bahia - uma província no império - ocr

Download bahia - uma província no império - ocr

If you can't read please download the document

Upload: dandara-matos

Post on 12-Dec-2014

418 views

Category:

Documents


157 download

TRANSCRIPT

l MA PR\ NCl \ NO IMPRIC

ti historiadores safio de i.

enfrentaram,

Cotno Ktia de Queirs Mattoso. o dehitria regional no Brasil, ttide forma abranc&nt, partindo de fontes mmrias c bujfeando dados quani vos coerentes, fc&pazes de montai series tstricas. Nascida ha Grcia, baiana por loo, Katia Mattoso se dedicou a este : alho durante mais de 2 0 anos, ajudapor geraes de alunos. J u n t o s eles tinaram cerca de 4 0 mil documens para estabelecer sries de preos c salrios; leram c resumiram quase 3 . 5 0 0 testamentos c mais de mil inventrios; transcreveram e analisaram mais de 16 mil cartas de alforria. Atas das cmaras muni i ais, recenseamentos, documentos c i -eis, crnicas, arquivos de convnios, registros porturios, discursos de autoridades da poca alm, claro, de uma exaustiva consulta bibliografia j disponvel permitiram a rontagem deste minucioso painel sobre a B a h i a n or

7

livre

a ser

J

Qakzscr*\/0

TT ao

S

*

Ib^^*/

de^e

ser

s-njl.j-

sculo X I X , pioneiro na historiografia brasileira. \ ^

O esforo foi duplamente recompensado. Vrios centros universitrios do Brasil seguiram as perspectivas abertas por Katia Mattoso a partir da utilizao sistemtica de inventrios post mortem da Bahia, inclusive de escravos e forros. N o exterior, o trabalho da autora tambm foi reconhecido. Apresentado na Frana como tese de Doutorado de Estado e entusiasticamente aprovado, este texto propiciou a criao da ctedra de Histria do Brasil na Universidade de Paris I V - Sorbonnc, cabendo a Katia Mattoso ocupar sua primeira regncia como titular. Partindo dos "dadoS Estveis da geografia", a autora^apresenta a capital e sua regio, analisando o papel do^rios das vias dc comunicao, cenrio magnfico e inspito, conquistado, ocupado e repovoado por recm-chegados que, passo a passo, construram uma sociedade. Depois* o temas da pesquisa se abrem em ^ \*i a demografia e a famlia, as relicri

S

"

5v -

Mi

tf*I

C

-4

. s . < s .y

g o

% *

i

Q

H

BAHIA, SCULO X I XUMA PROVNCIA NO IMPRIO

O-

9

m

Katia M. de Queirs Mattoso

BAHIA, SCULO X I XUMA PROVNCIA NO IMPRIO

t

AEDITORA NOVA FRONTEIRA

1992, by Katia M. de Queirs Mareoso Direitos de edio da obra cm lngua portuguesa adquiridosEDITORA NOVA FRONTEIRA S . A .

Rua Bambina, 25 - C E P 22251 Botafogo - Te!. 2 8 6 - 7 8 2 2 Endereo telegrfico: N E O F R O N T Telex: 3 4 6 9 5 EN FS BR Rio de Janeiro, RJ

Traduo

Yedda de Macedo SoaresEdio de texto

Csar Benjamin

ISBN 8 5 - 2 0 9 - 0 3 9 7 - 0

Manco da Bahia Investi mentos S.A.

Para meus netos brasileiros Mariana, Tiago e Pedro e meus netos greco-brasileiros para que conheam e amem

Marcos

Filho, e

Toms, Alexandros

Michalis

uma Bahia

que deles.

SUMRIO

Prefcio Apresentao Introduo A histria do Brasil que m e foi contada C o m o escrever uma histria da Bahia?

1 7 9 18 23

LIVRO I -

O s DONS E AS ARMADILHAS DA NATUREZA

3941' 42" 43 45 ^5 ^6 ^5 1

Captulo 1 - A Bahia A cidade A provncia Captulo 2 - Salvador Morfologia do stio Solos e guas A baa e o porto Captulo 3 - O Recncavo Esboo de definio Dados estveis da geografia Ventos, chuvas c solos C a p t u l o 4 - V i a s de c o m u n i c a o Caminhos fluviais: o Recncavo e o litoral Caminhos terrestres: o Agreste e o Serto Caminhos martimos: o Sul

^

^6 7

LIVRO II - O PESO DOS HOMENSC a p t u l o 5 O papel da histria A conquista do interior

69 72

voa

BAHIA, SCULO

XIX

U m a metrpole colonial? Salvador, metrpole do Novo M u n d o C a p t u l o 6 - Populaes da Provncia da B a h i a Panorama geral ( 1 7 8 0 - 1 8 9 0 ) U m sculo de avaliaes imprecisas: 1 7 8 0 - 1 8 7 2 O s recenseamentos de 1 8 7 2 e 1 8 9 0 Faixas etrias e distribuio por sexo na populao baiana Matizes raciais e origens da populao baiana Captulo 7 - A cidade de Salvador Antes de 1 8 7 2 : Recenseamentos parciais Antes de 1 8 7 2 : Avaliaes Dois recenseamentos oficiais: 1 8 7 2 e 1 8 9 0 Ensaio de avaliao para o sculo XIX Captulo 8 - Populao flutuante c populao mestia 100 104 18 8 2

8

2

94

110 112 115 119

Sangues misturados: mitos e realidades

LIVRO I I I - A FAMLIA BAIANACaptulo 9 - U m p o u c o de histria Regimes matrimoniais Regimes matrimoniais e regimes de bens Divrcio Filiao Filhos adotivos Direitos de sucesso e regime sucessrio Herdeiros Sucesso por testamento.. U m a legislao bem adaptada C a p t u l o 10 - T i p o l o g i a da f a m l i a b a i a n a Famlia legal c consensual A famlia consensual Unies livres A famlia segundo o estatuto legal de seus membros Famlia de libertos A famlia escrava Grupos domsticos: terceiro estudo tipolgico C a p t u l o 11 - Sistemas de parentesco c alianas m a t r i m o n i a i s Sistemas de parentesco Parentesco por escolha Parentela Alianas matrimoniais: exogamia c endogamia Estratgias matrimoniais dos baianos nobilitados Estratgias matrimoniais dos baianos alforriados

127129 130 131 133 133 135 136 138 139 140 142 ]44 149 j 160 J^J I69 172

^Lj

SUMARIO

Raptos c estupros (ou como tentar se libertar de regras impostas pela Igreja c a familia) C a p t u l o 12 - A famlia b a i a n a e as relaes sociais Famlia, eixo das relaes sociais A qualidade das relaes sociais

LIVRO I V -

O ESTADO: ORGANIZAO E EXERCCIO DOS PODERES

Captulo 13 - A herana: organizao do Estado n o fim d o p e r o d o c o l o n i a l Justia e finanas O Exrcito O governo local C a p t u l o 1 4 - O r e g i m e m o n r q u i c o brasileiro ( 1 8 2 2 - 1 8 8 9 ) A construo do Estado ( 1 8 2 2 - 1 8 5 0 ) A consolidao ( 1 8 5 0 - 1 8 7 0 ) A desagregao ( 1 8 7 0 - 1 8 8 9 ) O s poderes centrais ( 1 8 2 2 - 1 8 8 9 ) A instalao de poderes novos Os poderes do Exrcito Organizao das foras paramilitares: a Guarda Nacional e a Polcia C a p t u l o 1 5 - O s p o d e r e s locais A instituio do governo provincial O poder municipal C a p t u l o 1 6 - A elite b a i a n a e a f o r m a o d o E s t a d o n a c i o n a l A elite poltica baiana A municipalidade de Salvador e seus conselheiros A Assemblia Provincial: presidente e vice-presidente Os deputados Assemblia Provincial C a p t u l o 17 - O s b a i a n o s n o g o v e r n o c e n t r a l : origem social e f o r m a o Os senadores Ministros c presidentes do Conselho

LIVRO V - A IGREJAC a p t u l o 18 - I n t r o d u o C a p t u l o 19 - Hierarquia eclesistica c poder poltico no sculo X I X ( 1 8 2 2 - 1 8 9 0 ) Reformas na Igreja, reformas pelo Estado (1H221840) Que reformas para o clero brasileiro? O episcopado brasileiro c o Estado: da aparente submisso revolta aberta ( 1 8 4 0 - 1 8 9 0 )

X

BAHIA, SCULO

XIX

U m a Igreja sob tutela Prticas religiosas e polticas da elite leiga Questo religiosa ou questo dos bispos A Igreja e a escravido Captulo 2 0 - C n e g o s e procos: u m a verdadeira riqueza e m h o m e n s O alto clero: o captulo-catedral O alto clero: o tribunal eclesistico O baixo clero: curas e capeles O clero baiano diante das reformas O uso da batina O celibato As conferncias eclesisticas Formao do clero O recrutamento do clero As rendas do clero Dois modelos para a mesma misso C a p t u l o 2 1 - A s o r d e n s religiosas Ordens e congregaes recm-chegadas: os capuchinhos Ordens e congregaes recm-chegadas: as irms de So V i c e n t e de Paula Ordens e congregaes recm-echegadas: os padres da Misso Captulo 2 2 - Catequese do povo de D e u s Religio oficial e religio do povo As devoes aos santos U m a religio n o cotidiano A festa religiosa: negcio dos leigos Confrarias: irmandades e ordens terceiras A pastoral c seus agentes O padre e a pastoral Misses e pastoral As mulheres c a pastoral C a p t u l o 2 3 - T e m p l o s , m e s q u i t a s e t e r r e i r o s : religies c o n c o r r e n t e s ? O protestantismo na Bahia O catolicismo dos africanos O Isl na Bahia A herana africana: os terreirosm ;

317 321 327 333 334 334 336 341 343 345 349 350 356 359 369 373 383 384 386 389 390 391 395 397 397 404 407 408 410 415 417 42 j 424 428

LIVRO V I - O COTIDIANO DOS HOMENS QUE PRODUZIAM E TROCAVAMC a p t u l o 2 4 - Salvador: a cidade n o sculo X I XA cidade beira-mar

433 y 436 439

.

. . j

,

A cidade alta

SUMRIO

^

As casas: proximidade c reserva Revoltas e motins C a p t u l o 2 5 - As atividades p r o d u t i v a s : c o n d i e s e d e s e n v o l v i m e n t o Geografia da produo A pecuria Produtos da atividade extrativa Minas e minerais Captulo 2 6 - Relaes e comunicaes Estradas Ferrovias Transportes martimos dc longo curso Transportes martimos: cabotagem D o porto natural ao porto moderno Captulo 2 7 - Salvador, praa comercial Os comerciantes A organizao comercial As trocas entre os grandes Outras trocas Meios de pagamento Meios comerciais de pagamento A moeda e sua circulao Dados sobre o movimento comercial Principais produtos de exportao Exportaes para o exterior O comrcio da Bahia com o estrangeiro e as outras provncias

445 45 1 455 45$ 454 4^ 45^ 453 468 469 473 479 482 487 490 495 496 500 504 509 510 514 517 521 522

LIVRO V I I - O DINHEIRO DOS BAIANOSC a p t u l o 2 8 - O m e r c a d o de t r a b a l h o A dupla estrutura do trabalho urbano: mo-de-obra livre, mo-de-obra escrava .... A oferta dc emprego O mercado dc trabalho para homens livres Os escravos c o mercado dc trabalho C a p t u l o 2 9 - Salrios c preos Os salrios Preos c necessidades alimentares Os salrios e o preo da farinha nossa dc cada dia C a p t u l o 3 0 - Hierarquias sociais O modelo portugus dc sociedade O modelo baiano de sociedadeA . . .

525527 530 " ^75 4 4

5

4

6

^

5

7

9

S92

As estruturas sociais rurais

Estratificao social cm Salvador Comparaes

596 599

BAHIA, S C U L O X I X

C a p t u l o 3 1 A fortuna dos B a i a n o s Classificao das fortunas Q u e m possua? Q u e m possua o qu? Riquezas e pob rezas Concluso Notas Bibliografia

602 606 616 628 642 649 653 719

PREFCIO

Maria

Yedda

Linhares

Professora Catedrtica de Histria Moderna e Contempornea Professora Emrita da Universidade Federal do Rio de Janeiro

A tese d e K a t i a M . de Q u e i r s M a t t o s o s o b r e S a l v a d o r n o n a s c e u de u m m e r o interesse a c a d m i c o . C o m o b e m d i z a h i s t o r i a d o r a l o g o n o i n c i o , ela r e s u l t o u de u m e n c o n t r o p r o v o c a n t e : o d e u m a m u l h e r g r e g a d e p r o f u n d a s razes e u r o p i a s e h e l n i c a s c o m a B a h i a d e T o d o s o s S a n t o s e de m l t i p l o s c o l o r i d o s . O m u n d o p l u r i m i s c i g e n a d o , p l e n o de a l a r i d o s e r i t m o s , c a t i c o n a d e s o r d e m de suas e s t r a t i f i c a e s sociais, divers i f i c a d o e r i c o nas suas s u b c u l t u r a s p o p u l a r e s , ao m e s m o t e m p o alegre e triste, v i o l e n t o e p a c f i c o , c o n t r a d i t r i o , s u b m i s s o e a r r e d i o , t o d o esse m u n d o e s t r a n h o r e v e l o u - s e , j o v e m grega egressa d e u m a g u e r r a e u r o p i a , l o g o s e g u i d a de u m a e s t p i d a guerra civil, c o m o a p o s s i b i l i d a d e de u m a n o v a p t r i a . . A s s i m , a h i s t r i a d e s t a g r a n d i o s a tese n o d e i x a d e ser a s n t e s e de u m a trajetria a f o r m a o e e v o l u o d e u m a h i s t o r i a d o r a c o n s t r u i n d o o seu t e m a , v i v e n d o a e x p e r i n c i a de e x p l i c - l o a si m e s m a e a o s a l u n o s q u e ela s o u b e f o r m a r , dadivosa ao partilhar o c o n h e c i m e n t o q u e ia a c u m u l a n d o , l u t a n d o p o r r e n o v a r a pesquisa histrica n o Brasil, p o r a m p l i a r as p o s s i b i l i d a d e s de a v a n o i n t e l e c t u a l e c i e n t f i c o para u m s e m n m e r o de j o v e n s b r a s i l e i r o s c u j o s t a l e n t o s ela s o u b e revelar e i n c e n t i v a r . A esto seus d i s c p u l o s e a m i g o s , m e s t r e s , d o u t o r a n d o s e d o u t o r e s , t e s t e m u n h o s da trajetria de t r a b a l h o , c o m p e t e n c i a c s e r i e d a d e p r o f i s s i o n a l de q u e m c h e g o u u m b e l o dia em S o P a u l o , c o n s t i t u i u famlia nestas b a n d a s de c , o p t o u p o r ser brasileira e abriu c o m a f i n c o e u m m n i m o de a p o i o i n s t i t u c i o n a l o e s p a o q u e h o j e o c u p a na primeira linha da i n t e l e c t u a l i d a d e da nossa terra. O r i g i n a r i a m e n t e tese d c E s t a d o , a p r e s e n t a d a c m 1 9 8 6 Universidade de Paris I V - S o r b o n n e , este texto teve a o p o r t u n i d a d e d c ser analisado por u m a banca na qual c o n s t a v a m alguns dos mais ilustres historiadores da F r a n a , c o m o Pierre C h a u n u , E m m a n u e l Le R o y L a d u r i c , J e a n - M a r i e M a y e u r e F r a n o i s C r o u z e t , este l t i m o ten-

BAHIA, SCULO X I X

do-se destacado c o m o o r i e n t a d o r . C o u b e - m e , e m b o r a m o d e s t a m e n t e , a h o n r a de participar dessa c o m i s s o , algo i m p o r t a n t e n o m e u c u r r c u l o p o r m e ter p e r m i t i d o u m c o n t a t o mais estreito c o m a grande obra e n t o s u b m e t i d a a p r o v a o daquela U n i v e r sidade. E aqui presto o m e u d e p o i m e n t o : a tese de K a t i a M a t t o s o foi m i n u c i o s a m e n t e e x a m i n a d a , d u r a n t e c i n c o horas, e a c l a m a d a , por u n a n i m i d a d e , c o m o u m trabalho magistral, d a d o o seu raro nvel de e x c e l n c i a . C o m o c o r o l r i o , e n u m a d e m o n s t r a o de q u e c a b e U n i v e r s i d a d e absorver os valores e x p o n e n c i a i s q u e a ela se revelam, foi criada a c t e d r a de H i s t r i a d o Brasil em Paris I V S o r b o n n e , c a b e n d o a K a t i a de Q u e i r s M a t t o s o o c u p a r a sua primeira regncia c o m o T i t u l a r . E , mais u m a vez, s e m p r e b a t a l h a d o r a , c o u b e - l h e , j e m Paris, organizar e presidir u m C o l q u i o , e m j a n e i r o de 1 9 9 0 , r e u n i n d o especialistas franceses e brasileiros s o b r e diferentes experincias r e p u b l i c a n a s na H i s t r i a e u r o p i a e a m e r i c a na, inclusive n o Brasil. V i v e r h o j e na F r a n a e ser d e t e n t o r a de u m a C a d e i r a e m Paris , s e m dvida, a r e c o m p e n s a de u m p r o l o n g a d o t r a b a l h o . M a s , para K a t i a , viver n o Brasil foi o seu mais e m o c i o n a n t e a p r e n d i z a d o n o desbravar c o t i d i a n o de u m a realidade social e cultural e x t i c a , c o m p l e x a , b e m diversa d a q u e l a q u e n u t r i r a seus p r i m e i r o s saberes e suas primeiras certezas. N o f u n d o , foi o l o n g o e indispensvel e s t g i o de preparao da historiadora: o c o n t a t o c o m a vida q u e se revela, aos p o u c o s , atravs da sensibilidade da observadora e p a r t i c i p a n t e . A o desbravar o n o v o m u n d o , indisfarvel o abrasil e i r a m e n t o atravs de u m a certa b a i a n i d a d e q u e e n r i q u e c e a h i s t o r i a d o r a , na medida em que os falares, a c u l i n r i a , os rudos e a d o c e m a n e i r a de ser b a i a n a se t o r n a r a m parte^ integrantes de sua prpria m a n e i r a de ser grega e e u r o p i a . F o i esta a simbiose f u n d a m e n t a l n a vida de K a t i a , pois, n o t e n h o m a i s dvidas agora q u e t a m b m c o n h e o um p o u c o a G r c i a , foi a partir desse e n t e n d i m e n t o d o Brasil via Bahia que ela r e e n c o n t r o u a sua G r c i a ancestral. P a r e c e - m e inegvel q u e esse r e e n c o n t r o explica a l u c i d e z dos q u a t r o captulos c o m os quais ela abre a apresentao de sua cidade e de sua regio, pela utilizao exemplar da geografia. E n t r o s a m - s e a o u r b a n o e o r e c n c a v o , o papel dos rios e das vias de c o m u n i c a o , cenrio m a g n f i c o e i n s p i t o a aguardar a chegada dos novos h o m e n s que iriam conquistar, ocupar, repovoar a terra, cultivar e t r a n s p o r t a r os seus produtos. o peso dos h o m e n s c o papel da H i s t r i a , para se chegar, passo a passo, c o n s t r u o de uma sociedade. A partir desse m o m e n t o , Katia abre em leque os seus mltiplos temas de pesquisas pessoais c m arquivos da Bahia e d o R i o de J a n e i r o : a famlia baiana, a Igreja, a organizao da vida e c o n m i c a , os preos, os salrios, as hierarquias sociais. A leitura dos diferentes captulos que se seguem apresentao d o m e i o fsico e da demografia nos informa sobre o m i n u c i o s o trajeto feito pela historiadora ao l o n g o de anos de pesquisas exaustivas c, em grande parte, absolutamente pioneiras e m termos brasileiros, sobretudo baianos. Na alentada Introduo, a historiadora c o n d u z o leitor a seguir os passos que deu c suas motivaes, a p o n t a n d o os c a m i n h o s q u e a levaram no primeiro m o m e n t o histria e c o n m i c a e, paulatinamente, histria social e das

PREFCIO

3

mentalidades coletivas, b e m c o m o s p r e o c u p a e s tericas e metodolgicas c busca das fontes, c o m seus inegveis l i m i t e s . E m cada m o m e n t o , f u n d a m e n t a l destacar a erudio historiogrfica q u e o s t e n t a . O r a , h 2 5 anos, q u a n d o p r i m e i r o e n c o n t r e i K a t i a M a t t o s o n u m a pequena reunio de historiadores e m N o v a F r i b u r g o ( R J ) , confesso que fiquei fascinada c o m o e x t e n s o l e v a n t a m e n t o de preos que e n t o o c u p a v a t o d o o seu t e m p o . Tratava-se de u m a pesquisa indita n o Brasil de e n t o . A o m e s m o t e m p o , ela nos falou da histria d e m o g r f i c a feita a partir de l e v a n t a m e n t o s de registros paroquiais, tarefa que coube a J o h i l d o L. de Atayde desenvolver para o sculo X I X n o t o c a n t e a Salvador. E m pouco t e m p o , c o m u m g r u p o de j o v e n s colegas d o R i o , e l a b o r a m o s u m projeto de pesquisa, inspirado e e m c o l a b o r a o c o m nossa a m i g a baiana, a b r a n g e n d o u m variado levant a m e n t o de f o n t e s suscetveis de q u a n t i f i c a o , referentes cidade do R i o de J a n e i r o , trabalho esse q u e foi p a r c i a l m e n t e c o n c l u d o , e m fases posteriores, por Eullia Maria L a h m e y e r L o b o , M a r i a B r b a r a L e v y e p o r m i m m e s m a . A m e t o d o l o g i a vinha sendo testada de l o n g a data na E u r o p a , s o b r e t u d o n a F r a n a , mas para ns era u m universo que se abria. M a i s t a r d e , a i n d a s e g u i n d o esse e x e m p l o , c d e s d o b r a n d o - o , desenvolvi u m p r o j e t o b a s t a n t e s i g n i f i c a t i v o de h i s t r i a agrria, e m m b i t o de ps-graduao. O que i m p o r t a assinalar q u e o e n c o n t r o c o m K a t i a M a t t o s o em meados da dcada de 1 9 6 0 foi e s t i m u l a n t e e decisivo n o n o v o r u m o t o m a d o por grupos de historiadores no R i o de J a n e i r o , h o j e j para m a i s de t r i n t a mestres e d o u t o r e s , na Universidade Federal F l u m i n e n s e e na U n i v e r s i d a d e F e d e r a l do R i o de J a n e i r o . D a m e s m a f o r m a , a utilizao s i s t e m t i c a q u e K a t i a fez de inventrios post mortem da Bahia, inclusive de escravos e forros, a b r i u novas perspectivas de estudos em histria social ( c o m o se r i c o , c o m o se p o b r e ) , e x e m p l o q u e t a m b m foi amplamente seguido em vrios c e n t r o s universitrios d o Brasil. O c u i d a d o c o m os conceitos, a relatividade do v o c a b u l r i o , o perigo d o a n a c r o n i s m o , so algumas das advertncias preliminares, i n c o r p o r a d a s ao p r p r i o c o r p o t e r i c o das investigaes. Importa, pois, ressaltar a o r i e n t a o m e t o d o l g i c a , d e n t r o de novas preocupaes tericas, c o m o uma pondervel c o n t r i b u i o r e f o r m u l a o de temticas e reorientao dos conhecimentos. Ao longo de trinta anos, Katia c o n d u z i u seminrios c o m seus alunos em seu apartamento de Salvador, t e n d o sido s e m p r e u m a infatigvel orientadora de pesquisa, aberta s indagaes e generosa n o acesso q u e concedia a seus ciados e concluses. N o Brasil c, agora, na Frana, Katia M a t t o s o marcou e marca sua presena c o m o professora, pesquisadora c chefe de equipe. Afinal, sem a persistente pesquisa arquivstica, associada preocupao c o n s t a n t e de formular c reformular problemticas e hipteses de trabalho, no h Universidade que se preze, nem existe possibilidade de construo c reconstruo de c o n h e c i m e n t o . A reside o principal mrito do saber que a Universidade propicia: o saber nunca ranoso e que sempre se renova. T a m b m nisso Katia d o eaemplo. D a histria quantitativa e serial dos preos, feita com afinco e correo de mtodo, e da demograha histrica tradicional da velha escola francesa, atual preocupao com uma histria

4

a social menos estrutural e mais volta a p talidades, foram grandes os avanos, mas

ara os fatos d o c o t i d i a n o , c e n t r a d a nas menQ S r e c u 0

s . S e , p o r u m lado,a

a

^^ . ^ ^

p

o

u

c

o

o

u

m

i

s

intelectualizados, e x p l i c a t i v o . Katia

Histria se tornou mais />*/W^ e pa atave por outro, ela perdeu em M a t t o s o soube dar u m . a l t o i m p o r t a m a o m vigorou at os anos o6

^a r g

^h i s t r i a e c o n

r

n

i

c

a

s e r i a l

^n

^

sociais,

^

^

^

c

t

o s m e r o s relatos historizantes de .

voltada oara as mentalidades, mas sem sc ^

os analistas da chamada vida poltica d o passado m a i s r e m o t o . assim que seu

livro se abre para a histria bastante sugestiva da I g r e j a , a p o n t a n d o , dessa f o r m a , para um dos pilares daquela sociedade. Sei q u e suas i n v e s t i g a e s nesse c a m p o c o n t i n u a m . Esperemos, para breve, a i m p o r t a n t e o b r a q u e c e r t a m e n t e vir p r e e n c h e r u m a lacuna na historiografia brasileira. Suas concluses so simples mas instigadoras de n o v o s c o n h e c i m e n t o s . A o refletir sobre o tema, moveu-a a p r e o c u p a o de e x p l i c a r p o r q u e a B a h i a q u e fora capital da C o l n i a e a " m a i s p o l i c i a d a " das cidades d o E s t a d o d o B r a s i l , n o d i z e r d o professor de grego do sculo X V I I I s o t e r o p o l i t a n o , L u s dos S a n t o s V i l h e n a c h e g o u situao de letargia, m u i t o palpvel ainda n o i n c i o d a s e g u n d a m e t a d e d o sculo X X . Recuar n o t e m p o e procurar u m a e x p l i c a o plausvel, eis a l i n h a q u e K a t i a traou. E formulou suas perguntas: a esclerose da e c o n o m i a b a i a n a , a l i a d a s resistncias de relaes sociais enraizadas na histria da C o l n i a e d a e s c r a v i d o , t e r a explicao profunda na letargia que se apossa da P r o v n c i a / E s t a d o a p a r t i r d o m e a d o d o Imprio? Existir, de fato, u m a relao de causa e efeito e n t r e o e c o n m i c o e o social? E , ainda, a partir de que m o m e n t o e de que indcios se p r e s s e n t e a m u d a n a d o preservar e do manter para o gosto do inovar e do desenvolver? C o m essas questes em m e n t e , K a t i a p e n e t r a n a a l m a b a i a n a , n o s seus m i t o s e em algumas de suas falcias: a majestade do "ser senhor de e n g e n h o " , a d e m o c r a c i a racial que camufla o conflito (j t e m a de u m livro i m p o r t a n t e , Ser escravo no Brasil, e d i t a d o originalmente em francs), o e q u v o c o de se acreditar s e m p r e na i n f i n i t a fertilidade das terras inesgotveis, o peso d o c o m e r c i a n t e sobre o p r e s t g i o s o c i a l d o g r a n d e proprietrio rural, o gosto associativo dos baianos, o i m e n s o papel d a f, das p r t i c a s religiosas e da orga .zaao da Igreja, o ser n c o n o sculo X I X , o ter sido escravo s i n n i m o d e ser pobre. 1 8 6 0 no L a P r o v . f 7 ^T' nossa I rovncia foi desaprendendo posras pelo d o , , c . cercava Curdo na sua maneira prpria dc p r e s , , TC m u m m

^

c

h

1 " d r . , , c o u b e s relaes sociars,s t

7

M - s , a partir dos anos i o

eCO

" '

m CaS

herdado da escravido. m a o ' m " jugos e das submisses seculares. T e n h o certeza dc que o leitor ene

!

" " f f " " * * " ' " ! * " > b r e v . v n c . a e d e e s c a m o t e a o dos ^0

e muitos outros temas dc reflexo c de c n ' a complexidade do presente com o qu a

h

'

S t 6 r a

s o c i a l

d

a

B

a

h

i

a

e S S C S

I

nl^e, a

i n t c l e c t u a l

-

P e r c e b e r melhor

o c o n h e c i m e n t o apressado de uma histr'

' quer

n

r

a

m

o

s

s c

p

o

s

s

a

' > d a , o q u a n t o ilusrio a u t o - i n t i t u l a r definitiva. Aoe air

PREFCIO

5

trazer a p b l i c o a sua o b r a Bahia,

sculo XIX-

Uma provncia

no Imprio,

K a t i a M . de

Q u e i r s M a t t o s o n o s d u m a l i o de d i g n i d a d e p r o f i s s i o n a l e de grandeza a c a d m i c a , a f i r m a n d o , ao t e r m i n a r , c o m h u m i l d a d e , q u e a p e n a s " c o m e a a c o m p r e e n d e r essa s o c i e d a d e , o n d e os h u m i l d e s e os pobres de esprito s o t a n t o s q u e suas vozes deveriam a b a f a r a dos g l o r i o s o s e dos e l o q e n t e s " . g o s t o s o p e n e t r a r n o m u n d o b a i a n o pela m o de K a t i a M a t t o s o , a grega de f a b u l o s a t r a d i o c i v i l i z a t r i a , q u e se fez brasileira n a i n t e l i g n c i a e n o c o r a o .

APRESENTAO

Este livro nasceu de u m a tese d e f e n d i d a e m o u t u b r o de 1 9 8 6 na Universidade de P a r i s - S o r b o n n e . Para u m professor brasileiro, c o m o eu, o desafio era audacioso: apresentar u m a tese c u j a m o n u m e n t a l i d a d e respondesse s exigncias do Doutorado de E s t a d o , a " g r a n d e t e s e " , q u e a F r a n a de h o j e acaba de suprimir pela urgente necessidade de acelerar o acesso de j o v e n s professores ao magistrio superior. Para esta e d i o , o texto original foi t o d o revisado, de m o d o a permitir uma leitura mais gil. Para t a n t o , foram s u p r i m i d a s numerosas tabelas, longas listas, grficos e anexos por demais t c n i c o s . Seria impossvel n o m e a r todos os q u e , na trajetria de um trabalho de flego feito ao longo de u m a vida de m u i t a s a n d a n a s , a j u d a r a m - m e pela presena encorajadora ou pelas sugestivas e proveitosas discusses: antigos alunos das universidades de Salvador, colegas professores, f u n c i o n r i o s dos m u i t o s arquivos pblicos e privados, amigos mais jovens o u mais experientes e o povo da B a h i a de T o d o s os Santos, que, em mais de trinta anos de c o n v i v n c i a ininterrupta, e n s i n o u - m e a amar e fez tanto por mim. T o d a v i a , sem o a p o i o e a amizade de Franois C r o u z e t e sem o incentivo de Pierre C h a u n u esta obra jamais teria sido apresentada da maneira prestigiosa c o m o me foi permitido faz-lo na S o r b o n n e . D e v o t a m b m expressar t o d o o m e u r e c o n h e c i m e n t o generosidade, abertura de esprito c h fidelidade s razes baianas demonstradas pelos editores da Nova Fronteira. Sem a tenacidade de Maria Clara M a r i a n i , do seu filho Carlos Augusto e da equipe dirigida por Csar B e n j a m i n , este livro, to volumoso para os padres brasileiros, no seria editado em meu pas. A Maria Clara Mariani e a seus colaboradores, o mrito de terem acreditado que as contribuies por mim trazidas ao c o n h e c i m e n t o de certos aspectos do rico passado da nossa Bahia ajudariam a compreender os vrios mundos baianos dos tempos de hoje. Katia M. de Queirs Nattoso Paris, 7 de dezembro de 1991 7

INTRODUO

D e i x e m - m e c o n f e s s a r : este t r a b a l h o resulta d e t r i n t a a n o s de a m o r por u m a cidade, Salvador, e p o r u m a regio, a B a h i a . U m a m o r imprevisvel, d e c o r r e n t e de u m itinerrio imprevisvel; p r o v o c a n t e , n a s c i d o de u m e n c o n t r o p r o v o c a n t e entre u m p o v o que veio de todas as p a r t e s e u m a m u l h e r grega, c o m fortes razes europias e helnicas. Q u e f e i t i c e i r o m a l i c i o s o teria f e i t o u m a j o v e m v o l i o t a importante porto oriental da G r c i a de V o l o s , p e q u e n o e c o m p l e t a r na sria L a u s a n n e seus estudos

s e c u n d r i o s , p e r t u r b a d o s p o r n o v e l o n g o s a n o s de guerra, seguidos de u m a guerra civil i g u a l m e n t e cruel? A b o a c i d a d e s u a o f e r e c i a e n t o slidas escolas universitrias a uma pequena elite e m q u e os estrangeiros s o b r e t u d o , as estrangeiras eram p o u c o n u m e r o s o s . P e l a p r i m e i r a vez e x p e r i m e n t e i o c h o q u e , a adaptao e o enriquec i m e n t o i n t e r i o r , f a c i l i t a d o s , v e r d a d e , p o r u m a i n f n c i a e u m a adolescncia nas quais a i n f l u n c i a f r a n c e s a f o r a m a r c a n t e . T i v e a s o r t e de p e r t e n c e r a u m a famlia aberta e interessada n o s o u t r o s . A l m disso, apesar de ter passado longos meses sem escola p o r causa das a t r i b u l a e s d a guerra, m e s t r e s excelentes, c o m o S i m o n e Marxer, H l n e C h a l i v o p o u l o u e C o n s t a n t i n L a d o y a n n i s a j u d a r a m - m e a despertar para a vida, deixando c o m o h e r a n a u m s e n t i m e n t o d e gratido q u e at h o j e a n i m a e alegra min h a v o n t a d e de 'fazer h i s t r i a ' . Em 1 9 5 6 , c o m 2 5 a n o s d e i d a d e , a c o s t u m a d a s populaes homogneas da G r c i a e da S u a , tive e m S o P a u l o m e u p r i m e i r o c o n t a t o c o m o Brasil. T u d o parecia febril, d i n m i c o , em expanso, at m e s m o arrogante, nessa cidade de aparncia europia, habitada porm por pessoas de n a c i o n a l i d a d e s e cores as mais diferentes. M a s s n o a n o seguinte d e s c o b r i , e m Salvador, o Brasil q u e p o u c o a p o u c o se tornaria meu. A B a h i a m e foi i m p o s t a p o r acaso: descobrira-se petrleo na regio do Recncavo, hinterlndia da capital, e para l seguiu m e u m a r i d o , g e l o g o , encarregado de fundar a primeira escola brasileira especializada n o assunto. Salvador tinha ento meio milho dc habitantes, mas em contraste c o m a S o Paulo de 3 , 5 milhes era uma 'bela adormecida , a p a r e n t e m e n t e estagnada n o t e m p o . Sua populao parecia dez vezes1

m e n o r que a real, escondida em p e q u e n o s vales q u e separavam colinas furta-cores, cercadas pelo mar c por praias acolhedoras. O s baianos rezavam em igrejas e conventos9

10

BAHIA, SCULO X I X

ricamente

adornados c o m o u r o e c o m deliciosas esttuas barrocas, mas m o r a v a m em

casebres o u manses deterioradas, t e s t e m u n h a s de u m e s p l e n d o r d e c a d e n t e . D e s d e q u a n d o a o p u l e n t a capital d o Brasil c o l o n i a l se t o r n a r a u m a cidade e m que riqueza e glria eram coisa do passado? S o P a u l o e n r i q u e c i a c o m o r g u l h o . Salvador gritava sua d e c a d n c i a . F a l t a v a m , cidade, prdios m o d e r n o s e i m p o n e n t e s ; os b o n d e s c i r c u l a v a m por ruas e avenidas estreitas, o n d e p o u c o s a u t o m v e i s se v i a m ; os ricos e r e m e d i a d o s h a v i a m e m i g r a d o para bairros mais arejados. O Brasil de S o P a u l o era o m e s m o d a B a h i a ? Haveria vrios Brasis? A t a p r e d o m i n n c i a e u r o p i a , q u e p u d e s e n t i r n o p r i m e i r o c o n t a t o c o m o pas, dava lugar agora m a r c a n t e i n f l u n c i a a f r i c a n a , i n f i n i t a m e n t e variada pelas m e s t i a g e n s . O s rostos de ricos e p o b r e s t i n h a m traos n e g r o i d e s , para m i m ntidos e impressionantes, p o r m p o u c o perceptveis habitantes d o lugar. A vida c o t i d i a n a m e fez ' a p r e n d e r a B a h i a ' . A l u g a m o s u m a p a r t a m e n t o num prdio de trs andares de u m bairro c o n s i d e r a d o e x c e l e n t e ; m a s a ladeira, r e c m construda, virava l a m a a l a cada p a n c a d a de c h u v a . N a v i z i n h a n a , casas de taipa c o m c h o de terra batida a b r i g a v a m sob folhas de b a n a n e i r a u m a p o p u l a o m u i t o p o b r e . T o d a s as n o i t e s , d u r a n t e horas, v i n h a m dali e s t r a n h o s r i t m o s e c a n t o s religiosos, c u j o mistrio n o se desfazia a c a d a m a n h . A d a p t a r - m e significava renascer. E r a preciso a p r e n d e r c o m a inteligncia e o c o r a o os pressupostos de u m m u n d o n o v o . Isso d e m a n d a v a t e m p o . O portugus que eu falava era c o r r e t o , m a s i n s u f i c i e n t e para a relao diria c o m a p o p u l a o . Ainda teria q u e m e a c o s t u m a r fala d o c e e ao s o t a q u e b a i a n o s e, s o b r e t u d o , s mil e uma sutilezas implcitas nas palavras, de s e n t i d o q u a s e s e m p r e i t i n e r a n t e , variando c o n f o r m e q u e m fala e a q u e m se dirige. O s b a i a n o s t m sensibilidade flor da pele. U m gesto inbil cria a b i s m o s e n t r e as pessoas. T r a t a r , p o r e x e m p l o , u m b r a n c o de nego ou de meu nego sinal de afeio; m a s , se o i n t e r l o c u t o r n e g r o o u m u l a t o , isso pode indicar desprezo, o u ser e n t e n d i d o assim. O vocabulrio local c o n t m expresses tpicas da o p i n i o dos baianos sobre o m u n d o . ' S e D e u s quiser' indica, ao m e s m o t e m p o , resignao e f, c o m c o n o t a o supersticiosa. E m Salvador, essa prudente assertiva a c o m p a n h a a expresso de qualquer desejo ou esperana, m e s m o banais, c o m o retornar n o dia seguinte ao m e s m o lugar. Mas h uma c o m p e n s a o para tal insegurana: o ' j e i t o ' , vigente verdade em todo o Brasil, mas especialmente na Bahia, terra das coisas feitas c o m arte e astcia. A existncia do jeito antecede o prprio problema especfico a ser enfrentado: o trabalhador 'd um j e i t o ' de efetuar um conserto impossvel; o marinheiro faz o m e s m o para enfrentar ventos, barras c escolhos; o jovem, ' c o m j e i t o ' , e n c o n t r a o emprego n e cessrio. C o m a ajuda de Deus e do ' j e i t o ' , complementares entre si, o senhor de engenho e o pequeno lavrador esperam, a cada a n o , uma colheita m e l h o r . T i v e tambm que aprender o portugus erudito dos baianos cultos, que no usavam o palavreado c a sintaxe popular simplificados. Falavam quase uma outra pude constatar para os

INTRODUO

ti

lngua, i g u a l m e n t e indispensvel para c o m p r e e n d e r u m m u n d o e m que a fala era mais i m p o r t a n t e d o q u e a escrita, em que as tradies eram t r a n s m i t i d a s pela famlia (sem i n t e r v e n o da escola) e p o r l i n g u a g e n s , usos e c o s t u m e s b e m c o d i f i c a d o s . Esses c d i gos variavam s e g u n d o os g r u p o s sociais, t o r n a n d o - s e m u i t o diversificados em u m a sociedade em que n o apenas a c o r , mas t a m b m as tradies religiosas e culturais eram miscigenadas. O s g r u p o s h a v i a m l e v a n t a d o barreiras que os tornavam pouco acolhedores d i a n t e de ' e s t r a n g e i r o s ' , i n c l u i n d o - s e nestes os brasileiros o r i u n d o s de o u t r o s estados. P e r n a m b u c a n o s , s e r g i p a n o s , paulistas, cariocas o u m i n e i r o s , todos eram i m e d i a t a m e n t e r e c o n h e c i d o s e c o l o c a d o s e m seu lugar: fora! M e u m a r i d o e eu t n h a m o s p o d e r o s o s t r u n f o s : f o r m v a m o s um casal de raa b r a n c a , c o m s o b r e n o m e c o n h e c i d o e i n s t r u o universitria. A s s i m , integrvamos, de sada, o g r u p o d o m i n a n t e , a elite i n t e l e c t u a l . H a v i a u m a antiga tradio universitria e era g r a n d e o prestgio social dos s e n h o r e s de e n g e n h o , q u e e m outras pocas t i n h a m feito da p r o v n c i a b a i a n a u m s m b o l o da riqueza a u c a r e i r a . U m Q u e i r s M a t t o s o podia ser ' e s t r a n g e i r o ' , m a s , para c e r t a c a s t a , era u m e s t r a n g e i r o f r a t e r n o , descendente de u m a n o b r e f a m l i a de s e n h o r e s de e n g e n h o d o R i o de J a n e i r o , d e t e n t o r a de ttulos o u t o r g a d o s n o sculo X I X e m r e c o n h e c i m e n t o aos servios prestados a o i m p e r a d o r . Alm disso, os b a i a n o s l e t r a d o s n u t r i a m u m c u l t o s i n c e r o E u r o p a e ao acervo da civilizao grega. A s s i m , p o r causa da nossa o r i g e m o u p e l o tradicional n o m e da nossa famlia, portas se a b r i r a m . F o m o s r e c o n h e c i d o s social c p r o f i s s i o n a l m e n t e . M a i s do que isso: f o m o s rapidam e n t e a c o l h i d o s , p r o t e g i d o s , a m a d o s , pela figura q u e viria a ser at hoje m i n h a o r i e n t a d o r a em m a t r i a d e m e n t a l i d a d e s b a i a n a s : Adalgisa M o n i z de Arago, filha e n e t a de s e n h o r e s de e n g e n h o , d e s c e n d e n t e de u m a famlia que se instalara na Bahia nos idos d o s c u l o X V I . E l a n o s e n s i n o u as regras de c o n d u t a q u e regem as relaes e n t r e os diversos g r u p o s sociais de Salvador. O r g u l h o s a herdeira de riquezas perdidas (at d i l a p i d a d a s ) , d o n a - d e - c a s a de c o r a o a b e r t o , c o m p l e t a m e n t e baiana, Adalgisa m e fez c o m p r e e n d e r as h i e r a r q u i a s sociais da regio, impregnadas de desigualdades, que t o r n a v a m q u a l q u e r b r a n c o u m h o m e m rico e qualquer preto, ou quase preto, u m p o b r e . A b r a n c u r a era mais i m p o r t a n t e (e mais durvel) que a riqueza, que podia desaparecer. E r a o verdadeiro sinal de h e r a n a n o b r e , t e s t e m u n h o de um passado a ser preservado. M i n h a amiga me fez ver q u e d e c a d n c i a alguma d i m i n u a o prestgio dos senhores de e n g e n h o . A l e m b r a n a de grandezas passadas era fielmente conservada por meio de uma tradio oral q u e r e m e m o r a v a novas n a t u r a l m e n t e , c m b e l c z a n d o - o s c o m estrias os faustos de o u t r o r a , tornados assim quase palpveis. Essa antiga elite

formava um grupo fechado, cujos m e m b r o s compartilhavam um orgulho, uma soberba, que podia tornar-se arrogncia. O s 'novos ricos', brasileiros ou estrangeiros, eram considerados c o m um desdm que mal dissimulava certo cime. Por outro lado, as alianas m a t r i m o n i a i s c o m famlias tradicionais m e s m o empobrecidas, s vezes muito p e r m a n e c i a m um s o n h o para qualquer 'enriquecido'. A uns, tais alianas

BAHIA. SCULO X I X

I - > niirros i n e r e s s a r nesse m e i o t e c h a d o , p e r m i t i a m ' d o u r a r n o v a m e n t e seus brases ; a o u t r o s , m g s u p r e m o sinal de x i t o . ,

F o n t e de poder e de relativa s e g u r a n a , o servio p b l i c o era c o n s i d e r a d o p o r essas famlias tradicionais c o m o a n i c a atividade c o m p a t v e l c o m sua c o n d i o e seu dese,o de m a n d o . D e p o i s de estudar e n g e n h a r i a , d i r e i t o o u m e d i c i n a , a b r i a - s e n a t u r a l m e n t e , aos filhos dessa elite, u m a carreira q u a l q u e r de f u n c i o n r i o . O s ' c o n c u r s o s selecionav a m r e g u l a r m e n t e os i n t e g r a n t e s de f a m l i a s c o n h e c i d a s . F e i t a a n o m e a o , o j o g o se perpetuava: o d e s c e n d e n t e d e a n t i g o s p r o p r i e t r i o s (de t e r r a s , a c a r o u g a d o ) ou de grandes n e g o c i a n t e s c o n t i n u a v a f a v o r e c e n d o seus pares nas p r o m o e s . Isso n o i m p e d i a , n o e n t a n t o , q u e se p e r p e t u a s s e a v e l h a p r t i c a de p r e s t a r favores a a m i g o s mais m o d e s t o s , f o r m a n d o assim u m a c l i e n t e l a fiel, c u j a e x i s t n c i a era um i m p r e s c i n d v e l sinal d a p o s i o social d o f u n c i o n r i o . A f i n a l , f o r t u n a s d i m i n u a m e at d e s a p a r e c i a m , m a s o p r e s t g i o das f a m l i a s p r e c i s a v a ser r e n o v a d o , reavivado e f o r t a l e c i d o p o r m e i o desse s e m - n m e r o de a f i l h a d o s . A l m d e ser u m a h o n r a e u m a f o n t e de r e m u n e r a o segura, servir a o E s t a d o t r a z i a p r e s t g i o , g a r a n t i a o d e s e m p e n h o d o papel de p r o t e t o r e r e n o v a v a a i n f l u n c i a , real o u s u p o s t a , de q u e m geria uma parcela d o p o d e r . Apesar d o e m p o b r e c i m e n t o e at m e s m o de f a l n c i a s e s t r o n d o s a s , essas famlias g e r a l m e n t e c o n s e r v a v a m vestgios da riqueza de a n t a n h o : p r a t a r i a e s p l n d i d a , jias raras, b i b e l s a n t i g o s , tapetes i m p o r t a d o s , o r a t r i o s c o m e s t a t u e t a s p o l i c r o m a d a s e mveis imponentes, fabricados c o m madeiras preciosas. O s e m p r e g a d o s tinham o b r i g a e s especficas: havia a b a b , a g o v e r n a n t a , a c o z i n h e i r a , a c r i a d a d e q u a r t o , a lavadeira, a passadeira e assim p o r d i a n t e , s e m p r e e m n m e r o i n v e r s a m e n t e prop o r c i o n a l s rendas o u q u a n t i d a d e d e pessoas a s e r e m a t e n d i d a s . N o e r a m r e m u nerados, pois servir a essas famlias era u m a h o n r a . A l m d i s s o , q u a n d o crianas, haviam b r i n c a d o c o m a d o n a - d e - c a s a , o u e r a m a f i l h a d o s de sua filha, ou descendiam de antigos escravos, de a m i g o s o u de p a r e n t e s p o b r e s , a c o l h i d o s n o passado e m a n t i d o s pela famlia. S u a d e d i c a o g a r a n t i a - l h e s casa, c o m i d a e r o u p a s e renovava esperanas de ascenso social. G l r i a s e h o n r a r i a s , r e c o m e n d a e s e p e r m u t a s , n o vos a p a d r i n h a m e n t o s , p r o x i m i d a d e c o m o privilgio dinheiro. Estabelecidos na cidade, os antigos proprietrios viviam n u m vaivm q u e lhes permitia cultivar relaes c o m os q u e habitavam suas terras. F o r m a l i d a d e s administrativas, consultas mdicas ou simples v o n t a d e de rever parentes e a m i g o s traziam a Salvador, para temporadas mais ou m e n o s longas, grande n m e r o de familiares, em busca talvez da velha tutela exercida pelos senhores de e n g e n h o . Essa necessidade de segurana era ainda mais profunda nos agregados que c o m p a r t i l h a v a m a i n t i m i d a d e da famlia. Q u a n d o meus amigos reconheciam n u m criado qualidades de g e n t e direita', subcntcndia.se que ele passara a ser u m a pessoa sem defeitos, liberada da tara social de nao ser ningum, separada finalmente da massa a n n i m a que vivia merc de uma vida sem r u m o e sem referncias. t u d o isso valia mais que

INTRODUO

S e n h o r e s e e m p r e g a d o s se u n i a m para m a n t e r vivo u m passado q u e e m t o d o s despertava saudades. A m e m r i a c o l e t i v a era c u l t i v a d a c o m h a b i l i d a d e pelos q u e tin h a m interesse e m reviver o a n t i g o p o d e r f a m i l i a r , f o n t e de u m prestgio a u t o r e f e r e n c i a d o e p r o v e i t o s o . F e c h a v a - s e o c r c u l o : agregados e parentes serviam ao n cleo herdeiro d o v e l h o p o d e r e f o r m a v a m , eles m e s m o s , u m a clientela q u e reafirmava esse p o d e r n o m o m e n t o p r e s e n t e . P a r a o s e n h o r , m a n t e r os laos de d e p e n d n c i a era p o r t a n t o u m a n e c e s s i d a d e . P a r a os p a r e n t e s , i d e m , j q u e os verdadeiros senhores eram s e m p r e b o n s e j u s t o s , p r o n t o s a r e c o n h e c e r sua g e n t e e a designar, para ela, lugares e papis p r e c i s o s , capazes d e e v i d e n c i a r suas q u a l i d a d e s e c a p a c i d a d e s . A f a m i l i a r i d a d e singela q u e vigia e n t r e servidores n o c o n s e g u i a dissimular totalm e n t e as regras i m p e r a t i v a s p r e s e n t e s n a s r e l a e s , baseadas n o p r o f u n d o respeito daqueles q u e se s e n t i a m i n f e r i o r e s p a r a c o m os q u e se s e n t i a m superiores. O 'inferior r e s p e i t o s o ' c o n h e c i a seu lugar: n o t o m a v a a i n i c i a t i v a d e e s t e n d e r a m o , n o sentava sem p e r m i s s o , n o ria m e s m o d i a n t e d e s i t u a e s risveis, n o se p e r m i t i a ares de i m p o r t n c i a . M a i s : r e s p e i t a v a n o s seu p a t r o , m a s t o d o s os q u e m e r e c i a m respeito, c o m o esse p a d r e , a q u e l a p e s s o a i d o s a , o a m i g o c e r t o e at u m o u t r o servidor. Assim, t o d o s os f r e q e n t a d o r e s d a casa e n c o n t r a v a m q u e m o s respeitasse e t i n h a m direito sua p a r c e l a de c o n s i d e r a o . N a s o c i e d a d e b a i a n a da p o c a , ser h o m e m o u m u l h e r 'de r e s p e i t o ' s i g n i f i c a v a t e r s i d o r e c o n h e c i d o , c o m o igual, p o r u m superior; era ter sido alvo da h o m e n a g e m m e s m o c o n d e s c e n d e n t e de r e c e b e r t r a t a m e n t o i d n t i c o aos que ocupavam o t o p o da hierarquia social. R e s p e i t o m t u o e r e s p e i t o aos s u p e r i o r e s se e n t r e l a a v a m , t o r n a n d o possveis a d a p t a e s e m i n i m i z a n d o c o n s t r a n g i m e n t o s . " M e r e s p e i t e " , c o m a n d a v a o superior, l e m b r a n d o c o m e n e r g i a os l i m i t e s q u e n o p o d i a m ser ultrapassados, sob pena de desclassificao e d e p e r d a de ' r e c o n h e c i m e n t o ' , n i c o ttulo r e a l m e n t e capaz de p o s i c i o n a r a l g u m n a e s c a l a s o c i a l . " M e r e s p e i t e " , suplicava u m d e p e n d e n t e , procurando a f i r m a r - s e c o m o i n t e g r a n t e d e u m a s o c i e d a d e cujas hierarquias c o n f e r i a m , a cada u m , seu q u i n h o de s e g u r a n a . Apesar d e t o b e m o r g a n i z a d o , esse ritual n o conseguia enganar n i n g u m . O s e n h o r c o n h e c i a suas l i m i t a e s e p r o c u r a v a evitar c o n f l i t o s . S a b i a que as relaes de d e p e n d n c i a t i n h a m u m lado i l u s r i o , pois e s c o n d i a m u m a interdependncia. Alm disso, n o q u a d r o d a vida u r b a n a , tornava-se c a d a vez mais difcil conquistar uma clientela. O c a m p o , o e n g e n h o , a fazenda o n d e estava viva a lembrana d o poder familiar p e r m a n e c i a m o lugar em q u e se recrutavam essas fidelidades. O s servidores t a m b m c o n h e c i a m seus limites, participando de um j o g o em que obedincia e m a n d o , servio e proteo, resultavam de clculos feitos e m implcita parceria. C h e g a v a - s e assim a acordos tcitos q u e p o d i a m ser rompidos por ambas as partes. Nesse c a s o , cessavam a 'fidelidade', o 'respeito' e o ' r e c o n h e c i m e n t o social'; surgia o q u e os patres c h a m a v a m 'ingratido' e os servidores, ' i n d i f e r e n a . Este l t i m o s e n t i m e n t o era a d m i r a v e l m e n t e ilustrado p o r u m a frase simples " n o d mais bola para m i m " q u e expressa a idia de um j o g o em que se recebe e se entrega,

14

BAHIA, SCULO X I X

se t o m a e se d, n u m a situao de certa igualdade. A r e s t r i o : m e s m o r o m p e n d o o a c o r d o (pela no-realizao de um desejo d o servidor, por e x e m p l o ) o p a t r o nao podia ser c o n s i d e r a d o ingrato', pois essa categoria s c a b i a a q u e m rejeitava u m passado em q u e recebera p r o t e o . S o servidor p o d i a c o m e t e r u m a t o de i n g r a t i d o , alis imperdovel, pois t u d o o que se havia t o r n a d o na vida, t u d o o q u e o b t i v e r a , decorria do a p o i o r e c e b i d o , e n o de suas q u a l i d a d e s pessoais. Nesse j o g o , favores, r e c o m e n d a e s ou b e n e f c i o s e r a m c u i d a d o s a m e n t e divulgados e evocados. T o d o s se situavam em f u n o das suas relaes. N i n g u m podia ignorar o u desprezar c o n s t r a n g i m e n t o s sociais e n r a i z a d o s , p r e t e n d e n d o c o l o c a r - s e ind i v i d u a l m e n t e em evidncia. Seria hipocrisia? A t h o j e , n o sei. A s o c i e d a d e baiana, alegre e expansiva, de a p a r n c i a a b e r t a e a m v e l , p a r e c i a d e s c o n f i a r p r o f u n d a m e n t e de tudo o que pudesse vir a alterar esses sutis i n t e r c m b i o s . A u t o r i t r i a m a s riqueza, e m b o r a i m p o r t a n t e , n o d e s e m p e n h a v a o papel p r i n c i p a l . E u n o era n e m atora, n e m a u t o r a , desse v e r d a d e i r o e s p e t c u l o . A s r e l a e s sociais m e intrigaram, mas logo aprendi a c o n h e c e r o d u p l o c o m p o r t a m e n t o , c a r a c t e r s t i c o do m e i o o n d e estava. P u d e assim o c u p a r u m lugar n o seio de u m a f a m l i a t r a d i c i o n a l , f a z e n d o - m e c o m p r e e n d e r pelos o u t r o s m e m b r o s desse g r u p o e p o r t o d o s os b a i a n o s . N a s inmeras reunies sociais, e n t r e as m u l h e r e s p r e v a l e c i a m c o n v e r s a s cheias de lugares-comuns sobre os m a r i d o s , as crianas e os c r i a d o s , a s s u n t o s o b r i g a t r i o s em aniversrios, c a s a m e n t o s e at e n t e r r o s . As c e r i m n i a s religiosas e r a m t r a n s f o r m a d a s em reunies m u n d a n a s . O p r i m e i r o aniversrio de u m f i l h o , as b o d a s de prata de um casal, tudo era m o t i v o para d o c i n h o s e presentes. D a m e s m a f o r m a , o l a n a m e n t o de um livro, m e s m o m o d e s t o , era p r e t e x t o para discursos e e n c o n t r o s . C o n h e c i na B a h i a alguns e u r o p e u s e u m grande g r u p o de n o r t e - a m e r i c a n o s c o m q u e m passei a discutir o que se podia e o q u e n o se p o d i a fazer, c o m p a r a n d o experincias, corrigindo c o m p o r t a m e n t o s e d e s e n v o l v e n d o p o n t o s de referncia indispensveis a u m a adaptao b e m - s u c e d i d a . N o e n t a n t o , o c o n t a t o c o m os mais h u m i l d e s foi a dura escola que m e ensinou o flexvel, ela se esmerava em apertar as tramas vertical e h o r i z o n t a l d e u m t e c i d o s o c i a l n o qual a

savoir-faire indispensvel

para viver na B a h i a , o n d e

a pechincha reina sobre todos os preos. U m s o t a q u e e s t r a n g e i r o , por m e n o r que seja, deixa qualquer um c m desvantagem d i a n t e de vendedores de bens o u prestadores de servios. Q u a n t a s vezes inventei, para motoristas dc txis, u m a suposta origem gacha, na esperana dc que os 'estrangeiros' d o Brasil fossem m e n o s r o u b a d o s do que OS da huropa! O s contatos com artesos, pequenos funcionrios, c a m e l s e c o m e r c i a n t e s modestos - que formam ns camadas intermedirias da sociedade - t a m b m so regidos por um cerimonial especfico. completa falta de tato dirigir-se a eles s i m p l e s m e n t e pelo n o m e , sem utilizar senhor ou senhora'. A n a l o g a m e n t e , os que possuem ttulos universitarios devem ser tratados de d o u t o r ' . S o demonstraes do respeito indispensvel para que o interlocutor no caia no a n o n i m a t o de um simples p r e m e , insuficiente para conferir o prestgio social esperado.

INTRODUO

15

T o d o s os indivduos idosos ou s o c i a l m e n t e superiores devem ser tratados na terceira pessoa. N a s conversas c o m os mais h u m i l d e s , depois de transcorrido o devido t e m p o de c o n h e c i m e n t o m t u o , preciso saber qual o m o m e n t o mais adequado para que o t r a t a m e n t o c e r i m o n i o s o ceda a vez ao ' v o c ' , q u e p e r m a n e c e r unilateral. S os criados so c h a m a d o s p e l o p r e m e . c o n v e n i e n t e t a m b m trat-los de v o c ' e n o utilizar as expresses ' p o r favor' o u o b r i g a d o ' , talvez para q u e n o se d impresso de fraqueza. N o s c o m a n d o s , preciso e m p r e g a r u m t o m seco ao qual n u n c a m e adaptei. T a m b m nas refeies n o fui capaz de seguir a tradio, que m a n d a dar aos empregados apenas f e i j o , c a r n e - d e - s o l , arroz e farinha de m a n d i o c a . A o oferecer-lhes pratos c o m p l e m e n t a r e s , sabia q u e n o abririam m o desses ingredientes, considerados indispensveis. A l m disso, a c e i t e i o desafio de arcar c o m e n o r m e desperdcio, pois os hb icos a l i m e n t a r e s na c o z i n h a faziam c o m q u e m u i t a c o m i d a fosse lanada n o lixo. Para m i n h a s a m i g a s , era u m a b s u r d o q u e o caf da m a n h das empregadas inclusse manteiga, q u e i j o , frutas o u gelias, e era s i m p l e s m e n t e espantoso que elas controlassem a a d m i n i s t r a o d a d e s p e n s a e das reservas da casa, situao que favorecia a ocorrncia de r o u b o s . E r a esta, n o e n t a n t o , m i n h a m a n e i r a europia, c o m certeza de evitar q u e as e m p r e g a d a s f o s s e m obrigadas a pedir ajuda para suas famlias numerosas. L o g o a p r e n d i q u e essa atitude exigia u m c o m p l e m e n t o : a demonstrao de que eu sabia p o r q u e os sacos de a c a r e de arroz se esvaziavam c o m rapidez. A relao c o m as empregadas m e m o s t r o u a i m p o r t n c i a d o papel d e s e m p e n h a d o pelas famlias j u n t o s classes populares n a B a h i a . N o o b s t a n t e existirem algumas nuances, reproduziam-se os e s q u e m a s observados j u n t o aos descendentes dos senhores de engenho. N o s m e i o s populares as u n i e s consensuais t i n h a m durao m u i t o varivel; algumas p o d i a m valer para a vida inteira, mas a m a i o r i a n o passava de alguns meses ou, no m x i m o , p o u c o s a n o s . As mulheres t e m i a m ter dois o u trs filhos, pois eram elas que assumiam todas as responsabilidades q u a n d o os h o m e n s se retiravam. Era freqente a existncia de vrios irmos apenas p o r parte de me, que reconheciam o esforo desta e n o d e m o n s t r a v a m n e n h u m a rivalidade e n t r e si. N o m x i m o , notavase uma p o n t a de d e c e p o c o m a eventual m sorte de ter irmos mais escuros. Isso no quer dizer que a organizao familiar fosse do tipo matriarcal, pois essas caractersticas decorriam da pura e simples fuga dos h o m e n s , que m e s m o assim permaneciam c o m o uma referncia i m p o r t a n t e . Seu papel reprodutor causava admirao e sorrisos. Mas os laos afetivos c o m a famlia materna eram mais fortes, at porque as avs paternas se recusavam a educar crianas cujas avs maternas fossem conhecidas. As mes, chamadas pelo n o m e , cabia trabalhar fora para trazer a comida, e s avs maternas, chamadas ' m a m e ' , cabia cuidar das crianas. E m b o r a vivessem no limite da indigncia, eram famlias abertas, que acolhiam sem hesitar os sobrinhos c as pessoas idosas, desempregadas ou rfs. Esse espirito solidrio constitua a base de uma tica peculiar, que se estendia para mais alm. Padrinhos escolhidos fora do crculo familiar ajudavam a manter e educar as crianas, assumindo obrigaes mais materiais que espirituais. Tornavam-se responsveis no

16

BAHIA, SCULO X I X

apenas pelo afilhado, mas p o r toda a famlia deste, repassando aos p r p r i o s filhos as obrigaes que a s s u m i a m . A sexualidade era encarada c o m o u m a necessidade n a t u r a l , e o p e c a d o era n o o difusa e l o n g n q u a . Apesar de f r e q e n t e , o a b o r t o era c e n s u r a d o c o m n f a s e , j q u e a criana representava u m a ddiva d o C u : o h o m e m 'fazia o m a l ' e, f a t a l m e n t e , v i n h a u m filho q u e D e u s ajudaria a criar. O c o n c u b i n a t o era o u t r a f a t a l i d a d e , s i t u a d a a c i m a de q u a l q u e r c r t i c a : os pobres pensava-se n o t i n h a m c o n d i e s de casar legalm e n t e e subir na escala social. E n t r e as pessoas m a i s h u m i l d e s , a u n i o c o m a l g u m de pele mais clara era mais b e m - v i s t a , p o r causa d a e x p e c t a t i v a de b r a n q u e a m e n t o da descendncia. E m c o m p e n s a o , em g r u p o s q u e j p e r t e n c i a m a u m nvel social m a i s elevado c o m o artesos, p e q u e n o s f u n c i o n r i o s o u feirantes a u n i o c o n s e n s u a l de u m a filha,

m e s m o q u a n d o tolerada, era tida c o m o regresso, a m e n o s q u e o p a r c e i r o pertencesse a u m a categoria m u i t o s u p e r i o r e pudesse vir a ser u m p r o t e t o r d a f a m l i a . N e s s e caso, se o c a s a m e n t o fosse impossvel, na m a i o r parte das vezes o filho n a t u r a l teria e d u c a o garantida, p o d e n d o at ser m i m a d o . M u l h e r e s v t i m a s e responsveis, h o m e n s viris e irresponsveis, c a r i d a d e e c o n f i a n a na P r o v i d n c i a revelavam t a m b m c o m p o r t a m e n t o s religiosos q u e m e deixavam perplexa. N a B a h i a , o c a t o l i c i s m o estava p r e s e n t e e m t o d a p a r t e : nas f a m l i a s reunidas para oraes, n o s f r e q e n t e s sinais-da-cruz, e m e s p e r a n o s o s p e d i d o s de b n o s , em novenas e trezenas, e m festas, missas e procisses. M a s , nas igrejas, h a v i a p o u c a reza e m u i t a conversa; as coletas de d i n h e i r o q u a s e n a d a o b t i n h a m ; e o s h o m e n s ficavam todos do lado de fora, n o a d r o . As c e l e b r a e s d o N a t a l , d a P s c o a , de N o s s a S e n h o r a da C o n c e i o , do S e n h o r do B o n f i m , do D i v i n o , de S a n t o A n t n i o e de S o J o o congregavam verdade m u i t a g e n t e , m a s e r a m as n i c a s c o m essa caracterstica, e as pessoas c o m p a r e c i a m mais p o r c u r i o s i d a d e q u e p o r f. A Igreja C a t l i c a exercera o m o n o p l i o da c a t e q u e s e p o r sculos a fio. Q u e dizia diante de tanta f dispersa e to p o u c o fervor? T e r i a ela s a b i d o r e a l m e n t e cristianizar o povo? E l a se mostrava i n f i n i t a m e n t e tolerante d i a n t e de c e r t o s c o m p o r t a m e n t o s , c o m o as unies livres, atribudas, no s e m razo, e x t r e m a pobreza e falta de instruo. A prpria Igreja s instrua, nos colgios e m e s m o nas famlias, aqueles que podiam pagar. Eram escassas as bolsas de estudo e quase inexistente a instruo religiosa das crianas matriculadas. Apesar de freqentados por pessoas batizadas, os cultos a n i m i s t a s p a r e c i a m ser ignorados pela Igreja C a t l i c a , que a p a r e n t e m e n t e falhara na sua pregao aos pobres, j u n t o aos quais as correntes protestantes davam a impresso de ter o b t i d o sucesso. M a s , se isso era verdade, se a Igreja no c u m p r i r a sua misso espiritual e n o fora capaz de disseminar sua doutrina moral, c o m o se podia explicar seu indiscutvel prestgio e seu ambguo papel na coeso das famlias e da sociedade? Seriam eles decorrentes de um consenso sempre renovado ou, c o m o no caso dos senhores de e n g e n h o , de um hbil culto ao passado?

INTRODUO

17

As c a m a d a s superiores da s o c i e d a d e e as autoridades g o v e r n a m e n t a i s precisavam, c e r t o , d o aval eclesistico para j u s t i f i c a r alguns c o m p o r t a m e n t o s . A misria i n t e l e c tual e a i n d i g n c i a material i m p e d e m as pessoas de se e r g u e r para alm da f d o carvoeiro, mas ao m e s m o t e m p o freiam certas i n d i g n a e s capazes de destruir equilbrios sociais. A elite da cidade a p a r e n t e m e n t e se c o m p o r t a v a c o n f o r m e as regras da Igreja, mas esta instituio n o despertava u m a v e r d a d e i r a b u s c a espiritual. E r a decrescente o n m e r o de v o c a e s s a c e r d o t a i s . P r a t i c a m e n t e n e n h u m s e m i n a r i s t a i n s c r i t o na U n i versidade C a t l i c a a t i n g i a a o r d e n a o . O s m i s t r i o s d a e x i s t n c i a de D e u s n o pareciam interessar s o b r e m a n e i r a h o m e n s o u m u l h e r e s de t a l e n t o , e u m a vida espiritual digna d o n o m e s existia e m a l g u n s m o s t e i r o s , o n d e estavam reclusos m o n g e s o u m o n j a s . O m e s m o t i p o de i g n o r n c i a e p a t e r n a l i s m o e x i s t e n t e n o clero e e n t r e os fiis tinha sido, o u t r o r a , d i s c u t i d o p o r m i m c o m j e s u t a s , b e n e d i t i n o s e bispos, c o n s c i e n t e s dos a n a c r o n i s m o s e das l a c u n a s d e s u a I g r e j a , i n c a p a z d e d e s e m p e n h a r seu papel, c o n g r e g a r o p o v o de D e u s , e n s i n a r - l h e os m i s t r i o s d a f e t a m b m i n c a p a z de lutar c o n t r a c e r t o s a r b t r i o s d a a u t o r i d a d e civil. A I g r e j a b a i a n a criava o u t r o s p r o b l e m a s m i n h a f, n a esfera das r e l a e s s o c i a i s . E r a a n g u s t i a n t e n o c o n s e g u i r e n c o n t r a r respostas altura. Levei m u i t o t e m p o para c o m p r e e n d e r q u e m i n h a reao era a de u m a o c i d e n t a l , u m a e s t u d a n t e a c o s t u m a d a a c a m i n h a r para a f r e n t e , c o n s t r u i n d o u m presente e m f u n o de u m f u t u r o , e n o de u m passado. S depois de dez anos n o Brasil r e t o r n e i m i n h a G r c i a n a t a l , q u e fora apagada da m e m r i a p o r u m a v o n t a d e tenaz de varrer as l e m b r a n a s dos a n o s d e g u e r r a . D e r e p e n t e , ela m e pareceu infinit a m e n t e p r x i m a da B a h i a q u e m e a d o t a r a . S e n t i n d o - m e e x p a t r i a d a , e x p e r i m e n t a n d o u m a a d a p t a o t o difcil, vivera na verdade u m r e t o r n o , u m c u l t o a o passado, i m e r s a e m u m a m b i e n t e social c h e i o de s e m e l h a n a s c o m m i n h a v i v n c i a i n f a n t i l . M i n h a essncia grega t i n h a i n c o n s c i e n t e m e n t e a j u d a d o n o e s f o r o de t o r n a r - m e u m a v e r d a d e i r a b a i a n a , de u m a Bahia envelhecida, i n e r t e , i m v e l , l e n t a m e n t e a d o r m e c i d a , prisioneira de u m passado que no parecia p o d e r ir e m b o r a . As ladeiras d a m i n h a S o t e r p o l i s d a v a m - m e agora a impresso de u m a c i d a d e b o m b a r d e a d a pelo passado: m a n s e s de dois ou trs andares, terrenos baldios invadidos p o r u m a vegetao l u x u r i a n t e q u e n o e n t a n t o mal escondia as feridas de paredes rachadas, q u e t i n h a m p e r t e n c i d o q u a n d o ? c o m o ? a baianos abastados. A o lado, u m a casa trrea p o d i a estar m u i t o b e m conservada. O s 'sinais' t r a n s m i t i d o s por ruelas e praas m u l t i p l i c a v a m - s e em cada descoberta de igrejas e c o n v e n t o s a b a n d o n a d o s , palcios na C i d a d e Alta, favelas penduradas em ladeiras ngremes o u edificadas sobre pilotis n o lodo nauseabundo de alguma enseada d o mar onipresente. O s transeuntes negros o u menos negros passavam lentos, i n d o l e n t e s , e n c a r a n d o - m e c o m olhos penetrantes e interrogativos que m e causavam mal-estar. A cidade s ficava lgubre q u a n d o , ao chegarem as fortes c h u vas de inverno, literalmente afundava na lama, por horas ou dias. M a s , c o m o sol, era bela c o m o u m a rainha destronada que n o corresse atrs de riquezas perdidas e

IS

BAHIA, SCULO X I X

conservasse o porte altivo. O s n u m e r o s o s bairros residenciais h a b i t a d o s p o r p o p u l a o abastada Vitria, Canela, Graa ou Barra n o p o d i a m c o m p a r a r - s e as magnficas casas da A v e n i d a Paulista o u d o J a r d i m E u r o p a , q u e eu d e s c o b r i r a e m S o P a u l o . A q u i , q u a s e nada era n o v o o u r e a l m e n t e m o d e r n o . P o r q u e a f o r t u n a a b a n d o n a r a essa cidade t o orgulhosa?

A HISTRIA DO BRASIL QUE M E FOI CONTADAEstava d e c i d i d a a m e i n t e g r a r p r o f u n d a m e n t e e t e n t a r c o m p r e e n d e r s e m p r e c o n c e i t o s . M a s precisava e n c o n t r a r o u t r o s p o n t o s de a p o i o , a l e m d a i n t u i o e d o instinto. Busquei interlocutores baianos, atitude natural, porm c o n t u n d e n t e : m i n h a s perguntas revelaram-se i n d i s c r e t a s . As respostas, q u a n d o v i n h a m , e r a m v a g a s , i n s p i r a v a m - s e n o passado e n o p o d i a m e x p l i c a r o p r e s e n t e , t r a t a d o q u a s e c o m o u m ' a c i d e n t e ' e c o n d e n a d o ao s i l n c i o . A u m e n t o u e n t o m i n h a c u r i o s i d a d e , j q u a s e o b s t i n a o , alimentada ademais por uma formao em cincias polticas, e c o n o m i a e sociologia. M e r g u l h e i na h i s t r i a e r e e n c o n t r e i u m a v o c a o q u e s e m p r e tive. Para c o m p r e e n d e r a B a h i a , estudei h i s t r i a d o B r a s i l ( m a i s t a r d e , e n s i n a n d o - a , aprenderia m a i s ) . M i n h a a m i g a Adalgisa M o n i z de A r a g o era p r i m a d c P e d r o C a l m o n , historiador de o r i g e m b a i a n a , q u e fizera c a r r e i r a n o R i o de J a n e i r o . S u a Histria s vezes p r e c i o s o . F o i o c o m e o de u m a verdadeira b u l i m i a d e leituras. Histria do Brasil, em c i n c o v o l u m e s , trazia u m a b o a s n t e s e d o t e m a , e s c r i t a e m e s t i l o e l e g a n t e , Calmon, c o m o H l i o V i a n n a , q u e 2 5 a n o s d e p o i s dele t e n t o u n o v a s n t e s e n a sua p r p r i a do Brasil, p r o c u r a v a , antes de t u d o , fixar o a c o n t e c i m e n t o , s e g u i n d o assim sincre de la um m t o d o 'positivista', c a r o aos h i s t o r i a d o r e s f r a n c e s e s h e r d e i r o s d o s d o i s C h a r l e s : C h a r l e s - V i c t o r Langlois e C h a r l e s S e i g n o b o s . E s c r i t a e m 1 9 3 3 , L'histoire nation franaise, de S e i g n o b o s , ainda era, n a d c a d a de 1 9 5 0 e n o i n c i o d a de 1 9 6 0 . aux tudes historiques, de 1 8 9 7 , escrita p o r L a n g l o i s c S e i g n o b o s . aos

a bblia de alguns historiadores a c a d m i c o s brasileiros, q u e t a m b m utilizavam bastante L'introduction F e l i z m e n t e , essas obras foram substitudas, e m 1 9 6 3 , pela e x c e l e n t e Introduo c o m p l e t o u a de F e r n a n d Braudel e de E m i l e L o n a r d . Ao colocarem em evidncia os a c o n t e c i m e n t o s c a liderana de atores visveis governantes, polticos, classes produtivas ou intelectuais , essas snteses so a h i s t ria de grupos minoritrios, cuja ao e influncia aparecem superestimadas. A m u l t i do a n n i m a s adquire existncia prpria ao agir pr ou c o n t r a essas m i n o r i a s atuantes, em m o v i m e n t o s insurrecionais, ou ao servir de e x e m p l o para q u e se demonstre, de maneira bem geral, aspectos c o m o a diviso da sociedade brasileira entre homens livres e escravos. O e m p e n h o em fornecer o m a i o r n m e r o possvel de detalhes (rigorosos e corretos) leva a que se apresentem as referncia bibliogrficas e d o cumentais de forma fantasiosa c acrtica. E m c o m p e n s a o , aquela histria do Brasil

estudos histricos, de J e a n G l n i s s o n , cuja passagem pela U n i v e r s i d a d e d e S o P a u l o

INTRODUO

19

evidenciava o papel e c o n m i c o e poltico de certas provncias, c o m o Bahia, P e r n a m b u c o , M i n a s Gerais, R i o de J a n e i r o , S o Paulo e R i o G r a n d e do S u l , cujos representantes e s eles ocuparam a direo dos negcios de Estado. D u r a n t e os perodos colonial e imperial, as outras provncias s ganhavam expresso prpria q u a n d o sediavam a c o n t e c i m e n t o s m u i t o precisos (a c o n q u i s t a da Amaznia pelas expedies paulistas n o princpio do sculo X V I I , o estatuto particular das capitanias do Maranho e do G r o - P a r nos sculos X V I I e X V I I I , o papel desempenhado por Gois na descoberta e explorao do o u r o n o sculo X V I I I , os m o v i m e n t o s insurrecionais c o m o , por exemplo, a C a b a n a d a n o G r o - P a r e a Balaiada n o M a r a n h o ) . D e resto, tudo se passava c o m o se a histria fosse, nesses locais esquecidos, apenas um plido reflexo do que a c o n t e c i a nas provncias mais i m p o r t a n t e s . o caso, por exemplo, da Revoluo de P e r n a m b u c o , q u e , em 1 8 2 4 , e x e r c e u i n f l u n c i a na Paraba, R i o Grande do N o r t e , Cear c Alagoas. Estas provncias s reaparecem q u a n d o perturbam a ordem pblica e a m e a a m a unidade n a c i o n a l , c e n t r a d a n o R i o de J a n e i r o . So voluntariam e n t e apagadas as especificidades regionais, q u e , de fato, propiciaram a real unidade nacional, c o n s t r u d a na diversidade. C r o n o l o g i a s , listas de a c o n t e c i m e n t o s , n o m e s de personagens importantes eis m i n h a primeira c o l h e i t a , n u m i n c i o de aprendizado que se esforava por ultrapassar, to rpido q u a n t o possvel, a c o n d i o a m a d o r a . N o v a s perspectivas se abriram quando descobri a Formao do Brasil contemporneo, d o paulista C a i o Prado J n i o r , publicada em 1 9 4 2 . U m m i s t o de satisfao e curiosidade nasceu da leitura do austero prefcio da obra. N o havia ali u m a p r o p o s t a de explicao do presente pelo passado? Este l t i m o fincava razes n o sculo X V I I I . M e s m o a f i r m a n d o que a Independncia tinha sido um m o m e n t o decisivo na e v o l u o social, poltica e e c o n m i c a do Brasil, C a i o Prado considerava q u e a primeira fase do sculo X I X s tinha sido importante na medida em que representara u m b a l a n o final da obra realizada por trs sculos de colonizao, esta sim apresentada c o m o u m a " c h a v e preciosa e insubstituvel para se acompanhar e interpretar o processo histrico posterior e a resultante dele que o Brasil de h o j e " .1

A o subestimar d e l i b e r a d a m e n t e as contribuies da Monarquia

( 1 8 2 2 - 1 8 8 9 ) , que criara as bases da unidade e do Estado nacionais, o autor contrariava a orientao da maioria dos historiadores brasileiros da primeira metade do nosso sculo. A poca colonial aparecia c o m o o p o n t o de partida de um processo histrico cheio de vaivns. Assim, o Brasil c o n t e m p o r n e o resultava do "passado colonial, que se balanceia e encerra com o sculo X V I I I , mais as transformaes que se sucederam no correr do centenio posterior a esse e n o a t u a l " .2

U m a contradio m c intrigou: para ele, as profundas transformaes iniciadas com a Independncia no estavam terminadas, mas continuavam at nossos dias. Afirmava reiteradamente que estvamos diante de um processo inacabado, marcado por uma dependncia econmica de tipo colonial em relao ao exterior. Era um desafio, lanado no mbito da teoria marxista. Q u e novidades traria para a c o m preenso do Brasil?

20

Lendo teses, descobri que o que historiadores, socilogos,c m a r X , S

o tornara -se m o d a . C m o d a m o d a : permitia ^s i m g a t ( f c

i

e n t

istas

p o l t i c o s escapassem dc

c

o

n

" . ^

p

l

e

s

r e i n t e r p r e t a o de d a d o s bibliogr^ o r i g i n a l , c o m caractersticas de i t a o m a i s o u m e n o s garantidan e c e S

aborrecidas pesquisas em arquivos, pois ^ fieos j conhecidos permitia criar um; ^ seriedade, solidez, modernidade e sob _ m e s m o que a doutrina origin de K H M ^ P assimilada. C a i o ^ " ^ ^ ^ f i implicitamente interrogaes que eu wniucim a l

a c e

s e , de f a t o , q u a s e sempre, ^ ^ ^

*

.

Notava, aqui, t r a n s f o r m a s

S a s

esboadas, sem "forma c o n c r e t a ' delineada; l, a p a r e a m t r a n s f o r m a e s cons-

titudas por elementos novos, que a p o n t a v a m para o p r o g r e s s o . E u t r a d u z . a aqui por Salvador e 'l' por S o Paulo, e m b o r a r e c o n h e c e s s e , c o m o a u t o r , q u e t a m b m na poderosa capital do Sul se fazia sentir "a presena de u m a r e a l i d a d e m u i t o antiga que um passado c o l o n i a l " . O u t r o aspecto sedutor na anlise e c o n m i c a de C a i o P r a d o era a n f a s e na ausncia de u m a organizao do trabalho e de u m m e r c a d o i n t e r n o e s t r u t u r a d o s de forma slida. N a parte propriamente social, ele ressaltava o a r c a s m o das r e l a e s sociais e as diferenas fundamentais entre as sociedades rural e u r b a n a .3

E s t a v a m presentes ele-

mentos capazes de estimular m i n h a i m a g i n a o : p o v o a m e n t o , v i d a material e vida social. A bibliografia, no obstante u m a a p r e s e n t a o b i z a r r a , m o s t r a v a um equilbrio satisfatrio entre publicaes e d o c u m e n t o s de a r q u i v o , e m b o r a estes l t i m o s tivessem sido compilados u n i c a m e n t e na Revista do Instituto Brasileiro e nos Anais da Biblioteca Nacional.* Histrico, Geogrfico e Etnogrfico

O estudo da o b r a revelou-se m e n o s e s t i m u l a n t e d o q u e o ' c o n v i t e viagem' contido no prefcio. O b t i v e i n f o r m a e s interessantes na p r i m e i r a p a r t e , consagrada ao povoamento, mas nas partes seguintes vida m a t e r i a l e o r g a n i z a o social no encontrei novidade. Para mim, alis, a novidade n o estava nas p o s i e s marxistas do autor, mas em sua ideologia de aristocrata paulista b e m - n a s c i d o e sua c o n d i o dc intelectual brasileiro. Apareciam detalhes - filigranas - q u e i n d i c a v a m um profundo desprezo por aquela importante narrla Ar, ^ i -i i .v> . , parcela d o povo brasileiro q u e no t i n h a origem europeia ou tinha sangue mesrladn r w .. , no h m colheita l que no cause pobreza aqui. O n t e m , c o m o hoje, Salvador no \ era somente um porto que se estendia ao longo da Cidade Baixa. Era uma cidade em 7 que os limites administrativos quase no contavam. As parquias urbanas nunca j1 1 4

J

. ^ ^

54

BAHIA, SCULO X I X

coronat)

fibrosa, e sua altura no ultrapassa a das outras rvores da m a t a original. paradisiaca).

N o mais i m p o n e n t e do que a vulgar bananeira (Musa

N o interior da baa de T o d o s os S a n t o s , inmeras ilhas c ilhotas protegem trs : baas menores: a primeira entre a costa oeste de Itaparica e o c o n t i n e n t e , a segunda * abrigada entre a pennsula de S a u b a r a - I g u a p c e o arquiplago f o r m a d o pelas ilhas L Bimbarras, das F o n t e s , de M a r i a G u a r d a , de M a d r e de D e u s , das V a c a s , de B o m Jesus dos Passos, de S a n t o A n t n i o e dos Frades, c a terceira, a m a i o r delas, entre essas ilhas, Itaparica e Salvador. Esse m a r interior de todas as ilhas, de todas as praias, um verdadeiro m u n d o colorido e variado. Suas frias so m e n o s violentas que as do oceano, mas so as de um imprevisvel mar, c h e i o de recifes. S o relativamente pouco numerosos os abrigos efetivamente capazes de proteger as pequenas embarcaes sur/ preendidas pelos fortes ventos nordeste o u sudoeste a grande distncia dos ancoradouros o u perto demais das e m b o c a d u r a s dos rios. C o m esses v e n t o s , as praias so facil:

{ m e n t e invadidas pelas vagas tempestuosas das grandes mars. d N o R e c n c a v o , at os rios esto sujeitos s mars: o m a j e s t o s o Paraguau, navegado por embarcaes leves at C a c h o e i r a , mas que n o bastante p r o f u n d o para navios ,; de grande calado; o A u (ou A u p e ) c o Sergi do C o n d e , de m e n o r v o l u m e d'gua; ov

. t Jaguaripe, ao sul, que j no considerado u m rio d a baa, assim c o m o , ao norte, o trpotuca, o rio mais i m p o r t a n t e da regio, c u j a bacia t e m 3 - 0 0 0 k m ; e ainda os grandes2

fornecedores de gua para o a b a s t e c i m e n t o de Salvador, o J o a n e s , que desemboca em l5 . ^ f c a r aberto ao norte da capital, e seu afluente, o Ipitanga. O J l e c n c a v o , assim, antes de tudo, u m a terra ocenica: suas reas agrcolas e n c o n t r a m - s e em estreita dependncia das guas salgadas e dos rios m a r i n h o s . M a s , da m e s m a f o r m a que na cidade de Salvador, h gua doce por toda parte, em lenis freticos e x t r e m a m e n t e abundantes. As reservas ficam a maior ou menor distncia da superfcie: ^profundas, e n r i q u e c e m o solo c o m seus sais minerais, c o m o n o nordeste do R e c n c a v o ; superficiais, c o m o n a regio de Dias d'vila e de Camaari, so filtradas por um solo argilo-arenoso q u e as e m p o b r e c e . s vezes, filtros naturais excessivamente eficazes, a gua quando as areias f u n c i o n a m c o m o

doce to pobre em sais minerais que no permite u m a vegetao luxuriante; outras vezes, essa gua se mistura de tal m o d o a guas salgadas que d origem a manguezais. J0

A paisagem do R e c n c a v o sempre verde e m u i t o suave. Variada, tambm. Terras relativamente baixas j u n t o s costas, o n d e elevaes amenas se confundem com as do litoral, no qual os sedimentos do quaternrio deixam aflorar algumas rochas mais antigas caulinizadas, produzindo solos vermelhos dominados pela brancura de neve de dunas que podem atingir at cinqenta metros de altura. Terras mais altas, onde os tabuleiros c as colinas ondulam suavemente numa altitude mdia de duzentos metros com vales abruptos. O s rios, sempre muito ativos, cavaram suas margens, formando terraos c o m o ocorre, por exemplo, com o Paraguau e seus afluentes. As vilas, atuais cidades, d c Cachoeira e de So Flix foram edificadas sobre altos terraos desse tipo.I

LIVRO I - Q< DONS E AS ARMADU HAS DA NATUW ZA

Essa variedade de paisagens, o Recncavo a deve sua geologia; ao contraste entre o embasamento cristalino reverso de uma falha imensa, que corresponde a 4 . 3 0 0 k m dos 1 0 . 4 0 0 k m da regio c o m o um todo, situado sobretudo a leste e a oeste: 2

c as

reas sedimentares do graben,

que vo do sul da ilha de Itaparica ao norte de Entre

Rios e de Alagoinhas. Falha de Salvador a leste, falha de Maragojipe a oeste, so esses os limites dessas regies argilosas ou argilo-arenosas. L ma floresta fluvial, anloga quela que ainda resiste no extremo sul do Estado daT

Bahia, estendia-se, no sculo X V I , por todo o Recncavo. Quatro sculos de explorao, avizinhando-se c o m freqncia do esbanjamento das ddivas da natureza, provocaram transformaes sucessivas e criaram novas paisagens, correspondentes aos diferentes produtos que foram, cada um por sua vez, esperana e desespero dos proprietrios de terras: madeira, cana-de-acar, f u m o , dend e bananas. Atualmente inexiste n o R e c n c a v o qualquer das espcies tropicais atlnticas originais. C o m o regime das chuvas e a ao h u m a n a atuando simultnea e sucessivamente (uma vez desmatado, o solo torna-se cada vez mais sensvel s influncias climticas), trs tipos fundamentais de vegetao se firmaram, caracterizados a um s tempo pela distncia a que se e n c o n t r a m do oceano e pela qualidade dos solos sobre os quais se desenvolvem: a da M a t a , a do Agreste e, nica das trs a corresponder a uma zona contnua, a vegetao do Litoral. A M a t a gosta das terras de argila profunda massaps e dos tabuleiros. Nela predominavam outrora as palmeiras nativas j mencionadas (os licuris, que fornecem cera e fibras para o artesanato), os cocos-vagem (cujo tronco horizontal e subterrneo, s deixando aparecer folhas na superfcie) e as madeiras preciosas, como o jacarand, o cedro-rosa e o pau-marfim, esplndidas matrias-primas para a fabricao de mveis austeros na poca colonial e no sculo X I X . Essa floresta clara se desenvolvia, nos primeiros tempos da colonizao, sobre uma zona extensa, mais ou menos paralela costa, passando pelos municpios de Conceio de Jacupe, So Gonalo dos C a m p o s e C o n c e i o da Feira. a regio onde a cana-de-acar produzida em plantation predominou depois, quase c o m o monocultura (seria preciso ver at quando e c o m o ) . O s agricultores da segunda metade do sculo X I X ali tambm cultivavam, em menor escala, o fumo, a mandioca, o dend e o cacau. Hoje, da mata antiga, restam rarssimos exemplares. / O Agreste representa uma zona muito reduzida do Recncavo, que vai de Conceio de Jacupe at o sul de Feira de Santana. Estende-se para o norte, sobretudo na direo do Itapicuru.5 uma zona de transio entre o litoral mido e o serto semirido. I ) c sua primitiva flora, invadida por cactccas c bromeliceas plantas xcrfllas relativamente altas e pouco densas , subsistem apenas os juazeiros e os marmeleiros. Enfim, o Litoral. Faixa de terra de aproximadamente dez quilmetros de profundidade, ele apresenta grande variedade de associaes vegetais naturais, com um habitat diferente para cada uma delas. Dois tipos principais de vegetao cobrem essa regio: a vegetao sublitornea losjnanguczais;, que depende unicamente J ^ ^V1

^

BAHIA, SCULO X I X

do solo, e a vegetao do litoral arenoso, que depende do solo e, e m b o r a em menor proporo, do clima. r ' ] Associados a solos argilosos m u i t o salgados e h i d r o m o r f o s , originados dos sedimentos finos dos esturios e dos fundos de baa, os manguezais encontram-se sempre em zonas submetidas influncia das mars. N a origem, essa formao se deL

senvolve graas ao c a n g u e , p l a n t a pioneira que cresce e m a m b i e n t e salino de solo instvel e pode ser reconhecida por suas numerosas razes a d v e n t c i a s . N a medida6

em que o solo se torna mais firme, observam-se novas associaes, em que prevalecem os mangues brancos ou os\Siribas q u e p o d e m atingir at quinze metros de altura. Esses solos s so cobertos pelas mars de e q u i n c i o . Ali, as rvores tm de cinco a oito metros de altura e c o n s t i t u e m , ao l o n g o das costas n o arenosas, como que uma coroa vegetal entre terra e m a r . O solo dos manguezais fornecia toda a argila necessria para as olarias e para purgar o acar nas f r m a s .7

O n d e o litoral

arenoso, a vegetao das dunas de plantas rasteiras, arbustos e palmeiras, inclinados para o interior, pois sofrem a ao c o n s t a n t e dos v e n t o s d o m a r . D e u m m o d o geral as palmeiras no ultrapassam c i n c o m e t r o s de altura. As mais c o m u n s so os coqueiros-da-baa adventcios , f r e q e n t e m e n t e agrupados e m p e q u e n o s bosques mais ou menos densos.

VENTOS, CHUVAS E SOLOS

(\*jfafcfb L

que vm do c e n t r o das baixas pressesN

continentais em direo s altas presses dos Aores. Pode ser o nordeste das tempestades, mas pode ser o amigo que impele as velas n o r u m o do porto, segundo seu humor c sua fora. Alsios de retorno nordeste e noroeste sopram tambm sobre o Recncavo. orem, o que mais sc v brincarem, sobre a baa, ventos instveis, que resultam de movimentos ondulatrios c chegam sem prevenir, com a velocidade de um cavalo em disparada. So a voz irada dc Iemanj, exigente amiga do povo do mar baiano. Nascem quando a frente polar atlntica dc ar frio encontra o ar quente que vem das regies do norte equatorial. N o Recncavo, as mximas pluviomtricas de abril a j u n h o freqentemente coincidem com essas frentes de instabilidade decorrentes da luta entre o anticiclone atlntico c a massa equatorial continental.

LIVRO I - O s

DONS E AS ARMADILHAS DA NATUREZA

57

TABELA

1 1945- 1970 TEMPERATURAS MDIAS

C H U V A S E TEMPERATURAS M D I A S NO RECNCAVO BAIANO, MDIAS MENSAIS mm/ano 79 84 156 117 85 185 151 235 339 191 189 123 Junho Julho Agosto do Recncavo, p. 142. Janeiro Fevereiro Maro Abril Maio MESES SECOS < 100 mm Setembro Outubro Novembro Dezembro MESES CHUVOSOS 1 0 0 - 2 0 0 mm MESES MUITO CHUVOSOS 2 0 0 - 3 0 0 mm

MESES DE CHUVA TORRENCIAL 3 0 0 - 6 0 0 mm

238 250 259 264 267 268 266 25"8 245 235 229 229

Fonte: Estudos bsicos para o projeto agropecurio

Dominam, portanto, ventos de sudeste: os bem-vindos alsios dos meses de julho e agosto, enfrentados com maior ou menor sucesso, em novembro e dezembro, pelos ventos do nordeste. A estao fria, de junho a setembro, a nica na qual alguns perodos de calmaria podem impedir os veleiros de transportar sua carga das ilhas para a baa, de porto a porto. Mas junho tambm o ms das maiores tempestades, aquelas em que os ventos em luta zombam dos veleiros imprudentes que ousam desafiar barras e recifes. O clima no Recncavo , portanto, freqentemente imprevisvel. Deixar-se- a terra domesticar e explorar mais facilmente que as guas pouco confiveis da baa? Para estudar os solos do Recncavo e suas antigas culturas, temos que partir do princpio de que o clima de outrora era mais ou menos idntico, na sua prpria instabilidade, ao do sculo X X .8

Lembremos tambm a regra de ouro

dos agrnomos, segundo a qual todo solo contm certos elementos mais importantes, cujo limiar de necessidade, uma vez atingido, define o limite a partir do qual os demais elementos no reagem mais. Engenheiros-agrnomos que trabalharam na9

frica habituaram-se a distinguir trs etapas de desgaste de solos semelhantes aos dos tabuleiros baianos* cujas substncias nutritivas so devoradas por plantas exigentes e pela falta de adubos: a partir do segundo ano de uso, o rendimento de uma terra recm-plantada diminui cm 5 0 % ; o patamar seguinte situa-se no dcimo segundo ano, e o solo mosenese definitivamente empobrecido depois de 3 0 a 32 anos de cultivo.

58

BAHIA, S C U L O X I X

Terra de coleta de madeira e de produtos da floresta natural nos primeiros anos de colonizao, o litoral baiano, j vimos, logo se transformou em terra de 'explorao mineradora' da riqueza de seus solos. A mandioca, planta dbil, sem sombra, que quase no protege a terra do desgaste causado pelas chuvas, exatamente o tipo de cultura a que nenhum solo resiste. A bananeira, o cacau e sobretudo a canade-acar cujos restolhos so reutilizados em grande parte in loco, cobrindo, por assim dizer, bem o solo so, entre as culturas da regio, as plantas que mais protegem o precioso hmus. Quais so os solos desse Recncavo? Toda uma literatura aplaudiu, no decorrer dos sculos XVII, XVIII, X I X e at do sculo X X , a maravilhosa fertilidade do massap do Recncavo. Massap, palavra milagrosa, palavra-chave! Solo argiloso e pesado, mais ou menos vermelho-escuro e que cola no p. De estrutura cristalina, quimicamente rico. Composto de uma camada de alumina entre duas camadas de silcio, seus cristais mostram-se fortemente entrelaados. Quando mido, sofre forte expanso. Seco, retrai-se. Isto produz um solo folhado e consistente em perodo seco e extremamente pesado e plstico em perodos de chuva: a trao animal torna-se ento impossvel ou quase impossvel.10

Os diversos graus de impermeabilidade do

solo acarretam problemas para a cultura da cana-de-acar. Problemas tanto mais graves quanto os solos de massap encontram-se praticamente todos em regies de terras mais argilo-arenosas do que unicamente argilosas: os siles ou sales so terras que tm freqentemente a mesma cor vemelha que o massap, embora sejam muito permeveis. Massaps e siles tm, ambos, uma boa fertilidade qumica, mas so as chuvas, e s elas, que vo determinar a diferena, resultando uma boa ou m colheita de cana, segundo os locais e os anos, sem que os cultivadores de antigamente tenham conseguido se dar conta das razes de suas vitrias e de suas derrotas. Alis, comum ver cultivadores e at gegrafos utilizarem o termo massap para designar terras que so, na realidade, siles.11

C A P T U L O

4

VIAS DE COMUNICAO

CAMINHOS FLUVIAIS: O RECNCAVO E O LITORALA histria da cidade de Salvador est ligada de sua hinterlndia, de suas terras interiores, mais o u m e n o s distantes. D e s d e a poca colonial, os