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Eu já estava há um bom tempo parado olhando para o nada. No meu ouvido, Cazuza cantarolava “Brasil”. Olhei para o iPad no meu colo. Um monte de letrinhas olhavam de volta para mim. Miúdas, chatas e cansativas. Tentava me acostumar aos famosos livros eletrônicos. A tarefa não era das mais fáceis, sempre adorei os livros de papel. Abaixei um pouco o volume da música e dei uma ajeitada nos fones, pois eles começavam a me incomodar. Nunca consegui passar muito tempo ouvindo música com fones de ouvido. Ler e ouvir música ao mesmo tempo era um hábito antigo, mas a música precisava vir de uma fonte distante, não ficar reverberando dentro da minha orelha.

Olhei o relógio. Dezesseis horas de uma quinta-feira abafada e calorenta. O mês de agosto já havia começado há dez dia. Embora estivéssemos oficialmente no inverno, o calor tomava conta da cidade. Dentro do ginásio do colégio, onde eu estava, a temperatura não era melhor. O teto metálicofazia com que a gente se sentisse numa lata de sardinha, não pelo aperto, e sim, pelo des-conforto. Bem, não sou uma sardinha, mas cá pra nós, não deve ser nada agradável ficar enlatado.

Com dezessete anos, cursava a terceira série do ensino médio. Era um adolescente típico de uma cidade mediana. Estudava na melhor escola particular do muni-cípio, tinha uma vida até confortável – não era rico, quero deixar bem claro –, mas também não era pobre. E como todo jovem da minha idade, vivia atolado em dúvidas, medos e angústias. Na verdade, sempre fui do tipo ansioso. Quando metia alguma coisa na cabeça, aquilo ia criando raízes e ficava lá por um bom tempo. Ou para sempre, sei lá. Quando criança, decidi que seria jornalista. Ao contrário dos meus colegas, que viviam

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mudando de sonhos, eu continuei com o Jornalismo na cabeça por toda a vida.

Incomodado com a leitura eletrônica, desisti do livro. Desliguei o iPad e o guardei na mochila. Movi a cabeça para um lado e para outro, tentando relaxar os músculos.

- Isso aqui tá parecendo um barracão de escola de samba – comentou a garota à minha direita, era a Júlia, minha melhor amiga.

Fechei o zíper da mochila, olhei pra Júlia. Seus cabelos vermelhos, ressaltavam o branco de sua pele. Os olhos azuis, marcados pela maquiagem escura, a deixavam com um ar meio punk de boutique. Girei o rosto seguindo a visão da Júlia. Meus amigos e eu estávamos sentados no ponto mais alto da arquibancada do ginásio da escola. Lá embaixo, um grupo de alunos corria para lá e pra cá, pregando flores, faixas e balões azuis e brancos pelo local. Comandando aquela muvuca, estava Jéssica, a garota mais popular, mais magra, mais loira, mais bonita (na opinião dela) e mais chata do terceiro ano.

- De onde ela copiou essa decoração? – quis saber a Júlia.

- Acho que o mau gosto é dela mesmo. Imagina se essa garota ia copiar isso de alguém. Ninguém é tão brega assim – disse o Caio, meu outro amigo, sentado à minha esquerda. – Olha pra esses balões. E essas flores de papel? Meu Deus, isso é a visão do inferno! – concluiu o Caio, sempre com seu ar debochado.

Apoiei a mochila nos meus pés e passei a observar com mais cuidado a cena. De fato, a coisa estava, digamos, exagerada. Poderia ser pior, claro. Vindo da mente fútil da Jéssica, era de se esperar um festival rosa bebê. Aí, sim, o mundo estaria condenado.

- Eu acho até que as cores estão harmônicas – falei.

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- Nada contra as cores, aliás, o azul e o branco ficam lindos juntos, mas o babado que está me deixando apa-vorado é a forma como essas cores são usadas. Esses arranjos, essas flores... – o Caio fez uma careta. – Credo. É de dar medo.

Com sua pele morena sempre muito bem cuidada, o cabelo impecavelmente alisado e no lugar, a vaidade elevada ao extremo, Caio exigia sempre de todo mundo algo perto da perfeição. A Jéssica, rotineiramente, era o alvo principal de sua acidez. Às vezes, ele exagerava; mas, na maior parte do tempo, tinha razão.

Voltei a olhar para o grupo trabalhando. Jéssica, em sua pose de abelha rainha, gesticulava, fazia carão e berrava com todo mundo. No início do ano, ela fora eleita a presidenta do comitê de formatura da escola. Era dela a responsabilidade pelo Baile de Inverno, um evento tradicional na cidade, que visava arrecadar grana para a nossa formatura. E na categoria de presidenta, ela decidiu usar seu lado ditadora. Tudo precisava ser visto, revisto e aprovado pela sua pessoa, em pessoa!

- Tira esses balões daí! – ela gritou para uma garota apavorada. – Eu já disse que eles devem ficar do outro lado. Você é surda ou quê, garota?

O Caio balançou a cabeça.- Tomara que essa louca tenha um infarto!- Deus não seria tão bom? – brincou a Júlia.- Tadinha da Jéssica gente, deixa ela se divertir –

disse o Lipe, sentado ao lado do Caio. Ele era o terceiro dos meus três melhores (e únicos) amigos da escola.

O fato de ele sentir pena da Jéssica não me espan-tava. Era a cara dele, mesmo não sendo fã da garota. Ok, nós quatro nunca fomos admiradores da Jéssica. E ela nunca fora nossa fã também. Na verdade, ela nos odiava. Desde que nos conhecemos, lá no primeiro ano do

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ensino médio, a garota fez questão de deixar claro que não ia com a nossa cara. O que não era nenhuma novidade, pois a Jéssica gostava de pouquíssimas pessoas, tolerava algumas e perseguia o resto. Sua maior diversão era pegar no pé dos alunos menos populares, fazer da vida deles um mar de desespero. Agora, para os meus amigos e para mim, ela guardava, sempre, o melhor veneno.

Vamos combinar, para qualquer adolescente, a escola pode ser um lugar complicado. Um campo de batalha com toda a sua complexidade. Já para um adolescente gay, ela pode ser um verdadeiro inferno. Meus amigos e eu eramos os únicos alunos gays da escola, pelo menos os únicos assumidos (vai saber, não é?). Nessa condição, tínhamos que enfrentar batalhas diárias para sobreviver ao colégio. Risinhos, piadas, xingamentos eram coisas comuns... corriqueiras. Como se tudo isso não bastasse, havia a Jéssica e sua turma para piorar a situação. Teve uma época em que ela chegou a fazer uma campanha contra a nossa presença na escola. Mobilizou um grupo que ela batizou de “Vigilantes da Moral” e deu início a um abaixo-assinado. Não deu certo, muita gente – com um mínimo de civilidade – recusou-se a assinar. Ela ficou puta da vida, jurou que não ia desistir. E não desistiu. Nós nos tornamos o seu alvo predileto.

- Ainda não entendo como a Jéssica foi eleita a pre-sidenta do nosso comitê de formatura – bocejou a Júlia.

- Simples, ela comprou os votos – revelou o Caio.- Sem falar das ameaças.- Ameaças? Como assim, Lipe? – perguntei.- Todo mundo sabe que ela coagiu alguns alunos

antes da votação. Ninguém conta nada porque tem medo dela.

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- O que é uma grande bobagem, não é? – ponderou o Caio. – Eu, por exemplo, sambo na cara dessa loira de farmácia.

- Você não conta, Caio. Você é louco!- Louco é quem se mete a besta comigo, Júlia!O Caio sempre foi o mais barraqueiro de nós quatro.

Na escola, todo mundo pensava duas vezes antes de falar qualquer coisa com ele. Às vezes, o cara me parecia dese-quilibrado e chegava a me assustar. Mas era bom tê-lo por perto, assim, muita gente pensava duas vezes antes de nos provocar. Conheci o Caio e o Lipe no primeiro ano, cada um vindo de uma escola diferente. Foi amizade à primeira vista. Logo eu catei que eles eram do babado e me apro-ximei. No caso do Caio, era bem evidente. Ele sempre adorou usar roupas extravagantes e dar muita pinta. Fazia questão de que todo mundo notasse que era gay. O Lipe já era o oposto. Sempre discretíssimo, contido, calado e cabisbaixo. Só notei que ele era gay quando (com muita insistência dos professores) começou a falar. Sabe quando a voz te entrega? Pois é. No caso do Lipe, foi assim.

A única menina do quarteto era a Júlia. Ela eu conheci ainda criança. Sempre fomos vizinhos (o aparta-mento dela era em frente ao meu). Crescemos juntos como dois irmãos. Ela perdeu o pai mais ou menos na mesma época em que eu perdi minha mãe. Isso nos aproximou mais ainda. Abrimos o verbo e saímos do armário no mesmo dia (tudo combinado). Tínhamos quinze anos. Tudo muito tranquilo. Meu pai, psicólogo, especialista em sexualidade, encarou a coisa sem drama. Bem, pelo menos, ele nunca deixou eu perceber nada. A mãe da Júlia também procurou levar a homossexualidade dela numa boa. Professora universitária, mulher esclare-cida e culta, ela encarou na boa a orientação sexual da filha. Eu acho.

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Desde que passamos a estudar juntos, nós quatro nos tornamos inseparáveis. Saíamos em grupo, passávamos finais de semana na casa um do outro (menos na casa do Lipe, porque os pais dele eram extremamente religiosos e complicados) e fazíamos nossos trabalhos escolares em equipe. Como aconteceu naquela quinta-feira quente de início de agosto. Fomos para a escola à tarde fazer uma pesquisa de Biologia e esticamos o tempo no colégio indo para o ginásio ver os preparativos para o tal Baile de Inverno.

Era divertido ver a Jéssica à beira de um ataque de nervos. Como presidenta de comitê e organizadora oficial do baile, qualquer coisa que desse errado mancha-ria sua reputação. Pensando nisso, eu torci, internamente, para que alguma tragédia (nada muito sério) acontecesse. Diante desse ataque de maldade, ri baixinho.

- O que foi? – perguntou a Júlia.- Nada. Estava pensando besteira aqui – disfarcei.- Que tipo de música vocês acham que vai rolar

nesse baile da Jéssica? – perguntou o Caio. – Sei lá, acho que ela tem cara de quem gosta de funk! Argh. – ele fez uma careta.

- O que você tem contra funk? – questionou a Júlia.- Tudo! Desde quando funk é música? - Claro que é.- Ai, desculpa, Júlia, mas não vou discutir música

com uma pessoa que ouve Maria Gadu! Por favor, né?- Caio, não tenho culpa de você não ser antenado.

Maria Gadu é cult.- Sorry, mas não é mesmo. - Ah, claro, esqueci. Você prefere cantoras estrangei-

ras.- Com certeza. Eu não trocaria uma Lady Gaga por

uma Gadu de jeito nenhum.

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- Problema seu, colega.- Pô, eu também amo a Gaga, gente – disse o Lipe.

– E a Gadu, claro...- Não disse que não gosto da Gaga. Eu gosto. Só não

sou fanática. Eu ouço outras cantoras também – reagiu a Júlia.

- Você tem todo direito de gostar de outras cantoras – continuou o Caio. – Desde que as outras cantoras sejam Adele, Katy Perry, Rihanna, Christina Aguilera e Britney, por exemplo.

A Júlia revirou os olhos e fez uma careta- Como se só existissem elas. E depois, vamos

combinar que a Britney nem canta.- Geeeeente – o Caio pôs a mão no peito de forma

dramática. – Como essa aí tem coragem de dizer isso da Brit? – Ele apontou pra Júlia. – Ok, ela não tem assim a voz de uma Aguilera, mas vamos combinar que Britoca barbariza nas coreôs, meu bem!

- Ah, isso é verdade, Júlia – concordei com o Caio. – Sem falar que Britney é muito carismática.

- Tá bom, meninos, se é pra falar de diva pop, eu fico com a Madonna – concluiu a Júlia.

- Para tudo! – disse o Caio. – Madonna é rainha, meu bem. Eterna e insubstituível. Não cabe nem discussão, Madonna é um ser à parte.

- E vamos combinar que não existiria esse universo de divas pop se não fosse a eterna Madonna, não é? – falei.

- O Caio e a Júlia concordando em alguma coisa? Tô passada em vários tons de rosa! – brincou o Lipe.

- The Power of Madonna... – sorri. – Só mesmo a rainha pra fazer esses dois pararem com as brigas.

Rimos todos.

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Tentei voltar minha atenção ao que a Jéssica estava fazendo lá embaixo. Inútil! De repente, tudo aquilo se tornou totalmente desinteressante. Sem sal, sem emoção. Como a própria Jéssica, claro. Até o sofrimento dela para fazer tudo bonitinho, ficou chato. Deixei a Jéssica de lado e retomei o papo com os meus amigos. Continua-mos por um bom tempo falando de música pop, de nossas divas e tudo o mais. Quase duas horas depois, bateu o cansaço e decidimos ir embora. Estávamos saindo, quando fomos cercados... adivinha por quem? Pela Jéssica e suas cachorrinhas, evidentemente.

- Olha só, parece que o elenco de Priscila chegou na cidade – ela provocou.

- Priscila? Ai, meu Deus, Jéssica. Quando foi a última vez que você foi ao cinema, minha filha? Esse filme é tão antigo quanto essa sua maquiagem de biscate – devolveu o Caio.

- Olha aqui, garoto, biscate é a senhora sua mãe, tá me ouvindo?

- Ai que medo. Será que ela morde?- Para, Caio – pedi.- Mas eu não tô fazendo nada. A Jéssica é que tá

nervosa. Relaxa, Loira. Ou vai afetar a raiz...A Jéssica fez uma careta para o Caio. - Quer saber? Eu é que não vou ficar aqui batendo

boca com gente do seu tipo. Imagina. Eu, Jéssica, a pre-sidenta da Comissão de Formatura, dando trela pra um bando de... de...

- De quê? – insistiu o Caio.- De bichas! - Garota, você é tão sem noção. Tenho pena de você

– falei.- E vocês são um bando de invejosos! Vieram aqui

para colocar olho gordo na minha decoração. Mas quer

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saber? Não tô nem aí. Olhem pra decoração e morram de inveja!

- Morrer de inveja disso aí? – apontei para a decora-ção. – Realmente, sem noção!

- Por quê? Minha decoração tá um arraso... tá belís-sima... – ela disse sem muita certeza.

- Acho que seu conceito de beleza está um pouco equivocado, Jéssica.

- E quem falou com você, Júlia? Eu nem me dirigi a você, garota! Te enxerga.

- Ai, gente, cansei dessa briguinha. Cansei dessa garota uó! Vamos? – sugeri.

A Jéssica bufou. - Esse será o melhor baile que essa cidade já viu. Se

quiserem, podem aparecer. Isso se tiverem dinheiro, claro.

O Caio se aproximou da Jéssica, jogando a sua enorme franja (devidamente alisada) para a direita.

- Meu bem, com a mesada que eu recebo dos meus pais, eu posso comprar umas três Jéssicas melhores do que você. Portanto, não se preocupe, querida. Nós esta-remos na sua festa. E vamos arrasar!

A Jéssica colocou a mão na cintura e deu um sorrisi-nho amarelo.

- Tudo bem então...A garota jogou os cabelos para trás e fechou a cara.

Estalou os dedos e duas outras garotas – que não desgru-davam dela um segundo – colocaram-se ao seu lado.

- Vamos, meninas. De repente, o ar ficou pesado por aqui.

Elas nos deram as costas e começaram a se afastar, até que o Caio bateu palmas e lhes chamou atenção.

- Ei, Jéssica! Te vejo no baile, querida! E a propó-sito, se eu fosse você daria um jeito nesse seu cabelo. Tá

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horrível! Cheio de pontas duplas. Já ouviu falar em hidratação, Darling?

A Jéssica parou, pegou uma mecha dos cabelos e deu uma olhada nas pontas. Em seguida, virou-se e voltou para o ginásio sem dizer uma palavra.

- Garota insuportável – disse a Júlia.- Desde o primeiro ano é a mesma história. Ela não

muda. Já era pra ter crescido – comentei. - Tem hora que me dá vontade de dar um soco na

cara dela.- Não é pra tanto, Júlia.- É pra tanto, sim. Ela merecia um coió daqueles...

– garantiu o Caio. - Ou um chiclete grudado naquela cabeleira loira.Olhamos espantados para o Lipe (que sempre foi o

mais pacífico de todos). Mas a ideia não era assim tão ruim e nós rimos, afinal, seria muito engraçado a Jéssica desesperada com uma bela bola de chiclete grudada no cabelo. Quanta maldade, gente.

***

Sexta-feira à noite, meu pai decidiu me levar ao baile. Meu pai sempre foi do tipo superprotetor, presente, grudento e outras coisinhas mais. Minha mãe morreu quando eu tinha apenas oito anos. Desde então, ele passou a desempenhar o papel de pai e mãe. Não que eu tivesse qualquer coisa contra, muito pelo contrário, meu pai sempre foi demais. Um ser incrível. Mas vamos combinar que pai grudento, às vezes, cansa.

- Pai, não tem nada a ver o senhor me levar no baile. É um baile de escola. Eu vou andando com a Júlia...

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- Nem pensar. Esse é seu primeiro baile. Eu faço questão de colaborar de alguma forma. – ele olhou para mim. – Meu filhinho cresceu. Já é um hominho.

- Credo, pai... papo mais antigo esse – protestei.Querendo fazer a linha simpático, ele ainda ofereceu

carona para os meus amigos. Pegamos a Júlia no aparta-mento em frente ao nosso. No caminho, passamos na casa do Caio, para apanhá-lo junto com o Lipe, e meu pai nos deixou na porta da escola.

- Juízo, menino.- Juízo é o que eu mais tenho, pai.- Pior que é verdade. Então faz o seguinte: pode

perder um pouco do juízo – ele riu. – Ah, e se conhecer algum garoto... quero que me apresente.

Eu fiquei vermelho.- Pai, pelo amor de Deus... É uma festa da escola.- Nunca se sabe – ele riu, ligou o carro e partiu.- Adoro seu pai – disse o Lipe. – Na verdade, tenho

inveja de você. Todo mundo gostaria de ter um pai assim.

- Verdade... meu pai é dez mesmo.- Quem dera se meu pai fosse assim – refletiu o

Lipe.- Relaxa, mona – disse o Caio, colocando-se entre

nós dois. – Um dia seus pais vão ver que ter um filho gay é o máximo!

- Até parece.- Claro que é – teorizou o Caio. – Quem melhor pra

ajudar a mãe a comprar roupas, fazer maquiagem, do que um filho gay?

- Caio, como você é ridículo!- Ai, meu Deus. Lá vem essa sapata se meter na

conversa. Alguém falou com você? Não! Então fica na tua, garota!

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- Ok, gente – intervi. – Hora da festa! – apontei pra entrada do ginásio.

Quando entramos no ginásio, o som alto da música eletrônica abafou nossa conversa. O povo da escola estava todo lá, não apenas os alunos do terceiro ano. A primeira criatura que vimos foi a Jéssica com sua pose de primeira-dama. Ela ia de um lado para o outro dando ordens, brigando e humilhando algum desavisado.

O Caio, claro, foi o primeiro a entrar no clima do Baile. Jogou as mãos para cima e começou a rodopiar. Magricelo que só ele e metido em um modelão bem colorido, ele parecia completamente fora do contexto. Não que isso importasse para ele, ao contrário, se estava chamando atenção, ótimo.

- Pelo menos a música tá babado! – ele gritou. – Vem, Lipe. Vamos mostrar pra essa gente careta como se dança.

Ele puxou o Lipe pelo braço e correu para a pista, montada no centro do ginásio da escola.

- E aí, não vai se juntar a eles? – perguntou a Júlia.- Depois, e você?- Eu vou dar uma espiada por aí primeiro. Analisar o

território, entende? Ver se tem alguma gatinha disponí-vel – ela riu.

- Nessa escola? Sei... Me espera aqui um pouquinho que eu preciso ir ao banheiro. Depois eu vou andar com você. Prometo que não vou azarar suas paqueras. Aliás, a gente nem gosta da mesma fruta, não é?

- Ok, vai lá, criatura. Eu te espero.No banheiro o som era mais ameno. Pelo menos

dava para ouvir o que os outros diziam. Fiquei parado esperando desocupar um reservado. Alguns meninos olhavam para mim e desviavam o rosto, outros falavam baixinho enquanto me davam olhadas disfarçadas.

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Um garoto gordinho, que eu sempre via andando sozinho pela escola, saiu de um dos reservados e passou por mim como se fosse um míssil. Entrei no box de onde ele saíra. Era um cubículo e estava imundo. Concentrei no que ia fazer ali e tentei ignorar a sujeita do vaso. Finalmente consegui me aliviar. Saí bem rápido do reservado. Já estava lavando as mãos para voltar ao baile, quando fui empurrado contra a pia do banheiro.

- Sai da frente, boiola! Assim que me virei, vi a cara de felicidade e sarcasmo

do Fábio. - Tá olhando o que, sua bicha? – ele provocou.O Fábio era o capitão do time de futebol da nossa

escola. Logo, já dá pra imaginar, né? Era o tipo atlético: alto, loiro, olhos azuis, musculoso. Tinha todas as quali-dades para ser um príncipe, mas escolhera ser o ogro da colégio. Ele sempre me odiou (e aos meus amigos também). Nunca perdia uma oportunidade de nos insultar. Pra variar, o infeliz era namorado da Jéssica. Jamais vi duas pessoas combinarem tanto. A única dife-rença era que a Jéssica era mais espertinha do que ele. Bem, no caso do Fábio era fácil, qualquer pessoa com 1 de QI era mais inteligente do que ele.

Não entrei na onda do Fábio. Em silêncio, sequei as mãos na barra da minha camiseta mesmo e quis sair dali o mais rápido possível. Precisava deixar o banheiro o quanto antes. Assim que me dirigi à porta, ele bloqueou minha passagem. Não me deixei intimidar pela provoca-ção dele. Encarei-o. Não ia dar uma de covarde.

- Dá licença? – pedi com educação.- Passa por cima – ele desafiou.Eu respirei fundo e balancei a cabeça.- Afff... – sussurrei.

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- O que foi, viado? Tá com medo de me encarar? – ele continuou. – Vira homem e passa por cima de mim!

Eu respirei fundo e bufei.- Na boa, Fábio. Eu não estou com paciência pra

esse seu ataque de carência – falei, sem demonstrar medo. – Posso passar?

Fábio abriu os braços como se fossem asas.- Sabia que você tá no banheiro errado?Os amigos dele começaram a rir. Alguns meninos

que entravam no banheiro naquele momento deram meia volta e retornaram ao ginásio temendo a confusão.

- É mesmo? – sorri cinicamente. – Por acaso esse aqui é o banheiro dos idiotas? Se for... me desculpa!

Ele deu um passo na minha direção. - Tá tirando onda com a minha cara, boiola? – ele

bufou.Os risinhos desapareceram. O Fábio se aproximou

mais ainda e eu fiquei preso entre ele e a parede.- Sabe o que eu tenho vontade de fazer com você,

Nando?- Não me interessa – falei, tentando disfarçar o ner-

vosismo.- Eu tenho vontade de socar essa sua cara de safado

até você virar homem de verdade!- Por que você não tenta? – provoquei. Claro, eu

estava apavorado, mas não podia dar esse gostinho ao cretino do Fábio.

A porta do banheiro se abriu, o som da música invadiu o lugar. Todo mundo olhou na mesma direção ao mesmo tempo, menos eu que continua encarando o Fábio.

- Tudo bem meninos? Algum problema?Olhei para o lado. O professor de Matemática estava

nos observado.

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- Tá tudo de boa, profe – garantiu o Fábio, enquanto se afastava de perto de mim com um risinho no canto da boca. Sou obrigado a admitir: ele era muito gato. Não do tipo que me atraía, mas era um gato.

Eu não disse nada, aproveitei o momento e saí de fininho do banheiro. Melhor salvar minha pele do que explicar o que estava acontecendo. Deixaria as desculpas para o Fábio, se havia uma coisa que ele sabia fazer bem, além de jogar futebol, era mentir.

Quando coloquei os pés para fora do banheiro, levei um susto ao dar de cara com a Júlia.

- Caracas, Júlia, quer me matar?- Nando, eu vi o Fábio e a galera dele entrando no

banheiro.- É... Eu sei. Eu acabei de dar de cara com ele lá

dentro.- Sério? E aí? Ele fez alguma coisa com você?- Não, não. Tudo bem – menti.- Tem certeza que ele não fez nenhuma gracinha?- Gracinha? O Fábio? Imagina. Você sabe como é o

Fábio: um lorde. A Júlia cruzou os braços e me encarou séria.- Não começa com deboche não. Um Caio na turma

é suficiente.Finalmente relaxei e ri. - Ok, desculpa... Vamos esquecer o Fábio? A gente

veio aqui pra se divertir.- Tem certeza de que você está bem? Você tá meio

pálido. Tá parecendo um fantasma. - Devem ser as luzes, sei lá! – disfarcei. O DJ resolveu fazer uma homenagem aos anos 80.

Assim que ele colou Kid Abelha pra tocar, eu não resisti.

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- Mentira? Adoro essa música. Que tal a gente se jogar na pista e dar um pouco de pinta? – tentei parecer normal.

- Vamos nessa!Júlia e eu corremos para nos juntar ao Caio o ao Lipe

na pista de dança. O DJ parecia conhecer meus gostos, montou um mix de Kid Abelha, Léo Jaime e Cazuza, meu maior ídolo. Eu cresci com meu pai me ensinando a ouvir essas músicas.

Duas hora de ferveção e bate-cabelo na pista de dança, meus pés pediram um tempo. Falei para os meus amigos que precisava me sentar um pouco. Enquanto me dirigia a uma mesa mais afastada, o Lipe, a Júlia e o Caio me seguiram. Sentamo-nos e passamos a avaliar as figuras no ginásio. Por sugestão do Caio, atribuíamos notas aos nossos colegas de escola. Se era bonito e dançava bem, a nota aumentava.

Depois de fazer uma viagem pela música dançante dos anos 90, o DJ parou o som e a Jéssica subiu ao palco.

- Se essa louca começar a cantar, eu juro que jogo um sapato nela – ameaçou o Caio.

- Ela não teria coragem pra tanto – refletiu o Lipe. – Ou teria?

- E aí, geeeeente – berrou a Jéssica. – Bem... primei-ramente eu queria agradecer a presença de todos vocês aqui...

- A Jéssica agradecendo? Realmente, o fim do mundo está próximo – brincou o Caio.

- Dá um tempo, Caio. Vamos escutar... – sugeriu a Júlia.

- ... espero que todo mundo esteja se divertindo... e... – ela parou para respirar. – Pois é, chegou a hora...

- Hora de quê? Ai, meu pai. Será que finalmente a Jéssica vai revelar que é homem? Ela tem cara de

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travesti, vamos combinar. Olha aquele cabelo, meu Deus. E aquela maquiagem... uma trava.

Olhei para o Caio e ri.- ... todo mundo teve uma semana pra votar, agora

vamos ver o resultado...O Caio franziu a testa.- Do que ela tá falando?- Da eleição do rei e da rainha do Baile de Inverno

– revelou o Lipe.- Tá brincando?- Pior que é sério – garanti. – Tivemos a semana toda

para votar em um casal para rei e rainha. Eu pensei que você tivesse votado também.

- Tá louca, mona? Nem por decreto. Acho isso a coisa mais ridícula do mundo – disse o Caio me enca-rando. – Essa eleição não deveria ser feita no final do ano?

- E você acha que a Jéssica ia perder a chance de ser rainha de agosto até dezembro? – questionei. – Tenho certeza de que ela vai ganhar essa merda.

- E você votou em quem, Nando? – quis saber o Caio.

- Na Júlia, claro!- Sério? – o Caio debochou. – E deixa eu adivinhar:

aposto que a Júlia votou em você.- Com certeza – ela confirmou.- Nossa, vocês dois são tão previsíveis.- Gente, presta atenção, a Jéssica vai revelar o resul-

tado do concurso... – disse o Lipe.Lá do palco, a Jéssica segurava um envelope e fazia

caras e bocas na tentativa de criar um suspense.- Estão curiosos? – ela brincava. – Muito bem, vamos

deixar de enrolação... – ela abriu o envelope. – E o rei e a rainha são...

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Capítulo1 | Baile

- Que garota insuportável – resmungou o Caio.- E o rei e a rainha do baile de inverno são... – ela

colocou a mão no coração e ameaçou chorar. – O Fábio e eu! Ai, gente, que emoção.

- Oh, que surpresa! – falou o Caio, fazendo caras e bocas.

Seguiu-se um espetáculo dantesco. A Jéssica se abanava com o envelope e ameaçava chorar. Os brucutus amigos do Fábio o carregaram até o palco. Do meu lado, o Caio enfiava o dedo na garganta e ameaçava provocar vômitos.

- A Jéssica consegue ser mais previsível do que vocês dois – disse o Caio para mim e para a Júlia.

- Nunca vi duas pessoas se merecerem tanto quanto ela e o Fábio.

- Sou obrigado a concordar contigo, Julinha – disse o Caio, irônico. –Aliás, o título é bem apropriado aos dois: rei e rainha de inverno. Combina direitinho com eles: dois blocos de gelo.

- Quer saber, pessoas? – eu falei, colocando-me de pé. – Acho que já deu pra mim... Cansei dessa festa. Hora de ir pra casa.

- Nossa, que bom que você pensou nisso, Nando. Eu já estava louco pra me mandar – confessou Caio, já se levantando. – De repente, essa festa ficou uó. Ninguém merece a Jéssica e o Fábio desfilando pelo ginásio com essas coroas horrorosas de papel laminado e pedrinhas de plástico. Vamos?

Saímos do ginásio, atravessamos o terreno que levava ao portão e ficamos parados na calçada em frente à escola.

- Quem ligou pro táxi? – perguntou o Caio.- Eu liguei – respondeu a Júlia.- Finalmente você serviu pra alguma coisa, sapata.

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- Melhor do que você que não serve pra nada.- Sabia que sapatão é um erro da natureza?- Sabia que você é um idiota, Caio? - Vocês dois são tão cansativos. Vão acabar se casando

– eu disse.- Nem morta, mona! – riu o Caio.Deixei o Lipe assistindo às alfinetadas do Caio e da

Júlia. Aproximei-me da rua e fiquei de olho para ver se o nosso táxi estava vindo. Um utilitário Mercedes-Benz prateado parou a menos de um metro de onde eu estava. Quando a porta se abriu, eu tive a visão mais avassala-dora da minha vida. Nos meus dezessete anos de existência, nunca tinha me deparado com um garoto tão lindo.

Eu já era razoavelmente alto naquela época, tinha quase um metro e oitenta, mas aquele menino tinha uns dez centímetros a mais do que eu. Moreno, cabelos lisos, braços fortes e uma camiseta coladíssima marcando seu corpo sarado. Ao passar por mim, pude sentir o cheiro amadeirado do seu perfume e ver seus lindos olhos verdes. Um verdadeiro príncipe. Meu coração disparou.

- Nossa... – suspirei. – esse aí é meu número – murmurei pra mim mesmo.

- Nando... Nando, acorda!E a voz da Júlia me trouxe de volta ao mundo real.- O que foi? – perguntei. - O táxi chegou, criatura!- Ah tá...Entramos os quatro no táxi. Júlia na frente, os outros

e eu no banco de trás. Olhei novamente para a entrada da escola na esperança de ver aquele menino outra vez, mas ele já não estava mais lá.