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CAPÍTULO V DEVANEIO E COSMOS O homem que tem uma alma não obedece senão ao universo. GABRIEL GERMAIN, Chanls pour l'âme d'Afrique. p. 89 Definir como Milosz pensa o mundo é fazer o retrato do puro poeta de todos os tempos. JEAX DE BOSCHÈRE, prefácio aos Poèmes de 0. V. de L. Milosz. ed. Laffont, p. 34 Eu habitava um provérbio tão vasto que era preciso um universo para enche-lo. ROBERT SABATIER, Dédicace d'un navire. p. 47 I Quando um sonhador de devaneios afastou todas as "preocupações" que atravancavam a vida cotidiana, quando se apartou da inquietação que lhe advém da inquietação alheia, quando é realmente o autor da sua solidão, quando, enfim, pode contemplar, sem contar as horas, um belo aspecto do universo, sente, esse sonhador, um ser que se abre nele. De repente ele se faz sonhador do mundo. Abre-se para o mundo e o mundo se abre para ele. Nunca teremos visto bem o mundo se não tivermos sonhado aquilo que víamos. Num devaneio de solidão, que aumenta a solidão do sonhador, duas profundezas se conjugam, repercutem-se em ecos que vão da profundeza do 166 A POÉTICA DO DEVANEIO ser do mundo a uma profundeza do ser do sonhador. O tempo já não tem ontem nem amanhã. O tempo é submergido na dupla profundeza do sonhador e do mundo. O Mundo é tão majestoso que nele não ocorre mais nada: o Mundo repousa em sua tranquilidade. O sonhador está tranquilo diante de uma Água tranquila. O devaneio só pode aprofundar-se quando se sonha diante de um mundo tranquilo. A Tranquilidade é o próprio ser do Mundo e do seu Sonhador. O filósofo em seu devaneio de devaneios conhece uma ontologia da tranquilidade. A Tranquilidade é o vínculo que une o Sonhador ao seu Mundo. Nessa Paz se estabelece uma psicologia das maiúsculas. As palavras do sonhador tornam-se nomes do Mundo. Ascendem à maiúscula. Então o Mundo é grande e o homem que o sonha é uma Grandeza. Essa grandeza na imagem constitui quase sempre uma objeção para um homem de razão. Bastaria que o poeta lhe confessasse uma embriaguez poética. Ele a compreenderia talvez fazendo da palavra embriaguez um termo abstrato. Mas o poeta, para que a embriaguez seja verdadeira, vai beber

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O homem que tem uma alma não obedece senão ao universo.GABRIEL GERMAIN, Chanls pour l'âme d'Afrique. p. 89Definir como Milosz pensa o mundoé fazer o retrato do puro poeta de todos os tempos.JEAX DE BOSCHÈRE, prefácio aos Poèmesde 0. V. de L. Milosz. ed. Laffont, p. 34Eu habitava um provérbio tão vastoque era preciso um universo para enche-lo.ROBERT SABATIER, Dédicace d'un navire. p. 47I

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CAPÍTULO V

DEVANEIO E COSMOS

O homem que tem uma alma não obedece senão ao universo.GABRIEL GERMAIN, Chanls pour l'âme d'Afrique. p. 89

Definir como Milosz pensa o mundoé fazer o retrato do puro poeta de todos os tempos.

JEAX DE BOSCHÈRE, prefácio aos Poèmesde 0. V. de L. Milosz. ed. Laffont, p. 34

Eu habitava um provérbio tão vastoque era preciso um universo para enche-lo.ROBERT SABATIER, Dédicace d'un navire. p. 47IQuando um sonhador de devaneios afastou todas as "preocupações"que atravancavam a vida cotidiana, quando se apartouda inquietação que lhe advém da inquietação alheia, quandoé realmente o autor da sua solidão, quando, enfim, pode contemplar,sem contar as horas, um belo aspecto do universo, sente, essesonhador, um ser que se abre nele.De repente ele se faz sonhador do mundo. Abre-se para o mundoe o mundo se abre para ele. Nunca teremos visto bem o mundose não tivermos sonhado aquilo que víamos. Num devaneio desolidão, que aumenta a solidão do sonhador, duas profundezasse conjugam, repercutem-se em ecos que vão da profundeza do

166 A POÉTICA DO DEVANEIOser do mundo a uma profundeza do ser do sonhador. O tempojá não tem ontem nem amanhã. O tempo é submergido na duplaprofundeza do sonhador e do mundo. O Mundo é tão majestosoque nele não ocorre mais nada: o Mundo repousa em sua tranquilidade.O sonhador está tranquilo diante de uma Água tranquila.O devaneio só pode aprofundar-se quando se sonha diante de ummundo tranquilo. A Tranquilidade é o próprio ser do Mundo e doseu Sonhador. O filósofo em seu devaneio de devaneios conheceuma ontologia da tranquilidade. A Tranquilidade é o vínculo queune o Sonhador ao seu Mundo. Nessa Paz se estabelece uma psicologiadas maiúsculas. As palavras do sonhador tornam-se nomesdo Mundo. Ascendem à maiúscula. Então o Mundo é grande eo homem que o sonha é uma Grandeza. Essa grandeza na imagemconstitui quase sempre uma objeção para um homem de razão.Bastaria que o poeta lhe confessasse uma embriaguez poética. Elea compreenderia talvez fazendo da palavra embriaguez um termo abstrato.Mas o poeta, para que a embriaguez seja verdadeira, vai beberna taça do mundo. A metáfora já não lhe basta, ele precisa da imagem.Eis, por exemplo, a imagem cósmica da taça aumentada:

Em minha taça orlada de horizonteRepleta até as bordasBebo um simples gole de solPálido e gelado.'Um crítico, aliás simpático ao poeta, diz que o poema de Pierre

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Chappuis "funda o seu prestígio no imprevisto da metáfora ena associação inusitada dos termos"2. Mas, para um leitor quesegue o gradiente de engrandecimento da imagem, tudo se unena grandeza. O poeta acaba de ensiná-lo a beber concretamentena taça do mundo.1. Pierre Chappuis, de um poema publicado pela Revue neuchâteloise. marçode 1959. O poema intitula-se "A 1'horizon tout est possible". Sem se dar aotrabalho de oferecer-nos uma imagem. Barres contentava-se em dizer que àmargem dos lagos italianos "a gente se embriaga na 'taça de luz' que é a paisagem"(Du sang, de Ia volupté et de Ia mort, Paris, Albert Fontemoing, p. 174).Os versos de Chappuis me ajudam a sonhar melhor, na majestade da imagem,do que uma metáfora excessivamente curta.2. Marc Eigeldinger, in Revue neuchâteloise. p. 19.

DEVANEIO E COSMOS M (' ' 167Em seu devaneio solitário, o sonhador de devaneios cósmicosé o verdadeiro sujeito do verbo contemplar, a primeiratestemunha do poder da contemplação. O Mundo é entãoo complemento direto do verbo contemplar. Contemplar sonhandoé conhecer? É compreender? Não é, decerto, perceber.O olho que sonha não vê, ou pelo menos vê numa outravisão. Essa visão não se constitui com "restos". O devaneiocósmico nos leva a viver num estado que bem se pode designarcomo anteperceptivo. A comunicação do sonhador com oseu mundo é, no devaneio de solidão, muito próxima, carecede "distância", dessa distância que assinala o mundo percebido,o mundo fragmentado pelas percepções. Claro, não estamosfalando do devaneio da lassidão, pós-percepção, onde se obscurecemas percepções perdidas. Que se torna a imagempercebida quando a imaginação se apodera da imagem paratorná-la o signo de um mundo? No devaneio do poeta, omundo é imaginado, diretamente imaginado. Tocamos aquinum dos paradoxos da imaginação: enquanto os pensadoresque reconstroem um mundo percorrem um longo caminhode reflexão, a imagem cósmica é imediata. Ela nos dá o todoantes das partes. Em sua exuberância, ela acredita exprimiro todo do Todo. Contém o universo por um de seus signos.Uma única imagem invade todo o universo. Difunde portodo o universo a felicidade que sentimos ao habitar nopróprio mundo dessa imagem. O sonhador, em seu devaneiosem limite nem reserva, se entrega de corpo e alma à imagemque acaba de encantá-lo. O sonhador está num mundo, dissoele não poderia duvidar. Uma única imagem cósmica lheproporciona uma unidade de devaneio, uma unidade de mundo.Outras imagens nascem da imagem primeira, reúnem-se,embelezam-se mutuamente. As imagens nunca se contradizem,o sonhador de mundo não conhece a divisão do seuser. Diante de todas as "aberturas" do mundo, o pensadorde mundo faz do hesitar uma regra. O pensador de mundoé o ser de uma hesitação. Desde a abertura do mundo poruma imagem, o sonhador de mundo habita o mundo que acabade lhe ser oferecido. De uma imagem isolada pode nascerum universo. Mais uma vez vemos em ação a imaginaçãoem crescimento, segundo a regra enunciada por Arp:

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168 A POÉTICA DO DEVANEIOO pequeno detém as rédeas do grande*Dizíamos no capítulo precedente que uma fruta constitui porsi só uma promessa de mundo, um convite a estar no mundo.Quando a imaginação cósmica trabalha sobre essa imagem primeira,o próprio mundo passa a ser uma fruta gigantesca. ALua, a Terra são astros-frutas. Como saborear de outra formaum poema como este de Jean Cayrol:O silêncio redondo como a Terramovimentos do Astro mudogravitação do fruto em torno do núcleo de argila.^O mundo é assim sonhado em sua redondeza, em sua redondezade fruta. Então a felicidade reflui do mundo para a fruta. E opoeta que pensou o mundo como uma fruta pode dizer:Que ninguém fira o Fruto,ele é o passado da alegria que se arredonda.'Se em vez de um livro de lazer escrevêssemos uma tese defilosofia estética, deveríamos multiplicar aqui os exemplos dessepoder de cosmicidade das imagens poeticamente privilegiadas.Um cosmos particular se forma ao redor de uma imagem particulartão logo o poeta dá à imagem um destino de grandeza.O poeta dá ao objeto real o seu duplo imaginário, o seu duploidealizado. Esse duplo idealizado é imediatamente idealizante,e é assim que um universo nasce de uma imagem em expansão.IIEm seu crescimento até o devir cósmico, as imagens sãocertamente unidades de devaneio. Mas são tão numerosas, essasunidades de devaneio, que se tornam efêmeras. Uma unidade3. Arp, Le siège de l'air. ed. Alain Gheerbrant, 1946, p. 75.4. Jean Cayrol, Le miroir de Ia rédemption du monde. p. 25.5. Id., ibid.. p. 45.

DE VANEIO E COSMOS 169mais estável aparece quando um sonhador sonha a matéria,quando, nos seus sonhos, vai "ao fundo das coisas". Tudo setorna a um tempo grande e estável quando o devaneio une cosmose substância. No decurso de intermináveis pesquisas sobre a imaginaçãodos "quatro elementos", sobre as matérias que o homemsempre imaginou para sustentar a unidade do mundo, meditamosfrequentemente sobre a ação das imagens tradicionalmente cósmicas.Essas imagens, a princípio tomadas bem perto do homem,crescem por si mesmas até atingir o nível de universo. Sonha-sediante do fogo, e a imaginação descobre que o fogo é o motorde um mundo. Sonha-se diante de uma fonte, e a imaginaçãodescobre que a água é o sangue da terra, que a terra tem umaprofundidade viva. Temos sob os dedos uma pasta doce e perfumada,e nos pomos a malaxar a substância do mundo.Ao regressar de tais devaneios, quase não ousamos dizer quesonhamos tão grande. Como diz o poeta, o homem, "não podendomais sonhar, pensou"6. E o sonhador do mundo se põe a pensaro mundo mediante pensamentos alheios. Se, ainda assim, queremosfalar desses sonhos que voltam sem cessar, vivos e ativos,refugiamo-nos na história, numa história remota, numa longínquahistória, na história dos cosmos esquecidos. Os filósofos daAntiguidade não nos deram testemunhos precisos dos mundos

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substancializados por uma matéria cósmica? Eram os sonhos degrandes pensadores. Sempre me admira que os historiadores da filosofiapensem essas grandes imagens cósmicas sem nunca sonhá-las,sem nunca lhes restituir o privilégio de devaneio. Sonhar os devaneiose pensar os pensamentos, eis, não há dúvida, duas disciplinasdifíceis de equilibrar. Acredito cada vez mais, ao termode uma cultura atropelada, que temos aqui as disciplinas de duasvidas diferentes. Parece-me então melhor separá-las e romperassim com a opinião comum que acredita que o devaneio conduzao pensamento. As cosmogonias antigas não organizam pensamentos,são audácias de devaneios, e para devolver-lhes a vidaé necessário reaprender a sonhar. Há em nossos dias arqueólogosque compreendem o onirismo dos primeiros mitos. QuandoCharles Kerényi escreve: "A água é o mais mitológico dos ele-6. Ernest La Jeunesse. Vimüaüon de notre maitre Sapoléon, Paris, 1897. p. 51.

170 A POÉTICA DO DEVANEIOmentos", ele pressente que a água é o elemento do onirismo suave.É por exceção que da água saem divindades malfazejas. Masno presente ensaio não utilizamos os documentos mitológicos,consideramos apenas os devaneios que podemos reviver.Pela cosmicidade dé uma imagem recebemos, portanto, umaexperiência do mundo. O devaneio cósmico nos faz habitar ummundo; dá ao sonhador a impressão de um em casa num universoimaginado. O mundo imaginado dá-nos um em casa em expansão,o inverso do em casa do quarto. Victor Ségalen, o poeta da viagem,dizia que o quarto é "a finalidade do regresso'". Ao sonhar ouniverso, estamos sempre partindo, habitamos algures — num alguressempre confortável. Para bem designar um mundo sonhado,é preciso marcá-lo por uma felicidade.Portanto, reencontramos sempre a nossa tese, que devemosafirmar no grande como no pequeno: o devaneio é uma consciênciade bem-estar. Numa imagem cósmica, assim como numa imagemda nossa casa, estamos no bem-estar de um repouso. A imagemcósmica nos dá um repouso concreto, especificado; esse repousocorresponde a uma necessidade, a um apetite. A fórmulageral do filósofo — o mundo é minha representação — deveser substituída por: o mundo é meu apetite. Morder no mundosem outra "preocupação" além da alegria de morder, não éisso entrar no mundo? Como se agarra o mundo com umamordida! O mundo é então o complemento direto do verboeu como. E é assim que, para Jean Wahl, o cordeiro é o complementodireto do lobo. O filósofo do ser escreve assim, comentandoa obra de Willian Blake: "O cordeiro e o tigre são ummesmo ser."8 Carne macia, dentes fortes, que harmonia, queunidade do ser total!

7. Victor Ségalen, Équipée, Voyage au pays du réel. Paris, Plon, 1929, p. 92.8. Jean Wahl, Pensée, perception, Calmann-Lévy, 1948, p. 218. E que documentopara uma metafísica da mandíbula! Lemos nos Príncipes de phonologie deTrubetzkoy, trad. francesa, 1949, p. XXIII, em nota: "Martynov, um alienadorusso do fim do século, tinha publicado uma brochura intitulada Découverte dumystère de ia langue humaine en révélation de ia faillite de Ia íinguistique savante [Descobertado mistério da língua humana como revelação da falência da lingüísticaerudita], onde procura provar que todas as palavras das línguas humanas remontam

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às raízes que significam 'comer' (nota de Jacobsen). Morder é um iníciopara participar do mundo."

DEVANEIO E COSMOS 171Ligando o mundo à necessidade do homem, Franz von Baaderescrevia: "A única prova possível da existência da água, a maisconvincente e mais intimamente verdadeira, é a sede."9Como dizer, diante de todas as oblações que o Mundo ofereceao homem, que o homem é rejeitado pelo Mundo e a princípiolançado no Mundo?A cada apetite, um mundo. O sonhador participa então domundo alimentando-se de uma das substâncias do mundo, substânciadensa ou rara, quente ou doce, clara ou cheia de penumbrasegundo o temperamento da sua imaginação. E quando um poeta vemajudar o sonhador, renovando as belas imagens do mundo, osonhador alcança a saúde cósmica.

IIIUm bem-estar difuso procede do sonho. Difuso-difundente,conforme a regra onírica da passagem do particípio passado aoparticípio presente. O bem-estar difundente transforma o mundoem "meio ambiente". Citemos um exemplo dessa renovação dasaúde cósmica adquirida pela adesão a um ambiente do mundo.Tomamos esse exemplo ao método do "training autógeno" do psiquiatraJ. H. Schultz. Trata-se de reensinar ao doente angustiadoas certezas da boa respiração: "Nos estados que procuramos induzir,a respiração torna-se com muita frequência, conforme os relatosdos pacientes, uma espécie de 'ambiente' no qual eles se movem... Levanto-me e abaixo-me respirando como um barco num martranqüilo... Nos casos normais, basta empregar a fórmula: 'Respirecalmamente.' O ritmo respiratório pode adquirir tal grau de evidênciainterior'0 que se poderá afirmar: 'Eu sou todo respiração.'

9. E. Susini, Franz von Baader et le romantisme mystique, t. I, p. 143.10. Grifo nosso.11. J. H. Schultz, Le training autogène. Adaptação P.U.F., p. 37. Cf. G. Sand,Dernières pages: une nuit d'hii<er, p. 33:

"O ar que respiramos sem lhe prestar atenção e pensando em outra coisanão vivifica tanto como aquele que respiramos para respirá-lo." Em sua tesede medicina defendida em Lyon em 1958, François Dagognet forneceu várioselementos para uma psicologia da respiração. Um capítulo dessa tese foi publicadopela revista Thalès, 1960.

172 A POÉTICA DO DE VANE10O tradutor da página de Schultz acrescenta em nota: "Estatradução não passa de fraca aproximação da expressão alemãEs atmet mich, literalmente 'Isto me respira'. Noutras palavras:o mundo vem respirar em mim, eu participo da boa respiraçãodo mundo, estou mergulhado num mundo que respira. Tudorespira no mundo. A boa respiração, aquela que me há de curarda minha asma, da minha angústia, é uma respiração cósmica."Numa de suas Orientales, Mickiewicz (Oeuvres traduites, t. I,p. 83) exprime a plena vida do tórax ampliado: "Oh, como édoce respirar com todo o tórax! Respiro livre, plena, largamente.

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Todo o ar do Arabistão mal basta para os meus pulmões."Tules Supervielle, traduzindo como poeta um poema de JorgeGuillén, conhece essa respiração do mundo:Ar que respiro afundoTantos sóis o fazem densoE, para mais avidez,Ar onde o tempo se respira.No ditoso peito humano, o mundo se respira, o tempo serespira. E o poema continua:Eu respiro, eu respiroTão afundo que me vejoA gozar o paraísoPor excelência, o nosso}2Um grande respirador, como o foi Goethe, coloca a meteorologiasob o signo da respiração. A atmosfera inteira é, numarespiração cósmica, respirada pela terra. Numa conversa comEckermann, Goethe dizia: "Represento-me a Terra com o seucírculo de vapores como uma grande criatura viva que aspirae inspira eternamente. Se a Terra aspira, ela atrai para si o círculode vapores que se aproxima de sua superfície e engrossa em nuvense chuva. Chamo a esse estado a afirmação aquosa; se durassealém do tempo regulado, ele inundaria a Terra. Mas esta nãoo permite; ela respira de novo e devolve para o alto os vapores12. Jules Supervielle, Le corps tragique, ed. Gallimard, pp. 122-3.DE VAN FAO E COSMOS 17 3de água que se espargem em todos os espaços da alta atmosferae se adelgaçam a tal ponto que não somente o brilho do sol osatravessa como a eterna noite do espaço infinito, vista atravésdeles, se tinge de um brilhante matiz azul. Chamo a esse segundoestado da atmosfera a negação aquosa. No estado de negação aquosa,não somente nenhuma umidade chega do alto, como tambéma umidade da terra... desaparece no ar, de modo que, se esseestado se prolongasse para além do tempo regulado, mesmo semsol, a Terra correria o risco de secar e endurecer inteiramente."13Quando as comparações passam tão facilmente do homem aomundo, um filósofo de bom senso emite sem risco de erro o seudiagnóstico de antropomorfismo. O raciocínio que sustenta as imagensé simples: como a Terra é "viva", segue-se que, como todosos seres vivos, ela respira. Ela respira, como o homem respira, expelindopara longe de si o seu hálito. Mas aqui é Goethe quem fala,é Goethe quem raciocina, é Goethe quem imagina. Portanto, sequisermos atingir o nível goethiano, é preciso inverter a direçãoda comparação. Seria pouco dizer: a Terra respira como o homem.Seria preciso dizer: Goethe respira como a Terra respira. Goetherespira a plenos pulmões, como a Terra respira a plena atmosfera.O homem que atinge a glória da respiração respira cosmicamente'4.O primeiro soneto da segunda parte dos sonetos a Orfeu éum soneto da respiração, de uma respiração cósmica'1:Respirar, ó invisível poema!Troca pura, e que não cessa nunca, entre o nosso ser próprioe os espaços do mundo...Vaga única, da qualeu sou o mar progressivo;tu, o mais econômico de todos os mares possíveis,ganho de espaço.

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Quantos desses lugares dos espaços já estiveramno interior de mim mesmo! Mais de um ventoé como meu filho.13. Conversation de Goethe avec Eckermann, trad. francesa, t. I, p. 335.14. Barres não foi tão longe, ele que curou sua angústia seguindo a regra de''respirar com sensualidade" (Un homme libre, p. 234). Segundo uma doutrina de imaginação,ao contrário, é necessário muito "de fora" para curar um pouco de "dentro".15. Rilke, Les élegies de Duino et les sonnets à Orphée, op. cit., p. 195.174 A POÉTICA DO DEVANEIOAté aí vai a troca de ser numa igualdade do ser que respirae do mundo respirado. O vento, as brisas, os grandes soprosnão são os seres, os filhos, do peito do poeta que respira?E a voz e o poema não são a respiração comum do sonhadore do mundo? O último terceto o proclama:Reconheces-me, ar, tu, ainda cheio de lugares que foram meus?Tu que foste um dia a casca lisa,a curvatura e a folha das minhas palavras?E como não viver no ápice da síntese quando o ar do mundofaz falar a árvore e o homem, confundindo todas as florestas,as do vegetal e as dos poetas?Assim os poemas vêm em nossa ajuda para reencontrar arespiração dos grandes sopros, a respiração primeira da criançaque respira o mundo. Em minha utopia de cura pelos poemas,eu proporia a meditação deste único verso:O cântico da infância, ó pulmões de palavras!1*Que engrandecimento do sopro quando são os pulmões que falam,que cantam, que fazem poemas! A poesia nos ajuda a respirar bem.Será preciso acrescentar que no devaneio poético, triunfo dacalma, apogeu da confiança no mundo, se respira bem? Que reforçode eficácia receberiam os exercícios do "training autógeno"se pudéssemos associar aos exercícios propostos pelo psiquiatrauns devaneios bem escolhidos! Não é à toa que o paciente deSchultz evocou a barca tranqüila, a barca, esse berço que dormesobre as águas que respiram.Parece que tais imagens, se pudéssemos reuni-las, dariamuma eficácia suplementar ao contato que o bom psiquiatra estabelececom o paciente.IVMas nosso propósito não é estudar sonhadores. Morreríamosde tédio se tivéssemos de realizar pesquisas junto a companheiros16. Jean Laugier, Vespace muet. Paris, Seghers.

DEVANEIO E COSMOS 175que praticam o relaxamento. Queremos estudar não o devaneioque faz dormir, mas o devaneio operante, o devaneio que preparaobras. Os livros, e não os homens, são assim os nossos documentos,e todo o nosso esforço ao reviver o devaneio do poetaconsiste em experimentar o caráter operante. Esses devaneiospoéticos nos conduzem a um mundo de valores psicológicos.O eixo normal do devaneio cósmico é aquele ao longo do qualo universo sensível se transforma em universo de beleza. Serápossível, num devaneio, sonhar a feiúra, uma feiúra imóvel queluz alguma seria capaz de corrigir? Tocamos aqui, mais umavez, na diferença característica do sonho noturno e do devaneio.Os monstros pertencem à noite, ao sonho noturno1'. Os monstros

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não se organizam em universo monstruoso. São fragmentos douniverso. E é precisamente no devaneio cósmico que o universorecebe uma unidade de beleza.Para tratar esse problema de um cosmos valorizado por umaunidade de beleza, quão favorável seria a meditação da obrados pintores! Mas, como acreditamos que cada arte reclama umafenomenologia específica, preferimos apresentar nossas observaçõesservindo-nos dos documentos literários, os únicos à nossadisposição. Lembremos simplesmente uma fórmula de Novalisque exprime de maneira decisiva o pancalismo ativo que animaa vontade do pintor entregue ao seu trabalho: "A arte do pintoré a arte de ver belo."18Mas essa vontade de ver belo é assumida pelo poeta, quedeve ver belo para exprimir o belo. Há devaneios poéticos nosquais o olhar se converteu em atividade. O pintor, segundo umaexpressão que Barbey d'Aurevilly emprega para expressar suavitória sobre as mulheres, o pintor sabe "construir o seu olhar",tal como o cantor, num longo exercício, sabe construir a suavoz. O olho já não é então o mero centro de uma perspectivageométrica. Para o contemplador que "constrói o seu olhar",o olho é o projetor de uma força humana. Um poder iluminadorsubjetivo vem acender as luzes do mundo. Existe um devaneio17. As caricaturas pertencem ao "espírito". São "sociais". O devaneio solitárionáo saberia comprazer-se nelas.18. Novalis, Schriften, ed. Minor, t. II, p. 288.

176 A POÉTICA DO DEVANEIOdo olhar vivo, devaneio que se anima num orgulho de ver, dever claro, de ver bem, de ver longe, e esse orgulho de visão étalvez mais acessível ao poeta que ao pintor: o pintor deve pintaressa visão mais elevada, o poeta se limita a proclamá-la.Quantos textos não poderíamos citar que afirmam ser o olhoum centro de luz, um pequenino sol humano que projeta a sualuz sobre o objeto observado, bem observado, numa vontade dever claramentelUm texto assaz curioso de Copérnico pode, por si só, ajudarnosa propor uma cosmologia da luz, uma astronomia da luz.Sobre o Sol, Copérnico, esse reformador da astronomia, escreve:"Alguns o chamaram a pupila do mundo, outros o Espírito (domundo), outros ainda o seu Reitor. Trismegisto chama-o Deusvisível. A Electra de Sófocles denomina-o onividente."19 Assim,os planetas giram ao redor de um Olho de Luz, e não de umcorpo que os atrai pesadamente. O olhar é um princípio cósmico.Mas nossa demonstração será talvez mais decisiva se utilizarmostextos mais recentes, mais nitidamente marcados pelo orgulhode ver. Numa Oriental de Mickiewicz, um herói da visão exclama:"E eu fixava com altivez as estrelas que fixavam em mimseus olhos de ouro, pois naquele deserto elas só viam a mim."20Num ensaio de juventude, Nietzsche escreve: "... a aurorabrinca no céu ornada de múltiplas cores... Meus olhos têm umbrilho totalmente diverso. Receio que eles façam buracos nocéu"21.Mais contemplativa, menos agressiva é a cosmicidade do olhoem Claudel: "Podemos", diz o poeta, "ver no olho uma espéciede sol reduzido, portátil, portanto um protótipo da faculdade

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de estabelecer um raio que vai dele a qualquer ponto da circunferência."22 O poeta não podia deixar a palavra raio à tranqüilidadegeométrica. Precisava dar-lhe sua realidade solar. Então um olhode poeta é o centro de um mundo, o sol de um mundo.19. Copérnico, Des révolutions des orbes celestes, introdução, tradução e notasde A. Koyré, Paris, Alcan, p. 116.20. Mickiewicz, op. cit., t. I, p. 82.21. Richard Blunck, Frédéric Nietzsche. Enfance et jeurusse, trad. francesa deEva Sauser, Paris, Corrêa, 1955, p. 97.22. Paul Claudel, Art poétique, p. 106.DE VANEIO E COSMOS 17 7O que é redondo está bem perto de ser um olho quando opoeta aceita as ligeiras demências da poesia:0 circulo mágico, olho de todo ser!Olho de vulcão injetado de sangues malsãosOlho de lótus negroSurgido das calmas do sonho.E Yvan Goll, dando ao sol-olhar seu poder imperioso, pode aindaescrever:O universo gira em torno de tiOlho de facetas que caça os olhos das estrelasE os implica no teu sistema giratórioArrebatando nebulosas de olhos na tua demência.1'1Em nossos devaneios felizes, não abordamos neste simpleslivro a psicologia do "mau olhado". Quantas pesquisas não seriamnecessárias para distinguir entre o mau olhado contra oshomens e o mau olhado contra as coisas! Quem se julga investidode poder contra os homens admite facilmente ter poder contraas coisas. Encontra-se a seguinte nota no Dictionnaire infernal, deCollin de Plancy (p. 553): "Havia na Itália feiticeiras que, comum só olhar, devoravam o coração dos homens e o interior dospepinos."Mas o sonhador de mundo não olha o mundo como um objeto,precisa apenas do olhar penetrante. É o sujeito que contempla.Parece então que o mundo contemplado percorre uma escalade clareza quando a consciência de ver é consciência de ver grandee consciência de ver belo. A beleza trabalha ativamente osensível. A beleza é a um tempo relevo do mundo contempladoe elevação na dignidade de ver. Quando concordamos em seguiro desenvolvimento da psicologia estetizante na dupla valorizaçãodo mundo e do seu sonhador, parece que conhecemos uma comunicaçãode dois princípios de visão entre o objeto belo e o verbelo. Então, numa exaltação da felicidade de ver a beleza domundo, o sonhador acredita que entre ele e o mundo há uma23. Yvan Goll. Les cercles magiques. Paris, ed. Falaize. p. 45.178 A POÉTICA DO DEVANE10troca de olhares, como no duplo olhar do amado e da amada."O céu... parecia um grande olho azul que olhava amorosamentea Terra."24 Então, para exprimir a tese de Novalis de um pancalismoativo, seria necessário dizer: tudo o que eu olho olha para mim.Doçura de ver admirando, orgulho de ser admirado, eis ligaçõeshumanas. Mas elas são ativas, nos dois sentidos, na nossaadmiração do mundo. O mundo quer se ver, o mundo vive numacuriosidade ativa com olhos sempre abertos. Unindo sonhos mitológicos,podemos dizer: 0 Cosmos é um Argos. O Cosmos, soma de

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belezas, é um Argos, soma de olhos sempre abertos. Assim se traduzno nível cósmico o teorema do devaneio da visão: tudo o quebrilha vê e não há no mundo que brilha nada além de um olhar.Do universo que vê, do universo-argos, a água oferece miltestemunhos. A menor brisa o lago se cobre de olhos. Cada ondase eleva para ver melhor o sonhador. Théodore de Banville pôdedizer: "Existe uma semelhança assustadora entre o olhar doslagos e o das pupilas humanas." Será preciso dar a essa "semelhançaassustadora" todo o seu sentido? O poeta conheceu oterror que acomete um sonhador de espelho quando se sente observadopor ele mesmo? Ser visto por todos os espelhos do lago resultatalvez na obsessão de ser visto. É Alfred de Vigny, parece-me, queobserva o pudor alarmado de uma mulher que percebe de repenteque seu cachorro a observava enquanto ela trocava de camisa.Mas voltaremos mais adiante a essa inversão do ser, que osonhador traz ao mundo contemplado pelo pintor que vê belo.Porém do mundo para o sonhador a inversão é ainda maior quandoo poeta obriga o mundo a converter-se, para além de ummundo do olhar, no Mundo da Palavra.No mundo da palavra, quando o poeta abandona a linguagemsignificativa pela linguagem poética, a estetização do psiquismose torna o signo psicológico dominante. O devaneio que querse exprimir torna-se devaneio poético. É nessa linha que Novalispôde dizer claramente que a liberação do sensível em uma estéticafilosófica se fazia conforme a escala: música, pintura, poesia.24. Théophile Gautier, Nouvelles. Forlunio, p. 94.25. Revue fantaslique, t. II, 15 de junho de 1861, em artigo consagrado aBresdin.DE VANE10 E COSMOS 17 9Não tomamos à nossa conta essa hierarquia das artes. Paranós, todos os píncaros humanos são píncaros. Os píncaros nosrevelam prestígios de novidades psíquicas. Pelo poeta o mundoda palavra é renovado no seu princípio. Pelo menos o verdadeiropoeta é bilíngüe, não confunde a linguagem do significado coma linguagem poética. Traduzir de uma dessas línguas para outranão poderia passar de um pobre ofício.A façanha do poeta no clímax do seu devaneio cósmico éa de constituir um cosmos da palavra26. Quantas seduções deveo poeta associar para arrebatar um leitor inerte, para que o leitorcompreenda o mundo a partir dos louvores do poeta! Viver nomundo do louvor, que adesão ao mundo! Todas as coisas amadastornam-se o ser do seu louvor. Amando as coisas do mundo,aprendemos a louvar o mundo: entramos no cosmos da palavra.Então, que nova companhia do mundo e do seu sonhador!Um devaneio falado transforma a solidão do sonhador solitárionuma companhia aberta a todos os seres do mundo. O sonhadorfala ao mundo, e eis que o mundo lhe fala. Assim como a dualidadedo observado ao observador se magnifica numa dualidadedo Cosmos ao Argos, a dualidade mais sutil da Voz e do Somascende ao nível cósmico de uma dualidade do sopro e do vento.Onde está o ser dominante do devaneio falado? Quando um sonhadorfala, quem fala, ele ou o mundo?Invocaremos aqui um dos axiomas da Poética do Devaneio,um verdadeiro teorema que deve convencer-nos a ligar indissoluvelmenteo Sonhador e o seu Mundo. Esse teorema, buscamo-lo

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em um mestre em devaneios poéticos: "Todo o ser do mundo,se sonha, sonha que fala."2'Mas o ser do mundo sonha? Ah, antigamente, antes da "cultura",quem duvidaria disso? Cada qual sabia que o metal, namina, amadurecia lentamente. E como amadurecer sem sonhar?Como, num belo objeto do mundo, reunir bens, poderes, odores,sem acumular os sonhos? E a Terra — quando não girava —,26. "A imagem é formada pelas palavras que a sonham", diz Edmondjabès,Les mots tracent, p. 41.27. Henri Bosco, L'antiquaire, p. 121. E que páginas, as páginas 121 e 122,para quem quer compreender que o devaneio poético une o sonhador e o mundo!180 '' '• l-y" A POÉTICA DO DEVANEIO\ icomo, sem sonhos, teria amadurecido suas estações? Os grandessonhos de cosmicidade são garantias da imobilidade da Terra.Embora a razão, depois de longos trabalhos, venha provar quea Terra gira, também não deixa de ser verdade que tal declaraçãoé oniricamente absurda. Quem poderia convencer um sonhador decosmos que a Terra gira sobre si mesma e voa no céu? Não sesonha com idéias ensinadas28.Sim, antes da cultura o mundo sonhou muito. Os mitos saíamda Terra, abriam a Terra para que, com o olho dos seus lagos,ela contemplasse o céu. Um destino de alturas subia dos abismos.Os mitos encontravam assim, imediatamente, vozes de homem,a voz do homem que sonha o mundo dos seus sonhos. O homemexprimia a terra, o céu, as águas. O homem era a palavra dessemacroântropos que é o corpo monstruoso da terra. Nos devaneioscósmicos primitivos, o mundo é corpo humano, olhar humano,sopro humano, voz humana.Mas esses tempos do mundo falante podem renascer? Quemvai ao fundo do devaneio reencontra o devaneio natural, um devaneiode primeiro cosmos e de primeiro sonhador. Então o mundojá não está mudo. O devaneio poético reanima o mundo dasprimeiras palavras. Todos os seres do mundo se põem a falarpelo nome que trazem. Quem os nomeou? Não terão sido, tãobem escolhidos são os seus nomes, eles próprios? Uma palavrapuxa a outra. As palavras do mundo querem fazerirãsesTSaBe-obem o sonhador que, de uma palavra que sonha, faz surgir umaavalancha de palavras. A água que "dorme", negra, na lagoa,o fogo que "dorme" sob a cinza, todo o ar do mundo que "dorme"num perfume — todos esses "adormecidos" testemunham, dormindotão bem, um sonho interminável. No devaneio cósmiconada é inerte, nem o mundo nem o sonhador; tudo vive umavida secreta, portanto tudo fala sinceramente. O poeta escutae repete. A voz do poeta_é_jjma_vQz do mundo.Naturalmente, somos livres para passar a mão na testa e afastartodas essas imagens loucas, todos esses "devaneios sobre odevaneio" de um filósofo desocupado. Mas então já não será28. Musset escreve (Oeuvres posthumes, p. 78): "O poeta nunca sonhou quea Terra gira em volta do Sol."DE \ ASEIO E COSMOS 181preciso ler a página de Henri Bosco. Não será preciso ler ospoetas. Os poetas, em seus devaneios cósmicos, falam do mundoem palavras primeiras, em imagens primeiras. Falam domundo na linguagem do mundo. As palavras, as belas palavras,

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as grandes palavras naturais, acreditam na imagem queas criou. Um sonhador de palavras reconhece numa palavrado homem aplicada a uma coisa do mundo uma espécie deetimologia onírica. Se existem "gargantas" na montanha, nãoserá porque o vento, outrora, ali falou?29 Em Les vacances dulundi, Théophile Gautier ouve na garganta da montanha ventos"animalizados", "os elementos estafados e cansados de suastarefas"30. Há, pois, palavras cósmicas, palavras que dão oser do homem ao ser das coisas. E é assim que o poeta pôdeafirmar: "É mais fácil incluir o universo numa palavra doque numa frase."31 As palavras, pelo devaneio, tornam-seimensas, abandonam sua pobre determinação primeira. Dessemodo o poeta encontra o maior, o mais cósmico dos quadradosao escrever:0 Grande Quadrado que não tem ângulos! '-Assim, palavras cósmicas, imagens cósmicas tecem vínculosdo homem com o mundo. Um ligeiro delírio faz o sonhadorde devaneios cósmicos passar de um vocabulário do homema um vocabulário das coisas. As duas tonalidades, humanae cósmica, se reforçam. Por exemplo, ao escutar as árvoresda noite preparando as suas tempestades, o poeta dirá: "Asflorestas estremecem sob as carícias do delírio com dedos de29. Um guizo a mais no meu cetro de sonhador de palavras: só um geógrafopara quem as palavras servem para descrever "objetivamente" os "acidentes"de terreno pode considerar sinônimos garganta e estrangulamento. Para umsonhador de palavras, obviamente, é o feminino que exprime aqui uma verdadehumana da montanha. Para expressar meu amor às colinas, aos vales, às estradas,aos bosques, aos rochedos, à gruta, ser-me-ia necessário escrever uma geografia"não-figurativa". uma geografia dos nomes. Em todo caso. essa geografianão-figurativa é a geografia das lembranças.30. Th. Gautier, Les vacances du lundi, p. 306.31. Mareei Havrenne, Pour une physique de fteriture, p. 12.32. Henry Bauchau, Géologie, Paris, Gallimard, p. 84.182 A POÉTICA DO DEVANEIOcristal."33 O que há de elétrico no estremecimento — quer elecorra sobre os nervos do homem ou sobre as fibras da floresta— encontrou, na imagem do poeta, um detector sensível. Taisimagens não nos trazem a revelação de uma espécie de cosmicidadeíntima? Elas unem ao cosmos de fora um cosmos de dentro.A exaltação poética — o delírio com mãos de cristal — fazestremecer em nós uma floresta íntima.Nas imagens cósmicas, não raro parece que as palavras do homeminfundem energia humana no ser das coisas. Aqui está,por exemplo, a relva salva de sua humildade pelo dinamismocorporal de um poeta:A relvacarrega a chuva nos seus milhões de espinhasretém o sol com seus milhões de dedos.A relvaresponde a cada ameaça crescendo.A relva ama o mundo tanto quanto a si mesma,A relva é feliz, sejam os tempos difíceis ou não,A relva passa arraigada, a relva caminhadepéuAssim, o poeta põe de pé o ser dobrado-dobrável. Para ele,

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as plantas encerram energia. Um apetite de vida aumenta como ardor das palavras. O poeta já não descreve — exalta. É precisocompreendê-lo seguindo o dinamismo de sua exaltação. Entra-seentão no mundo admirando-o. O mundo éÉ constituído pelo conjuntodas nossas admirações. E sempre vamos reencontrar a máximada nossa crítica admirativa dos poetas: Admira primeiro,depois compreenderás.33. Pierre Reverdy, Risques et Périls, p. 150. E, do mesmo modo (p. 157),Pierre Reverdy escuta os alamos que se erguem tão alto para falar no céu: "Osalamos gemem docemente em sua língua materna."34. Arthur Lundkvist, Feu contrefeu, transcrição do sueco feita por Jean-ClarenceLambert, Paris, ed. Falaize, p. 43.

DEVANEIO E COSMOS 183VAo longo de nossas obras anteriores sobre a imaginação dasmatérias valorizadas, encontramos freqüentemente manifestaçõesda imaginação cósmica, mas nem sempre consideramos bastantesistematicamente a cosmicidade essencial que faz crescer imagensprivilegiadas. No presente capítulo, consagrado à imaginação cósmica,alguma coisa faltaria, a nosso ver, se não déssemos algunsexemplos dessas imagens princeps. Tiraremos nossos exemplos deobras que infelizmente viemos a conhecer demasiado tarde parasustentar nossas teses sobre a imaginação da matéria, mas quenos encorajam a prosseguir nossas pesquisas sobre a fenomenologiada imaginação criadora. Não é notável que, ao refletir sobre asimagens de elevada cosmicidade, como são as imagens do fogo,da água, do pássaro, tenhamos o testemunho, lendo os poetas, deuma atividade inteiramente nova da imaginação criadora?Comecemos por um simples devaneio diante da lareira. Tomamo-lo de um dos livros mais profundos de Henri Bosco: Malicroix.Trata-se, é evidente, do devaneio de um solitário, de um devaneiodesembaraçado da tradicional sobrecarga de imagem quese recebe de um serão familiar em torno da lareira. O sonhadorde Bosco é tão fenomenologicamente solitário que os comentáriospsicanalíticos seriam superficiais. O sonhador de Bosco está sozinhodiante do fogo primordial.O fogo que arde na lareira de Malicroix é um fogo de raízes.Não se sonha diante de um fogo de raízes como diante de umfogo de lenha. O sonhador que dá ao fogo uma raiz nodosa preparapara si um devaneio acentuado, um devaneio de dupla cosmicidadeque une à cosmicidade do fogo a cosmicidade da raiz.As imagens se mantêm: sobre a forte brasa da madeira durase enraiza a curta chama: "Uma língua viva subia, balouçandono ar como a própria alma do fogo. Essa criatura vivia renteao chão, sobre sua velha lareira de tijolos. Vivia ali com paciência,tinha a tenacidade dos pequenos fogos que duram e lentamenteEsses pequenos fogos que "cavam a cinza"35. Henri Bosco, Malicroix. Gallimard. p. 34.

184 A POÉTICA DO DE VANEIOcom uma lentidão de raiz, parece que a cinza os ajuda a arder,que a cinza seja esse húmus que alimenta a haste do fogo36."Era um desses fogos", prossegue Henri Bosco, "de antigaorigem, que nunca deixaram de ser alimentados e cuja vida persistiu,

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ao abrigo da cinza, na mesma lareira, desde anos inumeráveis."Sim, a que tempo, a que memória nos transporta o sonhodiante desses fogos que cavam o passado como "cavam a cinza"?"Esses fogos", diz o poeta, "têm sobre a nossa memória um podertal que as vidas imemoriais que dormitam para além das maisvelhas lembranças despertam em nós sob o influxo de sua chamae nos revelam as regiões mais profundas da nossa alma secreta.Sozinhos, eles iluminam, aquém do tempo que preside à nossaexistência, os dias anteriores aos nossos dias e os pensamentosÍncognosciveis dos quais o nosso pensamento muitas vezes nãopassa de uma sombra. Ao contemplar esses fogos associados aohomem por milênios de fogo, perdemos o sentimento da fugacidadedas coisas; o tempo mergulha na ausência; e as horas nosdeixam sem abalar-nos. O que foi, o que é, o que será se convertem,fundindo-se, na presença mesma do ser; e nada mais, naalma encantada, se distingue dela própria, salvo talvez a sensaçãoinfinitamente pura de sua existência. Não se afirma que se é;mas de que se seja resta ainda uma leve luminosidade. Seria eu?,murmuramos, e já não nos ligamos à vida deste mundo senãopor essa dúvida, apenas formulada. De humano, em nós, só restao calor; pois já não vemos a chama que o comunica. Somos nósmesmos esse fogo familiar que queima rente ao chão desde aaurora das idades, mas do qual sempre uma ponta viva se elevaacima da lareira onde vela a amizade dos homens."37Não quisemos interromper essa grande página de suave ontologia,mas, linha por linha, seria necessário comentá-la para esgotar-lhe todos os ensinamentos filosóficos. Ela nos remete ao cogito36. As raízes que ardem na lareira de Malicroix são raízes de tamarindos.Mas somente quando o bem-estar do sonhador se acentuar é que ele lhes sentirá"a chama perfumada" (p. 37). Ardendo, a raiz exalará as virtudes da flor. Assimse consuma como um sacrifício nupcial a união da madeira e da chama. Sonha-seduas vezes diante de um fogo de raízes.37. Id., ibid., p. 35.DEVANEIO E COSMOS 185do sonhador, de um sonhador que se penalizaria por duvidarde suas imagens para afirmar sua existência. O cogito do sonhadorde Malicroix abre-nos a existência de uma preexistência. O tempoimemorial abre-se diante de nós quando pensamos na "infância"do fogo. Todas as infâncias são as mesmas: infância do homem,infância do mundo, infância do fogo, vidas que não decorremsobre o fio de uma história. O cosmos do sonhador nos instalanum tempo imóvel, ajuda-nos a fundir-nos no mundo. O calorestá em nós e nós somos o calor, um calor igual a nós mesmos.O calor traz ao fogo o apoio de sua doçura feminina*. Umametafísica brutal virá nos dizer que somos jogados no calor,jogados no mundo do fogo. A metafísica oposicional nada podecontra as evidências do devaneio. Lendo a página de Bosco,o bem-estar do mundo nos invade de todos os lados. Tudose funde, tudo se unifica, o bem-estar tem o odor do tamarindo,o calor é perfumado.A partir desse repouso no bem-estar de uma imagem, o escritornos faz viver um cosmos de repouso em expansão. Noutra páginade Malicroix, Bosco escreve: "Fora, o ar repousava sobre a pontadas árvores, imóvel. Dentro, o fogo vivia com prudência, para duraraté o raiar do dia. Evolava-se dele apenas o puro sentimento

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do ser. Em mim, nenhum movimento: meus projetos estavam emrepouso, minhas cifras mentais dormitavam na sombra."38Fora do tempo, fora do espaço, diante do fogo, nosso ser jánão se acha encadeado a um estar-presente; nosso eu, para se convencerde sua existência, de uma existência que dura, já nãoé obrigado a afirmações fortes, a decisões que nos dão o futurodos projetos enérgicos. O devaneio liso restitui-nos a uma existêncialisa. Ah, doce fluência do devaneio que nos ajuda a fluir nomundo, no bem-estar de um mundo! Ainda uma vez, o devaneionos ensina que a essência do ser é o bem-estar, um bem-estararraigado no ser arcaico. Sem ter sido, como um filósofo há deestar seguro de ser? O ser arcaico me ensina a ser o mesmo queeu mesmo. O fogo de Malicroix, tão constante, tão sensato, tãopaciente, é um fogo em paz consigo mesmo.* Calor, em francês, é do gênero feminino (Ia chaleur). (N. T.)38. Id., ibid.,p. 138.186 A POÉTICA DO DEVANEIODiante desse fogo que ensina ao sonhador o arcaico e o intemporal,a alma já não está confinada num canto do mundo. Estáno centro do mundo, no centro do seu mundo. A mais simpleslareira enquadra um universo. Pelo menos, esse movimento emexpansão é um dos dois movimentos metafísicos do devaneiodiante do fogo. Existe um outro, que nos conduz a nós mesmos.E é assim que, diante da lareira, o sonhador é alternadamentealma e corpo, corpo e alma. Por vezes o corpo retoma todo oser. O sonhador de Bosco conhece essas horas do corpo dominante:"Sentado diante do fogo, eu me abandonava à contemplaçãodos tições, das labaredas, das cinzas, até uma hora bastantetardia. Mas nada saía da lareira. Os tições, as labaredas,as cinzas pacatamente continuaram a ser o que eram; não setornaram (o que são também) misteriosas maravilhas. E no entantoeles me agradavam, mas mais por seu calor útil do quepor seu poder evocador. Eu não sonhava, aquecia-me. E é gostosoa gente se aquecer; isso nos dá o sentimento do corpo, o contatode nós mesmos; e se imaginamos alguma coisa é, lá fora, anoite, o frio, pois então nos enovelamos em nosso próprio calor,friorentamente mantido."39 Texto útil em sua simplicidade, porquantonos ensina a nada esquecer. Horas há em que o devaneiodigere a realidade, horas em que o sonhador incorpora o seubem-estar, aquecendo-se em profundidade. Sentir bastante caloré, para o corpo, uma maneira de sonhar. E é assim que, nosdois movimentos do devaneio diante do fogo, o movimento quenos faz fluir num mundo feliz e o movimento que faz de nossocorpo uma esfera de bem-estar, Henri Bosco nos ensina a aquecero corpo e a alma. Um filósofo que soubesse acolher tão bemo calor de uma lareira desenvolveria facilmente uma metafísicade adesão ao mundo, em antítese às metafísicas que conhecemo mundo por suas oposições. Um sonhador de lareira não podese enganar: o mundo do calor é o mundo da doçura generalizada.E, para um sonhador de palavras, o calor é realmente, em todaa profundidade do termo, o fogo no feminino.A vigília de Malicroix continua. Chega então o momento emque o fogo enfraquece. Não é mais que "um fragmento de calor39. Id., Ibid., pp. 134-5.DE VANEIO E COSMOS 18 7

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visível ao olho. Nem mais um vapor, nem mais um estalido. Aimóvel claridade tinha um aspecto mineral... Estava viva? Masquem vivia, fora de mim e de meu corpo solitário?" O fogo, aomorrer, não extingue a nossa alma? Vivíamos tão unidos à almada claridade da lareira! Tudo era claridade, em nós e fora denós. Vivíamos da luz suave, pela luz suave. As últimas claridadesdo fogo têm tanta ternura! Dir-se-ia que éramos dois, emboraestivéssemos sozinho. A metade de um mundo acaba de ser-nossuprimida.Quantas outras páginas não seria necessário meditar paracompreender que o fogo habita a casa! No estilo da utilidade,dir-se-ia que o fogo torna a casa habitável. Esta última expressãopertence à linguagem daqueles que desconhecem os devaneiosdo verbo habitar40. O fogo transmite sua amizade à casa inteirae assim faz da Casa um Cosmos do calor. Bosco, que sabe disso,diz: "O ar dilatado pelo calor enchia todas as cavidades da casa,pesando contra as paredes, o chão, o teto baixo, os móveis maciços.A vida circulava por ali, do fogo às portas fechadas e dasportas ao fogo, traçando invisíveis círculos de calor que roçavamo meu rosto. O odor das cinzas e da madeira, arrastado pelomovimento de translação, tornava essa vida ainda mais concreta.As menores claridades da chama tremiam, colorindo debilmenteas paredes de gesso. Um suave burburinho, no qual se fundiaum ligeiro fio de vapor, vinha da lareira. Todas essas coisas formavamum corpo tépido, cuja doçura penetrante convidava aorepouso e à amizade."41Alguém poderá objetar, lendo essa página, que o escritor nãoconta o seu devaneio, mas descreve seu bem-estar num recintofechado. Mas leiamos melhor, leiamos sonhando, leiamos lembrando.É de nós mesmos, sonhadores, é de nós mesmos, fiéisà memória, que o escritor está falando. Também a nós o fogofez companhia. Conhecemos a amizade do fogo. Comunicamonoscom o escritor porque nos comunicamos com as imagensguardadas no fundo de nós mesmos. Voltamos a sonhar nos quartosem que conhecemos a amizade do fogo. Henri Bosco nos40. Estudamos esses devaneios em nosso livro La poétique de l 'espace. P.U.F., 1957.41. Henri Bosco, op. cit., p. 165.

188 A POÉTICA DO DEVANEIOlembra todos os deveres que essa amizade implica: "É precisovelar... e alimentar esse fogo simples, por piedade, por prudência.Não tenho outro amigo que aqueça a pedra central da casa, apedra comunicativa, cujo calor e luz me sobem aos joelhos eaos olhos. Sela-se ali, entre o homem e o refúgio, o velho pactodo fogo, da terra e da alma, religiosamente."*2Todos esses devaneios diante do fogo trazem o grande signoda simplicidade. Para vivê-los em sua simplicidade, é precisoamar o repouso. Um grande repouso de alma é o benefício detais devaneios. Existem, naturalmente, muitas outras imagensque podemos colocar sob o signo do fogo. Esperamos poder retomartodas as imagens do fogo em outro trabalho. No presentelivro sobre o devaneio, gostaríamos somente de mostrar que,diante da lareira, um sonhador tem a experiência de um devaneioque se aprojunda. Sonhando diante do fogo, sonhando diante daágua, conhecemos uma espécie de devaneio estável. O fogo, a

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água têm um poder de integração onírica. As imagens têm entãouma raiz. Seguindo-as, aderimos ao mundo, enraizamo-nos nomundo.Vamos encontrar, acompanhando num poeta o devaneiodiante de uma água dormente, novos argumentos para uma metafísicada adesão ao mundo.vrOs devaneios diante da água dormente trazem-nos tambémum grande repouso de alma. Mais suavemente, e por conseguintemais seguramente que os devaneios diante das chamas demasiadovivas, esses devaneios da água abandonam as fantasiasdesordenadas da imaginação. Simplificam o sonhador. Com quefacilidade esses devaneios se tornam atemporaís! Como ligamfacilmente o espetáculo e a lembrança! O espetáculo ou a lembrança?Será realmente necessário ver a água tranqüila, vê-laatualmente? Para um sonhador de palavras, as palavras água dormentetêm uma suavidade hipnótica. Sonhando um pouco, vimos42. Id., ibid., p. 220.

DEVANEIO F COSMOS 189a saber que toda tranquilidade é água dormente. Existe uma água dormenteno fundo de toda memória. E, no universo, a águadormente é uma massa de serenidade, uma massa de imobilidade.Na água dormente o mundo encontra o seu repouso. Diante daágua dormente, o sonhador adere ao repouso do mundo.O lago, a lagoa estão ali. Têm um privilégio de presença. Osonhador pouco a pouco se vê na sua presença. Nessa presença,o eu do sonhador já não conhece oposição. Já não existe nada contraele. O universo perdeu todas as funções do contra. Em toda partea alma está em casa, num universo que repousa sobre a lagoa. Aágua dormente integra todas as coisas, o universo e seu sonhador.Nessa união a alma medita. É ao pé de uma água dormenteque o sonhador afirma mais naturalmente o seu cogito, um verdadeirocogito de alma, onde vai se assegurar o ser das profundezas.Após uma espécie de olvido de si que desce ao fundo do ser,sem ter necessidade das tagarelices da dúvida, a alma do sonhadorretorna à superfície, volta a viver sua vida de universo. Ondevivem essas plantas que vêm depositar suas largas folhas no espelhodas águas? De onde vêm esses devaneios tão frescos e tão antigos?O espelho das águas? É o único espelho que tem uma vidainterior. Como estão próximos, numa água tranqüila, a superfíciee a profundidade! Profundidade e superfície encontram-se reconciliadas.Quanto mais profunda é a água, mais claro é o espelho.A luz vem dos abismos. Profundidade e superfície pertencemuma à outra, e o devaneio das águas dormentes vai de uma à outra,interminavelmente. O sonhador sonha sua própria profundeza.Aqui, de novo, Henri Bosco vai ajudar-nos a dar corpo aosnossos sonhos. Do fundo de "um retiro lacustre" ele escreve:"Somente ali eu conseguia às vezes libertar-me do mais negrode mim mesmo, esquecer-me. Meu vazio interior se preenchia...A fluidez do meu pensamento, onde até então eu tentara encontrara mim mesmo, parecia-me mais natural e assim menosamarga. Por vezes eu tinha a sensação, quase física, de um outromundo subjacente e cuja matéria, tépida e móvel, aflorava sobrea extensão melancólica de minha consciência. E então, como a

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água límpida das lagoas, ela estremecia."4' Os pensamentos pas-43. Henri Bosco, Hyacinttie, op. rit.. p. 28.190 A POÉTICA DO DEVANEIOsavam sobre a consciência melancólica sem poder assegurar oser. O devaneio fixa o ser em comunhão com o ser da água profunda.A água profunda contemplada num devaneio ajuda a exprimira alma profunda do sonhador: "Perdido sobre as lagoas",prossegue o escritor, "em breve me vinha a ilusão de encontrar-me não mais num mundo real, composto de limo, pássaros,plantas e arbustos vivazes, mas no próprio seio de uma almacujos movimentos e sossegos se confundiam com minhas variaçõesinteriores. E essa alma assemelhava-se a mim. Minha vidamental ultrapassava facilmente o meu pensamento. Não era umaevasão... Mas uma fusão interior."44Ah, sem dúvida a pa\a.\ra. fusão é conhecida dos filósofos! Mase a coisa? Como, sem a virtude de uma imagem, poderíamoster a experiência metafísica de uma "fusão"? Fusão, aderênciatotal a uma substância do mundo! Adesão de todo o nosso sera uma virtude de acolhimento como tantas há no mundo. Osonhador de Bosco acaba de dizer-nos como sua alma de sonhadorse fundiu numa alma de água profunda... Bosco escreveuuma verdadeira página de psicologia do universo. Se, sobre essemodelo, uma psicologia do universo pudesse ser desenvolvidade acordo com uma psicologia do devaneio, como habitaríamosmelhor o mundo!VIIO lago, a lagoa, a água dormente, pela beleza de um mundorefletido, despertam com toda a naturalidade nossa imaginaçãocósmica. Um sonhador, junto deles, recebe uma lição bastantesimples para imaginar o mundo, para duplicar o mundo realpor outro imaginado. O lago é um mestre em aquarelas naturais.As cores do mundo refletido são mais suaves, mais amenas, maisbelamente artificiais que as cores pesadamente substanciais. Assim,essas cores trazidas pelos reflexos pertencem a um universoidealizado. Os reflexos convidam todo sonhador da água dormenteà idealização. O poeta que vai sonhar diante da água44. Id., ibid., p. 29.DE VANE10 E COSMOS 191não tentará fazer dela uma pintura imaginária. Irá sempre um poucoalém do real. Tal é a lei fenomenológica do devaneio poético.A poesia continua a beleza do mundo, estetiza o mundo. Veremosnovas provas disso escutando os poetas.No meio de um de seus romances de extrema paixão,D'Annunzio colocou um devaneio diante de uma água límpidaonde a alma vem encontrar o seu repouso, o repouso no sonhode um amor que poderia permanecer puro: "Entre minha almae a paisagem havia uma secreta correspondência, uma afinidademisteriosa.Parecia que a imagem do bosque na água das lagoasera verdadeiramente a imagem sonhada da cena real. Comono poema de Shelley, cada lagoa parecia um céu estreito quemergulhara num mundo subterrâneo, um firmamento de luz rosadaestendido sobre a terra escura, mais profundo que a noiteprofunda, mais puro que o dia, e onde as árvores se teriam desenvolvidodo mesmo modo que no ar superior, mas com requintese matizes mais perfeitos que todos os que ondulavam nesse lugar.

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E vistas deliciosas como jamais se viram na superfície do nossomundo eram aí pintadas pelo amor da água pelo lindo bosque;e, em toda a sua profundidade, penetrava-as uma luminosidadeelísia, de uma atmosfera sem variações, de um crepúsculo maissuave que o nosso."De que remota idade nos vinha aquela hora! 4oA página diz tudo: nesse devaneio, não é a água que sonha?E, para sonhar tão fielmente, tão ternamente, aumentando a belezadaquilo que se sonha, não se requer que a água da lagoaame o "lindo bosque"? Esse amor não é compartilhado? O bosquenão ama a água que lhe reflete a beleza? Não existe, entre abeleza do céu e a beleza das águas, uma adoração mútua?46 Nosseus reflexos, o mundo é duas vezes belo.De que remota idade vem essa luminosidade da alma elísia?Sabê-lo-ia o poeta se o novo amor que o inspira não cumprissea fatalidade dos amores fadados à volúpia. Essa hora é uma lem-45. G. d'Annunzio, Venjant de volupíé, trad. franc. de Hérelle, p. 221.46. O próprio Sainte-Beuve — que quase não sonha — diz em Volupté:A lua do firmamento admira em paz a das ondas.192 A POÉTICA DO DEVANEIObranca de pureza perdida. Pois a água que "se lembra" lembra-se daquelas horas. Quem sonha diante de uma água límpidasonha purezas primeiras. Do mundo ao sonhador, o devaneiodas águas conhece uma comunicação da pureza. Como gostaríamosde recomeçar a vida, uma vida que seria a dos primeirossonhos! Todo devaneio tem um passado, um longínquo passado,e o devaneio das águas encerra, para certas almas, umprivilégio de simplicidade.O redobramento do céu no espelho das águas convida o devaneioa uma lição maior. O céu encerrado na água não é a imagemde um céu encerrado em nossa alma? Esse sonho é excessivo— mas foi experimentado, foi vivido por esse grande sonhadorque foi Jean Paul Richter. Jean Paul leva até o absoluto a dialéticado mundo contemplado e do mundo recriado pelo devaneio. Nãose pergunta ele qual é o mais verdadeiro, o céu acima de nossascabeças ou o céu na intimidade de uma alma que sonha diantede uma água tranqüila? Jean Paul não hesita em responder: "Océu interior restitui e reflete o céu exterior, que não o é."4' Otradutor francês amenizou o texto. É necessário, escreve JeanPaul, "dass der innere Himmel den àusseren, der selten einer ist, erstatte,reflektiere, verbaue'"18. Para o sonhador áojubüeu, as forças constitutivaspertencem ao céu interior, à alma que sonha contemplandoo mundo no fundo da água. A palavra verbaue, que não foi traduzida,é a palavra extrema da inversão total. O mundo não é somenterefletido, mas estaticamente restituído; é o sonhador que seconsome todo para constituir o céu exterior. Para um grandesonhador, ver na água é ver na alma, e em breve o mundo exteriornão é senão aquilo que ele sonhou. Desta vez o real é apenaso reflexo do imaginado.Parece-nos que um texto tão decisivo de um sonhador tãodecidido como Jean Paul Richter abre o caminho para uma ontologiada imaginação. Se somos sensíveis a essa ontologia, umaimagem dada de passagem por um poeta encontra em nós ecosprolongados. A imagem é nova, sempre nova, mas a ressonância47. Jean Paul Richter, Lejubilé, trad. francesa de Albert Béguin, Paris, Stock,

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1930, p. 176.48. Der Jubelsenior, Ein Appendix vonjean Paul, Leipzig, J. G. Beigang, 1797,p. 364.DEVANEIO E COSMOS 193é sempre a mesma. Assim, uma simples imagem é um reveladordo Mundo. Jean-Clarence Lambert escreve:0 sol sobre o lago se arrasta como pavão*Uma imagem assim reúne tudo. Encontra-se no ponto em queo mundo é alte£nj^djmiejite_esrjetáculo...ou olhar. Quando o lagoeütremece, o sol lhe dá o brilho de mil olhares. O Lago é o Argosde seu próprio Cosmos. Todos os seres do Mundo merecem aspalavras escritas em maiúsculas. O Lago se exibe tal como oPavão abre a cauda em leque para ostentar todos os olhos desua plumagem. Ainda uma vez, temos aqui a prova da verdadede nosso axioma de cosmologia imaginada: tudo o que brilhavê. Para um sonhador de lago, a água é o primeiro olhar domundo. Yvan Goll escreve, num poema que traz por título "Oeil"(Olho):Olho você me olhando: meu olhoSobe não sei de ondeA superfície do meu rostoCom o impertinente olhar dos lagos.MA psicologia da imaginação dos reflexos diante de uma águalímpida é tão variada que seria preciso escrever um livro inteiropara distinguir-lhe todos os elementos. Citemos um único exemploem que o sonhador se entrega a uma imaginação zombeteira.Tomaremos emprestado a Cyrano de Bergerac esse devaneio quese diverte. Um rouxinol vê sua imagem no espelho das águas:"O Rouxinol que, do alto de um ramo, se observa lá dentro(das águas) acredita ter caído no rio... Ele gorjeia, esgoela-se,arrebenta-se, e esse outro rouxinol, sem romper o silêncio, seesgoela aparentemente como ele e engana a alma com tanta graçaque imaginamos que ele se esgoela somente para se fazer ouvirpor nossos olhos."1'49. Jean-Clarence Lambert, Dépajsage, Paris, Falaize, p. 23.50. Yvan Goll, Les cercles magiques, op. cit., p. 41.51. Citado por Adrien de Meeüs, Le romantisme. Paris. Fayard, 1948,1-5.194 A POÉTICA DO DEVANEIOLevando sua brincadeira ainda mais longe, Cyrano prossegue:O lúcio, que o procura, o toca e não pode senti-lo, corre atrás delee admira-se de havê-lo traspassado tantas vezes... É um nada visível,uma noite que a noite faz morrer.Um físico poderia denunciar a ilusão desse lúcio, que, comoum filósofo do sonho, acredita poder alimentar-se de imagens"virtuais". Mas, quando um poeta se põe a dizer todas as suasfantasias, não cabe ao físico detê-lo.VIIIPara dar um exemplo concreto de uma psicologia do universo,seguiremos um relato em que o cenário de um lago de montanhacria de certa forma a sua personagem, em que a água profundae forte, provocada pelo nado, transforma um ser humano emcriatura da água — transforma uma mulher em Melusina. Nossocomentário terá por centro um livro de Jacques Audiberti, Carnagt.Só ocasionalmente Audiberti nos oferece imagens do reflexo.

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Seu devaneio é atraído pela água como se sua imaginação tivessepoderes de hidromancia, seduções de hidrofilia. O sonhador sonhaviver na espessura da água. Viverá das imagens do tato.A imaginação nos dará, não mais um além das imagens contempladas,mas um além das alegrias musculares, um além dos poderesdo nado. Ao ler as páginas que Jacques Audiberti escreveu numcapítulo que traz o título de "Le lac" (O lago)'2, poderíamosacreditar de início que elas traduzem experiências positivas. Mascada sensação anotada é ampliada numa imagem. Entramos naregião de uma poética do sensível. E, se existe experiência, éde uma verdadeira experiência da imaginação que se deveriafalar. A realidade nua amorteceria essa experiência de uma poéticado sensível. Portanto, não é preciso ler tais proezas na vida52. Jacques Audiberti, Carnage, Paris, Gallimard, 1942, p. 36. Cf. pp. 49-50.DEVANEIO E COSMOS 195da água referindo-as às nossas experiências, às nossas lembranças;deve-se lê-las imaginativamente, participando da poética dosensível, da poética do tato, da poética das tonalidades musculares.Notaremos de passagem esses ornamentos psicológicos queinfundem vida estética às meras percepções. Apresentemos primeiroa heroína do mundo das águas.Audiberti sonha diretamente as forças da natureza. Não temnecessidade de lendas e contos para criar uma Melusina. Enquantovive em terra, sua Melusina é uma filha da aldeia. Falae vive como as pessoas da aldeia. Mas o lago a torna só, e tãologo ela se vê sozinha ao pé do lago este se converte num universo.A filha da aldeia entra na água verde, numa água moralmenteverde, irmã da substância íntima de uma Melusina. E ei-la quemergulha: uma espuma se ergue de um abismo, esbranquiçandocom mil flores de pilriteiro a intimidade do mundo líquido. Anadadora está agora debaixo das águas: "Nada mais, doravante,existia — apenas um êxtase de rumor mais azul que tudo nomundo...")!"Um êxtase de rumor mais azul que tudo no mundo": a queregistro sensível pertence esta imagem? O psicólogo que decidaa respeito. Mas o sonhador de palavras está encantado, pois odevaneio das águas é aqui um devaneio falado. A poética dapalavra falada constitui a poética dominante. É necessário dizere redizer para ouvir tudo o que o poeta diz. Para o ouvido quequer ouvir a voz das águas do mar, que concha não é a palavrarumorlO escritor continua: (a nadadora) "percorria o interior doazul líquido... Afogada na água azul que a cerca, a enche e adissolve, ela registrava os relâmpagos negros que o dia infusodesenha sob as ondas". No seio das águas nasce um outro sol,a luz tem redemoinhos, propaga deslumbramentos. Quem vê debaixodas águas deve proteger frequentemente a retina. A cadabraçada, o mundo das águas muda de violência. A ardente Melusina,diz Jacques Audiberti, "enrolava em seu corpo esses rosáriosde universos furiosos em que se traduz a respiração dos cavalosinvisíveis que a maravilha abriga". Pois o poeta — é esta a suaÕ:Í. Id.. íbid., p. 49.196 A POÉTICA DO DEVANEIOfunção — deve oferecer-nos os mundos da maravilha, esses mundosque nascem de uma imagem cósmica exaltada. E, desta vez

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graças à exaltação, a imagem cósmica não é extraída pura e simplesmentedo mundo; de certa forma ela ultrapassa o mundopara além de tudo o que é percebido. De sua nadadora Audibertiescreve: "Na cintilante noite das águas, noite lacustre, noite favorável,ela adentrava, viajava, meditava muito além dos poderes donado.""Mas esses universos tão novos, tão fortemente imaginadosnão podem deixar de trabalhar o ser que os imagina naquiloque ele tem de mais íntimo. Se seguirmos com toda a sinceridadeas imagens do poeta, parecer-nos-á que a imaginação aniquilaem nós um ser da terra. Somos tentados a deixar nascer em nósum ser das águas. O poeta inventou um ser, portanto é possívelinventar seres. Para cada mundo inventado, o poeta faz nascerum sujeito que inventa. Delega seu poder de inventar ao ser inventado.Penetramos no reino do eu cosmicizante. Revivemos, graçasao poeta, o dinamismo de uma origem em nós e fora denós. Um fenômeno de ser ergue-se diante dos nossos olhos, dofundo do devaneio, e enche de luz o leitor que aceita as impulsõesde imagens do poeta. A Melusina de Audiberti vive uma mudançade ser, aniquila uma natureza humana para receber umanatureza cósmica. "Ela deixa de ser para ser muito mais", "entregueà glória de se abolir, sem contudo morrer."11 Fundir-se noelemento fundamental é um suicídio humano necessário paraquem deseja viver um surgimento em um novo cosmos. Esquecera terra, renegar nosso ser terrestre, dupla necessidade de quemama a água com amor cósmico. Então, antes da água, nada existe.Acima da água, nada existe. A água é o todo do mundo. Quedrama de ontologias o poeta nos convida a viver! Que nova vida,essa em que os acontecimentos são suscitados por imagens! Vindoao lago, a Melusina "rompia com todas as formas de destinosocial. Enchia a taça do nada da natureza. Fazia-se imensa nosuicídio. Mas quando, banhada até o fundo do coração, elareencontrava o mundo e a sua sequidão, sentia como se fosse54. Id., ibid., p. 50. O grifo é nosso.55. Id., ibid., p. 60.

DEVANEIO E COSMOS 197a água do lago. A água do lago se levanta. Ela caminha"36. Devolta à terra, caminhando sobre a terra, Melusina guardou aenergia do nado. A água, nela, é o ser de uma energia. Na heroínada água de Audiberti, pode-se dizer, utilizando um verso de TristanTzara, que "a água doce e a água musculosa" se encontraram17.Essa água que "se levanta", essa água que se ergueu, essaágua de pé — que novo ser!Tocamos aqui numa extremidade do devaneio. Como opoeta ousa escrever esse devaneio extremo, é indispensável queo leitor tenha a ousadia de lê-lo até uma espécie de além dosdevaneios de leitor, sem reticências, sem redução, sem preocupaçãode "objetividade", acrescentando inclusive, se puder, suaprópria fantasia à do escritor. Uma leitura sempre no clímaxdas imagens, imbuída do desejo de ultrapassar os clímax, daráao leitor exercícios bem definidos de fenomenologia. O leitor conheceráa imaginação em sua essência, porque a viverá em seuexcesso, no absoluto de uma imagem inacreditável, signo de umser extraordinário.

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Nos devaneios habituais da água, na psicologia clássica daágua, as Ninfas não eram, afinal, criaturas extraordinárias. Poderíamosimaginá-las como criaturas de bruma, como águas "fátuas",irmãs flexíveis dos fogos que correm sobre o lago. As ninfasrealizavam somente uma promoção humana subalterna. Permaneciamseres da doçura, da maciez, da brancura. Melusina contradiza substância fácil. Ela é uma água que quer a verticalidade,água dura e vigorosa. Pertence mais a uma poética do devaneiodas forças do que a uma poética do devaneio da substância. Veremoso testemunho disso lendo esse grande livro que é Carnage.XNuma vida cósmica imaginada, imaginária, os mundos diferentesnão raro se tocam, se completam. O devaneio de um puxa56. Id., ibid., p. 50.57. Tristan Tzara, Parler seul, ed. Caracteres, p. 40.

198 A POÉTICA DO DEVANEIOo devaneio de outro. Numa obra anterior, reunimos numerososdocumentos que provam a continuidade onírica que une os sonhosdo nado e os sonhos do vôo. Assim, pelo puro espelho dolago, o céu torna-se uma água aérea. O céu é então, para a água,um convite a uma comunhão na verticalidade do ser. A águaque reflete o céu é uma profundidade do céu. Esse duplo espaçomobiliza todos os valores do devaneio cósmico. Desde que umser que sonhe sem limite, desde que um sonhador aberto a todosos sonhos viva intensamente num dos dois espaços, ele quer tambémviver no outro. Audiberti conseguiu, por seus sonhos donado, criar uma água tão dinâmica, uma água tão "musculosa"que a Melusina das águas sonha com forças que, num mergulhono fundo do céu, lhe dariam o ser de uma Melusina dos ares.Ela quer voar. Sonha com os seres que voam. Quantas vezes,à margem do lago, a Melusina contemplou o gavião que desenhacírculos à roda do zênite! Os círculos no céu não serão as imagensdos círculos que correm sobre o sensível rio ao mais ligeiro soprodo vento? O mundo é um.Os devaneios se unem, se soldam. O ser alado que volteiano céu e as águas que correm sobre o seu próprio turbilhão fazemaliança. Mas é o gavião que volteia melhor. Em que pensamos gaviões que dormem lá em cima, volteando? Não serão eles,como a Lua do filósofo, levados por um turbilhão? Sim, em quepensam os filósofos quando as imagens da água são imediatamentepensamentos do céu? E, interminavelmente, o sonhadorsegue a viagem astronômica do gavião. Que glória, que prestígiodo vôo é esse círculo tão bem desenhado à roda do zênite! Onado só conhecia a linha reta. E preciso voar como o gaviãopara compreender concretamente a geometria do cosmos.Sejamos, todavia, menos filósofo e retomemos nossa aprendizagemda arte psicológica da dinamogenia seguindo as liçõesde devaneio do poeta. Assim, Melusina sonha duas vezes, sempreduas vezes — no azul do céu ou no azul-escuro do lago. E entãoAudiberti escreve grandes páginas de psicologia dinamizada sobreo vôo ensaiado, sobre o vôo realizado, sobre o vôo falhado.Inicialmente, eis as convicções adquiridas nos sonhos da noite,58. Cf. L'air et les songes, ed. Corti, cap. I.

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DEVANEIO E COSMOS 199convicções oníricas que se acham preparadas ou confirmadaspelo devaneio de alívio, que não deixa o espírito de Melusinadurante o dia: "Por vezes, de olhos fechados, deitada na relvaou na cama, ela tentava evadir-se do seu peso. Saímos do nossocorpo, naquilo que ele tem de irredutível, na peregrinação daleveza. Situamo-nos, com força, no ar, acima dos nossos despojos— e, no entanto, esses despojos, nossa carne, levamo-los conosco,porém desossados, desenvenenados. Uma noite ela chegou a pensarque o tivesse conseguido. Sentia-se transportada para o teto.Já não tocava nem com as costas, nem com os pés, nem como ventre. Subia suavemente... Sonhava? Não sonhava? Todaviaela segurou a viga com a mão esquerda. Conseguiu arrancar,antes de descer novamente, três lascas de madeira leve, testemunhoscertos. E depois tornou a cair — tornou a cair! — no sono.Ao acordar, as três lascas haviam desaparecido."39O escritor que imagina é aqui psicólogo exato. Sabe que,no sonho do vôo, o sonhador se vê cumulado de provas objetivas.O sonhador arranca do teto uma lasca de madeira, colhe umafolha no alto da árvore, pega um ovo no ninho do corvo. A essesfatos precisos se unem raciocínios bem encadeados, argumentosbem escolhidos que apresentaremos àqueles que não sabem voar.Ai de nós!, ao acordarmos as provas já não estão em nossas mãos,as boas razões já não se acham presentes no espírito.Contudo, o benefício do sonho noturno de leveza permanece.O devaneio retoma o germe do ser aéreo que se formou durantea noite. O devaneio o alimenta, não mais com provas, não maiscom experiências, porém com imagens. Aqui, ainda uma vez,as imagens tudo podem. Quando uma impressão ditosa de alívionos invade a alma, ela penetra também no corpo e a vida conhece,por um momento, um destino de imagens.Sentir-se leve é uma sensação tão concreta! — tão útil, tãopreciosa, tão humanizadora! Por que os psicólogos não se preocupamem construir para nós uma pedagogia dessa leveza do ser?Portanto, é ao poeta que compete o dever de ensinar-nos a incorporaras impressões de leveza em nossa vida, a dar corpo a impressõesquase sempre desprezadas. Ainda aqui, seguimos Audiberti.59. J. Audiberti, op. cit., pp. 56-7200 A POÉTICA DO DEVANEIOCaminhando com leveza, a Melusina galga a suave encostada colina e logo se põe a voar: "Inebriada por tantos céus comidoscomo grãos, os grãos do elixir de azul que faz voar, ela caminha,caminha ainda, mas já lhe nascem asas, negras asas da noite,cortadas pelo cimo espinhoso das montanhas. Não! As própriasmontanhas fazem parte da substância dessas asas, as montanhascom suas paisagens alpinas, suas casinhas, seus abetos... Ela admiteque essas asas vivem, batem. Elas vão bater. Elas batem.Ela caminha. Ela voa. Pára de caminhar. Voa. Em toda parteela é aquilo que voa..."h0Devemos ler essas páginas em grande tensão de leitura, acreditandonaquilo que lemos. O escritor quer convencer o leitorda realidade das forças cósmicas em ação nas imagens de vôo.Existe uma fé que, mais ainda que aquela que remove montanhas,as faz voar. Os cimos não são asas? Em seu convite a uma simpatiada imaginação, o escritor molesta o leitor, espicaça-o. Parece-

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me estar ouvindo o poeta dizer: "Voarás enfim, leitor! Ficarássentado, inerte, enquanto todo um universo se prepara para odestino de voar?"Ah, os livros também têm seu próprio devaneio! Cada umdeles tem uma tonalidade de devaneio, pois todo devaneio temuma tonalidade particular. Se com tanta frequência desconhecemosa individualidade de um devaneio, é porque decidimosconsiderá-lo como um estado psíquico confuso. Mas os livrosque sonham corrigem esse erro. Os livros são, portanto, nossosverdadeiros mestres no sonhar. Sem uma total simpatia de leitura,por que ler? Mas, quando entramos realmente no devaneiodo livro, como parar de ler?Então, prosseguindo a leitura de Audiberti, os olhos se abrem:vemos o vôo conquistar o mundo. O mundo deve voar. Há tantosseres que vivem de voar, que o vôo é seguramente o mais próximodestino do mundo sublimado: "... tantos pássaros, os pequenos,os grandes, a libélula roçagante e o sêmblide de asas de mica61,duas vezes menor que sua fêmea. Sim, o universo é um lago.Calcar o soalho desse lago, com os joelhos um pouco baixos,60. Id., ibid., p. 63.61. Há pássaros que fazem voar no céu o cristal e outros minerais da Terra.

DE VANEIO E COSMOS 201tal como o faz agora, a deixa envergonhada"62. Então, cumprerecomeçar incessantemente a proeza que conduzirá a sonhadoraao azul do céu. Um ser que pode voar não deve ficar na terra:"É necessário que, de uma vez por todas, ela voe. É necessário queela mergulhe e nade e singre através dos ares. Voe, filha do nada,alma solitária, vela obscura... Voe!... E ela voa... As substânciasse alteram. Um sopro espesso como onda a sustenta. Ela atingeo poder passarinhante. Ela domina."63Mas, no extremo sucesso, eis a derrocada. O devaneio desabana terra. Uma imensa tristeza "estremece nos sinos da derrota"que dobram a síncope de um ser que de tal sonho recai na realidade."Nunca mais ela voará? Da essência do ar à essência daágua, a distância seria tão grande?" Será possível que um devaneiotão grande, tão forte, tão arrebatador possa ser contraditopela realidade? Ele se soldava tão bem à vida, à nossa vida! Tãoseguramente dava vida a um surto de vida! Dera tanto ser aonosso ser imaginante! Fora para nós uma abertura para um mundotão novo, tão acima do mundo desgastado pela vida cotidiana!Ah, pelo menos, qualquer que seja a fraqueza de nossas asasimaginárias, o devaneio do vôo nos abre um mundo, é aberturapara o mundo, grande abertura, larga abertura. O céu é a janelado mundo. O poeta nos ensina a mantê-la aberta de par em par.Sem embargo dos longos e numerosos trechos que citamosdo livro de Jacques Audiberti, não pudemos seguir o devaneiodos ares em todos os seus redemoinhos, e nas suas retomadasnão pudemos dizer todas as peripécias de uma dialética que vaido universo líquido ao universo aéreo. Fragmentando nossas citaçõesrompemos com o poder de arrebatamento do texto, como rapto poético das imagens que, não obstante suas riquezas esua fantasia, conquista uma unidade de devaneio. Gostaríamos entretanto,de ter convencido o nosso leitor do aumento de poderpsíquico que a arte do poeta infunde na simples narração dos

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acontecimentos do sonho. Uma unidade de poesia vem inserir-sena unidade do devaneio.62. Id., ibid., p. 63.63. Id., ibid., p. 64.

202 A POÉTICA DO DEVANEIOSe pudesse ser constituída, uma Poética do Devaneio resgatariaprotocolos de exame que nos permitiriam estudar sistematicamentea atividade da imaginação. Do exemplo que acabamosde expor tiraríamos assim um protocolo de questões a colocarpara determinar as possibilidades de adesão à poesia das imagens.São os valores poéticos que tornam o devaneio psiquicamentebenéfico. Pela poesia o devaneio se faz positivo, torna-seuma atividade que deve interessar ao psicólogo.Se não seguirmos o poeta no seu devaneio deliberadamentepoético, como faremos uma psicologia da imaginação? Buscaremosnossos documentos naqueles que não imaginam, que se proíbemde imaginar, que "reduzem" as imagens superabundantes a umaidéia estável, naqueles — mais sutis negadores da imaginação— que "interpretam" as imagens, arruinando ao mesmo tempoqualquer possibilidade de uma ontologia das imagens e de umafenomenologia da imaginação?Que seria dos grandes sonhos da noite se não fossem sustentados,nutridos, poetizados pelos lindos devaneios dos dias felizes?Como haveria um sonhador de vôo de reconhecer sua experiêncianoturna na página que lhe consagra Bergson?64 Bergson,ao explicar o sonho, como muitos outros, por motivos psicofisiológicos,não parece considerar a ação própria da imaginação.Para ele, a imaginação não é uma realidade psicológica autônoma.Eis, portanto, as condições físicas que, segundo ele, determinamo sonho de vôo. Do vosso vôo onírico, "se despertardes bruscamente,eis, creio eu, o que encontrareis. Sentireis que os vossospés perderam o ponto de apoio, porque, com efeito, estáveis estendido.Por outro lado, acreditando não dormir, não tínheis conhecimentode estar deitado. Dizíeis, pois, a vós mesmo que nãotocaríeis mais a terra, ainda que estivésseis de pé. Essa convicçãoé que desenvolvia o vosso sonho. Observai, no caso em que sentíeisvoar, que acreditais estar o vosso corpo de lado, à direitaou à esquerda, levantando-o com um brusco movimento do braço,que seria como uma batida de asa. Ora, esse lado é justamenteaquele sobre o qual dormistes. Acordai e vereis que a sensaçãode esforço para voar não passa de uma sensação de pressão do64. H. Bergson, L'énergie spirituelle. p. 90.DE l AXEIO E COSM OS 203braço e do corpo contra a cama. Esta, separada de sua causa,já não era mais que uma vaga sensação de fadiga atribuívela um esforço. Ligada então à convicção de que o vosso corpodeixara o chão, ela é determinada em sensação precisa de esforçopara voar".Muitos pontos desta "descrição" corporal poderiam dar margema controvérsias. Por vezes o sonho de vôo é um sonho semasas. As asinhas do calcanhar de Mercúrio bastam para dar oimpulso. É muito difícil relacionar as delícias do vôo noturnocom a fadiga de um braço prensado contra a cama. Mas nossaprincipal crítica não se dirige a esses fatos corporais mal relatados.

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O que falta na explicação bergsoniana são as virtudes daimagem viva, a vida em total imaginação. Nesse domínio os poetassabem mais que o filósofo.XSeguindo os últimos parágrafos deste capítulo, diferentes devaneiosde evasão que partem das imagens privilegiadas do fogo,da água, do ar, dos ventos e do vôo, aproveitamos imagens quepor si sós se dilatam, se propagam até se tornar imagens do Mundo.Poderíamos ser solicitados a estudar no mesmo espírito asimagens que estão sob o signo do quarto elemento, do elementoterrestre. Todavia, fazendo tal estudo fugiríamos às perspectivasdo presente livro. Já não estaríamos lidando com devaneios datranqüilidade do ser, com os devaneios da nossa ociosidade. Paraempreender pesquisas sobre o que se pode chamar de psicologiadas substâncias, é preciso pensar, é preciso querer.Devaneios que pensam, temo-los encontrado freqüentementenos estudos que realizamos para "compreender" a alquimia.Tentamos então chegar a uma compreensão mista, a uma compreensãoque acolheria a um tempo imagens e idéias, contemplaçõese experiências. Mas essa compreensão mista é impura,e quem quer seguir o extraordinário desenvolvimento do pensamentocientífico deve romper definitivamente com os vínculosda imagem com o conceito. Para pôr em ação essa decisão, fizemosno nosso ensinamento filosófico numerosos esforços. Escrevemos,entre outros, um livro que traz o subtítulo: Contribution• \ í • • ' ;204 V A POÉTICA DO DEVANEIOà une psychanalyse de Ia connaissance objective (Contribuição parauma psicanálise do conhecimento objetivo). E, mais particularmente,sobre o problema da evolução dos conhecimentos relativosà matéria, em nosso livro Le matérialisme rationnel (O materialismoracional) tentamos mostrar que a alquimia dos quatroelementos não prepara de forma alguma o conhecimento da ciênciamoderna'".Assim sendo, de todo esse passado de cultura se conclui que,para nós, as imagens das substâncias são tocadas por uma polêmicaentre imaginação e pensamento. Não devíamos, pois, pensarem retomar o seu exame num livro consagrado ao simples devaneio.Obviamente, os devaneios diante das matérias da terra têmtambém a sua distensão. A massa que se modela infunde umdoce devaneio nos meus dedõsT Esses devaneios nos ocupürãmbastante nos íivros que escrevemos sobre as matérias da terrapara que lhes retomemos o exame no presente trabalho.Ao lado desses devaneios que pensam, ao lado dessas imagensque se dão como pensamentos, existem também devaneios quequerem, devaneios aliás muito reconfortantes, muito confortantes,porque preparam um querer. Reunimos vários tipos delesnum livro a que demos precisamente o título de La terre et lesrêveries de Ia volonté (A terra e os devaneios da vontade). Semelhantesdevaneios da vontade preparam e sustentam a coragemno trabalho. Estudando a poética, encontraríamos os canto dotrabalhador. Esses devaneios engrandecem o ofício. Põem o ofíciono Universo. As páginas que consagramos aos devaneios da forjatentaram provar o destino cósmico dos grandes ofícios.Mas os esboços que pudemos fazer no nosso livro La terre

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et les rêveries de Ia volonté deveriam ser multiplicados. Deveriamsobretudo ser retomados para pôr todos os ofícios no movimentoda vida do nosso tempo. Que livro, então, seria necessário escreverpara elevar os devaneios da vontade ao nível dos ofícios dehoje! Já não poderíamos nos satisfazer com as pobres pedagogiasmanuais, onde nos maravilhamos de ver uma criança interes-sar-se por ofícios-brinquedos. O homem acaba de entrar numanova maturidade. A imaginação deve servir a vontade,despertar a vontade as todas as novas perspectivas. E é assimque um sonhador de devaneios não pode satisfazer-se com osdevaneios costumeiros. Que alegria se pudéssemos apartar-nosde um livro que termina para retomar outro! Mas não se deve,em tal desejo, confundir os gêneros. Os devaneios da vontadenão devem brutalizar, masculinizar os devaneios do lazer.E, como é de bom método, quando se termina um livro, reportar-se às esperanças que se nutriam ao começá-lo, vejo que mantivetodos os meus devaneios nas facilidades da anima. Escritoque foi em anima, gostaríamos que este livro singelo fosse lidoem anima. Entretanto, para que não se diga que a anima é o serde toda a nossa vida, gostaríamos ainda de escrever um outrolivro, que, desta vez, seria a obra de um animus.

CAPITULO VIIIA imensidão íntima"O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar."Rilke"O espaço sempre me fez silencioso."(Jules Vallès, L 'enfaní, pág. 238.)IA imensidão é, poderíamos dizer, uma categoria filosófica do devaneio. Semdúvida, o devaneio se alimenta de espetáculos variados, mas por uma espécie deinclinação inata contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determinauma atitude tão especial, um estado de alma tão particular, que o devaneio põe osonhador fora do mundo mais próximo, diante de um mundo que traz a marca doinfinito.Pela simples lembrança, longe das imensidões do mar e da planície, podemos,meditação, renovar em nós as ressonâncias dessa contemplação da grandeza.Mas se trata nesse caso realmente de uma lembrança? A imaginação, por sisó, não poderá fazer crescer sem limite as imagens da imensidão? A imaginaçãonão será ativa a partir da primeira contemplação? De fato, o devaneio é um estadointeiramente constituído desde o momento inicial. Quase não o vemos começare no entanto começa sempre da mesma maneira. Ele foge em frente o objeto próximoe logo está longe, além, no espaço do além.1 5 7Quando esse além é natural, quando se aloja nas casas do passado, ficaimenso. E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primeira.Se pudéssemos analisar as impressões da imensidão, as imagens da imensidãoou aquilo que a imensidão traz para a imagem, entraríamos logo numa regiãode fenomenologia mais pura — numa fenomenologia sem fenômeno ou, parafalar menos paradoxalmente, uma fenomenologia que não tem que esperar que osfenômenos da imaginação se constituam e se estabilizem em imagens acabadaspara conhecer o fluxo de produção das imagens. Dito de outra formai como oimenso não é um objeto, uma fenomenologia do imenso nos enviará sem rodeios á nossa consciência imaginante.Na análise das imagens da imensidão realizaríamos em nós o ser puro da imaginação pura.

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Pareceria então que as obras de arte são subprodutos desse existencialismo do ser imaginante. No caminho do devaneio da imensidão, o verdadeiro produto é a consciência dessa ampliação.Sentimo-nos promovidos à dignidade do ser que admira.Desde então, nessa meditação, não somos "atirados no mundo", já que abrimosde alguma maneira o mundo num ultrapassar do mundo tal como ele é, talcomo era antes do nosso sonho. Mas se estamos conscientes do nosso ser fraco— pela própria ação de uma dialética brutal — tomamos consciência da grandeza.Somos entregues então a uma atividade natural de nosso ser imensificante.A imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de expansão do ser quea vida refreia, que a prudência detém, mas que volta de novo na solidão. Quandoestamos imóveis, estamos além; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é omovimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicosdo devaneio tranquilo.E já que lançamos mão dos poetas para o nosso ensino filosófico, leiamosPierre Albert-Birot que nos diz tudo nestes três versos:1 58E eu me crio com um traço da penaMestre do Mundo,Homem ilimitado.IIPor paradoxal que pareça, é frequentemente essa imensidão interior que dá ísua verdadeira significação a certas expressões referentes ao mundo que se ofere- |ce à nossa vista. Para discutir sobre um exemplo preciso, examinemos de perto a 'que corresponde a imensidão dá'Floresta.essa "imensidão" nasce de um corpode impressões que não derivam realmente das informações do geógrafo. Não hánecessidade de permanecer nos bosques para conhecer a impressão sempre umpouco ansiosa de que nos "aprofundamos" num mundo sem limite. Em breve, senão sabemos aonde vamos, não saberemos mais onde estamos. Será fácil trazerdocumentos literários que serão variações sobre o tema de um mundo ilimitado,atributo primitivo das imagens da floresta. Mas uma página breve de singularprofundidade psicológica, página emprestada do livro bastante positivo de Marcaulte Thérèse Brosse, vai-nos permitir fixar bem o tema central. Escrevemeles:1 69 "A floresta sobretudo, com o mistério de seu espaço indefinidamenteprolongado além da cortina de seus troncos e de suas folhas, espaço encobertopara os olhos, mas transparente para a ação, é um verdadeiro transcendentepsicológico".1 60 Hesitaríamos diante do termo transcendente psicológico. Masele ao menos é um indício para dirigir a pesquisa fenomenológica para além dapsicologia corrente. Como dizer melhor que as funções da descrição — tanto dadescrição psicológica como da descrição objetiva — são aqui inoperantes? Sentimosque há outra coisa a exprimir, além daquilo que se oferece objetivamente àexpressão. O que seria necessário exprimir é a grandeza escondida, uma profundidade.Longe de nos entregarmos à prolixidade das impressões, longe de nos perdermosno detalhe da luz e das sombras, sentimo-nos diante de uma impressão"essencial" que busca sua expressão de imediato na perspectiva do que os autoreschamam de um "transcendente psicológico". Se queremos "viver a floresta",como dizer melhor que nos achamos diante de uma imensidão local, diante daimensidão local de sua profundeza? O poeta sente essa imensidão local da florestaantiga:1 61Floresta piedosa, floresta alquebrada de onde não se arrancam os mortos.Infinitamente fechada, cerrada por velhos troncos rosados.Infinitamente encipoada por cinzentos e velhos fardos.Sobre a enorme e profunda camada de musgo, em queixumes de veludos.O poeta aqui não descreve. Bem sabe que sua tarefa é maior. A floresta piedosae alquebrada, fechada, cerrada e encipoada. Ela acumula em si mesma suainfinidade. Ele se referirá na continuação do poema à sinfonia de um vento "eterno"que vive no movimento das copas das árvores.

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Assim, a "floresta" de Pierre-Jean Jouve é imediatamente sagrada, sagradapela tradição de sua natureza, longe de qualquer história dos homens. Antes queos deuses aí chegassem os bosques já eram sagrados. Não fizeram mais do quejuntar singularidades humanas, demasiadamente humanas, para a grande lei dodevaneio da floresta.Mesmo quando um poeta evoca uma dimensão de geógrafo, sabe instintivamenteque essa dimensão é lida localizadamente porque está enraizada num valoronírico particular. Assim, quando Pierre Gueguen (La Bretagne, pág.7l) evoca "aFloresta Profunda" (a Floresta de Broceliande), acrescenta-lhe uma dimensão,mas não é a dimensão que revela a intensidade da imagem. Dizendo que a FlorestaProfunda se chama "A Terra Tranquila, por causa de (seu) silêncio prodigioso,coalhada em trinta léguas de verdura", Gueguen nos chama a uma tranqüilidade"transcendente", a um silêncio "transcendente". Pois a floresta fazbarulho, pois a tranquilidade "coalhada" estremece, se arrepia, se anima com milvidas. Mas esses ruídos e esses movimentos não incomodam o silêncio e atranquilidade da floresta. Quando se vive uma página de Gueguen, sente-se que opoeta apaziguou toda a ansiedade. A paz da floresta é para ele uma paz da alma.A floresta é um estado de alma.Os poetas sabem disso. Uns o indicam com um traço distintivo como JulesSupervielle, que sabe que estamos em horas de sossego:

A POÉTICA DO ESPAÇO 319Habitantes delicados das florestas de nós mesmos.Os outros, mais discursivamente, como René Ménard, apresentam um admirávelálbum de árvores onde, a cada árvore, está associado um poeta. Eis & florestaíntima de Ménard: "Vejo-me atravessado por raios, lacrado pelo sol e pelasombra. . . Habito um bom espessor... O abrigo me chama. Volto então o pescoçosobre os ombros de folhagens... Na floresta, sou eu integralmente. Tudo épossível em meu coração como nos esconderijos das ravinas. Uma densa distânciame separa das morais e das cidades".1 62Mas é preciso ler todo esse poema em prosa que é animado, como diz opoeta, por uma "apreensão reverenciai diante da Imaginação da Criação".Nos domínios da fenomenologia poética que estudamos, há um adjetivo deque o metafísico da imaginação deve desconfiar: é o adjetivo ancestral. A esseadjetivo, com efeito, corresponde uma valorização rápida demais, às vezes inteiramenteverbal, nunca comedida, que faz que falte o caráter direto da imaginaçãodas profundezas, e até, em geral, a psicologia das profundezas. A floresta "ancestral"é então um "transcendente psicológico" barato. A floresta ancestral é umaimagem para livros infantis. Se houver, em relação a essa imagem, um problemafenomenológico a ser colocado, convém saber por que razão atual, em virtude deque valor de imaginação em ato, tal imagem nos seduz, nos fala. Uma distanteimpregnação vinda do infinito dos tempos é uma hipótese gratuita do ponto devista psicológico. Tal hipótese seria um convite à preguiça se fosse aceita por umfenomenólogo. No que nos concerne, acreditamo-nos obrigados a estabelecer aatualidade dos arquétipos. De qualquer maneira, a palavra ancestral, no reino dosvalores da imaginação, é uma palavra a ser explicada; não é' uma palavraexplicadora.Mas quem nos dirá a dimensão temporal da Floresta? A história não é suficiente.Seria preciso saber como a Floresta vive sua idade avançada, porque nãohá, no reino da imaginação, florestas jovens. Quanto a mim, só sei meditar coisasde minha terra. Sei viver, Gaston Roupnel, o inesquecível amigo, me ensinou, adialética das extensões campestres e das extensões arborizadas.163 No vastomundo do não-eu, o não-eu dos campos não é o mesmo que o não-eu das florestas.A floresta é um antes-de-mim, um antes-de-nós. Meus sonhos e minhas lembrançasacompanham os campos e as pradarias durante todo o tempo da lavoura

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e das colheitas. Quando se abranda a dialética do eu e do não-eu, sinto as pradariase os campos comigo, no comigo, o conosco. Mas a floresta reina no anterior.Em determinado bosque que conheço, meu avô se perdeu. Contaram-me, não meesqueci. Foi num tempo em que eu não vivia. Minhas lembranças mais antigastêm cem anos ou pouco mais.Essa é a minha floresta ancestral. O resto é literatura.

1 62 René Ménard, Le Livre des Arbres, ed. Arts et Métiers Graphiques, Paris, 1956, págs. 6 e 7.Gaston Roupnel, La Campagne Française, cap. "La forêt", ed. Club des Libraires de France, págs. 75e seg. '

320 BACHELARDIIIEm tais devaneios que dominam o homem que medita, os detalhes se apagam,o pitoresco perde a cor, a hora não soa mais e o espaço se estende sem limite.A tais devaneios, pode-se muito bem dar o nome de devaneios de infinito. Comas imagens da floresta "profunda", acabamos de dar um esboço dessa potencialidadeda imensidão que se revela num valor. Mas podemos seguir o caminhocontrário e diante de uma imensidão evidente, como a imensidão da noite, o poetapode indicar-nos os caminhos da profundidade íntima. Uma página de Milosz vaiservir-nos de centro para provar a consonância da imensidão do mundo com aprofundidade do ser íntimo.Em L 'Amoureuse Initiation (pág. 64), Milosz escreve: "Eu contemplava ojardim das maravilhas do espaço com o sentimento de olhar o mais profundo, omais secreto de mim mesmo; e sorria, pois nunca me imaginara tão puro, tãogrande, tão belo ! Em meu coraçãv dxplodiu o canto de graça do universo. Todasessas constelações são tuas, estão em ti, não têm nenhuma realidade fora de teuamor! Que pena! Como o mundo parece terrível para aqueles que não se conhecem! Quando te sentires só e abandonado diante do mar imagina qual deveria sera solidão das águas, à noite, e a solidão da noite no universo sem fim !" E o poetacontinua esse duo de amor do sonhador e do mundo, fazendo do mundo e dohomem duas criaturas conjuntas paradoxalmente unidas no diálogo de suasolidão.Em outra página, numa espécie de meditação-exaltação, unindo os doismovimentos que concentram e que dilatam, Milosz escreve (loc. cit., pág. 151):"Espaço, espaço que separa as águas; amigo alegre, respiro-te com amor! Vejomecomo a urtiga florida no sol ameno das ruínas, e como o calhau na boca dafonte, e como a cobra no calor do capim! O quê? O instante será realmente aeternidade? A eternidade será realmente o instante?" E a página continua ligandoo ínfimo ao imenso, a urtiga branca ao céu azul. Todas as contradições agudas,como a do calhau na boca da fonte e a água clara, são assimiladas, aniquiladas,desde que o ser que sonha ultrapasse a contradição do pequeno e do grande. Esseespaço de exaltação ultrapassa qualquer limite (pág. 155): "Desmoronem, limitessem amor dos horizontes! Apareçam, distâncias verdadeiras!" E na página 168:"Tudo era luz, doçura, sabedoria; e, no ar irreal, o distante acenava para olongínquo. Meu amor envolvia o universo".Efetivamente, se nosso objetivo nestas páginas fosse estudar objetivamenteas imagens da imensidão, seria preciso abrir um verdadeiro inventário de exemplos;pois a imensidão é um tema poético inesgotável. Abordamos o problemanum livro anterior,1 6 4 insistindo na vontade de confronto do homem que meditadiante de um universo infinito. Pudemos falar de um complexo especular onde oorgulho de ver é o núcleo da consciência do ser que contempla. Mas o problemaque enfocamos na presente obra é o de uma participação mais descontraída nasimagens da imensidão, num intercâmbio mais íntimo do pequeno com o grande.Gostaríamos, de alguma forma, de liquidar o complexo especular que pode tornar

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rígidos certos valores da contemplação poética.IVNa alma descontraída que medita e que sonha, uma imensidão parece esperarpelas imagens da imensidão. O_espírito_vê e revê objetos. A alma encontra noobjeto o ninho de uma imensidão. Teremos provas disso e em grande variedade seseguirmos os devaneios que se abrem na alma de Baudelaire, sob o signo da palavravasto. Vasto é uma das palavras mais baudelairianas, a palavra que, para opoeta, marca mais naturalmente a infinitude do espaço íntimo.Sem dúvida, encontraríamos páginas onde a palavra vasto não tem nadaalém de sua significação de geometria objetiva: "Em torno de uma vasta mesaoval. . .", diz-se numa descrição das Curiositês Esthétiques (Curiosidades Estéticas),pág. 390. Mas, quando nos tornarmos hipersensíveis à palavra, veremos queela é uma adesão de uma amplitude feliz. Além disso, se fizéssemos uma estatísticados diversos empregos da palavra vasto em Baudelaire, ficaríamos surpresospelo fato de que o emprego da palavra em sua significação objetiva é raro emcomparação com os casos em que a palavra tem ressonâncias íntimas.1 6 5Baudelaire, que se distancia tanto das palavras ditadas pelo hábito, Baudelaire,que, em particular, pensa com cuidado seus adjetivos, evitando tomá-loscomo uma seqüela do substantivo, não fiscaliza o emprego da palavra vasto. Essapalavra se impõe a ele quando a grandeza toca uma coisa, um pensamento, umdevaneio. Vamos dar algumas indicações sobre essa impressionante variedade deemprego.O consumidor de ópio, para aproveitar o devaneio que acalma, deve ter"vastos lazeres".166 O devaneio é favorecido167 pelos "vastos silêncios docampo". Então "o mundo moral abre vastas perspectivas, cheias de novas claridades".1 68 Certos sonhos estão assentados "sobre a vasta tela da memória".Baudelaire fala ainda de um "homem, às voltas com muitos projetos, oprimidopor vastos pensamentos".Ele quer definir uma nação? Baudelaire escreve: "As nações são vastos animaiscuja organização é adequada a seu meio". E torna a dizer:1 69 "As nações,vastos seres coletivos". Eis um texto em que a palavra vasto aumenta a tonalidadeda metáfora; sem a palavra vasto, valorizada por ele, Baudelaire talveztivesse recuado diante da pobreza do pensamento. Mas a palavra vasto salva tudoe Baudelaire acrescenta: tal comparação será compreendida pelo leitor por poucofamiliarizado que esteja "com essas vastas contemplações".

1 6 5 A pr lavra vasto não está catalogada no excelente índice que se encontra no fim da obra Fusées et JournauxIntimes, cá. Jacques Crépet (Mercure de France).1 6 6 Baudelaire, Le Mangeur d 'Ophitn, pág. 181.1 6 7 Baudelaire. Les Paradis Artificieis, pág. 325.1 s 8 Loc. c/7., pág. 169, pág. 172, páe. 183.1 " Baudelaire. Curiositês Esthétiques, pág. 221.

322 BACHELARDNão é exagero dizer que a palavra vasto é, em Baudelaire, um verdadeiroargumento metafísico pelo qual são unidos o vasto mundo e os vastos pensamentos.Mas não será nesse ponto do espaço íntimo que a grandeza é mais ativa?Essa grandeza não aflora do espetáculo, mas da profundidade insondável dosvastos pensamentos. Em Journaux Intimes (loc. cit., pág. 29), Baudelaire escrevea propósito: "Em certos estados da alma quase sobrenaturais, a profundidade davida se revela integralmente no espetáculo, por mais comum que seja, que se temsob os olhos. Transforma-se em símbolo". Esse texto indica a direção fenomenológicaque nos esforçamos em seguir. O espetáculo exterior vem ajudar a revelaruma grandeza íntima.

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A palavra vasto é também, em Baudelaire, a palavra da síntese suprema.Que diferença existe entre os passos discursivos do espírito e os poderes da almanós o saberemos se meditarmos sobre este pensamento:1 70 "A alma lírica fazlances vastos como sínteses; o espírito do romancista se deleita na análise".Assim, sob o signo da palavra vasto, a alma encontra seu ser sintético. Apalavra vasto reúne os contrários."Vasto como a noite e como a claridade." No poema da maconha,1 71encontramos elementos daquele verso famoso, do verso que assomBra a memóriade todos os baudelairianos: "O mundo moral abre vastas perspectivas, cheias declaridades novas". E assim a natureza "moral", o templo "moral", que têm agrandeza em sua virtude inicial. Ao longo da obra do poeta, pode-se seguir a açãode uma "vasta unidade" sempre pronta a unir as riquezas desordenadas. O espíritofilosófico discute infinitamente sobre as relações do uno e do múltiplo. Ameditação baudelairiana, verdadeiro tipo de meditação poética, encontra umaunidade profunda e tenebrosa no próprio poder da síntese pelo qual as diversasimpressões dos sentidos serão colocadas em correspondência. As "correspondências"têm sido freqüentemente estudadas empiricamente demais, como fatosda sensibilidade. Ora, as teclas sensíveis quase não coincidem de um sonhadorpara o outro. O benjoim, afora a alegria que proporciona ao ouvido de todos osleitores, não é dado a todo mundo. Mas, desde os primeiros acordes do sonetoCorrespondances a ação sintética da alma lírica está em ação. Mesmo que asensibilidade poética se deleite com as mil variações do tema das "correspondências",é preciso reconhecer que o tema é, em si mesmo, um prazer supremo. E,precisamente, Baudelaire diz que, em tais ocorrências, "o sentimento da existênciaé imensamente aumentado".1 72 Descobrimos aqui que a imensidão íntimaé uma intensidade, uma intensidade do ser, a intensidade de um ser que se revelanuma vasta perspectiva de imensidão íntima. Em seu princípio, as "correspondências"acolhem a imensidão do mundo e a transformam em uma intensidade denosso ser íntimo. Elas instituem transações entre dois tipos de grandeza. Não sepode esquecer que Baudelaire viveu essas transações.O próprio movimento tem, por assim dizer, um volume feliz. Baudelaire o1 70 Baudelaire, L An Romantique, pág. 369.1 7 1 Baudelaire, Les Paradis Artificieis, pág. 169.1 72 Baudelaire, Journaux Intimes, pág. 28.A POÉTICA DO ESPAÇO 323fez entrar, por sua harmonia, na categoria estética do vasto. Sobre o movimentode um navio,1 73 Baudelaire escreve: "A idéia poética que se depreende dessa operaçãodo movimento nas linhas é a hipótese de um ser vasto, imenso, complicado,mas eurrítmico, de um animal espirituoso, sofrendo e suspirando todos os suspirose todas as ambições humanas". Assim o navio, belo volume apoiado naságuas, contém o infinito da palavra vasto, da palavra que não descreve, mas quedá o ser primeiro a tudo o que tiver que ser descrito. Sob a palavra vasto, há, emBaudelaire, um complexo de imagens. Essas imagens se aprofundam mutuamenteporque crescem sobre um ser vasto.Correndo o risco de dispersar nossa demonstração, tentamos indicar todosos pontos em que na obra de Baudelaire aparece esse adjetivo estranho, estranhoporque confere grandeza a impressões que não têm entre elas nada em comum.Mas, para que nossa demonstração tenha mais unidade, vamos seguir aindauma linha de imagens, uma linha de valores que nos vão mostrar que, em Baudelaire,a imensidão é uma dimensão íntima.Nada exprime melhor o caráter íntimo da noção de imensidão que as páginasconsagradas por Baudelaire a Richard Wagner.1 7 4 Baudelaire dá, pode-sedizer, três estados dessa impressão de imensidão. Cita inicialmente o programado concerto em que foi apresentada a abertura de Lohengrin (loc. cit., pág. 212)."Desde os primeiros compassos a alma do devoto solitário que espera o vaso

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sagrado mergulha nos espaços infinitos. Ele vê formar-se pouco a pouco umaaparição estranha que ganha um corpo, uma figura. Essa aparição se torna maisprecisa, e o bando milagroso dos anjos, trazendo entre eles a taça sagrada, passadiante dele. O cortejo santo se aproxima, o coração do eleito de Deus se exaltapouco a pouco; se alarga, se dilata; inefáveis aspirações despertam dentro dele;ele cede à bem-aventurança crescente, encontrando-se sempre próximo da apariçãoluminosa, e quando o próprio Santo Graal aparece no meio do cortejo sagrado,ele se abisma numa adoração estática, como se o mundo inteiro houvessesubitamente desaparecido." Todas as passagens estão sublinhadas pelo próprioBaudelaire. Fazem-nos sentir a dilatação progressiva do devaneio até o pontoextremo onde a imensidão nascida intimamente num sentimento de êxtase dissolvee absorve, de alguma forma, o mundo sensível.O segundo estado do que acreditamos poder chamar de um acréscimo do seré dado por um texto de Liszt. Esse texto nos faz participar do espaço místico(pág. 213) nascido da meditação musical. Sobre "uma longa cobertura adormecidapela melodia, um éter vaporoso ( . . . ) se estende". Na continuação do textode Liszt, as metáforas da luz ajudam a captar essa extensão de um mundo musicaltransparente.Mas esses textos não fazem mais que preparar a página pessoal de Baudelaire,página em que as "correspondências" vão aparecer como diversos prolongamentosdos sentidos, cada prolongamento de uma imagem aumentando a gran-1 ' 3 Loc. cit., 33.1 7 " Baudelaire, L 'An Ramantique, parágrafo X.324 BACHELARDdeza de outra imagem. A imensidão vai-se desenvolvendo. Baudelaire, agora decorpo inteiro no onirismo da música, sente, diz ele, "uma dessas impressões felizesque quase todos os homens imaginativos sentiram, pelo sonho, durante osono. Eu me sentia livre das sensações do peso, e reencontrava pela lembrança aextraordinária volúpia que circula nos píncaros. Assim eu me pintava involuntariamenteo estado de um homem tomado por um grande devaneio, numa solidãoabsoluta, mas numa solidão com um imenso horizonte e uma ampla luz difusa; aimensidão sem outro cenário que ela própria".Na continuação do texto, encontraríamos muitos elementos para uma fenomenologiada extensão, da expansão, do êxtase — abreviando, para uma fenomenologiado prefixo ex. Mas, longamente preparada por Baudelaire, acabamos deatingir a fórmula que deve ser colocada no centro de nossas observações fenomenológicas:uma imensidão que não tenha outro cenário além dela mesma. Essaimensidão, que Baudelaire já nos fez ler detalhadamente, é uma conquista da intimidade.A grandeza progride no mundo na medida em que a intimidade se aprofunda.O devaneio de Baudelaire não se formou diante de um universo contemplado.O poeta — ele próprio o diz — dirige seu devaneio com os olhos fechados.Não vive de lembranças. Seu êxtase poético se transformou pouco a pouco numavida sem acontecimento. Os anjos que punham suas asas azuis no céu fundiramsenum azul universal. Lentamente, a imensidão se institui como valor primeiro,como um valor íntimo primeiro. Quando ele vive realmente a palavra imenso, osonhador se vê libertado de suas preocupações, de seus pensamentos, libertado deseus sonhos. Não está mais fechado em seu peso. Não é mais prisioneiro de seupróprio ser.Se seguíssemos as vias normais da psicologia para estudar esses textosbaudelairianos, poderíamos concluir que o poeta, abandonando os cenários domundo para viver o "cenário" único da imensidão, não pode sentir mais que umaabstração, aquela que os antigos psicólogos chamavam de uma "abstração realizada".O espaço íntimo assim trabalhado pelo poeta seria apenas o pendente doespaço exterior dos geômetras que, também eles, desejam o espaço infinito semoutro sinal que o próprio infinito. Mas tal conclusão ignoraria os passos concretos

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do longo devaneio. Cada vez que o devaneio abandona um episódio por demaiscarregado de imagens, ganha uma extensão suplementar do ser íntimo. Semter mesmo a vantagem da audição de Tannhüuser, o leitor que medita as páginasbaudelairianas detalhando os estados sucessivos do poeta não pode deixar de perceberque, afastando as metáforas fáceis demais, ele é chamado a uma ontologiada profundidade humana. Para Baudelaire, o destino poético do homem é o serdo espelho da imensidão, ou, mais exatamente ainda, a imensidão vem tomarconsciência dela mesma no homem. Para Baudelaire, o homem é um vasto sonho.Assim, em muitas direções, acreditamos ter provado que, na poética deBaudelaire, a palavra vasto não pertence realmente ao mundo objetivo. Gostaríamosde acrescentar um matiz fenomenológico a mais, um matiz que deriva dafenomenologia da palavra.

A POÉTICA DO ESPAÇO 325Em nossa opinião, para Baudelaire, a palavra vasto é um valor vocal. É umapalavra pronunciada, nunca lida apenas, nunca vista apenas nos objetos aosquais a ligamos. Existem palavras que um escritor diz sempre baixinho enquantoa escreve. Seja em verso ou em prosa, ela tem uma ação poética, uma ação depoesia vocal. Essa palavra ganha imediatamente relevo sobre as palavras vizinhas,sobre as imagens, talvez mesmo sobre o pensamento. É um "potencial dapalavra"1 7 5 Desde que lemos a palavra em Baudelaire, na medida do verso ou naamplitude dos períodos dos poemas em prosa, parece que o poeta nos obriga apronunciá-la. A palavra vasto é então um vocábulo da respiração. Ela se acomodaem nosso alento. Deseja que esse alento seja lento e calmo.1 7 6 E sempre, comefeito, na poética de Baudelaire, a palavra vasto evoca uma calma, uma paz, umaserenidade. Traduz uma convicção vital, uma convicção íntima. Traz-nos o ecodas câmaras secretas do nosso ser. É uma palavra grave, inimiga das turbulências,hostil aos excessos da voz da declamação. Nós a quebraríamos corr. umadicção subjugada pela medida. É preciso que a palavra vasto reine sobre o silênciocalmo do ser.Se eu fosse psiquiatra, aconselharia ao doente que sofre de angústia, desde oaparecimento da crise, que lesse o poema de Baudelaire, que pronunciasse bemdocemente a palavra baudelairiana dominadora, a palavra vasto, que dá calma eunidade; essa palavra que abre um espaço, que abre o espaço ilimitado. Ela nosensina a respirar com o ar que repousa no horizonte, longe das paredes de prisõesquimericas que nos angustiam. Tem uma virtude vocal que trabalha no âmago dopotencial da voz. Panzera, o cantor sensível à poesia, me afirmou um dia que nodizer dos psicólogos experimentais não se pode pensar a vogai a sem que se mobilizemas cordas vocais. Com a vogai a sob os olhos, a voz já tem vontade de cantar.A vogai a, corpo da palavra vasto, se isola em sua delicadeza, anacoluto dasensibilidade que fala.Parece que os numerosos comentários que foram feitos sobre as "correspondênciasbaudelairianas" têm esquecido o sexto sentido, que trabalha modelando,modulando a voz. Pois essa pequena harpa eólia, a mais delicada de todas, colocadapela natureza na porta da nossa respiração, é um sexto sentido, vindo depoisdos outros, acima dos outros. Essa harpa freme, ao simples movimento das metáforas.O pensamento humano canta através dela. Quando continuo assim sem fimmeus devaneios de filósofo indócil, chego a pensar que a vogai a é a vogai daimensidão. É um espaço sonoro que começa num suspiro e que se estende semlimite.Na palavra vasto, a vogai a conserva todas as virtudes de sua vocalidadeengrandecedora. Considerada vocalmente, a palavra vasto já não é simplesmentedimensional. Recebe, como uma matéria suave, os poderes balsâmicos da calmailimitada. Com ela, o ilimitado entra em nosso peito. Por ela, respiramos cosmi-

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1 7 5 Cf. Edgar Poe, "La puissance de Ia parole", apud Nouvelles Histoires Extraordinaires, trad. Baudelaire,pág. 238.1 7 6 Para Victor Hugo, o vento é vasto. O vento diz: Sou esse grande passante, vasto, invencível e vão.(Dieu, pág. 5). Nas três últimas palavras, os lábios quase não fazem movimento pronunciando os v.326 BACHELARDcamente, longe das angústias humanas. Por que haveríamos de negligenciar omenor fator na medida dos valores poéticos? Tudo o que contribui para dar àpoesia sua ação psíquica decisiva deve ser incluído numa filosofia da imaginaçãodinâmica. Às vezes, os valores sensíveis mais diferentes e mais delicados se revezampara dinamizar e engrandecer o poema. Uma longa pesquisa das correspondênciasbaudelairianas deveria elucidar a correspondência de cada sentido com apalavra.Às vezes o som de um vocábulo, a força de uma letra abre ou fixa o pensamentoprofundo da palavra. Lê-se num belo livro de Max Picard, Der Menschund das Wort: "Das W in Welle bewegt die Welle im Wort mit, das H in Hauchlàsst den Hauch aufsteigen, das t in fest und hart macht fest und hart".1 7 7 Comtais observações, o filósofo do Mundo do Silêncio nos leva a pontos da sensibilidadeextrema, onde os fenômenos fonéticos e os fenômenos do logos vêm, quandoa linguagem tem toda a sua nobreza, harmonizar-se. Mas que vagar de meditaçãoteríamos que saber adquirir para que vivêssemos a poesia interior da palavra, aimensidão interior de uma palavra. Todas as grandes palavras, todas as palavraschamadas à grandeza por um poeta, são chaves do universo, do duplo universodo Cosmo e das profundezas da alma humana.Assim, parece-nos provado que, num grande poeta como Baudelaire, podeouvir-se mais que um eco vindo do exterior, um apelo íntimo da imensidão.Podíamos dizer então, no estilo filosófico, que a imensidão é uma "categoria" daimaginação poética e não apenas uma idéia geral formada na contemplação deespaços grandiosos. Para dar, à guisa de contraste, um exemplo de uma imensidão"empírica", comentaremos uma página de Taine. Veremos aí em ação, emlugar da poesia, a má literatura, aquela que deseja a qualquer preço a expressãopitoresca, mesmo que seja a despeito das imagens fundamentais.Em Voyage aux Pyrénées (Viagem aos Pireneus), pág. 96, Taine escreve: "Aprimeira vez que vi o mar tive o desencanto mais desagradável. . . Pensei estarvendo uma das longas planícies plantadas de beterrabas que encontramos nascercanias de Paris, entrecortadas de canteiros de couves e de faixas douradas decevada. As velas distantes pareciam asas dos pombos que voltam. A perspectivame parecia estreita: os quadros dos pintores me haviam apresentado o mar comomuito maior. Foram precisos três dias para que eu reencontrasse o sentimento daimensidão".Beterrabas, cevada, couves e pombos são bem artificialmente associados!Reuni-los numa "imagem" não pode passar de uma conversa acidental de quemqueria dizer coisas "originais". Como se pode estar, diante do mar, obcecadoassim pelos campos de beterrabas das planícies das Ardênias? ••1 ' ' Max Picard, Der Mensch und das Wort, Eugen Rentsch Verlag, Zurique, 1955, pág. 14. É claro que talfrase não deve ser traduzida, jã que é preciso aguçar os ouvidos para sentir a vocalidade da língua alemã.Cada língua tem suas palavras de grande vocalidade.A POÉTICA DO ESPAÇO 327O fenomenólogo ficaria feliz em saber como, depois de três dias de privação,0 filosófo~riencõntrõu seu "sentimento de imensidão", por que retorno ao marcontemplado ingenuamente viu, enfim, a grandeza do mesmo.Depois deste comentário intermediário, voltemos aos poetas.VIjOs poetas nos ajudarão a descobrir em nós uma alegria tão expansiva aocontemplar as coisas que às vezes viveremos, diante de um objeto próximo, o

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engrandecimento de nosso espaço íntimo. Escutemos, por exemplo, Rilke, quandoele atribui sua existência de imensidão à árvore contemplada:1 78O espaço, fora de nós, ganha e traduz as coisas: %Se quiseres conseguir a existência de uma árvore,Reveste-a de espaço interno, esse espaçoQue tem seu ser em ti. Cerca-a com violênciaEla não tem limite, e não se torna realmente uma árvoreSenão quando se ordena no seio de tua renúncia.Nos dois últimos versos, uma obscuridade mallarmeriana obriga o leitor ameditar. Ele recebe do poeta um belo problema de imaginação. O conselho:"Cerca a árvore com violência" seria inicialmente uma obrigação de desenhá-la,de revesti-la, de limites no espaço exterior. Obedeceríamos então às regras simplesda percepção, seríamos "objetivos", não imaginaríamos mais. Mas a árvoreé, como todo ser verdadeiro, compreendida em seu ser "sem limite". Seus limitessão apenas acidentes. Contra o acidente dos limites, a árvore tem necessidade deque tu lhe dês tuas imagens superabundantes alimentadas por teu espaço íntimo,desse "espaço que tem seu ser em ti". Então, a árvore e seu sonhador, em conjunto,se ordenam, crescem. Nunca a árvore, no mundo do sonho, se estabelece comoum ser acabado. Ela procura sua alma, diz Jules Supervielle num poema:1 79Azul Vivaz de um espaçoOnde cada árvore se alçaàs alturas das palmeirasEm busca de sua alma.Mas quando um poeta sabe que um ser do mundo procura sua alma, é porqueele procura a dele. "Uma longa árvore fremente toca sempre a alma."180Entregue a forças imaginárias, investida de nosso espaço interior, a árvoreentra conosco numa emulação de grandeza. Noutro poema de agosto de 1914(loc. cit.^pkg. 11) Rilke dissera:1 7 8 Poema de junho de 1924, traduzido para o francês por Claude Vigée, publicado na revista Les Lettres,ano4,n.°s 14, 15, 16, pág. 13.1 79 Jules Supervielle, L "Escalier, pág» 106.1 8 0 Henri Bosco,/lnío«m, pág. 13.328 BACHELARD. . . Através de nós alçam vôoOs pássaros do silêncio. Ó eu, que quero crescer,Olho para fora, e a árvore cresce em mim..Assim, a árvore tem sempre um destino de grandeza. Esse destino ela o propaga.A árvore faz crescer o que a rodeia. Numa carta reproduzida no pequenolivro tão~humano de Claire Goll,181 Rilke lhe escrevera: "Essas árvores sãomagníficas, porém mais magnífico ainda é o espaço sublime e patético entre elas,como se com o crescimento delas ele também aumentasse".Poder-se-ia dizer que os dois espaços, o íntimo e o exterior, acabam por seestimular incessantemente em seu crescimento. Indicar, como fazem com razãoos psicólogos, o espaço vivido como um espaço afetivo não chega entretanto àraiz dos sonhos da espacialidade. O poeta vai mais ao fundo, descobrindo com oespaço poético um espaço que não nos encerra numa afetividade. Qualquer queseja a afetividade que dê cor a um espaço, seja ela triste ou pesada, desde que sejaexpressa, poeticamente expressa, a tristeza se tempera, o peso se alivia. Ojispaçopoético, uma vez expresso, toma valores de expansão. Pertence à fenomenologiado ex. É ao menos a tese que queremos evocar em toda e qualquer ocasião, tesea que voltaremos em uma próxima obra. Uma prova, de passagem: quando opoeta me diz:18 2Conheço uma tristeza com cheiro de abacaxiSou menos triste, mais docemente triste.Nessa transação da espacialidade poética que vai da intimidade profunda

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até a extensão indefinida reunidas numa mesma expansão, sente-se brotar umagrandeza. Rilke disse:"Por todos os seres se desenvolve o espaço único, espaço íntimo nom u n d o . . . "O espaço aparece então ao poeta como sujeito do verbo desenvolver-se, doverbo crescer. Desde que um espaço seja um valor — e haverá valor maior quea intimidade? — ele crescerá. O espaço valorizado é um verbo; em nós ou forade nós a grandeza nunca é um "objeto".Dar seu espaço poético a um objeto é dar-lhe mais espaço do que aquele queele tem objetivamente, ou, melhor, é seguir a expansão de seu espaço íntimo. Paraguardar a homogeneidade, lembremos ainda que Jõe Bousquet exprime assim oespaço íntimo da árvore:183 "O espaço não está em lugar algum. O espaço estáem si mesmo como o mel no favo". No reino das imagens, o mel no favo não obedeceà dialética elementar do conteúdo e do continente. O mel metafórico não sedeixa fechar. Aqui no espaço íntimo da árvore, o mel é algo mais que uma medula.É o "mel da árvore" que vai perfumar a flor. É o sol interior da árvore. Quemsonha com o mel bem sabe que ele é um poder que concentra e irradia ao' mesmo1 8 11 821 83Claire Goll, Rilke et les Femmes, pág. 63.Jules Supervielle, L "Escalier, pág. 123.Joé Bousquet,La Neige d'un AutreÂge, pág. 92.A POÉTICA DO ESPAÇO 329tempo. Se o espaço interior da árvore é um mel, ele dá à árvore "a expansão dascoisas infinitas".Efetivamente, podemos ler a página de Joé Bousquet sem nos determos naimagem. Mas, se gostamos de ir ao fundo da imagem, quantos sonhos ela suscita!O filósofo do espaço se põe a sonhar. Se gostamos das palavras da metafísicacomposta, não podemos dizer que Joè Bousquet acaba de nos revelar um espaçosubstância,o mel-espaço ou espaço-mel? A cada matéria sua localização. A cadasubstância sua exstância. A cada matéria a conquista de seu espaço, de seu poderde expansão além das superfícies pelas quais um geometra desejasse defini-la.Parece então que é por sua "imensidão" que os dois espaços: o espaço daintimidade e o espaço do mundo se tornam consoantes. Quando se aprofunda agrande solidão do homem, as duas imensidões se tocam, se confundem. Numacarta, Rilke tende, com toda a sua alma, para "essa solidão ilimitada, que faz decada dia uma vida, essa comunhão com o universo, o espaço numa palavra,^ espaçoinvisível que o homem pode, entretanto, habitar e que o cerca de inúmeraspresenças".Como é concreta essa coexistência das coisas num espaço que duplicamoscom a consciência de nossa existência! O tema leibniziano do espaço, lugar doscoexistentes, encontra em Rilke o seu poeta. Cada objeto investido de espaço íntimose torna, nesse coexistencialismo, centro de todo o espaço. Para cada objeto,o distante é o presente, o horizonte tem tanta existência quanto o centro.VIINo reino das imagens, não poderia haver contradição, e almas igualmentesensíveis podem sensibilizar a dialética do centro e do horizonte de uma formadiferente. Poderíamos propor, nesse caso, uma espécie de teste da planície onderepercutiriam tomadas do infinito de tipos diferentes.Num dos extremos do teste, deveríamos colocar o que Rilke diz brevementenuma frase imensa: "A planície é o sentimento que nos engrandece". Esse teoremade antropologia estética é enunciado com tamanha clareza que sentimosmanifestar-se um teorema correlativo que poderíamos exprimir nestes termos:todo sentimento que nos engrandece planifica nossa situação no mundo.

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Na outra extremidade do teste da planície, colocaríamos esta página deHenri Bosco.184 Na planície, "estou sempre além, num além aéreo, fluido.Ausente há muito tempo de mim mesmo, sem estar presente em parte alguma,atribuo facilmente demais a inconsistência de meus devaneios aos espaços ilimitadosque os favorecem".Entre esses dois pólos da dominação e da dispersão, quantos matizes encontraríamosse nos déssemos conta do humor do sonhador, das estações do ano e dovento. È, sempre, encontraríamos entre os sonhadores matizes que a planícieaquieta e, aqueles a quem a planície inquieta, matizes tanto mais interessantes de18 4 Henri Bosco, Hyacinthe, pág. \S.330 BACHELARDestudar quanto a planície é freqüentemente considerada como um mundo simplificado.É um dos encantos da fenomenologia da imaginação poética poder viverum matiz novo diante de um espetáculo que requer uniformidade, que se resumenuma idéia. Se o matiz é sinceramente vivido pelo poeta, o fenomenólogo estácerto de captar uma partida da imagem.Em todos esses matizes, numa indagação mais aprofundada que a nossa,dever-se-ia mostrar como eles se integram na grandeza da planície ou do planalto,dizer, por exemplo, por que o devaneio do planalto não é nunca um devaneio daplanície. Esse estudo é difícil porque, às vezes, o escritor quer descrever, porque0 escritor sabe, quilômetros antes, a grandeza de sua solidão. Então, sonha-sesobre o mapa, sonha-se como geógrafo. Assim Loti, à sombra de uma árvore emDacar, seu porto de atracação: "Os olhos voltados para o interior do país, interrogamoso imenso horizonte das areias".18 5 Esse imenso horizonte das areiasnão será um deserto de estudante, o Saara dos atlas escolares?Quanto mais preciosas para um fenomenólogo são as imagens do Desertono belo livro de Philippe Diolé: Le plus Beau Désert du Monde (O mais BeloDeserto do Mundo)! A imensidão no deserto vivido repercute numa intensidadedo ser íntimo. Como diz Philippe Diolé, viajante cheio de sonhos,18 6 é precisoviver o deserto "tal como se reflete no interior do errante". E Diolé nos pede parameditar onde poderíamos — síntese dos contrários — viver uma concentração denomadismo. Para Diolé, "esses restos de montanhas, essas areias e esses riosmortos, essas pedras e esse sol causticante", todo esse universo que está sob osigno do deserto é "anexado ao espaço interior". Por essa anexação, a diversidadedas imagens é unificada na profundeza "do espaço interior".187 Fórmula decisivapara a demonstração que queremos fazer da correspondência da imensidãodo espaço e da profundidade do "espaço interior".Aliás, essa interiorização do Deserto não corresponde em Diolé à consciênciade um vazio íntimo. Ao contrário, Diolé nos faz viver um drama de imagens,o drama fundamental das imagens materiais da água e da seca. Com efeito,"o espaço interior" é, em Diolé, uma adesão a uma substância íntima. Ele viveulongamente, deliciosamente, as experiências do mergulho em águas profundas. OOceano se tornou para ele um "espaço". A 40 metros sob a superfície da água,encontrou o "absoluto da profundidade", uma profundidade que não se medemais, uma profundidade que não daria outros poderes de sonho e de pensamentose a duplicássemos ou triplicássemos. Por suas experiências de mergulho, Dioléentrou realmente no volume da água. E quando vivemos com Diolé, seguindo-o1 8 5 Pierre Loti, Un Jeune Officier Pauvre, pág. 85.1 8 6 Ph. Diolé, Le Plus Beau Désert du Monde, Albin Michel, pág. 178.1 8 7 Henri Bosco escreve (L 'Antiquaire, pág. 228): "No deserto escondido que trazemos em nós, onde penetrouo deserto da areia e da pedra, a extensão da alma se perde na extensão infinitamente inabitada que desolaas solidões da terra". Ver também pág. 227.A distância, num planalto aberto, sobre essa planície que alcança o céu, o grande sonhador que escreveu

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Hyacinthe traduz em sua profundidade o mimetismo do deserto com o mundo e do deserto com a alma: "Estendia-se em mim um novo vazio, e eu era o deserto no deserto". A distância de meditação termina com estanota: "Eu não tinha mais alma". (Henri Bosco, Hyacinthe, pág. 33, pág. 34.)A POÉTICA DO ESPAÇO 331em seus livros anteriores, essa conquista da intimidade da água. chegamos aconhecer nesse espaço-substância um espaço com uma dimensão. Uma substância,uma dimensão. E estamos tão longe da terra, da vida terrestre, que essadimensão da água traz o signo do ilimitado. Procurar o alto, o baixo, a direita ouesquerda, num mundo tão bem unificado por sua substância, é pensar, não é viver— é pensar como outrora na vida terrestre, não é viver no mundo novo conquistadono mergulho. Quanto a mim, antes de ler os livros de Diolé, eu não faziaidéia de que o ilimitado estivesse tão facilmente a nosso alcance. Basta sonhar naprofundidade pura, na profundidade que não precisa de medida para ser.Mas então, por que Diolé, esse psicólogo, esse antólogo da vida humanasubmarina, vai ao Deserto? Por que cruel dialética quer ele passar da água ilimitadaàs areias infinitas? A essas perguntas, Diolé responde como poeta. Ele sabeque toda nova cosmicidade renova nosso ser interior e todo novo cosmos estáaberto quando nos libertamos de ligações de uma sensibilidade anterior. N© iníciodo seu livro (loc. cit., pág. 12), Diolé nos diz que quis "concluir no Deserto aoperação mágica que, na água profunda, permite ao mergulhador desligar asamarras comuns do tempo e do espaço e fazer coincidir a vida com um obscuropoema interior".E, no fim do seu livro, Diolé concluirá (pág. 178): "Descer na água ou errarno deserto é mudar de espaço" e, mudando de espaço, deixando o espaço dassensibilidades comuns, entramos em comunicação com um espaço psiquicamenteinovador. "Mantemos no Deserto e no fundo do mar uma pequena alma, umasonda indivisível." Essa mudança do espaço concreto não pode mais ser simplesoperação do espírito como seria a consciência do relativismo das geometrias.Não mudamos de lugar, mudamos de natureza.Mas, como esses problemas de fusão do ser num espaço concreto, num espaçoaltamente qualitativo interessam a uma fenomenologia da imaginação — poisé preciso imaginar muito para "viver" um espaço novo —, vemos a influênciadas imagens fundamentais sobre nosso autor. No Deserto, Diolé não se desprendedo oceano. O espaço do Deserto, longe de contradizer o espaço da água profundavai, nos sonhos de Diolé, exprimir-se na linguagem das águas. Há aí um verdadeirodrama da imaginação material, drama nascido do conflito da imaginaçãode dois elementos tão hostis quanto a areia árida do deserto e a água fixada porsua massa, sem compromisso dela e do lodo. A página de Diolé tem tal sinceridadede imaginação que a citamos na íntegra (loc. cit., pág. 118)."Escrevi em outros tempos", diz Diolé, "que quem tivesse conhecido o marprofundo não podia mais voltar a ser um homem como os outros. É em momentoscomo este (no meio do deserto) que tenho prova disso. Pois percebi quementalmente, andando, encho de água o cenário do Deserto ! Na imaginação, euinundava o espaço que me cercava e no centro do qual eu andava. Eu vivia umaimersão inventada. Eu me deslocava para o centro de uma matéria fluida, luminosa,capaz de prestar socorro, densa, que era a água do mar, a lembrança da águado mar. Esse artifício bastava para humanizar para mim um mundo de uma securarepugnante, conciliando-rAe com as rochas, com o silêncio, com a solidão, com332 BACHELARDas toalhas de ouro solar que caíam do céu. Minha própria canseira se achava aliviada.Meu peso se apoiava em sonho sobre essa água imaginária."Eu me apercebi que não era a primeira vez que inconscientemente recorreraa essa defesa psicológica. O silêncio e a lenta progressão de minha vida no Saaradespertavam em mim a lembrança do mergulho. Uma espécie de ternura banhava

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então as imagens interiores e, na passagem assim refletida pelo sonho, a águaaflorava naturalmente. Eu andava, trazendo comigo reflexos luzentes, uma densidadetranslúcida que não era mais que lembranças do mar profundo."Assim, Philippe Diolé acaba de nos dar uma técnica psicológica para seralém num além absoluto que serve de barragem às forças que nos mantêm presosno aqui. Não se trata simplesmente de uma evasão num espaço aberto à aventurade todos .os lados. Sem a maquinaria de telas e de espelhos colocados juntos nacaixa que leva Cyrano aos impérios do sol, Diolé nos transporta no além de umoutro rnundo. Serve-se apenas, poderíamos dizer, de uma maquinaria que acionaas leis mais seguras, mais fortes da psicologia. Ele recorre apenas a essas realidadesestáveis e fortes que são as imagens materiais fundamentais, as imagens queestão na base de toda imaginação. Nada existe que derive de quimeras e deilusões.O tempo e o espaço estão aqui sob o domínio da imagem. O além e o outrorasão mais fortes que o hic et nunc. O ser-lá é sustentado por um ser do além. Oespaço, o grande espaço, é o amigo do ser.Ah! Como os filósofos aprenderiam se acedessem a ler os poetas!VIIIComo acabamos de tomar duas imagens heróicas, a imagem do mergulho ea imagem do deserto, duas imagens que só podemos viver na imaginação, semnunca alimentá-las com alguma experiência concreta, terminaremos este capítulotomando uma imagem mais a nosso alcance, uma imagem que podemos alimentarcom todas as nossas lembranças da planície. Vamos ver como uma imagemmuito particular pode comandar o espaço, dar sua lei ao espaço.Diante de um mundo tranqüilo, numa planície sossegada, o homem podeconhecer a calma e o repouso. Mas no mundo evocado, no mundo que é imaginado,os espetáculos da planície têm freqüentemente apenas efeitos já gastos. Paralhes devolver sua ação, é preciso uma imagem nova. Pela graça de uma imagemliterária, de uma imagem inesperada, a alma tocada segue a indução da tranqüilidade.A imagem literária torna a alma bastante sensível para receber a impressãode uma fineza absurda. É assim que, numa página admirável, d'Annunzio188 noscomunica o olhar do animal medroso, o olhar da lebre que, num instante sem tormento,projeta a paz no universo do outono. "Você nunca viu, de manhã, umalebre sair nos caminhos abertos recentemente pelo arado, correr alguns instantessobre a geada prateada, depois em silêncio, sentar-se sobre as patas traseiras,levantar as orelhas, olhar o horizonte? Parece que seu olhar acalma o Universo.188 D'Annunzio,ieFeu, trad. fr. pág. 261.A POÉTICA DO ESPAÇO 333A lebre imóvel que, numa trégua de sua inquietação perpétua, contempla a campinaenevoada. Não poderíamos imaginar um indício mais certo de paz profundanas redondezas. Naquele momento, é um animal sagrado que é preciso adorar."A linha de projeção da calma que vai estender-se pela planície é claramente indicada:"Parece que seu olhar acalma o Universo". Um sonhador que confiar seussonhos a esse movimento da visão viverá numa tonalidade acrescida a imensidãodos campos abertos.Tal página é por si mesma um bom teste de sensibilidade retórica. Ela se oferecetranqüilamene à crítica dos espíritos apoéticos. É realmente muito dannunzianae pode servir para denunciar as embaraçantes metáforas do escritor italiano.Seria tão simples, pensam os espíritos positivos, descrever diretamente a pazdos campos! Por que escolher a lebre como intermediário contemplativo? Mas opoeta não se preocupa com essas boas razões. Pode revelar todos os graus decrescimento de uma contemplação, todos os instantes da imagem e o instante emque a paz animal se inscreve na paz do mundo. Tornamo-nos aqui conscien*s dafunção de um olhar que não tem nada a fazer, de um olhar que não olha mais umobjeto particular, mas que olha o mundo. Não seríamos tão radicalmente enviados

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a uma primitividade se o poeta nos contasse sua própria contemplação. Opoeta não faria mais que repetir um tema filosófico. Mas o animal dannunzianoé, por um instante, liberado de seus reflexos: o olho não espreita mais, o olho nãoé mais um parafuso da máquina animal, o olho não comanda a fuga. Sim, realmentetal olhar, no animal do medo, é o instante sagrado da contemplação.Algumas linhas atrás, seguindo uma inversão que traduz o dualismo do queolha e do que é olhado, o poeta vira, no olho tão belo, tão grande, tão tranqüiloda lebre, a natureza aquática dos olhares do animal vegetariano: "Esses grandesolhos úmidos. . ., esplêndidos como os lagos durante as noites de verão, comseus juncos que se banham com todo o céu que se mira e se transfigura neles".Reunimos em nosso livro L 'Eau et les Rêves (A Água e os Sonhos) muitas outrasimagens literárias que nos dizem que o lago é o próprio olho da paisagem, que oreflexo sobre as águas é a primeira visão que o universo toma de si mesmo, quea beleza acrescida de uma paisagem refletida é a própria raiz do narcisismo cósmico.Em Walden, Thoreau seguirá também naturalmente esse crescimento dasimagens. Ele escreve (trad. fr., pág. 158): "Um lago é a marca mais bela e expressivada paisagem. É o olho da terra, em que o espectador, mergulhando o seu próprioolhar, sonda a profundidade de sua própria natureza".E, uma vez mais, vemos animar-se uma dialética da imensidão e da profundidade.Não se sabe onde fica a partida das duas hipérboles, a hipérbole do altoque vê demais e a hipérbole da paisagem que se vê confusamente sob as pesadaspálpebras de suas águas adormecidas. Mas, qualquer que seja a doutrina doimaginário, é obrigatoriamente uma filosofia do demasiado. Toda imagem temum destino de engrandecimento.Unf poeta contemporâneo será mais discreto, mas dirá também:Habito a tranqüilidade das folhas, o verão cresceescreve Jean Lescure.I 334 BACHELARDUma folha tranquila verdadeiramente habitada, um olhar tranquilosurpreendido na mais simples das visões, são operadores de imensidão. Essasimagens fazem crescer o mundo, crescer o verão. Em certas horas, a poesia propagaondas de calma. De ser imaginado, a calma se institui como uma emergênciado ser, como um valor que domina, apesar dos estados subordinados doser, apesar de um mundo conturbado. A imensidão foi aumentada pela contemplação.E a atitude contemplativa é um tamanho valor humano que dá uma imensidãoque um psicólogo teria toda a razão em declarar efêmera e particular. Masos poemas são realidades humanas; não basta referir-se a "impressões" paraexplicá-las. É preciso vivê-las em sua imensidão poética.