa", a fim de fazer renascer o sentido da empresacoletiva por um novo casamento do homem e da natureza. Estas imagens nãoteriam tido força sem a difusão pelas mídia, tanto quanto por uma espécie deparadoxo elas adquirem uma existência parcial por meio do que elas rejeitam.

o acontecimento, as circunstâncias e as conjunturas permitem e provocam asreivindicações, as contestações radicalizadas expressas de maneira espetacular edramática. As incertezas e as inquietações do mundo rural se dizem e semanifestam pelas demonstrações camponesas - colunas de homens e de máqui-nas, aJuntamentos para fins desorganizadores -, que relembram o protesto global,atravessando os séculos desde as primeiras insurreições dos miseráveis. No Larzac,o solo despojado, rude e belo em sua pobreza, foi a cena onde se afrontaram emum drama de feitura antiga os homens e suas ovelhas, guardas de uma terra e deum modo de vida, e, homens de armas simbolizando uma civilização geradora dedestroços; os jovens do povo, que tinham vindo auxiliar, compunham o coro,aprendendo a lição com um acompanhamento de música pop. O tempo gastou oefeito dramático, mas o último ato não foi desempenhado. Sem a "retransmissão"que as midia asseguraram, a eficiência simbólica desta resistência teria sidorapidamente enfraquecida. Não somente o camponês, mas também o operárioreencontra o uso de processos que a ação sindical organizada tinha tornadoacessórios. Os "paroquianos de Palente" - os trabalhadores da empresa Lip _mantiveram a atividade e demonstraram a possibilidade de modificar a ge-rência; na invenção, na dramatização, eles se tornam símbolos, embora seusucesso seja parcial e frágil. A grave crise da siderurgia francesa provocou o recursoa meios excepcionais de exprimir a recusa, entre os quais aqueles que implicamem dramatização e simbolização. Assim, quando os operários de Longwy

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ocuparam o primeiro andu di Tom 11ft'II,ele. pu.eram .ullçlo 1 vl'rI .m.h.lllr elperacullr e Ilrn!flcltlvo de IOU rrabalhe, PC)!.que 01 materIal. daqUI'. 'edlftclo ~ feito foram em parte ua!naclOAem SUa8 adarias. Assim tamb~m, a hWl,'marcha de Lyon a Paris dos assalarlados da Alsrhorn Atlantique para trll.r umlprtiç!o a sua direção foi uma prova C" um percurso demonstratlvo'l 1\111reivindicações safam do âmbito fechado das negociações, para se tornarempúblicas e não mais reduzidas ao estado de mera informação.

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O evento encerra urna carga dramática extrema quando alia a de.ordem do.homens à desordem da natureza. O acidente sério ocorrido nos Estado. Unido ••na Pensilvânia, nos dispositivos de uma central nuclear, o demonstrou. Durant.vários dias, perdeu-se o controle técnico e o desastre tinha aspecto de deltlno ratal,O poder se encontrava mais ameaçado por esta erupção de forças originada. damatéria do que por subversões originadas pela confrontação das forçu .oelal ••políticas. Ele se encontrava de novo, e repentinamente na situação dOI podlr ••tradicionais responsáveis tanto pelo que atinge a ordem das coisas como pelo queafeta a ordem da sociedade. Nossa época, portadora de ameaças, é, alérn dtl'lo.propícia à politização das catástrofes. A civilização das imagens li tornaimediatamente e em toda parte presentes; elas se tornam a demonstração de um.desordem levada ao paroxismo; elas podem atuar contra os governo I que nlOprovarem sua capacidade de dominá-Ias. Elas tomam o caráter de signos e IlIlm ••transformam em aposta no afrontamento dos poderes.

A cena urbana está cada vez mais aberta às manifestações pollticl'. Nusociedades totalitárias, ela é vigorosamente controlada; ela ~ reservada licomemorações e aos festejos pelos quais o regime regula o seu próprio culto. Nusociedades pluralistas, é antes a situação inversa que se estabelece. AI, 01 poder ••têm um acesso privilegiado às mídia, às telas sobre as quais se projetam as ImlJln.políticas. A cidade e a rua permanecem nas cenas em que o protesto desdobra'UIIdramatizações; quando estas têm suficiente arnplidão, forçam a entrada du mldia.Toda capital de longa história tem lugares, monumentos, obras e traços que.1O 10mesmo tempo "memórias" e suportes de poderosos simbolismos. A sucelllO'.'regimes, como a das revoluções e dos movimentos sociais os fizeram. No pr •••••eles balizam os itinerários pelos quais o poder conduz suas comemorações a o,,"a contestação" expõe", em marcha, as rejeições e as reivindicações. Em Pari. ,OArco do Triunfo e os Campos Elíseos, de um lado, a Bastilha, a RepObllca '. INação de outro, revelam de modo particular esta apropriação antagonl.ta, do.espaços simbólicos da cidade.

O motim urbano era uma explosão. Nas sociedades de liberdade I manlt, ••tação de rua era um meio instituído ou quase, codificado e rituall:ndo de mo ••espetacularmente a oposição a certas decisões dos governantes, ou de rlvlll' p'.lIrecurso a uma dramatização a não aceitação de uma sltuaçlo econ{)mlc:a"oolà1,' Oobjetivo é definido por temas simples, dizeres levado. em bandelrola •• rolh ••• ",

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evocações por figurações e insígnias. O percurso escolhido não é neutro, ele compor-ta necessariamente etapas significativas e joga com a simbólica dos lugares. O cortejoé uma sociedade de protesto, em movimento, mostrado na cena da rua. Ele lembraos desfiles urbanos de outrora, em cuja ocasião a sociedade se mostrava. Ele éregulado segundo convenções precisas; à frente se encontram, debaixo dabandeirola principal, as figuras sindicais e políticas de mais nomeada, depois,segundo as circunstâncias, os eleitos, com as insígnias dos seus cargos e as"celebridades"; vem em seguida as delegações representativas das profissões e dasregiões e, às vezes, grupos de animação e os membros de movimentos minoritáriosou marginais. O cortejo manifesta os poderes da contestação, mas não deixa deobedecer a uma ordem estrita; tudo é regido pelos organizadores a fim de que oimprevisto não possa alterar o sentido da demonstração, nem provocar suadegeneração em motim. Mantida a sua ordem e o seu número, cujas divergênciasde avaliação marcam a importãncia, tem-se uma medida do sucesso. Esta peçapolitica desenrolada na rua, cujos responsáveis dizem que de início ela os colocana" situação do ator" que espera o levantar da cortina, é montada para ser vista nolugar, transmitida pelas mídia e comentada. Ela informa e ensina; ela tem a formade um drama político exprimindo de modo diferente do fato o discurso políticoprofissional, as críticas e as reivindicações; ela tem uma função liberadora, emboraficando nos limites da ordem. A subversão não é sua finalidade normal; elainforma o poder, mas não o ameaça imediatamente; ela põe em cena umacontestação controlada, impedida de voltar ao estado selvagem.

Em circunstâncias ordinárias, a manifestação é uma das peças da máquinapolítica, Quando este funcionamento rotineiro é entravado, durante os períodosde crise e de tensão crescente, a dramatização pública se torna menos mimética eseu resultado é mais incerto. A fronteira que dá para a rebelião pode serfranqueada a qualquer momento, ao azar de um incidente, de um desarranjo dojogo antagonista das forças de contra-ordem, de um lado, e da ordem do outro. Aviolência simbólica e a violência real coexistem. A França de 1979, na Lorena e noNorte, que foram mais duramente assolados pela inatividade, conheceu esta frágilligação do drama vivido - gerador de reações que não dependem mais do jogopolltico - e da dramatização que exprime a rejeição. Os desfiles mobilizam todauma população, inclusive as crianças. Em certa época as cidades se transformamem cidades mortas, toda vida dobrada por detrás das fachadas cerradas. Ouniverso revoltado se isola simbolicamente, rompe as comunicações, bloqueandoa circulação por estrada de ferro e por via rodoviária, fechando os postos dasfronteiras. Ele cria, em parte na ilegalidade, seus próprios meios de informação; elefalseia as mídia estabelecidas, difundindo sua versão dos acontecimentos, e asreinvindicações que justificam a ação empreendida. A crise local é mostrada sob oaspecto de um drama com personagens e decorações reais; ela é oferecida à visãodo resto do país; ela se torna provocadora de emoções e de solidariedade. Adinâmica das forças postas em movimento não é inteiramente controlável; emcertos momentos, os parceiros afrontados não têm mais o seu domínio, e a

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Implollo le produl, De repentl, por allunl mornentos, a demonatraçlo revtltl Oalpecto ele um motim urbano, e 11 manult'nçllo da ordem, () de uma reprelllo, Olimiar t'1té.tranlpOIW, wIl8trangendo a tomar o risco de ir mais longe ou encontrt.r() caminho das cOllciliações e da dt'sdrarnaliz,ação.

A rua das cidades atuais volta a ser um cenário onde se produzem(\C"rnollstrações, não mais submetidas às regras e convenções das innitulç&l.políticas e sindicais. Elas exprimem uma recusa mais global e por iS80 mesme mal.imprecisa. Parecem a expressão da marginalidade, da transgressão provocadoraou de pura violência. Suas formas são múltiplas e seus efeitos desigualmentesubversivos. A animação dos espaços públicos admite uma critica espontlnea efigurada, que zomba e ridiculariza, como no tempo em que os saltimbanco.ocupavam os tablados de certos locais parisienses. Às vezes. ela torna a encontrar Ot'sp[rito dos "jogos" dramáticos da Idade Média, sacraliza e ritualiza. não mal.para alimentar o fervor, mas para contestar pela alegoria e pela cerimônia asociedade do poder e sua civilização. O mesmo que fez o "Open Theatre" nas rUIIde Nova lorque, nos mesmos locais onde as seitas expõem as provas de luadissidência e da outra vida que pretendem instaurar. A praça pública é tambêrn Oespaço das provocações, dos "dramas" construídos sobre a ruptura dos código.,das normas, das conveniências, e sobre a agressão, simbólica ou efetiva. t aexploração espetacular de uma subversão radical onde tudo serve paraexpriml.la:o corpo, os enfeites, as vestes, as condutas e os símbolos incongruentes ouchocantes. Os Provos de Amsterdam e os Punks de Londres fizeram, de certolbairros, o teatro desta demonstração que põe tudo de cabeça para baixo e tenta,com a provocação dramática desacreditar ou arruinar a cultura estabelecida.

O ponto extremo da dramatização da rejeição é atingido com a vioi~nclaurbana, que não se insere mais em uma ordem, pois dela é a negação absoluta. Elapretende arruiná-Ia, atacando seus tribunais materiais, suas instituições, lua.personalidades representativas, seus dispositivos simbólicos; ela opera de mo ciodifuso, inesperado, espetacular, a fim de manter o efeito da insegurança; eladestroça, produz a erupção da desordem, para engendrar a insurreição decisiva ouo milagre dos novos começos. A sociedade rejeitada é posta na "berlinda". O.agentes desta destruição apresentam-se sob formas bem diferentes, criandocomunidades de rebeldes, ou pequenos grupos de ação revolucionária espont1nca,ou organizações clandestinas de efetivos reduzidos mas muito bem estruturaóa ••A atualidade, pelas mídia que a reportam, associa certas imagens a cada umadessas versões. O bando - dos quais o mais conhecido foi o Baader na Alemanha-desenvolve um terrorismo que alia a violência criminosa à violência poHtica. Eltlindeterminação explica como grandes vedetes do crime, como Mesrinc na Françíl,possam apresentar uma teoria de suas agressões que Ihes dá uma figura d,revoltado social. Os grupos Autônomos ilustram a segunda das três formas, E1alnão têm nem laços com os partidos revolucionários. nem fidelidade ideológica. Oimprevisto é sua regra de ação, eles operam à margem de manifestaçt)l.

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organizadas, eles surgem em um bairro muito freqüentado e ai praticamdestruições à maneira de um comando. A critica radical da sociedade é produzidaespetacularmente, por urna violência que destroça suas "vitrines", suas merca-dorias, seus signos e seus símbolos. Com o terrorismo das Brigadas Vermelhasitalianas, o ataque visa sobretudo as pessoas, o bloqueio dos mecanismoseconômicos, sociais e políticos, a generalização da desordem e da insegurança. Areferência ideológica é a da integração revolucionária; a organização muitoavançada é a de uma resistência de forma militar. Tudo contribui para adramatização, inclusive os processos dos Brigadistas aprisionados. A ação fere demaneira trágica, sacrificial, atingindo figuras representativas da sociedade sub-vertida: policiais, magistrados, responsáveis pela indústria e pelos negócios,personalidades políticas. O drama está na rua, à mostra, por vezes alimentado pelaincerteza criada com o seqüestro de reféns. A execução de Aldo Moro levou adramatização à violência insustentável e ao sacrifício final da vítima, ao grauextremo de intensidade. Ela atingiu o pais em seu todo, transtornou seus frágeisequilíbrios políticos, e teve uma ressonância internacional. Ela ocasionou umareprovação geral, a rejeição total da violência como meio político; a recusa desacramentar pelo sangue Um eventual curso novo para a história. O jogo da morte,pelo qual uma forma de sociedade seria afinal condenada ao desaparecimento,não libera senão uma desordem selvagem e seu custo é muito mais odioso.

As sociedades da modernidade avançada, de regime pluralista, tambémparecem ter perdido o uso de um certo número de mecanismos capazes de realizara domesticação da desordem - no sentido técnico do termo, e não no policial. Elassão, no curso de um desenvolvimento rápido e desordenado, geradoras de danos,embaraços, disfunções e desajustamentos. Nelas, parece em via de se realizar umadupla polarização: num dos extremos, a submissão à ordem das coisas, animadatão-somente pela competição pelos bens e pelos signos; no outro extremo, a re-cusa radical, podendo levar à exaltação e à prática da violência "pura". Entre estespólos, a reforma e a revolução procuram respectivamente sua definição Contem-porânea, atual, não inspirada pela repetição de um passado abolido, e o que recusaglobalmente se exprime em registros bem diferentes. O de uma nostalgia deoutrora, dos gestos e comunidades perdidas; o de uma nova aliança a estabelecercom a natureza; o das religiosidades reavivadas ou tergiversantes; o do cotidiano amudar; e enfim o do novo niilismo tentando sacar o inédito dos destroços dasconvenções sociais, dos códigos, das formas, das linguagens e esperançascarregadas pelas tradições religiosas ou revolucionárias. Para alguns dos quepreferem as primeiras dessas opções, a solução é o retraimento; seria necessáriofugir às fascinações que brotam das telas da atualidade, renunciar a ocupar osgrandes cenários da vida coletiva moderna, não mais jogar o jogo. Ao contrário, oque Consente revela sobretudo a força crescente dos condicionamentos sociais: asedução do consumo, a permuta do consentimento pela segurança, a progressãoele uma passividade, tendo em vista que a dominação das mídia e a evolução dastécnicas e das organizações transformam os indivíduos em receptores e emlransmissores.

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Neu& .Ituaçlo, O poder AUI.ndo .!frande figura cnípresente, a rlr.rlnelageral. Ele parece lovernar tudo de acordo com a sua racionalidade, expullaroinesperado, perder a capacidade de tomar qualquer distância em facI d. IImesmo. Sua ordem não seria mais aberta, nem às agressões do imaglnArlo, n.mmesmo às manifestações liberadoras que o contestam sem efetivamente am.aç"Ia. É neste sentido que a preocupação da festa, afirmada durante os último. ano I,tem valor revelador. H. Cox evocou com nostalgia a Festa dos Doidos da IdadeMédia européia, isto é, a capacidade que tem uma sociedade de rir de si melmlt d.imaginar, ao menos uma vez, de tempo em tempo "uma espécie de mundointeiramente diferente", de tolerar a crítica da "fantasia" e de com ela se revivlf1car,A festa, que é o meio de transgressão essencial, aceitada ou suportada, in.ere· ••daqui em diante sob todas as suas formas no curso da vida política, Ela •• ~associada, nos bastidores, às grandes dramatizações totalitárias. Ela faz parte damaquinaria a que recorrem os partidos afrontados nas sociedades pluralisw. Cadaano, na mesma época, ou durante as campanhas eleitorais, ela promove reunIO•••se permite transmitir a mensagem política. Ela une nos divertimentos, naparticipação do espetáculo animado por vedetes, em uma alegre Iiberaçlo queaumenta a receptividade e pode incitar à adesão.

Porém, existe a tradição. A festa abre espaços livres no interior da sociedade;ela pode armar suas cenas provisórias em face da cena permanente do poder; elafaz aparecerem figuras efêmeras da liberdade e da irreverência. Pelo menos, e e.tlsua função principal. Todas as interrogações são dirigidas ao que ainda podeexistir desta efervescência e deste crescimento simbólico. À primeira vista poderiaparecer que a imagem da festa - a que é produzida pelos textos e filmes - tenhamais importância que a própria realidade. Ela serve de revelado r corrosivo, comona obra de L. Bufiuel (Viridiana, O Anjo Exterminador), ou de recurso, mostrando.necessidade e a possibilidade de mudar a vida cotidiana, como faz F. Felllnl,notadamente em "Oito e Meio". Ela ilustra, dando-lhe uma forte carga emocional,a crítica da lei e da racionalidade do trabalho e da produção que prevalecem emtudo e se universalizam.

A realidade parece menos vigorosa do que a imagem: segundo a apreciaçlocomum, a festa é mal colocada nas sociedades de consumo e de lazer, AImanifestações comemorativas e festivas ai se estio Iam, a participação diminui naproporção do tamanho das cidades em que se efetuam. Nestas últimas, o tempolivre é, cada vez mais, gasto fora das cidades; a mudança é procurada alhures, .emque tenha portanto uma função liberadora, pois depende da modelagem do.mercadores de ilusões. A civilização dos meios de comunicação de massa e dOIespetáculos produz de maneira banal, cotidiana, sucedâneos parciais da festa; elaentrega o divertimento a domicílio pelo rádio, a televisão e as máquinas de estoclrsons e imagens; ela alimenta a impressão de uma participação no fausto dOIpoderosos e na vida de "festivalidade" das vedetes do momento, dando a e.tlleventos mundanos uma ampla publicidade; ela dá acesso mais fácil aos clnemal •

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aos teatros. O progresso deste consumo torna menos notado o contraste entre aeconomia cotidiana e a prodigalidade, o desperdício festivos. Esta constatação reve-la a festa sob um aspecto brilhante, misturada ao cotidiano e não mais separado a fimde marcar o corte que ela produz no curso banal das vidas. Ela se privatiza,despojando-se dos códigos, das ritualizações bem como das emoções coletivas edas improvisações espetaculares que a caracterizavam. Ela se cria do nada, compouca coisa; ela é a ocasião de se sentir existir de outro modo, mas de modoprivado e na dificuldade de desbanalizar assim a existência. O movimento queproduz sua explosão é semelhante ao que faz com que a política, agora, tambémpareça" explodida", segundo a fórmula de L. Sfez. Esta correlação, que não resultado azar, mostra a ligação ainda não rompida entre o poder (guardião de umaordem) e a festa (geradora de uma ordem invertida, mas precária).

Para uns, a festa se torna uma obsessão, para outros é o começo do seurenascimento. Aqueles a consideram segundo as cidades, estes segundo as regiõesonde as tradições conservaram as culturas. Se os ritos festivos não estão perdidos,eles mudaram de sentido e de força. Eles não estão mais solidários com o conjuntodas atividades coletivas, a movimentação dos grupos, das classes e das sociedades,por uma energia diferente da que lhes assegura o funcionamento cotidiano. Elesconstituem um espetáculo, freqüentemente produzido sobre essas cenas dasaldeias acessíveis das grandes cidades e dos locais turísticos. Eles voltam ao estágiode divertimento alimentado artificialmente pela antiga cultura camponesa,mesmo nas regiões onde esta baseia a manifestação em uma diferença, areivindicação de uma identidade. As Fest- Noz - festas bretãs noturnas _consistem em se alegrar e dançar ao som das "árias da Bretanha"; entretanto, oscensores locais mais exigentes denunciam a "pilhagem" já feita sobre estatradição remendada. No Languedoc, o Carnaval, nome sob o qual se conhecem to-das as grandes demonstrações festivas, retoma vida sob formas múltiplas. Édesenfreado, paródico, explosivo. Seu ressurgimento acompanha uma afirmaçãode particularidade cultural. É sua expressão imagificada, dramatizada, ao mesmotempo que o é da insubmissão simbólica de certas categorias sociais, notadamentedos viticultores. Ele inspira o teatro militante regional pelas suas imagens e, episo-dicamenre, sua chama ilumina as manifestações de revolta. O grande desen-freamento reencontra a política.

A festa vegeta, a festa repele; é uma questão de apreciação e de circunstâncias.Mas num ponto todos estão de acordo: não é mais como antigamente. A rupturafestiva com suas pompas, com suas transgressões e seus jogos de inversão social,regride; ela não mais provoca aquela liturgia da desordem onde as violências seliberam e depois se domesticam na dramatização coletiva; ela não abre mais a crisemimética - máscara das crises reais - ao termo da qual a ordenação social se achareforçada. A festa presta seus serviços; nas sociedades de mercadoria, ela está àvenda Iféerie, cedida de chaves na mão, como o Carnaval de Nice) ou elapromove a venda; em toda parte, ela tem emprego na teatralização política,

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"admlnlmncla por t6cnlcoI mil. do que relida pelos IIberadorel do lmlllnul"Entretanto, aqui ou leu'., I (altA tt'ntA Ilhu, tirando de seu pauado 01meio. pll'lexpressão: ela Me torna portadora de urna palavra mais livre, de v.rdu ••desmascaradas, de reivindicações figuradas mas não ambíguas, Ela tenta t&mbtmser o corretivo espetacular do que mostram os poderes e os poderosos de tod ••• ,ordens; ela produz um contra-imaginário, oposto ao que é transmitido pela. mldt.insri ruídas,

A festa alimenta a nostalgia atual como a natureza preservada, a aldeia e ••solidariedades comunitárias, as habilidades e os oficias antigos. Empreltam·lh.muitas virtudes. A ilusão é quebrada por trabalhos recentes dos historiadores, !1••mostram que a liberação festiva foi sempre mantida sob vigilância e que a pr6prllrevolução - segundo a afirmação de Ozouf - não gosta da desordem encerrada nlfesta. Eles também lembram que o enfraquecimento festivo não se coaduna com Imodernidade contemporânea; antes do fim do Velho Regime, já a maioria di'festas tradicionais se degradam em "mecanismos" que giram no vazio. Dentro d.seus limites e em suas crises, o espetáculo festivo revela como toda sociedade tentlresponder às solicitações contrárias de uma ordem que a ameaça de imobllllmo(e portanto de morte) e de um movimento que, nascido dela, transborda.arrebate-a na sua transformação. A festa das celebrações políticas e religiosa. e adas transgressões e violências paródicas ou simbólicas são as duas figuras quedefiniram este jogo de forças antagônicas, ritualizando-o.

No decurso de sua longa história, a manifestação festiva abriu periodicamenteo espaço fechado das comunidades e das cidades, e o desbanalizou, neleintroduzindo as criações do imaginário. Na sociedade das mídia, nada mais parecefazer obstáculo à irrupção contínua das imagens do exterior. Elas dito uma vluasobre o universo, sobre o mundo em suas diversidades, sobre as sociedades c: I'civilizações, sobre o próximo e o longínquo, sobre os acontecimentos. A salda parafora do cotidiano não se efetua mais necessariamente quando as manifestac;Oeacoletivas abrem as portas do maravilhoso. Não é mais necessário passar por trAi doespelho que só devolve a imagem da vida ordinária, mas, instalar-se diante dlltelas onde a técnica moderna tudo inscreve. O mundo se reduz cada vez mall aoseu próprio espetáculo que a telemática começa a transmitir. É a entrega Idomicílio, em via de generalização. O poder dispõe assim de meios permanen·tes, e de uma força jamais atingida anteriormente, de elaborar sua pr6prlarepresentação e sua apresentação dos negócios tratados e das "situações". Nointerior, a política, no exterior, a diplomacia, recorrem a dramatizaçõea e 110geradoras de efeitos extensos pois que alimentam imediatamente as mídia comimagens eficazes. A capacidade de produzir e difundir essas imagens dá a medidado poder.

O homem deste fim de século está preso no casulo invisível formado por todl.as redes que lhe transmitem, à distância, imagens e ruídos do mundo. Emboraa •

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aparências sejam contrárias, ele está encerrado; ele acredita ver muito e cada vezmais. Ele apreende, sobretudo os seres, as coisas e acontecimentos por umconjunto complexo de mediações; ele tem menos acesso à realidade do que a umatelerrealidade, a um universo construído pelas mídia, onde se chocam e seembaraçam as imagens concorrentes. Entretanto, este encerramento sofre ar-ranhões. A passividade deslumbrada não exclui momentos de desenganos e dedúvida. A vida cotidiana concreta, direta, rude, pesa sobre a tela das aparências ede vez em quando a rompe. A separação pelo retraimento - a dos dissidentes damodernidade atual - corta o contato; ela tenta uma volta ao mundo estreito dasrelações imediatas e ao das coisas materiais e primitivas. A contestação aceita outolerada produz fora, nas ruas e nos espaços simbolicamente marcados, suascontradramatizações; ela manifesta sua realidade e a opõe assim às imagens que asmascaram. A subversão radical, não podendo.irnplodir as máquinas e os sistemasque modelam e difundem as "falsas" representações do mundo e da sociedade,provoca explosões de violência e impõe sua verdade por tragédias repetidas.Prossegue a luta da ordem e da desordem de que falavam as mitologias e os ritos dopassado; elas mudam de natureza universalizando-se e dispondo de tecnologiasmodernas de dramatização; ela comporta "prêmios" cujo valor não cessa decrescer. É preciso encontrar novas terapias capazes de tirar os homens do efeito dasfascinações e reensinar a eles a governar as imagens e a não suportar que elassirvam à captura de sua liberdade.

ESCOPO 11] EDITORA