aviso à navegacao

105
1 RUY DUARTE DE CARVALHO AVISO À NAVEGAÇÃO olhar sucinto e preliminar sobre os pastores kuvale da província do namibe com um relance sobre as outras sociedades agropastoris do sudoeste de angola 1997

Upload: aline-totoli

Post on 15-Sep-2015

19 views

Category:

Documents


12 download

DESCRIPTION

Aviso à navegação de Ruy Duarte de Carvalho: olhar sucinto e preliminarsobre os pastores kuvale da província do Namibe com um relance sobre as outrassociedades agropastoris do sudoeste de angola.

TRANSCRIPT

  • 1

    RUY DUARTE DE CARVALHO

    AVISO NAVEGAO

    olhar sucinto e preliminar sobre os pastores kuvale da provncia do namibe com um relance sobre as outras sociedades agropastoris do sudoeste de angola

    1997

  • 1

    PREFCIO O texto que se segue no foi, na sua forma original, escrito para publicar em livro. Tem a extenso, a forma e o contedo que me pareceram no tanto adequados mas, dentro da condensao que me foi possvel fazer, pelo menos adaptados tarefa que me foi proposta e que lhe est na origem: a de tratar o "caso kuvale" de forma a integr-lo num "estudo sobre comunidades e instituies comunitrias angolanas na perspectiva do post-guerra". (1) Quando me foi sugerido adapt-lo sua publica(c)o em livro ocorreu-me que, fazendo-o, poderia talvez atender ao mesmo tempo, ainda que isso no passasse de um remedeio, a duas urgncias e uma impossibilidade com que venho a debater-me j faz tempo. A primeira dessas urgncias seria a de alargar, para alm dos artigos que j escrevi (2), a publicao para o grande pblico dos resultados de uma pesquisa que, razo de quatro meses por ano, venho perseguindo desde 1992. A impossibilidade a de at aqui no ter podido investir na anlise dos materiais ,mas sobretudo na redao desses mesmos resultados, o tempo e a disponibilidade necessrios para dizer o que quero, o que tenho a dizer, e da forma como me parece que h-de ser. Nos intervalos do trabalho de terreno tenho-me sobretudo ocupado de funes de ensino ou de tarefas para ganhar a vida. Bolsas no exterior de que beneficiei, em Bordus e em Lisboa, utilizei-as pare mergulhar em bibliotecas e arquivos, aproveitar contactos, produzir intervenes e escrever, precisamente, os artigos a que aludi. Fui prosseguindo a anlise, bem entendido, completei o terreno, alarguei-o Nambia, e amadureci, sobretudo, os meus planos de exposio. Est tudo pronto, s falta escrever. E no arrisco encetar mais uma vez, j cometi antes esse suicdio operativo, seja o que fr que para ser de grande flego mas depois tem que ser interrompido a meio de um qualquer primeiro captulo. Assim, continuo em dvida. Para com quem? Para com aqueles que me forneceram as informaes e os testemunhos de que hoje disponho e para os que me ajudaram a recolh-los. E, dentre estes, alguns no tinham obrigao nenhuma de o fazer, nem institucionalmente nem porque a sua actividade estivesse de alguma forma ligada quilo que fao: empresrios do Namibe, por exemplo, e outros amigos. Este no nenhum dos possveis livros que tenho para oferecer-lhes, com que quero retribuir-lhes. Sem ser um livro para especialistas da anlise social tambm no aquele que quero escrever para um pblico comum que no estar, partida, interessado nos contornos especficos da matria que tratarei e que vou ter, por isso, que tentar atingir atravs da escrita capaz de seduzi-los. Este livro quando muito poder, se conseguir ser mais do que um honesto relatrio, entender-se como uma proposta circunstancialmente dirigida a pessoas de alguma forma eventualmente alertadas para as questes que me ocupam : ou porque so profissionais que devem ocupar-se de situaes relacionadas com as sociedades pastoris e agropastoris, ou porque so pessoas envolvidas em interaes com este tipo de sociedades no exerccio da sua vida comum ou apenas por razes de vizinhana. Ou para outros cuja aten(c)o ocorra ligada ao facto de serem cidados angolanos ou do mundo e do seu tempo e pronto. No digo nada nele que tenha por menos verdadeiro ou justo, mas o que digo escasso e austero, h questes e referncias que mal afloro, outras que deixo em branco, outras que lhes passo ao lado.

  • 1

    De qualquer maneira dedico-o s pessoas do Namibe, ou para a viradas, que me tm feito confiana e me ajudaram a trabalhar. E a frequentar o Sul, razo que me vital. Ah! ... Falta referir a segunda urgncia (disse antes que eram duas). Essa, entend-la- quem, sem perder de vista o ttulo do livro, Aviso Navegaco, consumir o texto.

  • 1

    INDCE Prefcio.......................................................... Introduo - ..................................................... Captulo Pimeiro - Continuidade na mudan(c)a.................... Ca. III - Sobre o desempenho socio-econmico da sociedade kuvale nos ltimos vinte anos ................................ Cap. IV - A orgnica e as dinmicas de um sistema de produo..... Cap. V - sobre a resoluo social de um sistema pastoril Cap. VI - expresses da interaco com a realidade envolvente Cap. VII - perturba(c)es endgenas Cap. VIII - o futuro pastoril em questo Cap. IX - esboo de um quadro de incidncias aplicado a toda a Cap. X - integrao e interveno

    mancha pastoril angolana

    Concluso Posfcio Anexos

  • 1

    INTRODUO

    PARA A APREENO PRELIMINAR DE UMA SINGULARIDADE KUVALE... Proponho partir de duas citaes. No porque as aprecie sobremaneira mas porque introduzem, de pronto, no vivo da matria, na singularidade de um "caso": "Elsewhere, aridity and sand made farming difficult, except for the

    valleys of some of the larger streams flowing down from the highlands; there, small, distinctive communities combined stock-keeping with whatever agriculture they could manage to support themselves."

    Joseph C. Miller, Worlds Apart: Africa's Encounter with the Atlantic in Angola, ca. 15OO-185O, Seminrio Internacional de Histria de Angola, 1995, 22 p.

    "Pourtant, cheval sur le Sud et le Centre-Angola, subsiste, rsiduelle,

    l'ethnie Herero dont un sous-group, celui des Cuvale, va avoir le triste privilge de subir le poids de la guerre totale une poque aussi tardive que 194O-41."

    Ren Plissier, Les Guerres Grises, Resistence et Revoltes en Angola (1845-1941), Orgeval, 1977, 63O p.

    Os Kuvale so Herero, portanto, encravados na aridez e na areia, "residuais" e sobreviventes de uma guerra total. So Herero em Angola, tal como o so os Ndombe, a Norte, os Hakahona e os Dimba, a Leste, os Himba, a Sul. Estes estendem-se para alm do rio Kunene, pela Nambia, onde se misturam ou encostam aos Herero que, com os Mbandero entram pelo Botswana. Da maneira como a aridez os "encrava", e eles se encravam nela, direi abundantemente ao longo deste texto. Da sua histria recente, que a de uma recuperao consumada, referirei factos e efeitos. Os Herero de hoje provm de populaes pastoris de lngua banta que tero chegado costa ocidental da Africa, pelo Leste, a nvel do paralelo de Benguela, e que, alcanadas as estepes que precedem o mar, flectiram para Sul, cada vez se internando mais nas bordaduras do Deserto do Namibe e depois para Leste, at ao Kalahari. A viagem que as trouxe at a mais um percurso no tempo do que uma deslocao no espao. Elas faziam parte de uma expanso bantu de cultura pastoril que quando atingiram o territrio do que hoje Angola, talvez no sc. XV, durava provavelmente h mais de 1 5OO anos, desde que os seus antepassados de lngua, os Bantu depois chamados de Orientais, se encontraram na costa Leste com os Nilticos, que lhes transmitiram a cultura pastoril que por sua vez tinham aproveitado dos Cuxitas, 3 OOO anos antes. Os Cuxitas, esses, t-la-o recebido do Oeste, das franjas do Sahara, que entretanto secara. As mutilaes

  • 1

    dentrias, o sistema das classes de idade, a recusa de comer peixe, traos culturais que vigoram entre os Kuvale de hoje, remontam, tanto quanto se sabe, aos Cuxitas, por no se saber se estes tambm os no receberam de outros. A qualidade dos pastos, sem dvida, a boa resposta dos animais aos recursos do meio em condies normais, a possibilidade de garantir a vida e a reproduo ou a renovao de um sistema pastoril mesmo tendo que enfrentar oito meses secos cada ano e anos de chuvas muito reduzidas, tero estado na base da fixao a partir das bordaduras do extremo norte do deserto do Namibe de populaes que transportavam consigo a memria colectiva e a marca cultural, inscritas nos comportamentos e nas dinmicas, de paisagens inegavelmente semelhantes, pelo menos primeira vista, gazelas e zebras, por exemplo, ou capins, Schimitias e Eragrostis, do outro lado do continente. Sendo evidente a excelncia dos pastos, tambm possivel estabelecer ali uma gesto da gua que acaba por ser a dos prprios pastos em funo da gua ou vice-versa: transumncia, portanto, antes e agora. Muita coisa ter mudado entretanto, evidentemente, a presena da fauna selvagem e da sua interveno no eco-sistema mudou mesmo radicalmente (ela est hoje praticamente extinta), a presena do prprio homem explicar muitas das configuraes florsticas do presente, mas os termos globais da produo e da produtividade continuam a fundamentar-se numa interaco ecolgica directa. Os Kuvale no sero hoje mais de 5 OOO, mas ocupam um territrio vasto: mais de metade da Provncia do Namibe. So na actualidade um povo prspero, nos termos que eles prprios valorizam: esto cheios de bois. Os seus espaos no foram praticamente, a no ser a Nordeste, teatro de incidncias directas da guerra, tem havido chuva nos timos anos, pelo menos que chega para manter o gado (at tem havido anos bons e h muito tempo que no h verdadeiramente nenhum ano mau) e, no entanto, o processo de Angola todos os anos os coloca em situao de penria alimentar. No conseguem trocar bois por milho. Este binmio, tanto boi-tanta fome, mais um sinal da sua singularidade. Mas no esta, tambm, a de Angola? Tanto petrleo... De qualquer forma constituem um "caso" em Angola. Analisar a sua singularidade analisar a de Angola e haver questes e detalhes que embora aqui apaream referidos a eles, correspondem a problemas, e a problemticas, que dizem talvez respeito a outros Angolanos, seno a todos. Sobre os Kuvale de ontem e de hoje no h muito material escrito. H, evidentemente, uma vasta bibliografia sobre os Herero a partir da Nambia, mas sobre os Kuvale e os restantes Herero de Angola s h mesmo algum material histrico, e coloco aqui alguns artigos tcnicos das primeiras dcadas deste sculo, a etnografia de Carlos Estermann, e um nico, que eu saiba, trabalho cientfico, o de Julio de Morais, uma tese pioneira de anlise ecolgica, datada de 1974. O trabalho de terreno que garantiu o que a seguir exponho foi levado a cabo, intermitentemente, de 1992 a 1996, e foi possvel graas a apoios oficiais e privados a que irei tentando agradecer, e prestar contrapartida, medida que puder ir divulgando os resultados. O presente trabalho faz parte desse processo. Nele procurarei condensar o mais possvel, sem entrar em grandes detalhes histricos ou etnogrficos, a informao que julgo estar em condies de poder disponibilizar no mbito de uma exposio que se pretende eminentemente pragmtica e dirigida sobretudo a decididores de polticas e de aces, a agentes da interveno e a outros sujeitos eventualmente implicados numa interaco prtica com os Kuvale e, por extenso, com as sociedades pastoris e agropastoris de Angola de uma maneira geral.

  • 1

    ... Geogrfico-ecolgica Numa paisagem onde se v o homem actuar sem procurar partida afeio-la a objectivos econmicos que a alterem, onde os seus prprios interesses vitais e palpveis passam pela utilizao da paisagem tal como ela , ser difcil ao observador no se deixar envolver pela temtica ecolgica. Para ser mais preciso, no s o facto de no se observarem ( a no ser talvez se se for um agrostlogo perspicaz) alteraes produzidas pela presena do homem. que o homem, aqui, pode parecer uma emanao do meio, e este poderia ser o ponto de partida para uma deriva, para um qualquer acesso de impressionismo, de delrio romntico, via certamente segura e garantida de ficar definitiva e eternamente de fora tanto da problemtica que envolve este homem como daquela que envolve este meio. Mas verdade que tudo aqui se projecta sobre um fundo ecolgico e que grandes nomes ligados ao estudo das sociedades pastoris como Gulliver, Deshler, Dyson-Hudson e Jacobs, e outros classificados como neofuncionalistas umas vezes, neoevolucionistas outras, so nomes ligados ao ecologismo cultural. Aqui, de facto, a cultura no pode ser entendida fora de um quadro de interaces em que tudo quanto exterior s pessoas, e aos grupos que as pessoas constituem, , praticamente s, natureza accionada e condicionada por factores em que a tecnologia pouco intervm. Os terrenos so pastagens naturais, a gua a que provm de chuvas escassas e breves, a agricultura possvel est sempre dependente da ocorrncia da primeira chuva e da regulariade improvvel das que se lhe seguirem, as guas acumuladas no permitem regadios nas zonas que so precisamente as das melhores e mais abundantes pastagens, a produo de cereais sempre fortemente condicionada e aleatria. Vindo tarde, a chuva, no permitir j a cultura do milho, talvez s permita ensaiar a do massango. Mas mesmo chegando tarde garantir ainda assim os pastos, e mesmo escassa poder assegurar a manuteno dos animais, a preservao dos vitelos que entretanto tenham nascido, haver leite para eles e para as crianas, transitar-se- para o ano seguinte sem que se tenha obrigatoriamente registado um saldo de todo negativo. Ser necessrio, para tanto, ter sabido agir com a cincia adequada gesto de um equilbrio muito precrio. esta portanto a rea geogrfico-ecolgica que os "encrava". Ao incauto no poder deixar de por-se a interrogao de como possvel extrair vida e razo para viver num meio assim e a evidncia de que da relao que garante a sobrevivncia ali h-de necessariamente resultar um homem to diferenciado quanto o prprio meio. Ao tcnico, esta mesma relao impe, na maioria dos casos, respeito. Ao analista social, no obrigatoriamente "perito" e apressado, a impresso que prevalece a de que para lidar com tal precariedade ser preciso investir muita "cincia", ou a cincia de extrair dali o que no precrio, mesmo melhor que alhures. ... Econmica Equilbrio a palavra chave e trata-se de um equilbrio que vai ter sobretudo em conta a manuteno fsica dos animais e a produo de leite. A economia em

  • 1

    presena , realmente, uma economia do leite. A sociedade no perde, no pode perder isso de vista. Todo o trabalho desenvolvido a partir do gado bovino se desenvolve com base no pressuposto de que do leite depende precisamente a reproduo do rebanho que no apenas a fonte produtora do leite para um regime alimentar humano que se fundamenta nele, mas tambm da carne que o complementa e dos excedentes que daro acesso ao aprovisionamento de cereais e outros "apports" do exterior. A criao de outras espcies animais, como a de ovinos e caprinos, dependente dos mesmos factores ecolgicos, complementa a dos bois e visa, por sua vez e sobretudo, a produo de "moeda" para transaces com o exterior. verdade que a produo destes pequenos animais, com destaque para a de caprinos, se tem revelado particularmente adequada ao comrcio dos ltimos anos, marcadamente episdico e envolvendo pequenos volumes de mercadoria, com comerciantes de passagem e povos vizinhos. Mas tambm esta circunstncia confirma toda a importncia do gado bovino nas condies de "encapsulizao" econmica que os ltimos anos tm imposto. De facto, no certo, no verdadeiro, para alm da escassa produo agrcola que as chuvas puderem garantir e de um subsidirio recurso a uma igualmente escassa produo vegetal espontnea, s se pode mesmo contar com o leite que as vacas e em casos de extrema crise as ovelhas e as cabras produzirem, com a carne que resultar dos animais doentes e dbeis que no resistirem, e com a daqueles que forem abatidos, sempre a coberto de pretextos sociais reguladores, como veremos mais tarde. A pastorcia tal-qual, portanto, a relao animais/gua/pastagens tendo em vista a manuteno e a reproduo dos rebanhos, a sua roduo, absorvem e polarizam todas as dinmicas tcnicas, sociais e culturais que ho-de estabelecer os contornos e a especificidade do sistema. Uma questo de equilbrio, desta forma, que tem em conta j no s as condies ecolgicas e as extraces energticas que elas garantem, mas tambm a gesto social e a cobertura cultural, ou ideolgica, que assistem ao seu aproveitamento. A noo de equilbrio atravessar todos os sistemas que garantem a subsistncia e a reproduo do grupo humano. Quadros sociais e culturais urdidos volta da relao com o boi e com o meio, bem como a interao entre tudo isto e o presente vir a ser, logicamente, a matria principal deste trabalho. Retenhamos por agora que a uma economia to estritamente pastoril no poder deixar de corresponder uma cultura igualmente marcada pelos argumentos da pastorcia, e que esses argumentos, ou "valores", comportam expresses to susceptveis de entrar em choque com os da cultura e da economia envolventes e dominantes como o desprezo pela agricultura, os agricultores, os "assimilados" s dinmicas ocidentalizadas, a repulsa pela prestao de fora de trabalho a terceiros e a legitimao de entrar na posse de gado dos vizinhos. pela via desses choques que a histria moderna tem sobretudo envolvido os Kuvale. E tambm ela d testemunho da sua singularidade. ... e Histrica Considerada em relao sua projeco imediata no presente, a histria dos Kuvale diz sobretudo respeito queles eventos que na memria colectiva ficaram assinalados como "guerras", sucessivas e marcadas pelos sinais da sua colocao no tempo, inevitavelmente ligadas a disputas pela posse do gado: razias, contra-razias, represses administrativas e militares, espoliaes e saques, processos de desapossamento e de recuperao que trazem j em si as dinmicas que apontam, ou podero apontar, renovao de um ciclo que tende a ser vicioso.

  • 1

    Em termos de tratamento disciplinar esta histria continua, naturalmente, por fazer, e no me cabe a mim, evidentemente, ensai-la sequer. Existem fontes documentais a explorar e trabalho de terreno a orientar nesse sentido e embora neste ltimo domnio eu tenha recolhido dados que podem vir a revelar-se teis, no que se refere a fontes escritas apenas utilizei material imediatamente consultvel. Os testemunhos que obtive no terreno referem-se explicitamente guerra dos Kambarikongolo, s do Nano, dos Ingleses, e uma sucesso de outras guerras, Mulungu, Kapilongo, Kalute, que acabam por conduzir quela que veio a colocar os Kuvale em situao de completa derrota e paralisao, beira da sua extino no s enquanto grupo scio-culturalmente distinto e identificvel, mas tambm fsica, numa grande medida: a guerra chamada Kokombola, a de 194O-41, que quer dizer a guerra geral, total, "mundial", como me foi referida por um informante escolarizado. essa a guerra que no tempo colonial ficou conhecida como a "guerra dos Mucubais", referncia que ainda hoje utilizada nos meios envolventes. A primeira, a guerra dos Kambarikongolo, a que em textos portugueses costuma ser designada como a guerra dos Hotentotes e corresponde extenso pelo Sul de Angola da expanso de grupos Khoi, os Topnaar e os Swartbooi, que, a partir do que hoje o Sul da Nambia, se alargou para Norte, conquistando gado e pastagens aos Herero e aos Himba at margem do rio Kunene, obrigando muitos destes ltimos a migrar para o lado de Angola, e trazendo at s portas do que hoje a cidade do Namibe, e era ento a Vila de Mossmedes, aces de razia que sobressaltaram durante largos anos todo o nosso Sudoeste. Ela obrigou inclusivamente muitos Kuvale a refuguiarem-se e a fixarem-se, nalguns casos, para alm dos contornos e da escarpa da serra, com um subsequente processo de retorno zona de serra abaixo, lento e prolongado, que parece projectar-se ainda no presente. Tenho encontrado mais-velhos Kuvale que nasceram l e ainda hoje se vem implicados em relaes de parentesco a urdidas na decorrncia de tal movimentao circunstancial. Ela pode, por outro lado, e essa uma hiptese a esclarecer, corresponder citada guerra dos Ingleses. Os grupos de raziadores Khoi eram acompanhados, e por vezes enquadrados, parece, por "mestios-ingleses" oriundos do Orange e do Cabo. Mas podero tambm os "Ingleses" referidos ainda hoje ser os Alemes, 28 famlias, vindos directamente da Alemanha e que aparecem no Sul de Angola, postos a pelo governo portugus, acompanhadas por um lote de Portugueses sados da Casa Pia, de Lisboa. Foram-lhes dados terrenos no Munhino e na Bibala, mas cedo desprezaram as hipteses agrcolas para se investirem na apropriao de gado de populaes vizinhas. De qualquer forma, simultaneamente a estas guerras vinham decorrendo as "guerras do Nano", aces de razia praticadas por numerosos bandos oriundos do "alto", do Nano, os Munanos, como ainda hoje so designados na regio os povos do planalto interior a Norte e os Ovimbundo de uma maneira geral. Elas exerceram uma forte presso sobretudo sobre as populaes do planalto interior sul e estenderam-se at costa. Muitas dessas guerras do Nano traziam j a marca da incidncia europeia directa. Mossmedes sacudida em 15 de Agosto de 1848 por uma dessas guerras, tendo os pastores locais, do vale do Bero, vindo acolher-se Fortaleza. Cedo se esclarece tratar-se antes de uma "guerra de brancos", composta por gente de Quilengues e escravos dos regentes dessa capitania e do Dombe Grande, e sob a influncia de uma figura que acompanha a histria da regio durante largos anos: o ento Major Garcia.

  • 1

    Isso faz parte de um processo que haveria de estender-se at guerra de 194O-41 e que envolve desde o incio, como era de esperar, as prprias autoridades portuguesas que empregam grupos vizinhos uns contra os outros tanto em operaes de razia como em perseguies, quando os povos da regio so acusados de fazerem o mesmo por conta prpria. Que os Kuvale "roubam" gado nunca constituiu dvida para ningum e so muitas as acusaes que neste sentido e ao longo dos tempos vo pesando sobre eles, ao princpio designados como "Mondombes" segundo um equvoco que h-de prevalecer por muito tempo. J nessa altura so julgados como insubmissos, rebeldes, avessos ao trabalho e sobretudo, sempre, refinados e inveterados ladres de gado. Ao longo de toda a segunda metade do sc. XIX eles sero alvo de ferozes retaliaes por parte da administrao e dos colonos, chegando-se a organizar contra eles "guerras gentlicas", constitudas por 3O OOO homens recrutados para o efeito ( Silva 1971:496). Essa mais uma marca da histria que vem reflectir-se no presente. Este tipo de aces, envolvendo outros Africanos, deu curso a um movimento belicoso de razia recproca entre populaes Kuvale e Tyilengue, a noroeste do territrio dos primeiros, que se prolonga at hoje e que define alguns dos contornos das suas respectivas implicaes nas guerras actuais. Em 188O, um ex-governador do Distrito de Mossmedes refere que no ano anterior fora enviado um ofcio ao chefe do Concelho de Campangombe, probindo-lhe opor-se passagem de uma guerra que vinha do serto de Benguela para guerrear os "Cubaes". Ao que o chefe responde logo a seguir para dizer que "a guerra convocada por brancos com o sentido de guerrearem os mondombes", e que a inteno dos "convocadores da guerra" no podia ser outra seno "terem parte dos roubos que a guerra fizesse". Num outro ofcio, cinco meses mais tarde, o mesmo chefe confirma: o soba de Quilengues, que foi quem comandou a tal guerra "cumprindo literalmente a ordem do Exmo Governador do Distrito (...), entregou aos europeus residentes no Concelho do Bumbo todo o gado que havia sido apreendido (...) tendo trazido apenas para as suas terras a gente prisioneira de guerra" (Almeida 188O:52-53). Um outro administrativo refere-se, tambm longamente, mais tarde mas reportando a mesma poca, s relaes entre Kuvale e Tyilengue, sendo estes, sob a regncia dos ento capites-mores, sistematicamente utilizados contra aqueles ( Frazo 1946 :269). Sobre o inverso, Kuvale utilizados por autoridades ou Brancos privados para atacar outros povos, nada encontrei nas leituras que fiz. As "guerras" que vo seguir-se s do Nano, na sequncia atrs apontada, reportar-se-o j ao sc.XX e correspondem sobretudo s diligncia administrativas de que os Kuvale foram sendo sucessivamente objecto at catstrofe de 1941. Elas tero de novo e de algum modo aparecido sempre associadas a aces que envolvem grupos vizinhos,usados tambm, a partir da, como tropa auxiliar. As menes a estas diligncias administrativas, nomeadamente da parte de tcnicos veterinrios ( Sequeira 1935, p.e.) que operavam na regio, constante. A guerra de 194O-41, que a ltima e a definitiva destas diligncias, utilizou cerca de mil soldados a que se juntaram mais mil auxiliares indgenas, mestios e europeus, dois avies, um deles da aviao cvil artilhado com uma metralhadora e equipado com bombas, e um peloto de morteiros para combater, meter na ordem, uma populao Kuvale estimada num mximo de 5 OOO pessoas. Durou 5 meses, comportou execues em massa e atrocidades contra prisioneiros, deu cobertura a saques e a pilhagens, confiscou cerca de 2O OOO cabeas de gado bovino , ou seja, estimou-se, 9O% dos efectivos totais anteriormente na posse do grupo. Fez mais de 3 5OO prisioneiros que depois remeteu s ilhas de S. Tom

  • 1

    e do Prncipe, Lunda, onde trabalharam para a Diamang, Damba, em Malange, a propriedades agrcolas e Cmara Municipal de Momedes. Assegurar-se-ia assim, de acordo com o comandante das operaes, a sua adaptao a hbitos de trabalho e interesse pela agricultura ( Sotto-Maior 1943 e Plissier 1977:5O9-515).

    CAPTULO PRIMEIRO

    CONTINUIDADE NA MUDANA

    Toda esta sucesso de aces e de eventos colocou os Kuvale num ponto da sua histria do qual o presente ainda tributrio: espoliados do seu gado, reduzidos em nmero, dispersos, o retorno dos que sobraram inaugurou toda uma srie de estratgias de recuperao que teve que passar, nomeadamente, por uma redifinio territorial, primeiro procura de parentes que a guerra tivesse poupado, refugiados no mais dentro dos matos ou sombra da bandeira portuguesa, e depois com vista a um alargamento de relaes e implicaes de troca com outros grupos. A isto associou-se a prestao de trabalho assalariado em diversos sectores do sistema econmico envolvente e a reconvero temporria e circunstancial da economia domstica produo agrcola para com os excededentes desta, e de acumulaes monetrias, adquirir gado. Medidas, portanto, decidida e obstinadamente investidas na recuperao de uma prosperidade que de novo viesse a traduzir-se em bois. data da independncia ela estava j de alguma forma reposta. Os Kuvale j esto em p de novo, j tm gado. Continuam a prestar trabalho assalariado mas para muitos ser j s talvez quase para pagar o imposto. O investimento esforado na agricultura correspondeu apenas a uma premncia do passado. O que vai seguir-se jogar francamente a seu favor, embora tambm os v envolver nas dificuldades que no pouparam nenhum Angolano.A independncia poltica de Angola, de facto, vem trazer aos Kuvale a abertura de um perodo revigorante para o grupo e imprimir novas dinmicas a este processo de recuperao, anulando o imposto, disponibilizando gado e libertando terras com a partida dos Portugueses, dando oportunidade e cobertura, inclusivamente e perante o curso que as coisas tomavam, a uma reabilitao e a uma revitalizao, por razes pragmticas, da razia, recuperada assim a oportunidade para um quadro de razes "ideolgicas " que remete a uma continuidade reafirmada nas suas prticas e mesmo nos seus antagonismos.

  • 1

    As implicaes dos Kuvale na cena poltico-militar do post-independncia sero tratadas com maior detalhe mais frente. Os desenvolvimentos que decorreram das perturbaes imediatas do sistema administrativo e econmico, nomeadamente no que diz respeito cessao do imposto e recuperao de territrio e de gado, constam do que segue. Imposto, terras e gado: a libertao O imposto, instaurado na colnia de Angola em 19O7 e recorrendo, para se estender ao seu territrio inteiro, a todos os mtodos julgados adequados, incluindo a coaco e a violncia, constitui para os Kuvale, de acordo com o seu prprio testemunho, a razo mais evidente para a situao de insegurana endmica e de conflito que marcou at guerra de 194O-41 a sua relao com a autoridade colonial. A prpria guerra de 194O-41 entendida na sequncia da expanso e da implantao da lei do imposto e aparece ligada aos recenseamentos finais que lhe estiveram ligados. Recolhi testemunhos da parte de pessoas que viveram vrias "guerras" ou "rusgas" at s aces que marcaram "a guerra grande": "... chamaram todas as pessoas, escreveram todos os que tinham de pagar imposto, tinham que vir todos porque essa rusga grande, parece que todos vo acabar. Quem no pagava era buscado nessas matas onde que estavam, quando chegavam l onde que os brancos concentravam, uns, que tinham sido recolhidos a na mata, tinham que ser assassinados... Uns, que vinham para se apresentar tambm, eram escolhidos, alguns matavam, outros, que eles consideravam que so bons, ficavam. No Cahinde, era onde recolhiam primeiro essas pessoas para ir em S. Tom, depois a concentrao era no Virei, a subiam nos carros que era para os levar. Uns que foram para S. Tom, outros que foram mortos, outros que voltaram aqui no Sayona, ou no Kavelokamu". Testemunhos desta natureza reconhecem que alguns incidentes, ligados a aces de razia e contra-razia, precipitaram os acontecimentos, mas entendem-nos mais, implcita ou explicitamente e s vezes de forma muito peremptria, como ocorrncias vividas por "homens de guerra", dyai, mais implicados nas suas aces e vocaes de iniciados na arte da razia, que alis se confunde com guerra - o vita -, do que numa causa colectiva escala da dramaticidade de um momento que a sua operatividade no entanto sublinhava e "complicava" ainda mais. Nomes como o de Tyindukutu, que morreu preso na fortaleza de Momedes e cujo percurso pessoal, que registei em muitos detalhes e comporta a sua captura ligada traio de um companheiro, ocorrida em zonas mais remotas que frequentei e onde inquiri tambm, estaro hoje investidos de uma carga romanesca que faria as delcias e a glria de ousados produtores de fantasias que so depois consumidas e invocadas como Histria, mas na memria das populaes subsistem mais como casos de emergncia social, ligados ao funcionamento regular do sistema pastoril kuvale, do que como o de "leaders" de uma qualquer resistncia organizada. Ningum cultiva a memria de uma resistncia, o que subsiste a lembrana e so os traos, ainda, de uma "rusga" final e arrasadora. Assim, quando os exlios terminaram e os tyindalatu - os desterrados- voltaram e puseram em execuo toda uma srie de estratgias que aos olhos da administrao colonial era a confirmao do seu sucesso, entre elas ocorreu o investimento de muitos homens no trabalho assalariado de cujo rendimento extraam dinheiro para pagar o tal imposto, imposto finalmente a todos, e para comprar bois. Encontrei quem tenha trabalhado no caminho de ferro, nas estradas e outras obras como pistas de aterragem, na estiva do porto de Momedes, como

  • 1

    serventes da Administrao e de Brancos privados, mais tade nas "pedreiras", exploraes de mrmore e de granito que a independncia liquidou, a bem dizer. Do ponto de vista do inqurito, ser interessante assinalar que, vista hoje no contexto da histria dos Kuvale tal como ela apreendida "de dentro", esta afectao ao trabalho assalariado um lapso de tempo que o advento da independncia viria a limitar a apenas duas kula's - classes de idade -: a dos homens que tm hoje mais de setenta anos e que data dessa guerra eram jovens adultos em princpio de carreira e a seguinte, dos seus filhos maiores. Os pais dos primeiros "estiveram sempre nesta vida do gado ou envolvidos nessas guerras nossas antigas", e os filhos menores dos mesmos, que hoje se aproximam j dos quarenta anos de idade, e rapazes mais novos, j foram "libertados" pela independncia. O trabalho assalariado, desta forma, hoje encarado como a memria de uma ignomnia ligada humilhao de 194O-4I e a sua extino, que em meu entender uma resultante da libertao poltica mas tambm da desestruturao global e total que ela assumiu entre ns, marca para os Kuvale o advento da recuperao por inteiro do seu estatuto de pastores econmica e institucionalmente independentes, libertos tambm do pesadelo deprimente do imposto e prontos para retirar um benefcio imediato da nova ordem em presena. Terras e gado No inquiri objectivamente sobre detalhes ligados "recuperao" de gado deixado por fazendeiros ou comerciantes portugueses que deixaram Angola, da mesma forma que nunca, porque o meu trabalho sempre pressups um contacto prolongado e a inscrever nas dinmicas endgenas, procurei colocar indagaes que pudessem ser julgadas como "politicamente" indiscretas ou susceptveis de poderem ser entendidas como capazes de servir interveno de quaisquer autoridades. Mas perante certas caractersticas morfolgicas - pelagem, desenho das armaes, configuraes sseas ou cutneas - de animais que integram os rebanhos comuns, evidente que corre ali sangue de gado importado, no de todo diludo atravs das opes de cruzamentos que se tero imediatamente seguido incorporao no gado dos Kuvale de gado proveniente das exploraes dos Europeus e que, conforme dados de um relatrio de 1965 (Brito 1965), somava nessa altura para cima de 25 OOO cabeas de bovinos em todo o ento Distrito de Momedes. De acordo com o mesmo relatrio o nmero de "criaes organizadas", empresariais portanto, era ento de 99, a maior parte a Norte e ao longo do caminho de ferro, do Munhino Bibala, e, a Sul, na zona de Campangombe. Vinte estavam inscritas na famosa Reserva do Caraculo, e exploravam sobretudo ovelhas produtoras de peles "astrakan", assunto que mereceria ser tratado com detalhe mas no aqui, evidentemente. Muitas dessas exploraes estavam vedadas a arame farpado e, embora no que hoje a Provncia do Namibe essa ocupao nunca tivesse assumido a dimenso e as implicaes que lhe estiveram ligadas no planalto interior, sobretudo a Nordeste, do lado do Kamukuio, da Lola e do Kaitou, obstavam em muitos casos s dinmicas da pastorcia, sonegando recursos e interrompendo percursos da transumncia. Essas vedaes foram, evidentemente, deitadas abaixo ou destrudas onde era necessrio passar, e algumas benfeitorias, como captaes de gua, aproveitadas at o tempo, ou o uso que lhes foi dado, as terem

  • 1

    inutilizado. Nalguns casos, escassos embora, penso, mas dos quais assinalei pelo menos um na rea do Virei, onde uma bomba adquirida pelos produtores locais extrai gua de um furo antigo, benefcios da advindos ter-se-o mantido at hoje.

    De qualquer maneira, tanto do ponto de vista material como do de uma subjectividade que passa pela conscincia colectiva, a disponibilizao da maior parte das fazendas que at independncia se vinham instalando nas reas de exerccio dos Kuvale constituiu uma recuperao territorial, e a utilizao das suas reas acompanhou o aumento evidente dos efectivos bovinos e ovinos dos ltimos vinte anos. Que esses efectivos tenham sido engrossados no s com o "gado dos brancos" deixado em territrio kuvale mas igualmente com outro proveniente do planalto, tambm talvez no seja matria para dvidas. E se a expresso numrica desse benefcio imediato actuou como um factor extremamente importante, outros factores no deixaram de entrar em linha de conta. Embora, da parte dos produtores kuvale, fosse prudente e aconselhvel diluir estrategicamente esse gado no rebanho geral para prevenir eventuais operaes de "contra-recuperao" nem que fosse por parte do Estado (nunca se sabe, h coisas em que o Estado pode revelar-se sempre legalista e eficiente), e nunca tenha sido considerada a hiptse de continuar a reproduzir esse gado entre si, qualidades zootcnicas de que eram portadores foram devida e sabiamente consideradas. A sua aptido para a produo de leite e a precocidade de algumas ra(c)as foram tidas em conta, bem entendido, mas tambm traos menos zootcnicos mas que a cultura pastoril valoriza: "... esses bois, uns aproveitaram para aumentar o leite, davam mais, e boi de raa no custa para crescer, no demora. E o 'berro' desses bois est muito bom, ns gostamos dos bois que berram bem, sim, o berro do boi - kuvandala - tem muita importncia". A independncia, portanto, reabrindo imediatamente horizontes geogrficos, polticos e econmicos, e apontando a projeces que referirei mais adiante. Tudo bem, assim. Ou nem tanto. Alguma coisa tinha que trazer dificuldades. A marca inversa dos tempos: abastecimento De 1943 data da transio para a independncia o sistema econmico dos Kuvale foi-se reabilitando, fruto do seu investimento obstinado nesse sentido, mas sempre articulado a uma economia de mercado que entretanto se expandia. Uma rede de comerciantes europeus foi cobrindo toda a rea e substituindo-se incidncia comercial dos funantes do passado, mercadores ambulantes. O provimento de tudo quanto os Kuvale nem sempre produziam em quantidades suficientes - milho -, ou no produziam de todo - txteis, vinho, ferramentas (catanas, pouco mais que isso) e matria para adornos, principalmente - foi sendo assegurado por postos de comrcio fixo e atingiu nveis equilibrados que por sua vez asseguravam o escoamento da produo animal excedente. A comercializao de gado fora desse contexto, deslocaes dos prprios produtores s zonas do planalto grandes produtoras de milho, tero tido carcter absolutamente excepcional que talvez, no entanto, possam aparecer hoje sobrevalorizadas na memria de "key informants", normalmente "autoridades tradicionais" particularmente ajustadas a estratgias de informao imediatista que eles prprios se encarregam de colocar a salvo de qualquer confirmao. Com a independncia toda essa rede comercial se anulou, como se sabe, e instalou-se um vazio que, em muitas reas e nalguns casos, se mantm at hoje.

  • 1

    De Dezembro de 1992 a Abril de 1993 pude acompanhar, na regio do Sayona, uma situao de profunda crise alimentar e o que observei e inquiri durante esse perodo pode articular o que uma informao sucinta como a que estou tentando prestar ser capaz de ensaiar a esse respeito. O ano anterior de chuvas tinha sido fraco, a reserva de cereais estava esgotada, o leite, base da alimentao, estava reduzido ao mnimo. A implicao directa e praticamente exclusiva do Estado nos circuitos de distribuio comercial centralizada a nvel nacional estava ultrapassada pelo curso dos tempos e dos ajustamentos ideolgicos, que no apenas pragmticos, e se ainda apareciam no terreno funcionrios com milho, faziam-no a ttulo privado procurando tirar benefcio pessoal de mercadorias colocadas sob seu controle e ou pretendiam dinheiro em troca, o que no existia nas mos dos produtores kuvale, ou exigiam contrapartidas de gado vivo de tal forma delirantes que as pessoas iam preferindo permanecer famintas, sempre na espectativa da chegada de verdadeiros comerciantes, a participar num tal desmando. Alguns dos poucos comerciantes residentes noutras zonas, que vinham do "tempo antigo" ou resultavam j da transio em curso no sistema econmico global, abandonaram as lojas na sequncia das "agitaes" que se sucederam s eleies. Outros, a quem tinha sido concedida pelo Estado a explorao de postos de comrcio e os geriam a partir do Namibe ou do Lubango, tinham deixado de aparecer ou faziam-no muito esporadicamente. A muitos desses era imputado o atropelo de se proverem, nas sedes administrativas e a coberto das suas credenciais de comerciantes da zona, de mercadorias trazidas para ali para abastecer as populaes locais, mas que eles voltavam a transportar para a cidade onde as introduziam no circuito urbano, mais rentvel e menos arriscado. Apareciam tambm imprevisveis mercadores de ocasio mas, tal como os anteriores, traziam menos milho do que aguardente. Reinstalava-se assim, de alguma forma, o regime dos funantes de longnqua e triste memria, situao que se mantm at hoje. A partir da zona onde eu ento acampava mandavam-se mensageiros ao Namibe para implorar aos tais comerciantes a sua interveno urgente, e volta das casas comerciais encerradas juntam-se enormes contingentes de pessoas e de cabritos, aguardando a resposta. Do milho que restava no era sequer, pela maioria, feita farinha, comiam-no torrado, maneira de torn-lo mais rentvel e de enganar a fome ao maior nmero possvel de familiares. Muitas mulheres partiam para o Bumbu, rea de Campangombe, onde populaes agrrias, a instaladas desde sempre, talvez pudessem ainda dispensar algum cereal, quanto mais no fosse a prpria semente guardada, e onde nas fazendas abandonadas haveria, era ainda a poca, pelo menos mangas que se pudessem disputar. O tempo antigo em que o Governo assumira o abastecimento, apesar de nunca ter assegurado um exerccio regular e satisfatrio e lhes ter ensinado, desde o incio, que era melhor aprenderem a contar s consigo mesmos e com os vizinhos, era j recordado at com saudade, e as constantes queixas em relao s ltimas modalidades do regime insinuavam tambm reservas quanto "fidelidade" que lhe era devida por consenso geral, o que comeava a preocupar as "autoridades tradicionais" com quem ento eu contactava de perto. E no entanto no se tratava de um ano anormal. Era apenas uma questo de "desfuncionamento conjuntural". Entretanto choveu. E veio o milho do Pam ( nota) j depois da chuva e de voltar a haver leite e de ser o tempo da carne. Voltarei ao assunto. Desde ento e at Agosto de 1996, quando interrompi a minha ltima estadia no terreno, nunca mais houve, que eu saiba, uma situao to constrangedora. Mas temo que data em que estou escrevendo este texto, Janeiro de 1997, a situao no seja, de novo, das melhores. As chuvas de 95-96 foram de novo fracas e a partir de Julho havia quem estivesse j a racionar o milho disponvel. Os comerciantes continuavam ausentes e cada vez eram encaradas com maior determinao, por parte de alguns sectores do povo, estratgias alternativas que referirei mais tarde.

  • 1

    De assinalar, ainda, que entre as razes invocadas pelos comerciantes para permanecerem ausentes, assume um lugar muito marcante a de que o gado resultante das transaces lhes , enquanto aguarda escoamento, sistematicamente roubado. Tal no deixa de ser, de algum modo, verdade. Mas isso no acontece aos comerciamtes que permanecem no terreno ou aos funantes, hoje chamados "candongueiros", que levam consigo os animais no mesmo transporte que trouxe a mercadoria. Acontece queles que os deixam guarda de modestos trabalhadores trazidos consigo das cidades e so deixados no local para ver se vo trocando ainda alguns restos de produtos adventcios e nalguns casos absolutamente invendveis (candeeiros!!!), por vezes ao longo de meses. Acompanhei situaes destas e fui algumas vezes acordado por tiros e pelo alarido que se segue a um roubo de gado.. A o gado de facto "roubado": "... muitas vezes so 'bandidos' que vm de fora, mas ns tambm no podemos ver os bois que entregmos a ficar todos os dias cada vez mais magros, a sofrer assim...". O "roubo", desta forma, continua a temperar as relaes dos Kuvale com o exterior. A sua meno nunca andar muito arredada do que tenho para dizer.

    CAP. 2

    ENVOLVIMENTO NA CENA POLTICO-MILITAR Os Kuvale aderiram em massa, e desde o incio, ao Mpla (registarei as siglas como substantivos prprios), e fortes contingentes seus integraram de pronto as suas foras armadas. Se a primeira circunstncia constitui ainda matria para reflexo (que correntes tero assegurado essa identificao "poltica", p.e.), a segunda foi de molde a suscitar, na altura, a maior surpresa aos desprevenidos. Os Kuvale, de facto, eram at a, para assinalar-lhes uma diferena que os restantes Angolanos, e outros, sempre gostaram de sublinhar, reconhecidos tambm por serem aqueles que nunca tinham feito parte do exrcito colonial. Aco poltica adequada e imediata da parte do Mpla na sua mobilizao? Sem dvida, foi um factor. Mas, quanto a mim, trata-se de bastante mais que isso. Produzi j matria sobre o assunto que de fcil consulta (nota sobre

  • 1

    artigos). Tentarei aqui trat-lo de forma mais adequada aos objectivos deste trabalho. Logo aps o golpe de Estado que em Portugal inaugurou o perodo de precipitao histrica que Angola ainda vive de forma convulsiva, os primeiros indcios de que as coisas vo mudar talvez tenham sido de molde a inquietar os Kuvale. Verificam que h agitao entre os Brancos e depois sentem que o seu gado est de novo ameaado. Com a chegada dos "movimentos", Fnla, Unita e Mpla , os dois primeiros encontram um acolhimento preferencial por parte da comunidade branca, e nessa aliana inscrevem-se caadas que, pelo caminho, mexem no "gado dos mucubais". Ao mesmo tempo, porm, os Kuvale apercebem-se de que o terceiro "movimento" lhes oferece a hiptese de se defenderem dessa ameaa imediata, ou os incita a isso, e de visar mesmo mais longe. Um nmero aprecivel de Kuvale alista-se nas foras do Mpla, as Fapla. Mais tarde, quando data da independncia o Mpla a declara em Luanda mas a maior parte do territrio de Angola a imensa retaguarda das presses que, pelo Norte e pelo Sul, o confinaram praticamente ao corredor do Kwanza, os Kuvale envolvem-se tambm numa bolsa de resistncia que este movimento preserva na provncia do Namibe. E quando, no princpio de 1976, a presso relaxa e o Mpla se vem instalar sobre o vazio, a identificao entre os Kuvale o Mpla confirma-se para reproduzir-se at hoje, dando corpo quilo que em meu entender se trata da expresso de uma "aliana" fundamentada em razes histricas e culturais susceptveis de revelar a sua evidncia. Histria, ... Referi atrs o lugar marcante que nas guerras que precederam a ofensiva de 194O-41 contra os Kuvale ocuparam elementos sados de populaes situadas a norte da sua rea. memria de todo o processo das razias do Nano vem jntar-se a do papel desses fortes contingentes de Munanos nas tropas auxiliares portuguesas e a circunstncia, bem mais presente e incidente, de que mais prximos do que os Munano, mas tidos talvez como os Munano mais prximos, esto os Tyilengue, a quem a ofensiva de 1940-41, sofrida por muita gente que est viva ainda, viria a conferir de novo um papel activo. No s alguns dos incidentes que determinaram o reforo daquela represso tiveram lugar com eles, mas ela comportou ainda desta vez o seu envolvimento directo nas operaes militares. Um relato mais detalhado das operaes de um dos destacamentos militares envolvidos na campanha faz aluso explcita a um grupo de 2OO carregadores Tyilengue que depois de iniciada a marcha em questo se mostraram contrafeitos por terem julgado antes que deveriam participar na ofensiva enquanto guerrilheiros e com direito a saque, portanto ( Correia 1952:597). A proximidade fsica e a convergncia de interesses em relao a um mesmo objecto, o gado, vo encontrar no nosso passado recente uma nova oportunidade para reproduzir-se. A fronteira tnica, se quisermos entend-la assim, vai constituir ao longo destes ltimos anos a frente de confrontos entre as partes envolvidas no conflito armado angolano ou, introduzindo uma viso mais complexa da situao, estes vo alimentar-se tambm de antagonismos que no so apenas "ideolgicos" em termos de definio poltica moderna discursivamente proclamada, ou invocada. Embora tenham ocorrido incidentes um pouco volta de

  • 1

    todo o territrio da Provncia do Namibe, ao Sul eles disseram sobretudo respeito ao facto de essa zona ter constituido uma retaguarda da Swapo (nota) e terreno de incidncias retaliadoras da interveno sul-africana imediata ou mais proximamente ligadas ao processo da luta de libertao namibiana, e foi no Noroeste que se desenvolveram embates, avanos e recuos dentro de um quadro verdadeiramente angolano. E para l que aponta, por determinismo geogrfico mas tambm por investimento nesse sentido, a interveno de soldados Kuvale, sobretudo as grandes mobilizaes e movimentaes iniciais. Para um lado e para o outro da linha oscilatria dos combates e dos territrios afectos ao controle ou presena dos exrcitos em causa, vai circular muito gado. O saque de guerra vai nalguns casos substituir-se prtica milenar da razia, ou confundir-se com ela. Mas o esprito da razia, a sua incidncia e a sua prevalncia culturais, nunca vo deixar de estar presentes. As notcias e os ecos da guerra, que fui recolhendo ao longo da minha permanncia no terreno do inqurito, sempre fizeram referncia a bois e foram produzidas numa linguagem muito ligada a implicaes locais e semanticamente mais prxima de conceitos ligados a guerras antigas do que aos sinais de uma guerra moderna, ditada por interesses ou razes implicando directamente a noo de Estado. E a par disso ia eu prprio observando a intensificao de traos culturais profundamente inseridos numa "ideologia" capaz de integrar o presente mas capaz tambm de lhe afeioar a expresso, como veremos adiante. ... pragmatismo ... O raciocnio que vou propor arriscado tanto do ponto de vista especulativo como por poder colidir com algumas ortodoxias militantes. Mas posso invocar, no para justificar-me mas para fundament-lo, que ele no resulta de um investimento de anlise, ou de sntese, exclusivaemnte meu. Resulta antes de reflexes operadas em grupo e em situaes de inqurito, empenhados tambm os informantes, ou os circunstantes, em encontrar comigo um fio condutor para a inteligncia de um processo de que afinal tm sido eles prprios os actores. Foram situaes como esta que me permitiram assinalar, por vezes, depoimentos de uma apurada percepo poltica das oportunidades. Os "movimentos" (Mpla, Unita, Fnla) andavam ento (1974-75) a oferecer bandeiras, retratos e emblemas mas no s, armas tambm. "Isso acontecia por toda a parte, os outros iam ter armas, ns tinhamos que as ter tambm. Os outros, quem? Aqueles com quem mantemos um contencioso que vem dos tempos. Eles encostam aos Munano, iam ser mobilizados por aquele lado. Ou ento: ns iamos poder ter armas, poder, se a situao se precipitasse como j se previa, actuar contra os outros, saldar at contas antigas, de qualquer maneira se ns no o fizssemos faziam-no eles, ns precisvamos mesmo de armas, nem que fosse s para nos defendermos. Por outro lado o Mpla aqui no tinha ningum, no tinha passado, sabia que os outros estavam a mexer-se, precisava de ns, e era dele que ns precisvamos. A Fnla, por que no? Porque era l que estavam a encostar

  • 1

    os Brancos, que ao mesmo tempo estavam j a virar-se contra ns, tinham tambm contas antigas a ajustar connosco e comearam logo outra vez a olhar para o nosso gado, e a Fnla e a Unita afinal tambm estavam juntos. Simples? Talvez nem tanto e sobretudo, parece-me, nada aqui colide com as lgicas quer das formaes polticas em presen(c)a, ao tempo, quer dos Kuvale. A sociedade Kuvale no seu todo ter vivido at hoje, assim, uma actualidade poltica que se inscreve sem hesitao numa continuidade traduzida pela vigncia sem interrupo da autoridade do "Mpla", sem necessidade, da sua parte, de estabelecer qualquer distino entre o "movimento" do incio, o partido que se lhe seguiu e o Estado que prevalece. A expresso local desta constatao poder talvez reconhecer-se pelo papel que as "elites" locais tm jogado desde a definio das opes massivas ocorridas no processo da independncia at segunda mobilizao de testemunho directo a que as eleies conduziram. A incidncia poltica destas elites significar menos uma aco investida na captao de apoios para uma ou outra alternativa de poder do que a extenso executiva de um poder central que as utiliza como agentes de regulao aptos a actuar para alm dos terrenos que a administrao domina. Elas constituem o corpo das "autoridades tradicionais" e, no caso que estou tratando, elas pertencem todas, sem excepo que eu conhea ou tenha assinalado, linhagem hegemnica que o sistema endgeno reconhece e acata, os Mukwangombe e,dentro deles, os Hamba. Foram eles os "activistas" da vigncia do partido nico e so, hoje de novo, como o foram no perodo colonial,os "regedores", os "sobas" e os "seculos" em exerccio. Se tivermos em conta que a aco poltica por eles exercida, ao servio do Mpla, aproveita uma opo potencialmente massiva tambm por razes histricas e culturais, como vimos atrs, e se inscreve num ambiente poltico, mesmo urbano, dominantemente favorvel ao poder que oficialmente marcou os ltimos vinte anos, como ficou provado no s pela expresso dos votos mas tambm pela relao de foras que marcou na cidade do Namibe, e por toda a Provncia, as "limpezas" que se seguiram s eleies, apreenderemos, no geral, o quadro poltico local. Uma vez mais, nas ocorrncias a que acabo de aludir, os Kuvale intervieram com uma prontido, uma eficincia e um voluntarismo suficientes para atemorizar tambm quem dominava a cena e reconhecia neles "gente nossa". Por serem "gente nossa" e eu ir lidar e viver com eles, mereci a simpatia, e at a ajuda, por parte da militncia urbana do Namibe, para poder iniciar e dar curso ao meu trabalho. Mas sempre, tambm, me foi aconselhada prudncia. No s porque ia frequentar terrenos sujeitos a incurses e aces do "inimigo", mas igualmente porque ia lidar com "Mucubais". Uma retaguarda, portanto, fiel sem dvida mas a ponto de assustar. Sobre a "poltica" prevalece a trama do dia-a-dia, e as dinmicas e as lgicas que regem o dos Kuvale no so exactamente as mesmas que o Estado visa e tenta impor com os instrumentos de que dispe e sua maneira, quer dizer, de uma maneira que ao longo de vinte anos cada vez se tem restringido mais na sua efectiva operatividade tanto espacial como institucionalmente. De facto, cedo me apercebi, entre outras coisas, de que o maior perigo que corria no era o de cruzar com o "inimigo" em deambulaes que por vezes me levavam s periferias do territrio "controlado", porm de a, precisamente, poder vir a ser acidentalmente tomado por elemento do "inimigo", algum Sul-Africano remanescente e perdido. Toda esta matria pode ser tratada de uma forma mais envolvente e elaborada, sem dvida, fazendo mesmo apelo a outras componentes. De facto, por exemplo, data da minha ltima presena no terreno, Agosto de 1996, muitas armas eram francamente exibidas, umas trazidas do servio militar, outras livremente adquiridas a mercadores descidos da serra, e os meus assentos de dirio fazem constantes referncias a incidentes internos, prepotncias e ajustes de contas em que as armas, acidental ou circunstancialmente, intervm,tanto como meio de agresso como de intimidao.

  • 1

    Tambm verdade que a desestruturao global e a mobilidade incontrolvel a que o meio d cobertura, e em que o prprio sistema socio-econmico se fundamenta, favorecem exerccios irregulares sob qualquer ponto de vista. E que alguns ajustes de contas excedem o mbito das relaes internas para alargar-se a agentes do sistema envolvente. A radicalizao de campos de filiao ou de imputao poltica a que o perodo que antecedeu e sucedeu as eleies deu origem, estimulou-les a oportunidade, a comportamentos e aces de retaliao, destruio e efectivo roubo que provavelmente nunca viro a ser completamente esclarecidos mas sugerem, e nalguns casos demonstram, a expresso actual do aproveitamento do vigor e do voluntarismo "mucubal" ao servio de interesses que no so dominantemente os seus. O que me interessa extrair agora do que foi exposto sobretudo que por detrs de toda a implicao kuvale na histria recente e da incidncia desta na histria dos Kuvale, subjaz uma referncia mestra: o gado. O apoio dos Kuvale ao Mpla e a sua participao na guerra, nas novas guerras, ter, em meu entender, acabado por revelar-se, como tambm no poderia deixar de ser, a evidncia da sua qualidade de pastores, uma evidncia alargada a tudo quanto prtica da vida. ... e cultura. O gado tem pernas, mvel, fcil de roubar, levar consigo. Sendo fcil perd-lo devido a incidncias de pilhagem da parte de outros, necessrio defend-lo, todas as sociedades pastoris o sabem. E isso exige uma competncia que passa por uma aprendizagem, por uma instruo, por um treino constantes. Ora foi precisamente a capacidade da advinda que granjeou aos Kuvale a fama de bons combatentes assegurada por todos quantos com eles tm lidado na guerra moderna e que guindou tambm alguns deles a postos de comando. A investiram toda a arte da defeza e do ataque, sobretudo em situaes de golpe-de-mo que incessantemente os adolescentes kuvale, os buluvulu, nas suas longas horas de lazer (o gado pasta sozinho) treinam em conjunto em campos prprios, nas imediaes dos sambos da transumncia quando, durante a maior parte do ano, andam longe das residncias principais acompanhando os bois, perseguindo pastos e guas. Saltar, caminhar no escuro, "ver de noite, ouvir ao longe", arremessar pedras, "porrinhos" e azagaias - ehonga's - com preciso (foi-me recomendado que se algum dia tivesse que entrar em confronto fsico com um "mucubal" procurasse imediatamente o corpo-a-corpo, em que so menos destros, mas evitasse as distncias que permitissem constituir-me alvo para arremessos), retiradas rpidas mesmo conduzindo gado, constituem a matria da sua aprendizagem e do seu treino, a substncia da sua cincia da guerra, e os generais diro do papel que tais qualidades jogaram em muitas das situaes que comandaram. Tal eficincia garante, na sua origem, a defesa dos rebanhos mas ela pode garantir tambm, bem entendido, o ataque. Defender-se e atacar constitui a dinmica do lado turbulento da vida pastoril, um dado universal. O esprito da razia um dado cultural integrado no "modo de produo", se quisermos objectivar e tecnicizar o discurso. Uma citao "sbia", para apoiar: "O gado vulnervel ao roubo (e isso impe) a necessidade de estabelecer um sistema de prontido militar. A atitude militar no corresponde proteco do territrio

  • 1

    mas da mobilidade dos animais e tem como inevivel contrapartida a institucionalizao do 'raiding'", diz W.Goldschmidt (1979:2O). Tambm entre os Kuvale as coisas se passam inscritas num quadro equivalente de legitimidades. A apropriao de gado pela via da afirmao da destreza e da coragem guerreiras uma hiptese que no s excita os jovens mas que vem igualmente ao encontro das expectativas dos mais velhos, atentos reproduo do sistema e dos cdigos que o garantem. Dentro das grandes categorias sociais do gado que definem os termos da propriedade, da gesto e do uso desse factor de produo em que se cruzam todas as linhas da vida, o boi, uma delas, a que corresponde aos animais afectos aos circuitos da matrilinhagem, como veremos adiante, comporta, para alm daqueles a que os dispositivos da sucesso do acesso,as cabeas introduzidas no rebanho atravs do investimento pessoal do sujeito, as nicas, alis, sobre as quais ele pode exercer de forma inequivoca o seu arbtrio pessoal sem ter que, explicitamente, prestar contas a ningum. Qualquer homem, cumprida a sua adolescncia, vai ter que recorrer a gado dessa natureza. Um dos animais indispensveis prestao matrimonial que o vai projectar no curso da vida, aquele, precisamente, que lhe garante o controle sobre os filhos perante a famlia da mulher, no pode provir de outra categoria. A hiptese da razia inscreve-se partida no quadro das opes que o podem garantir. O recurso a essa via de apropriao, se chegar a ocorrer, poder no entanto, para a maioria dos Kuvale, no passar de uma ocorrncia pontual e fortuita. Mas as circunstncias podem ser de ordem a estimular no s o recurso enquanto modalidade mas tambm o culto da prpria hiptese. A par de outras manifestaes de tipo cultual e conotaes religiosas que a crise dos ltimos anos ter estimulado, porque um fenmeno alargado a todo o espao nacional, tambm o culto dos espritos da guerra - lundolo - ter ali encontrado terreno propcio ao seu exerccio e, de alguma forma, sua ressurgncia e intensificao. Cerimnias de iniciao, visando a incorporao de espritos de antepassados transmissores dos talentos da guerra, tornaram-se a certa altura uma ocorrncia comum. O fenmeno est sem dvida ligado a determinantes mais pragmticas de redistribuio e consumo, como teremos oportunidade de ver, mas pode talvez tambm ser encarado como um dispositivo de substituio ou transferncia e uma manifestao explcita dos processos de "encapsulizao" que referirei tambm mais tarde. As sesses a que assisti envolveram sobretudo jovens adultos que j teriam passado pelas Fapla ou para quem a hiptese de virem a integrar formaes armadas formais j no fazia parte das expectativas imediatas. Desde 1992, depois da criao do exrcito nacional, a incorporao de homens Kuvale cessou e a maioria dos que nisso tinham estado investidos regressou e foi reintegrada no sistema produtivo e social comum. Ocorre perguntar, alis, se os benefcios advindos da articulao de uma prtica ancestral - a razia - guerra moderna tero na verdade assumido uma expresso to generalizada e frutuosa assim. A maioria das informaes que nesse domnio recolhi e das ocorrncia que pude acompanhar, talvez tambm porque o meu terreno de indagao se situou sobretudo manifestamente a Sul, dizem mais respeito a aces que trazem a marca do ambiente local mas se reportam mais aos espaos do prprio sistema endgeno, ou ao territrio que o envolve. E d conta, por outro lado, de um quadro de modalidades que em portugus haver a tendncia para traduzir abusivamente por "roubo", lingustica e conceptualmente. H uma diferena estatutria entre roubo tal qual e aces de guerrilha ou de desvio no interior dos dispositivos do sistema. E se verdade que todas pressupem a necessidade de controle, e algumas perturbam a ordem social de forma a impor a articulao entre os dispositivos de controle internos e os do Estado, tambm verdade que, no quadro da ideologia interna que prevalece, nem todas podem ser catalogadas de "crime". Elas podem pressupor "reparaes" mas no, obrigatoriamente,

  • 1

    "sanes". Esta matria que remete ao tecido das relaes com o exterior, nomeadamente com o Estado, e ela ser retomada com maior detalhe mais frente.

    CAP. 3

    SOBRE O DESEMPENHO SOCIO-ECONMICO DA SOCIEDADE KUVALE NOS ()LTIMOS VINTE ANOS Uma resposta histrica e culturalmente fundamentada ... Todas as sociedades angolanas em contexto rural e segundo as incidncias locais dos efeitos, quer directos, quer indirectos, da desestruturao geral e da guerra, tero de alguma forma sido conduzidas a processos de "encapsulizao",

  • 1

    ao contrrio, talvez, do que ter acontecido em meios urbanos, onde a principal modalidade de sobrevivncia se tem fundamentado numa articulao dispersiva, porque comercial, obrigando a contactos sociais muito diversificados, tanto para comprar, prover-se de mercadorias, como para vender, extrair-lhes o benefcio. Mas entre os Kuvale ter-se- tratado mais de aproveitar as condies vigentes, para aplic-las ao pleno exerccio de um modelo at ento apenas abalado pelas presses exteriores, mas no extinto ou irremediavelmente perturbado, do que de sujeitar-se a elas e ter que adoptar prticas, articulaes ou mesmo instituies, referidas ou no a um "passado" mais ou menos distante, capazes de garantir aos grupos em questo a capacidade de se bastarem tanto quanto possvel a si mesmos, circunstncia bem mais generalizada a toda a Angola, no seu conjunto. Entre uma prtica anterior guerra de 194O-41, e cuja prevalncia os ter conduzido precisamente a ela, e aquela a que as novas circunstncias apontavam, no ter havido uma verdadeira "soluo de continuidade", antes as duas se vinham articular numa continuidade "de facto", uma vez que o abalo, a derrota, a desarticulao, a desestruturao a que a catstrofe anterior conduzira, no tinha tido afinal como consequncia a "domesticao" do grupo pelo poder colonial e a sua inscrio forada no sistema envolvente, como as autoridades portuguesas esperavem, antes dera origem, obstinao redentora, resistncia no prevista, a uma reabilitao, reactivao, de dispositivos intrnsecos ao modelo endgeno, que se pensava ter desbaratado, atravs de uma nova dinamizao da mobilidade e da relao entre as pessoas e da circulao de gado dentro dos cdigos da solidariedade e da reciprocidade. Enquanto outras sociedades, nas condies actuais de Angola, tiveram que "reinventar" dispositivos que lhes garantissem uma auto-suficincia capaz de assegurar a sua sobrevivncia, aos Kuvale bastava dar livre curso, nas condies do presente, s dinmicas de uma insularidade pela qual tinham lutado e quase se tinham deixado destruir ou mesmo aniquilar, no s cultural mas fisicamente. Tiveram, evidentemente, que saber adaptar-se s condies que o acesso de Angola independncia e as situaes que se lhe seguiram criaram, mas fizeram-no dando curso a uma continuidade que remetia no s ao tal modelo secular mas tambm ao "treino" de recuperao que tinham desenvolvido durante os ltimos trinta anos da vigncia colonial. Era a prpria recuperao que encontrava na nova crise as vias do seu processo e da sua confirmao at aos dias de hoje em que, apesar de s vezes padecerem fome por no haver nem aparecer quem lhes fornea o milho que no podem produzir em quantidades suficientes, os Kuvale talvez nunca tenham sido to prsperos em termos de gado em explorao. Dir-se-ia que enquanto para outras sociedades as circunstncias actuais constituam as determinantes de uma rotura no seu processo de integraao num "sistema global", para os Kuvale ocorriam como as condies de reposio de duas continuidades: a de um modelo endgeno nunca perdido de vista e a do processo de reabilitao iniciado imediatamente aps o seu regresso das deportaes de S. Tom, da Damba, da Lunda. Com o novo tempo que a independncia instaura as restries mobilidade fisica e pastoril so, como j vimos, levantadas ou reduzidas, e a incorporao de fluxos de animais estranhos s unidades de produo vem tambm gerar situaes favorveis ao grupo. Ambos os factores vm ao encontro de um melhoramento dos termos da relao com o meio, do aproveitamento dos seus recursos e potencialidades naturais em que os Kuvale so mestres. Para faz-lo eles no vo precisar de "apports" nem de tecnologias exteriores, ferramentas, adubos e sementes, por exemplo, dependentes de articulaes ao sistema mercantil, circunstncia que liquidou ou estrangulou a maior parte das economias domsticas angolanas tanto em relao a prticas anteriores como sua

  • 1

    capacidade para se investirem em estratgias de auto-suficincia. Passaram a faltar vacinas para o gado, verdade, mas a regio sanitariamente benigna quando comparada com outras, ter-se-o de alguma forma reabilitado prticas tradicionais de preveno e cura e, de qualquer forma, a interveno sanitria anterior sempre esteve muito longe de ser massiva, at porque os prprios detentores de gado se furtavam a isso. Tambm no houve, por outro lado, crises de seca para alm do que normal. E os rebanhos aumentaram dando prova do excelente desempenho econmico dos Kuvale insularizados face a um contexto envolvente de descalabro generalizado. Os termos dessa apurada interaco com o meio e as estruturas, os dispositivos, as prticas que a actualizam e factualizam, garantindo portanto a produo e a produtividade dos Kuvale, constituiro o grosso da matria que ir seguir-se. Outro fio condutor que utilizarei dir respeito ao ajustamento a que vou ter necessidade de operar para lidar com a noo de "comunidade". Se entendermos a comunidade como um grupo social caracterizado pela vida em comum, implicando bens, aspiraes, etc, terei, sem dvida, dificuldade em adaptar essa noo ao meu objecto de estudo. Se optar por uma definio que lhe confira os contornos de um grupo de pessoas consideradas como um todo e vivendo no mesmo lugar, as hesitaes sero ainda maiores. Nem o habitat, que tpicamente disperso, nem o modelo residencial, que instvel, nem as relaes que caracterizam o sistema prevalecente, em que as distncias estruturais no coincidem sempre com as distncias fsicas e a mobilidade sociolgica muito grande, se adaptam a tais contornos. Para o inqurito e para a anlise a questo nunca me ps problemas de maior. As unidades de anlise mais significativas e pertinentes sempre acabaram por projectar-se a si mesmas em relao s interaces implicadas nos processos visados e se nalguns casos a vizinhana contava, de facto, noutros ela resultava imediatamente preterida a favor de outras ordens de proximidade e implicao, parental, poltica ou mesmo religiosa, todas elas determinantes para a percepo, da minha parte, e a prtica, para os inquiridos, dos processos em questo. A prpria clula produtiva e consumidora elementar, a famlia nuclear, nunca aparece isolada mas sempre inserida em unidades de famlia mais extensas que por sua vez se associam a outras familias extensas para formar ento aquilo a que poder chamar-se uma unidade de produo que por sua vez se faz e se desfaz ao ritmo das estaes, se reparte pelo territrio de acordo com as estratgias de repartio do rebanho familiar que se traduz frequentemente pela interposio de grandes distncias, to grandes que apontam a regimes climatolgicos diferentes, contornos da transumncia. Partirei no entanto, e evidentemente, dos grupos locais de produo. Mas terei que alargar-me, paralelamente e de imediato, a unidades tambm locais de solidariedade parental, que por definio no coincidem com as primeiras, e alongar-me por a fora at identificaao de situaes rituais de consumo e redistribuio que actualizam, ainda que localmente, a dimenso de uma entidade colectiva escala de toda a projeco territoral e "poltica" do grupo, privilegiando embora a vizinhana, ou actuando atravs dela e retendo, logo assim, alguns daqueles traos que podem ser imputados categoria "comunidade".

    ... na relao meio/sistema Cinco rios maiores atravessam a regio afecta aos Kuvale: o Carunjamba, o Bentiaba, o Giraul, o Bero ou Cubal e o Saiona, que afluente deste. O Kurora constitui a fronteira sul. S em Maro, nem sempre, esses rios escoam gua para

  • 1

    o mar, e com os seus afluentes do por vezes origem a terraos povoados por grandes arbreas, entre elas a Acacia albida, o Ficus gnaphalocarpa e o Combretum imberbe. Na sua vizinhana, mas no em cima deles e sobretudo na zona da mata seca, se dispem as onganda's, que so a modalidade mais fixa de residncia dos Kuvale, a partir das quais se desenvolve alguma agricultura, quando a chuva d, nas baixas dos rios. Esta agricultura raramente suficiente para garantir a produo dos cereais necessrios subsistncia das famlias que lhes esto ligadas, e esta uma das circunstncias que acaba por definir a especificidade kuvale no contexto das outras sociedades com que confinam, tambm afectas cultura pastoril. Dependentes do exterior em relao a cereais, a actividade dos Kuvale sobretudo e quase que exclusivamente investida na explorao animal que lhes assegura o leite, a carne e a produo de excedentes com que ho-de adquirir ao exterior os bens alimentares e outros de que necessitam, txteis e bebida, principalmente. As condies do meio impem-lhes valores muito baixos de densidade populacional (O,5 pessoas/Km em mdia) e garantem-lhes indces elevados de proporo pessoas-animais. No seu conjunto, os Kuvale podem assim ser definidos como uma sociedade pastoril. Os seus vizinhos de quem mais dependem, ou com quem mais estreitamente se relacionam sero, por sua vez, agropastoris. Os Kuvale praticam uma economia de que a agricultura no est excluda mas onde ela ocupa sempre, ou quase sempre, um lugar escassamente complementar. da manuteno, da reproduo e do crescimento das suas manadas que depende a prpria viabilidade fsica da sociedade diferenciada que constituem e os distingue dos seus vizinhos imediatos mais ou menos identificados com outras caracteristicas ecolgicas, percursos histricos, ou "appartenances" tnicas, se quisermos: os Tyilengue a Noroeste e os Mwuila e os Gambwe a Leste, identificados tambm com gado mas que habitam regies onde chove acima dos 6OO mm, com os animais inscritos em sistemas que conferem um lugar muito mais importante agricultura. Estes os representantes actuais dos agroastoralistas com quem as sucessivas geraes kuvale tero obrigatoriamente lidado desde a fixao na regio dos seus antepassados migrantes. Entre os agropastoralistas, o grosso da ateno produtiva canalizado para a agricultura (no falo dos testemunhos que possam recolher-se junto dos homens, que sempre se diro mais pastores do que agricultores, mas da sociedade em si mesma, e da percepo que h-de decorrer da sua avaliao). A, por exemplo, muitas vezes o rebanho que pode ser incrementado atravs da produo de excedentes agrcolas, ao contrrio do que acontece entre os Kuvale, que adquirem produtos agrcolas a partir de excedentes animais, e este um trao vital da articulao entre os dois tipos de economia nos tempos que correm, como veremos adiante. A prpria especializao que marca a economia dos Kuvale (e que talvez no seja historicamente to profunda como isso, pode antes corresponder a um processo desenvolvido j depois de antigas populaes agropastoris se terem fixado num meio que viria ele prprio a impor a especializao), e que os define como pastoralistas face a agropastoralistas, no poderia ter-se consumado sem a proximidade fsica destes e das relaes de troca que ela pode garantir. De qualquer maneira essa mesma especializao produtiva, econmica, que os configura tambm social e culturalmente. A mobilidade, por exemplo, comum tanto s sociedaes pastoris como s agropastoris, para eles no corresponde apenas a uma estratgia produtiva, uma condio para a vida, com tudo o que isso representa de projeco em todos os sectores da sua vida, precisamente. No ultrapassando os termos fsicos da sua prtica, mesmo os seus espaos residenciais "fixos", as ongandas, dizem menos respeito a um local do que a uma "zona", a um permetro, restrito embora, em que os sectores menos mveis

  • 1

    das famlias tm que movimentar-se, ainda assim, em situaes de maior crise anual, definindo quadros de uma transumncia mnima que definirei mais tarde. sobretudo atravs da mobilidade total em que se implicam que os Kuvale tm que saber manter a todo o custo um equilbrio com o meio e dentro do meio. Para o que interessa directamente a este captulo insistirei apenas em dois aspectos situados muito estritamente no tempo. preciso manter os animais vivos e a produzirem leite, tanto para se reproduzirem como para proverem alimentao humana. Todo o know-how, a competncia tcnica dos pastores kuvale, pode ser entendido como desenvolvendo-se volta destes dois eixos e ele tem que ter em conta, logo partida, a constituio fsica dos prprios animais em explorao. Os bois dos Kuvale pertencem ao tipo Sanga, comum a uma grande parte da Africa, e so considerados pelos zootecnistas como uma raa fixada, os " bois dos Mucubais", precisamente, robusta, resistente, corpulenta at para o tipo de gado de que se trata, e sobretudo extremamente bem adaptada ao meio do interior do Namibe. Todos os estudos, relatrios,informaes e notcias fazem generosas e unnimes referncias s suas qualidades neste domnio, mesmo quando assinados por quem o fez, no passado, para atacar veementemente o sistema pastoril dos Kuvale. Esta aptido de tal gado para se afirmar nas precrias condies em que prospera no pode ser seno o resultado da actuao adequada de quem para ali os trouxe e ali os mantm e reproduz. Os Kuvale, naturalmente, desenvolvem um programa solidamente estabelecido de interveno gentica. Ela tem em conta aspectos to imediatamente catalogados de "irracionais", segundo perspectivas "maximalistas" de aproveitamento dos recursos energticos e aos olhos de quem s v no gado aquilo que ele d e no, tambm, aquilo que ele "" ( excludos da avaliao os factores culturais sem os quais aquele gado no estaria, de facto ali, s haveria paisagem e eventualmente, no tendo sido entretanto dizimada, fauna selvagem), como o tamanho e a forma dos cornos, o "berro" do animal, a cor da sua pelagem. Mas antes disso intervm, posso assegur-lo, factores como a produo de leite e, ligada a ela, a resistncia fsica dos animais. Nenhum touro to valorizado como um animal que tenha luthipa, designao que faz aluso tenacidade da membrana que envolve a carne dos lombos, "de que se fazem os fios rijos para enfiar as missangas" dos adornos ou dos sortilgios. "Esse touro tem luthipa!: aquele que d boas crias, resistentes. Pode ser estreitinho, pequeno, mas no morre na seca. Pode vir paz, o Governo pode mudar, os comerciantes podem voltar, pode mudar muita coisa para melhor, mas temos sempre que contar com a seca, vai chegar um ano em que no chove mesmo nada e os filhos desse touro que vo aguentar, vo ainda assim dar leite, e garantir que tudo volte a refazer-se". O "stock" animal adequado, adequada tem que ser tambm a sua manuteno e a sua reproduo. Questo de pastos e gua, questo de transumncia. A mobilidade impera, tem que imperar. Os resultados da minha observao na rea do Sayona no diferem dos de observaes tcnicas e cientficas aplicadas a zonas na regio que podem ser consideradas equivalentes (Morais 1974) e mesmo a outros contextos pastoris (Johnson 1969, por exemplo). A zona geogrfica que os Kuvale ocupam e exploram a dos pastos doces e mistos que se situam entre a costa atlntica e o planalto interior, entre os paralelos 13.5 e 16.5, sensivelmente. E se os especialistas, e bem, no esquecem que a "palatibilidade" dos pastos no explica tudo, tambm afirmam que os pastos doces constituem um tipo de "cobertura herbcea que se mantm apetecvel pelo gado ao longo do ano, mesmo depois de ter ficado seco, no perdendo o seu valor alimentar e da, com maneio adequado e desde que sejam controladas as necessidades de abeberamento, se poderem implantar exploraes (...) tendo como

  • 1

    base o aproveitamento dos recursos pascigosos naturais" e que aos pastos mistos corresponde uma "cobertura herbcea mais densa e de porte mais elevado", uma "composio florstica mais variada" com possibilidades de um "encabeamento bovino muito superior" (Diniz 1991:165). Um eco-sistema, portanto, em que "a composio qualitativa da produtividade primria revela um valor alimentar bastante equilibrado do ponto de vista da pastagem para os fitfagos ungulados (gado e grande fauna selvagem), que so os consumidores mais importantes do eco-sistema" (Morais 1974:25). zona dos pastos doces corresponde a faixa de clima rido/semi-rido, formao estpica, onde predominam as gramneas. A dos mistos dos climas secos dos tipos semi-rido e sub-hmido seco. A primeira tambm em grande parte uma estepe sub-desrtica tpica de arbustos (encosta s dunas que a partir do Sul penetram em Angola at ao paralelo da cidade do Tombwa, ex-Porto Alexandre) e cede lugar, em direco ao Leste, s estepes de transio para as matas secas de Clophospermum mopane, ncleos de mata cercando as correntes e apoiadas aos 'kopjes' e s colinas, at formar as matas densas de mutiatis (C. mupane) altos (ibid.:1O) que acabam por encontrar a escarpa da Chela numa grande extenso da rea. O gegrafo Urquart (1963:2) descreve com muita preciso e economia esta configuao. Ele diz que, atravs da maior parte da sua extenso, a serra da Chela forma uma impressionante face escarpada que marca um desnvel abrupto de vrios "milhares de ps" a partir do planalto interior: "Alguns inselbergs residuais de uma antiga e mais extensa superfcie do planalto erguem-se (...) para Oeste da face escarpada. Para Norte a escarpa muito menos impressionante mas continua a formar uma rotura bem definida entre o deserto costeiro e o planalto (...). O deserto, que atinge cem milhas de largura, a extenso norte do Deserto do Namibe (...). Numa srie de degraus erosivos que so mais recentes do que as velhas superfcies do planalto, o deserto inclina-se para o Oceano Atlntico a partir de elevaes de seiscentos metros, na base da escarpa." () este declive, esta extenso, que define a zona explorada pelos Kuvale. Eles jogam entre os 2OO e os 6OO metros de altitude, do mar para a serra, e sobem aos 1 OOO metros, onde ocorre a escarpa, nas modalidades mais alargadas da transumncia. As quedas pluviomtricas passam de 2OO a 4OO mm cados de Janeiro a Maro em nveis inferiores aos 5OO metros at valores que podem atingir os 6OO mm mais para o interior, de Novembro a Maro, tambm. Desde o Sayona, por exemplo, uma parte das manadas sobe aos 1OOO metros a partir de Outubro para beneficiar de um regimen de chuvas que a pode comear por essa altura, atingir os 8OO mm e estender-se at Abril. Mas em Abril j estaro c em baixo de novo, porque os pastos se refizeram e, se o ano foi bom, podem garantir uma concentrao de todos os efectivos bovinos at ao ms de Outubro seguinte. A estas escalas de altitudes e de quedas pluviomtricas corresponde, evidentemente, uma significativa diversidade das formaes vegetais. Assim, "a explorao pelos bovinos dos recursos alimentares deste eco-sistema aparece no somente como funo da disponibilidade quantitativa da alimentao, mas tambm dependendo principalmente da diversidade das diferentes sub-regies para os tipos da formao vegetal" e "a capaciddae de sustentao [ da pastagem] depende tanto da produtividade pecuria disponvel como da diversidade dos tipos de formao vegetal, o que justifica a transumncia como sendo a tcnica mais racional sob as condies deste meio." ( Morais 1974:48 e 114) A partir destes elementos e com base em dados que recolhi e observaes que fiz na regio do Sayona, ensaiarei um quadro de movimentaes que corresponde a transumncias recentes. Do ponto de vista fsico h a possibilidade de arrum-

  • 1

    las segundo a componente tempo e a componente espao. De Maio a Setembro, num ano normal, o gado todo dos Kuvale pode convergir para reas que grosso modo se situaro nas zonas de mata de mutiatis baixos, nas quais se situam sobretudo as concentraes habitacionais de carcter mais fixo, as ongandas. Algum desse gado poder ao longo do ano nunca se ter afastado muito dessa rea, para assegurar a manuteno das pessoas que a bem dizer no abandonam j as ongandas, os muito velhos, acompanhados s vezes s por crianas e pelas mulheres activas que a permaneam para os assistir e garantir a explorao dos animais. Outros lotes de gado, mais volumosos, praticam deslocaes que s vezes, em anos bons, tambm so de raio reduzido e se limitam a uma transumncia que pode classificar-se de "pulsatria", de vai-e-vem ( Johnson 1969:187) e em anos mais difceis alargar-se e, a partir de Julho, demandar j pastos da estepe arbustiva a oeste, para depois, ao encontro das primeiras chuvas que podem ocorrer na base da serra a partir de Novembro, utilizar percursos que a os vo fixar at Fevereiro, quando comear a chover nas reas prximas s ongandas e para a voltarem, concentrando-se de novo e tendo assim de algum modo desenvolvido uma transumncia circular que os reconduz ao ponto de partida, donde reiniciaro mais tarde um novo ciclo. Trata-se, at aqui, de transumncias praticamente horizontais, embora tenham aproveitado oscilaes entre por vezes os 2OO e os 5OO ou mesmo 6OO metros de altitude. Grandes contingentes de gado, no entanto, so implicados em percursos de uma transumncia dita vertical. Transumncia, de um maneira geral, diz-se em lngua olukuvale kuthiluka - mudar. Subir diz-se kulonda, descer, kupunda. A transumncia para cima diz-se tambm kutoma. Kutoma brilhar, e sobe-se a serra com os bois, para as terras dos "Mumulas", para aumentar-lhes o sangue, recuper-los, dar-lhes brilho. Quando os Mwila descem c abaixo, o que "acontece s por causa do sal, ficam s uma semana ou duas, depois voltam para cima", chama-se kukela. Para cima da serra pode comear a subir-se em Outubro, quando j tiver comeado a chover l em cima, e tiver tido incio a renovao desses pastos, que os Mwila utilizaram at essa altura mas entretanto disponibilizaram porque o tempo de eles regressarem s suas residncias fixas, volta das quais vo investir-se na agricultura. A meno desta interaco entre o sistema pastoril dos Kuvale e o sistema agropastoril dos Mwila pertinente, porque ela ilustra de que forma dois sistemas diferentes mas vizinhos podem interferir-se. Qualquer alterao profunda na prtica mwila que modificasse o seu prrio regime de transumncias poderia vir a ter incidncias graves sobre os Kuvale a que me estou a referir. O gado e os homens que subiram a serra permanecem a at ter chovido c em baixo o suficiente para poderem vir a manter-se em enormes concentraes volta, no caso que tenho acompanhado de perto, de um afloramento aqufero permanente no leito do rio Tyakuto, afluente do Sayona, que por sua vez afuente do Cubal, ou Bero. O que acabei de dizer refere-se muito sucintamente organizao geogrfica, ecolgica, de movimentos transumantes que pude de alguma forma acompanhar ou registar. Nada diz ainda da organizao do habitat e da do trabalho que lhes estaro obrigatoriamente associadas. Os casos de figura assinalveis no terreno so muito diversos, evidentemente, mas julgo poder ensaiar uma sistematizao a partir de trs grupos, segundo o seu grau de capacidade de deciso sobre o gado que operam, utilizando, portanto, logo partida, uma perspectiva sociolgica que grosso modo se ajusta s modalidades de transumncia vistas atrs.

  • 1

    CAP. 4

    A ORGNICA E AS DINMICAS DE UM SISTEMA DE PRODUO Relaes de produo - Unidades de produo/trabalho Na regio do Sayona, em outras que frequentei e de uma maneira geral em todo o territrio Kuvale, creio, a organizao do habitat, das unidades de explorao dos rebanhos e das articulaes que se operam entre elas, bem como o trabalho que desenvolvem, corresponde configurao de trs expresses residenciais, etrias, sexuais e sociais diferentes.

  • 1

    Um primeiro grupo ser constitudo por homens adultos, e suas mulheres, que j tenham filhos por sua vez adultos e casados. So eles que habitam e governam as ongandas, cercados de rama de arbustos que podem atingir 7O metros de dimetro e no interior dos quais o gado pernoita e se dispem as casas, cnicas e baixas, e um cercado menor para os vitelos. Cada onganda abriga dois ou trs grupos familiares que podem ser ou no parentes entre si e contar ou no com a presena dos filhos adultos, ou sobrinhos, ou outros dependentes, dos homens mais-velhos que os chefiam e estabelecem desta forma entre si parcerias que implicam a explorao em conjunto do gado que mantm sob a sua incidncia imediata. Uma boa parte dos animais sobre que exercem um controle directo poder no entanto estar j entregue aos seus filhos adultos e j casados que constituem entre si, por sua vez, parcerias de explorao e residencia que reproduzem as unidades que os seus pais formam ou assumem outros contornos, de acordo com os seus prprios critrios de relao, e se fazem, desfazem e reconstituem ao sabor das necessidades e dos percursos da transumncia anual. Estes dois plos de configurao residencial e de constituio de rebanhos mantm-se fortemente articulados e entre eles que se decidem as movimentaes sazonais que definem as duas modalidade de transumncia mais restrita que assinalei anteriormente. Os filhos mais novos dos donos das ongandas e muitas vezes j os dos seus filhos mais velhos que integram o segundo escalo residencial, vo constituir uma terceira configurao de residncia e de conduo dos animais. Estes so os buluvulu's, rapazes entre os 12 e os 25 anos, normalmente, que vivem permanentemente fora das ongandas em grupos numerosos que se ocupam de animais que, sempre sob o controle dos mais-velhos, so implicados na transumncia vertical. H uma constante mobilidade de pessoas e de animais entre estes trs plos, e isso determinado pela persecuo de uma nova frmula de equilbrio que excede agora o binmio animais-recursos para introduzir na relao a carga humana a sustentar. O exerccio da actividade pastoril ser sempre a resultante de uma funo que observa esses trs factores, sendo ainda necessrio considerar em relao componente humana a sua avaliao em termos de necessidades de consumo e de capacidade de trabalho. Esquematicamente ficaro nas ongandas os animais que provenham s necessidades e capacidade de trabalho dos que a habitam, e o mesmo se passar em relao aos grupos de jovens adultos com famlia. Todo o restante gado ser encaminhado para os buluvulus. Da mesma forma as vacas mais produtivas constituiro o grosso do gado afecto s duas primeiras configuraes. a que h crianas para alimentar e ao mesmo tempo mulheres para ordenhar as vacas, bater a manteiga e cuidar dos vitelos, tarefa esta que tambm atribuda s crianas a quem cabe sobretudo, no entanto, a vigilncia sobre os pequenos animais, ovelhas e cabras, que no vamos encontrar nos buluvulus. Entramos assim nos complexos domnios do trabalho. Os homens trabalham, as mulheres trabalham, trabalham os adolescentes, rapazes e raparigas, e as crianas tambm: trata-se de uma economia domstica. Mas ningum trabalha excessivamente, fiquemos tranquilos. Valores aferidos em relao zona do Xingo (Morais 1974:1O1-11O) que me parece poderem extrapolar-se em relao quelas que observei, permitiram afirmar que a anlise da "comunidade" Kuvale, "segundo o modelo ecolgico, traduz a estratgia que adopta: equilbrio no interior do seu eco-sistema e investimento nos tempos livres", quer dizer, " o tempo disponvel muito grande para todas as classes de indivduos activos, o que corresponde a um valor de qualidade de vida". E ficamos tambm a saber que o rendimento do trabalho da populao activa Kuvale francamente superior ao de outras sociedades envolvidas em economias domsticas. Por outro lado aparece

  • 1

    confirmada e quantificada a constatao de que os trabalhos com o gado constituem mais de metade do trabalho total das populaes e absorvem o