aventureiras” nas ciÊncias: refletindo sobre gÊnero e histÓria das ciÊncias naturais no...

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cadernos pagu (10) 1998: pp.345-368. “AVENTUREIRAS” NAS CIÊNCIAS: REFLETINDO SOBRE GÊNERO E HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS NATURAIS NO BRASIL * MARIA MARGARET LOPES ** Resumo Apoiado na literatura norte-americana, este artigo introduz uma visão geral dos estudos feministas da ciência, no que se refere à crítica das ciências naturais. Questiona por que até hoje a questão das mulheres e/ou gênero nas ciências tem merecido muito pouca atenção dos estudos sociais das ciências. E, para concluir, apresenta algumas perspectivas para as abordagens sobre mulheres e/ou gênero e ciências naturais no contexto da História das Ciências no Brasil. Palavras-Chave: Estudos Feministas, Ciências Naturais, Literatura Americana, Ciências no Brasil. * Recebido para publicação em 29 de agosto de 1997. Agradecimentos: Este artigo não poderia ter sido escrito, nos prazos determinados, sem a colaboração nas formas mais inusitadas, das amigas e pesquisadoras Gabriela Marinho, Silvia Figueirôa e Léa Velho. Também não se concretizaria sem o apoio do Valter Ponte, na ajuda nas traduções e nas discussões intermináveis. ** Geóloga do Depto. de Geociências Aplicadas ao Ensino, do Instituto de Geociências da UNICAMP, colaboradora do CIM – Centro Informação Mulher, Visiting Professor do Dept. of Geology – University of Southwestern Louisiana, USA, com apoio da FAPESP.

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Apoiado na literatura norte-americana, este artigo introduz uma visão geral dos estudos feministas da ciência, no que se refere à crítica das ciências naturais. Questiona por que até hoje a questão das mulheres e/ou gênero nas ciências tem merecido muito pouca atenção dos estudos sociais das ciências. E, para concluir, apresenta algumas perspectivas para as abordagens sobre mulheres e/ou gênero e ciências naturais no contexto da História das Ciências no Brasil.

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  • cadernos pagu (10) 1998: pp.345-368.

    AVENTUREIRAS NAS CINCIAS: REFLETINDO SOBRE GNERO E HISTRIA DAS CINCIAS

    NATURAIS NO BRASIL*

    MARIA MARGARET LOPES**

    Resumo

    Apoiado na literatura norte-americana, este artigo introduz uma viso geral dos estudos feministas da cincia, no que se refere crtica das cincias naturais. Questiona por que at hoje a questo das mulheres e/ou gnero nas cincias tem merecido muito pouca ateno dos estudos sociais das cincias. E, para concluir, apresenta algumas perspectivas para as abordagens sobre mulheres e/ou gnero e cincias naturais no contexto da Histria das Cincias no Brasil. Palavras-Chave: Estudos Feministas, Cincias Naturais, Literatura Americana, Cincias no Brasil.

    * Recebido para publicao em 29 de agosto de 1997. Agradecimentos: Este artigo no poderia ter sido escrito, nos prazos determinados, sem a colaborao nas formas mais inusitadas, das amigas e pesquisadoras Gabriela Marinho, Silvia Figueira e La Velho. Tambm no se concretizaria sem o apoio do Valter Ponte, na ajuda nas tradues e nas discusses interminveis. ** Geloga do Depto. de Geocincias Aplicadas ao Ensino, do Instituto de Geocincias da UNICAMP, colaboradora do CIM Centro Informao Mulher, Visiting Professor do Dept. of Geology University of Southwestern Louisiana, USA, com apoio da FAPESP.

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    ADVENTURERS IN SCIENCE: REFLECTING UPON GENDER AND HISTORY OF SCIENCES IN BRAZIL

    Abstract Based upon North American literature, this article presents an overview of the feminist science studies criticism of natural sciences. It questions why, until recently, the subject of women and/or gender in science has been scarcely addressed in the social studies of science. It concludes by presenting some suggestions on how to approach women and gender in the natural sciences in the context of the history of sciences in Brazil.

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    Como naturalista, Emilia teve uma carreira em tudo semelhante de vrios de seus contemporneos talvez um pouco mais bem sucedida mas como eles, viajou, recolheu material para os museus, nomeou a fauna brasileira e publicou seus resultados de pesquisa. Em sua poca, o cientista de campo por definio, o naturalista, era sinnimo de aventureiro e, j que o feminino dessa expresso quase sempre dbio em nossa lngua, no de admirar que nossas antepassadas tenham tido que enfrentar essa dubiedade alm dos pesados encargos que assumiam ao aventurar-se na pesquisa de campo.1

    Introduo As cincias naturais vm sendo objeto da crtica de

    feministas acadmicas, particularmente nos Estados Unidos, desde h pelo menos uns quinze anos. Esta produo tem procurado articular dimenses tericas da crtica ao conhecimento cientfico com teorias da linguagem, filosofia, sociologia e histria das cincias em suas mais diferentes vertentes.

    No a inteno aqui, fazer uma sistematizao ou sntese dessa atividade de construo de um campo disciplinar to amplo e complexo, genericamente referido como feminism and science (feminismo e cincia) ou feminist science studies (estudos feministas da cincia)2, no qual se insere essa discusso.

    Este um artigo de reviso, onde algumas escolhas foram feitas com o objetivo de introduzir o assunto, apontar referncias 1 CORRA, Mariza. A doutora Emlia e a tradio naturalista. Horizontes Antropolgicos. Gnero I, 1995, pp.37-46. 2 A coletnea de FOX KELLER, Evelyn and LONGINO, Helen. (eds.) Feminism and Science. Oxford, New York, Oxford Univ. Press. (Oxford Readings in Feminism), 1996, como as prprias autoras colocam, significa importantes esforos de representao das dimenses tericas dessa rea de estudos.

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    de estudo e abrir algumas perspectivas para as pesquisas sobre mulheres e/ou gnero e cincias naturais no Brasil.

    No caso da literatura norte-americana, especfica desse campo de estudos, a diviso terica entre a crtica engendrada3 s cincias naturais e os estudos sobre mulheres nas cincias, bastante demarcada e se mantm.4 No caso brasileiro, os estudos histricos sobre mulheres e cincias naturais, quer de um ponto de vista puramente historiogrfico, ou que incorporem quaisquer perspectivas feministas esto colocados de forma incipiente, no contexto dos estudos sobre Histria das Cincias no pas.

    Estabelecer divises a priori, no me parece ser nosso caso. Assim, situando-nos muito mais nas reas fronteirias desses estudos, percorremos aqui alguns pontos de distanciamento e contato entre caminhos de reflexes tericas que podem subsidiar nossa busca de entendimento sobre as relaes de gnero e cincias naturais na realidade brasileira. De um lado, estudos sobre as mulheres cientistas, abordagens de gnero, perspectivas feministas sobre a excluso de gnero na construo do pensamento cientfico moderno. De outro, as tendncias mais recentes da historiografia das cincias, que tm questionado o status epistemologicamente superior atribudo

    3 CORRA, Mariza. Sobre a inveno da mulata. Cadernos Pagu (6-7), 1996, pp.35-50. 4 Ver os artigos publicados no mesmo nmero da OSIRIS: FOX KELLER, Evelyn. Gender and Science: Origin, History, and Politics. OSIRIS 10, 1995, pp.27-38; e KOHLSTEDT, Sally Gregory. Women in the History of Science: An Ambiguous Place. OSIRIS 10, 1995, pp.39-58. A distino entre mulheres e gnero, em diversas reas disciplinares, j bastante discutida tambm no Brasil, importante de ser mantida no caso norte-americano da Histria das Cincias, segundo Fox-Keller, porque, embora as fronteiras entre essas abordagens no sejam sempre to ntidas, com a ampliao dos estudos muitas vezes no existem agendas tericas e disciplinares que sejam comuns, ou mesmo que sejam reconciliveis.

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    cincia, que vm influenciando os estudos sociais das cincias em pases no pertencentes ao eixo geogrfico norte-atlntico.

    To perto de mim distante A partir da dcada de 1980, os primeiros estudos

    sexuados, que depois se refeririam a gnero, rapidamente evoluram, nos Estados Unidos, da procura e da constatao da ausncia das mulheres nas cincias e da busca de suas causas, para as discusses das conseqncias cientficas dessa sub-representao histrica. E indo alm, para o questionamento da neutralidade de gnero dos prprios critrios que definem o que cientfico.5

    As anlises externalistas de Margaret Rossiter6 sobre a participao das mulheres nas cincias norte-americanas abriram caminhos em um terreno de investigaes ainda hoje bastante significativo sobre mulheres e institucionalizao das cincias. Seu livro rompeu com a prtica anterior, que enfocava apenas as excees regra as mulheres excepcionais que haviam conseguido se destacar em cincias. Margaret Rossiter tratou as mulheres cientistas como trabalhadoras, cujas trajetrias e atividades cientficas poderiam ser interpretadas em termos de critrios scio-econmicos e de suas implicaes sociais.

    Da, toda uma vastssima literatura e uma srie de iniciativas sobre histria das mulheres emergiram diretamente

    5 FOX KELLER, Evelyn. Reflections on Gender and Science. New Haven and London, Yale Univ. Press, 1985. 6 ROSSITER, Margaret. Women Scientists in America. Struggles and Strategies to 1940. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 1982. Uma continuidade desse estudo foi publicada em ROSSITER, Margaret. Women Scientists in America. Before Affirmative Action, 1940-1972. Baltimore, The John Hopkins University Press, 1995.

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    do mbito das discusses da Histria da Cincia enquanto rea disciplinar.7

    Em paralelo, toda uma outra literatura de diferentes concepes de feminismos e cincias se ampliava, diretamente derivada das teorias feministas dos movimentos da dcada de 1970. A essa poca, embora as crticas das teorias feministas no se voltassem ainda para as cincias naturais, a frase gender and science apareceu pela primeira vez como ttulo de um artigo de Evelyn Fox Keller, em 1978.8

    Em uma das mltiplas reas fronteirias desses campos de estudos, entre a vasta literatura sobre biografias de mulheres cientistas norte-americanas, destaca-se a biografia da geneticista Barbara McClintock (1902-1992), escrita por Evelyn Fox Keller.9 Embora tratando de uma das excees Barbara McClintock revolucionou os estudos genticos a partir de suas pesquisas sobre milho, e s tardiamente teve seus mritos reconhecidos, ganhando um prmio Nobel , o livro de Evelyn Fox Keller outro marco referencial para o estudo de mulheres e gnero na Histria das Cincias.

    Inserindo-se no mbito dos estudos sociais das cincias, o livro acaba pelo menos com duas iluses. A primeira, com a caracterizao de Barbara McClintock como dissidente da cincia. Entendendo a prtica cientfica como muito mais 7 Em 1981, Sally Gregory Kohlstedt e Margaret Rossiter coordenaram os esforos de criao de um comit internacional de mulheres em cincia, tecnologia e medicina, como parte da Unio Internacional de Histria da Cincia (IUHS). At ento nos congressos da IUHS haviam sido apresentados apenas 4 trabalhos relacionando mulheres e cincias. Para uma sistematizao da construo dessa linha de estudos, ver KOHLSTEDT, Sally Gregory. Women in the History of Science: An Ambiguous Place. Op.cit. 8 FOX KELLER, Evelyn. Reflections on Gender and Science. Op.cit. 9 Id. A Feeling for the organism. The Life and Work of Barbara McClintock. New York, W.H. Freeman and Company, 1983.

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    pluralstica do que as histrias contadas a posteriori sugerem, no fossem os pontos de vista dessa cientista sancionados de alguma forma, nem sequer o status de marginal em cincias ela teria tido. A segunda iluso rompida aquela que muitos teriam tido com a possibilidade de identificar a concepo de cincia de Barbara McClintock e seu mtodo cientfico sua nfase na subjetividade, na intuio, na emoo, na profunda, quase mstica identificao com seus gros de milho com uma cincia feminista. Esta, se amplamente praticada pela incluso de um maior nmero de mulheres ou homens sensibilizados, bastaria para mudar o fazer cientfico. Combinando individualidade e comunidade, a autora mostra como a transcendncia de gnero que Barbara McClintock assumiu para si prpria em toda a vida, no era uma exceo entre as mulheres cientistas e que no poderia ter encontrado melhor abrigo para ser preservada do que na promessa de neutralidade de gnero e de qualquer outra coisa da cincia, ento praticamente no questionada.

    No seu caminho de crtica s cincias naturais, as feministas documentaram, analisaram e criticaram os usos e abusos dos diversos ramos das cincias naturais e biolgicas marcadas pelos efeitos dos preconceitos de gnero na seleo, organizao e interpretao de dados.10 A ttulo de exemplo, diversas pesquisas experimentais so feitas exclusivamente com espcimes machos, o que explicado em termos de controle de variveis, embora as concluses sejam tomadas como modelares para a espcie.

    As feministas tm discutido as concepes de gnero, suas representaes, identificaes, excluses e incluses nas cincias desde os filsofos gregos, chegando a Bacon e Descartes, nos processos de construo das cincias modernas. 10 Ver por exemplo, FAUSTO-STERLING, Anne. Myths of Gender: Biological Theories about Women and Men. New York, Basic Books, 1985.

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    O Nascimento Masculino do Tempo de Francis Bacon11, assim como toda a influncia das metforas de gnero nos processos de construo das cincias modernas, foram e continuam sendo objetos de instigantes e cuidadosas anlises das filsofas e historiadoras das cincias feministas.

    Tomando o perodo da Revoluo Cientfica como central para o engendramento da natureza e da cincia, pela identificao de masculinidade com temas de controle e dominao, o livro da historiadora da cincia, feminista, marxista e ambientalista Carolyn Merchant, sobre a morte da natureza, enfocou exatamente a importncia da metfora da natureza como mulher, e da identificao da mulher com a natureza, para a cincia e para o capitalismo. Seu trabalho teve um papel fundamental na articulao entre feministas e ambientalistas, no incio dos anos de 1980, e posteriormente esteve na base da construo de vrias correntes do ecofeminismo.12

    Londa Schiebinger13 investigou como as categorias sexuais transpostas para o reino animal, qualificaram a taxonomia, particularmente, mas no s, no trabalho de Lineu. Os mamferos foram demarcados dos outros animais, entre 11 As anlises feministas desta e de outras obras de Bacon mostram como ele baseou seus modelos da cincia inglesa moderna e do poder da cincia, em contraposio cultura cientfica considerada com caractersticas afeminadas da Frana, ou em oposio aos princpios alqumicos de complementaridade e, no de dominao de opostos. Alm dos trabalhos de Evelyn Fox Keller e Londa Schibienger, ver entre outros LLOYD, Elisabeth, A. Reason, Science and the Domination of Matter. In: FOX KELLER, Evelyn and LONGINO, Helen. (eds.) Feminism and Science. Op.cit., pp.41-53. 12 MERCHANT, Carolyn. The Death of Nature: Women, Ecology, and the Scientific Revolution. New York, Harper &Row, 1980. 13 SCHIEBINGER, Londa. Natures Body. Gender in the Making of Modern Science. Boston, Beacon Press, 1993. Ver a esse respeito, especialmente o captulo 2: Why Mammals are called Mammals.

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    outros aspectos, por aquele que prevaleceu: a presena de glndulas mamrias, ou seja, pelas mes amamentadoras. O Homo sapiens por contraste se distingue dos outros mamferos por sua inteligncia. As decorrncias dessa estrutura taxonmica nas percepes de gnero so bvias. A autora sugere que a assimetria engendrada em mamferos e Homo sapiens foi um dos suportes da aceitao dessa controversa classificao taxonmica.

    Considerando o papel central que as metforas ocupam na teoria literria, Nancy Stepan que bem conhecida dos(as) historiadores(as) das cincias no Brasil aponta como este papel, bem como o das analogias que elas mediam nas teorias cientficas ainda pouco discutido. Como as metforas integram a prpria lgica da cincia, e ns aprendemos a ver o mundo cientificamente atravs delas, Nancy Stepan considera necessrio que se avance uma teoria crtica sobre as metforas em cincias, no porque elas sejam necessariamente erradas, mas porque elas so essencialmente poderosas.14

    A objetividade da cincia outro tema que as tericas feministas perseguem, desde que se levantou alguma suspeita de que objetividade poderia ser uma palavra em cdigo para dominao.

    E aqui se situam os pontos de maior distanciamento e maior convergncia entre os estudos feministas e os estudos sociais das cincias, o que nem sempre facilita o entendimento das divergncias freqentemente afirmadas pela literatura feminista, e pouco tratadas pelos tericos dos estudos sociais das cincias. 14 STEPAN, Nancy Leys. Race and Gender: The Role of Analogy in Science. ISIS 77, 1986, pp.261-277. Nancy Stepan a autora de Gnese e Evoluo da Cincia Brasileira. Oswaldo Cruz e a poltica de investigao cientfica e mdica. Rio de Janeiro, Arte Nova, 1976, um dos primeiros livros que abrem a possibilidade para se discutir a existncia de atividades cientficas nos pases no norte-atlnticos.

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    Os social studies of science emergiram h mais de vinte anos, dos trabalhos de David Bloor, Barry Barnes, Michael Mulkay, como uma prtica de anlise das cincias, particularmente britnica. Essa rea disciplinar, hoje internacionalizada e institucionalizada, caracteriza-se por uma prtica interdisciplinar que tem praticamente levado invisibilidade as fronteiras entre Histria, Sociologia, Filosofia das Cincias.

    E, ao mesmo tempo que tem atrado a ateno e a ira de antroplogos/as, literatos/as, tericas feministas, cientistas, muitos dos caminhos recentes da histria e da filosofia das cincias tm sido fundamentalmente moldados pelas possibilidades abertas ou pelos problemas colocados por este tipo de estudos.

    No nos deteremos aqui na variedade de abordagens, nas particularidades, nas diferentes nfases adotadas, nas divergncias desse campo de entendimento das cincias.15 Apenas salientamos que estes estudos romperam com a dicotomia dos aspectos contextuais e cognitivos dos processos de construo das cincias, presentes nos estudos da Histria das Cincias desde os anos de 1930. Transformaram radicalmente a noo estabelecida de que a cincia tivesse qualquer tipo de status epistemolgico especial, superior, racional e, portanto, universal. 15 Este campo de estudos identificado como sociologia do conhecimento cientfico, ou construcionismo social, aos quais se somaram tradies fenomenolgicas, etnometodolgicas, tcnicas semiticas e da etnografia antropolgica para anlise das cincias, j contam com diversos trabalhos de sistematizao. Ver por exemplo: VESSURI, Hebe Maria Cristina. Perspectivas recientes en el estudio social de la ciencia. INTERCINCIA 16(2), 1991, pp.60-68; e SHAPIN, Steven. Here and Everywhere: Sociology of Scientific Knowledge. Annual Review of Sociology 21, 1995, pp.289-321, em que estamos nos baseando nas consideraes sobre o tema, que se seguem.

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    Os estudos sociais das cincias se propem a explicar de maneira causal a existncia de todo tipo de conhecimento. Entendendo que, por princpio, todas as possveis expresses da produo de conhecimentos so construes sociais, negociadas, estes novos estudos de forma simtrica, imparcial e reflexiva buscam explicar todo tipo de conhecimento, abandonando categorias de anlise como veracidade, falseabilidade, racionalidade versus irracionalidade e seus juizos de valor.16

    Nas palavras de Helen Longino17, a abordagem construcionista social demanda que abandonemos nossa obsseso com a verdade e a representao. Empregando uma ampla gama de pontos de vista epistemolgicos, seus proponentes so unnimes em rejeitar a idia de que a cincia objetiva ou que nos d um ponto de vista sem preconceitos sobre o mundo real.

    Sem dvida aqui se coloca um dos pontos de distanciamento bsico entre algumas das teorias feministas de crtica s cincias e essas abordagens. Que a cincia no nos d um ponto de vista sem preconceitos sobre o mundo real, a maioria das tericas feministas concorda, mas a questo que as feministas norte-americanas crticas das cincias naturais mantm, poderia se colocar em termos de como rejeitar o objetivismo sem cair no que consideram, como a maioria dos crticos dos social studies, a armadilha do relativismo.

    Tratando objetividade sob um ponto de vista cognitivo, Evelyn Fox Keller falou em objetividade dinmica o no controle da natureza, e sim a interao com a natureza. 16 BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery. (1976). Chicago, Univ., Chicago Press (2nd ed.), 1991. 17 LONGINO, Helen. Science as Social Knowledge. Values and Objectivity in Scientific Inquiry. Princeton, Princeton University Press, 1990. Agradeo a Silvia Figueira por me chamar a ateno sobre o importante trabalho dessa autora.

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    Mantendo seu respeito s conquistas da cincia moderna e sua antipatia ao relativismo, no chega a propor uma substituio da cincia dominante, mas prope uma tolerncia entre a diversidade da cincia.18 Helen Longino props resolver essa aparente inconsistncia, afirmando que a objetividade dinmica produziria no uma, mas sim vrias perspectivas tericas alm de vrios interacionismos.

    Essa filsofa feminista19, aproximando as teorias feministas de correntes crticas emergentes em filosofia das cincias, revisa o conceito de objetividade e introduz o conceito de localidade, em uma tentativa que eu identifico como integradora de aspectos cognitivos e contextuais da produo cientfica, embora ainda mantenha a distino entre estes aspectos. Partindo da rejeio, de uma vez por todas, da noo de que levantamentos de dados por si ss tecem a rede do conhecimento, sem necessitar quaisquer costuras, a autora avana na proposio de construo de redes de conhecimentos que resultem da reflexo sobre campos particulares de pesquisa. Redes que tentem entender exatamente o que no dito, quais so as assertivas fundamentais e como estas influenciam o curso das investigaes.

    Supondo as intervenes feministas locais, em reas especficas de pesquisa, Helen Longino prope que no se trata de encontrar um modelo feminista de anlise, melhor ou mais correto, mas sim de assumir diferentes modelos gerados a partir de diferentes posies de sujeitos que possam se articular. O ponto de dilogo dessa perspectiva se situaria no na produo de um consenso geral e universal, mas na possibilidade de compartilhar modelos que permitissem interaes. 18 FOX KELLER, Evelyn. Reflections on Gender and Science. Op.cit., especialmente o captulo 6. 19 LONGINO, Helen. Science as Social Knowledge. Values and Objectivity in Scientific Inquiry. Op.cit.

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    Na defesa de um ponto de vista revisto e ampliado para incorporar posicionamentos dos multi-marginalizados (incluindo raa e etnia, povos ex-coloniais em suas anlises), Sandra Harding20 abandonou a noo de existir uma nica posio privilegiada de conhecimento. Considerando que a noo de objetividade tem uma histria poltica e intelectual importante, a autora continua propondo reter feies centrais do conceito de objetividade, agora entendendo-o como objetividade forte. Maximizar a objetividade, seria ento considerar o sujeito do conhecimento no mesmo plano crtico, causal, reflexivo do objeto desse conhecimento, o que parece ser uma aproximao do programa forte da sociologia do conhecimento de David Bloor.

    Pensando em multiplicidades e localidades, para este ponto de vista, todas as tentativas de conhecimento seriam socialmente mediadas e algumas dessas localizaes sociais, objetivas, seriam melhores do que outras. Esta condio como ponto de partida para o conhecimento desafiaria algumas das hipteses mais fundamentais da viso de mundo cientfica e do pensamento ocidental. Sua rigorosa lgica da descoberta intencionada, maximizaria a objetividade dos resultados da pesquisa para produzir conhecimento, que poderia ser mais voltado para os marginalizados do que para o uso somente dos grupos dominantes em seus projetos de administrar e gerenciar a vida dos marginalizados.21

    Enfatizando vises pluralistas, as tericas feministas vm procurando superar pontos de vista dicotmicos no entendimento das cincias naturais, que opem concepes de subjetividade e objetividade, construindo como alternativa para 20 HARDING, Sandra. Rethinking Standpoint Epistemology: What is Strong Objectivity? In: FOX KELLER, Evelyn and LONGINO, Helen. (eds.) Feminism and Science. Op.cit., pp.235-248. 21 Id., ib., p.241.

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    os pontos de vista tradicionalmente idealizados de nenhum lugar, um entendimento do conhecimento situado, incorporado social, temporal e espacialmente. Em uma frase de Donna Haraway tomada como sntese, e repetida inmeras vezes, objetividade feminista significaria simplesmente conhecimentos situados. E, conhecimentos situados reforam a necessidade de perspectivas parciais requerendo que o objeto do conhecimento seja visto ao mesmo tempo, como ator e agente.22

    Donna Haraway a historiadora da cincia que dissecou a primatologia do sculo XX. Usando tcnicas analticas da teoria do discurso para apoiar sua leitura da narrativa cientfica desse campo disciplinar, assume, segundo Evelyn Fox Keller e Helen Longino, uma posio desestabilizadora para o entendimento da cincia. Insatisfeita com conceitos de objetividade propostos pelas teorias feministas da perspectiva e empiricistas, Donna Haraway ctica em relao a uma cincia epistemologicamente superior, sem assumir perspectivas construcionistas. Essa autora enfatiza as fraturas, as parcialidades e a importncia da viso desestabilizadora, no apenas para os novos modelos de trabalho em gnero em cincias, mas tambm em novos modelos para anlises polticas das cincias. Para ela a cincia, que no unvoca, no s legitimizadora da dominao, mas tambm um recurso para os que resistem.23

    22 Ver o artigo traduzido de HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questo da cincia para o feminismo e o privilgio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5) 1995, pp.7-41. Uma das principais obras dessa autora HARAWAY, Donna. Primate Visions: Gender, Race, and Nature in the World of Modern Science. New York, Routtledge & Kegan Paul, 1989. 23 Cf. FOX KELLER, Evelyn and LONGINO, Helen. (eds.) Feminism and Science. Op..cit.

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    Se no se trata, explicita ou implcitamente, da manuteno do conceito estabelecido de objetividade cientfica, no possvel concordar sobre o porqu da insistncia em manuteno de um conceito to carregado de significados como o de objetividade das cincias, para significar toda uma nova leitura e uma abertura de possibilidades e multiplicidades de anlises emergentes a partir das noes de conhecimentos situados.

    Tanto as feministas que defendem o ideal de objetividade ou aquelas que se aproximam de epistemologias que reconhecem o carter fragmentrio e situado do conhecimento, insistem em caracterizar a objetividade como o ideal central das cincias.

    Naomi Oreskes ampliando este debate apresenta uma perspectiva iluminadora para a reflexo sobre as mulheres e/ou gnero nas cincias naturais. Ela pergunta se a objetividade de fato um valor central da cincia. Sugere que o problema da objetividade na cincia e suas decorrncias quanto a um mais amplo entendimento da questo das mulheres, seja reinterpretado em um contexto mais abrangente que incorpore a questo do herosmo cientfico.24

    As cincias modernas tm sido caracterizadas por duas imagens complementares e contraditrias. De um lado,o homem srio de avental branco no laboratrio assptico de pronto uma imagem que evoca a objetividade como valor central da cincia. Do outro lado do espelho do observador desincorporado, desapaixonado, est a imagem do heri, do aventureiro, essencialmente apaixonado, que enfrenta perigos tanto na selva como no laboratrio, o cientista de campo, cuja atividade cientfica lhe cobra inclusive preparo fsico. Imagem essa menos conectada com qualquer virtude particular atribuda cincia, 24 ORESKES, Naomi. Objectivity or Heroism? On the Invisibility of Women in Science. OSIRIS: Science in the Field 11, 1996, pp.87-113.

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    mas muito mais fortemente associada aos ideais de masculinidade da cultura moderna europia e muito pouco ainda considerada mesmo nesses estudos feministas de crtica s cincias naturais. Cincias essas, no to exatas, que se forjaram e tm em muito sua razo de ser, suas localidades de gerao de conhecimentos no campo.

    Em algumas de suas ltimas tendncias, trabalhos tericos e empricos no mbito dos estudos sociais das cincias tambm tm se debruado sobre as localidades fisicas do fazer cientfico. E aqui os pontos de contato com as tericas feministas so evidentes. Como reafirma Shapin, as grandes narrativas da universalidade, entendida como inerente s cincias, haviam desviado a ateno do lugar, do local, e a cincia independente de qualquer contexto local, tornou a localidade uma marca das formas culturais inferiores. Revertendo este quadro, o que se passa a afirmar e, portanto, investigar que a cincia inegavelmente feita em

    stios especficos e carrega de modo discernvel as marcas desses locais de produo, sejam estes stios concebidos como o espao pessoal cognitivo de criatividade, o relativamente privado espao da pesquisa de laboratrio, os limites fsicos impostos pela geografia natural ou construda quanto s condies de visibilidade e acesso, os espaos sociais locais de municipalidades, regio, nao ou as contextualidades tpicas da prtica, equipamentos e campos de fenmenos.25

    25 SHAPIN, Steven. Here and Everywhere: Sociology of Scientific Knowledge. Op.cit., pp.306.

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    As identificaes destes pontos de vista com os conhecimentos situados de Donna Haraway e com as preocupaes localistas de vrias tericas feministas em suas crticas s vises de cincia racionalista e descorporificada, so evidentes. Distncias maiores, explica Shapin, se mantm com as tericas que continuam identificando a cincia ps-sculo XVII como um todo, como essencialmente masculina. Uma vez que as crticas dos estudos sociais das cincias se voltam exatamente para questionar aqueles que tomam pela essncia permanente das coisas certos hbitos sociais ou cognitivos surgidos ontem.26

    Sugerimos uma outra leitura das marcas de gnero inegveis que a cincia ocidental carrega consigo para todo canto e que as tericas feministas to extensivamente apontam, exatamente no quadro de uma das problemticas equacionada muito bem pelo prprio Shapin.

    Um dos problemas centrais que os estudos sociais das cincias geraram e com o qual se confrontam agora refere-se a como interpretar as relaes das sensibilidades localistas os stios especficos onde o conhecimento cientfico construdo e a eficincia nica com a qual tal conhecimento parece viajar, carregando marcas definidoras desses stios de produo e transladando-as de um lugar para outro. No teria sido gnero, uma dessas marcas e no mereceria ser investigado?

    E por que at hoje questo de gnero e cincias no mereceu maiores nfases pelo menos entre os principais tericos dos estudos sociais das cincias? Shapin, neste artigo que estamos mencionando, se confessa incapaz de resumir um dos enfoques acadmicos modernos mais heterogneos e politicamente engajados como os estudos feministas das 26 LATOUR, Bruno. Os objetos tm histria? Encontro de Pasteur com Whitehead num banho de cido ltico. MANGUINHOS, vol. II (1), Mar-jun 1995, pp.9.

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    cincias. Isso uma questo. Mas por que pergunta Sally Kohlstedt, no artigo j mencionado, chamando ateno para as ambigidades presentes no reconhecimento dos estudos feministas como campo disciplinar s h uma meno oblqua sobre as mulheres em sua importante obra ganhadora de prmios, sobre os laboratrios particulares domsticos no sculo XVII?.

    Bruno Latour27,um dos expoentes no campo dos estudos sociais das cincias, para escapar Histria Social das Cincias e ao construcionismo social (suas maiores crticas so a David Bloor, H. Collins e Steven Shapin), estendeu o princpio da simetria, que considerava restrito, para um princpio de simetria generalizada. Explica que no se trata mais de igualar oportunidades de vencedores e vencidos, cincias vencidas e sancionadas proibindo igualmente aos dois grupos o acesso ao real. A simetria generalizada permitiria a todos os grupos construrem simultnea e simetricamente sua realidade natural e social. Estender o princpio da simetria questo da natureza e da sociedade permitiu a esse autor fazer aparecer um novo objeto: o coletivo de humanos e de no-humanos. Aspectos com os quais, inclusive, vrias feministas, como Donna Haraway, se identificam.

    Mas mesmo tendo considerado a relevncia dos no-humanos nas redes scio-tcnicas, Latour, que analisa com muita clareza os meandros da prtica cientfica, parece ainda no ter encontrado nenhum significado para as mulheres no laboratrio, ou incorporado a questo de gnero, ou mesmo sua crtica, em suas anlises acuradssimas da cincia e de suas viagens.

    Apontar esses pontos de contato e distanciamento entre esses dois campos disciplinares, por si ss suficientemente polmicos, que vm ampliando em muito nossa compreenso 27 Id., ib., p.10.

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    sobre as cincias ocidentais, tem aqui o sentido nico de que venhamos a

    ser capazes de pensar experincias divergentes e interpret-las em conjunto, cada qual com sua pauta e ritmo de desenvolvimento, suas formaes internas, sua coerncia interna e seu sistema de relaes externas, todas elas coexistindo e interagindo entre si.

    E isto, porque a ns importa focar a ateno no ponto

    claramente demarcado por Said:

    Hoje escritores e estudiosos do mundo ex-colonizado tm imposto suas diversas histrias, tm mapeado suas geografias locais nos grandes textos cannicos do centro europeu [eu diria norte-atlntico]. E dessas interaes sobrepostas, mas divergentes, esto comeando a aparecer as novas leituras e conhecimentos.28

    Pensando as sensibilidades localistas e as marcas de gnero no Brasil Em paralelo ou inspirado em maior ou menor grau nos

    estudos sociais das cincias, todo um movimento de historiadores/as, filsofos/as, socilogos/as, fsicos/as, mdicos/as, bilogos/as e at gelogos/as consolidou-se nos ltimos dez anos, em diversos pases e tambm na Amrica Latina, particularmente reunidos no mbito da Sociedade Latino 28 SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. So Paulo, Cia. das Letras. 1995, pp.66 e 89.

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    Americana de Historia da Cincia e da Tecnologia.29 Apropriando-se criativamente de seus marcos conceituais e assumindo-os em uma perspectiva de motivao prpria foram definidos novos objetos de estudo: a formao de tradies cientficas locais, nacionais, regionais e as contradies dos processos de confronto, contextualizao e integrao das cincias ocidentais em pases fora do eixo norte-atlntico.

    Muitos desses estudos tm como ponto de partida a conscincia do que tem significado at hoje, para as Histrias das Cincias dos pases no norte-atlnticos, a transferncia acrtica de modelos conceituais, institucionais ou de anlises de experincias realizadas em contextos dspares dos nossos.

    Diferentemente da tradio norte-americana, e das primeiras dcadas do sculo no Rio de Janeiro, em que mulheres naturalistas e engenheiras tiveram um papel profissional e poltico atuante30, os movimentos feministas desde o final da dcada de 1970, no Brasil, no incorporaram ou geraram qualquer tipo de contingente expressivo de mulheres que se dedicassem ou viessem a se dedicar s cincias naturais e exatas. certo que o nmero de mulheres nessas carreiras aumentou, mas isso no significou qualquer mudana nas cincias, nem tampouco a criao de tradies de anlise engendradas sobre as cincias.

    No tratamento da questo mulheres/gnero e cincias na Histria das Cincias no Brasil, muita coisa est ainda por ser feita, comeando talvez pela sistematizao exaustiva do que

    29 Contribuindo no mesmo sentido, esto entre outros, os trabalhos englobados em PETITJEAN, Patrick et alii. Cincias & Imprios. Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, 1992, ou LAFUENTE, A. et alii (orgs.) Mundializacin de la ciencia y cultura nacional. Madrid, Doce Calles, 1993. 30 COSTA, Vera Rita. Perfil: Carmem Portinho. Cincia Hoje, maro de 1996.

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    poderia existir relacionado ao tema, numa rea de estudos que se caracteriza pela disperso de suas poucas publicaes.31

    Mas, para isso, seria preciso romper com vises que negam a existncia de atividades cientficas no pas nos sculos passados. Se no Brasil no se fez cincia entenda-se, se os homens no fizeram cincia, que dizer das mulheres, cujo acesso ao ensino superior, por exemplo, s foi permitido exatamente a partir de 1879.32

    Mesmo pensando em excees, quanto biografia de mulheres cientistas, no dispomos ainda sequer de trabalhos de maior envergadura que contemplem a contribuio de Bertha Lutz (1894-1976) s cincias naturais no pas. Os primeiros estudos feministas de meados da dcada de 1970, de Rachel Sohiet e Branca Moreira Alves33 sobre esta zologa, que foi uma pioneira do feminismo no Brasil, centraram-se no na sua prtica de pesquisadora cientfica no Museu Nacional, mas sim na sua atuao poltica em prol da emancipao feminina, sua

    31 No Brasil no existe, ainda, nenhuma publicao que se assemelhe ao peridico norte-americano Signs, que, desde o incio da dcada de 1980, vem sendo um dos polos de aglutinao dos estudos feministas sobre as cincias naturais. A ttulo de referncia, a publicao de LASLETT, Barbara et alii. Gender and Scientific Authority. Chicago, The University of Chicago Press. 1996, rene uma coleo bsica de artigos publicados nesse peridico. 32 Embora um curso de parteiras tivesse sido criado em 1832, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, s em 1879, com a Reforma Leoncio de Carvalho, que se permite no artigo 24 do regulamento do Decreto 7.247, de 19 de abril de 1879, a liberdade e o direito da mulher frequentar os cursos das faculdades e obter um ttulo acadmico. Colleo de Leis do Brasil. 1879. 33 SOHIET, Rachel. Bertha Lutz e a asceno social da mulher, 1919-1937. Dissertao de Mestrado. Inst.Cincias Humanas Univ. Federal Fluminense. MOREIRA ALVES, Branca. Em busca da nossa histria: o movimento pelo voto feminino no Brasil 1919/1932, fatos e ideologia. Dissertao de Mestrado. IUPERJ. 1977.

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    luta pelo voto feminino, mudanas na legislao trabalhista frente da Federao Brasileira para o Progresso Feminino.

    Mas como as mulheres praticamente no constam da Histria das Cincias no Brasil34, no dispomos de uma vasta produo sobre o tema que conte com tradies construdas desde o fim do sculo passado, como nos Estados Unidos ou em outros pases europeus. Mas isso no significa que se trata de comear do zero.35 Pelo contrrio, trata-se sim de recuperar, avanar e criar novas tradies, que nos permitam tornar visveis as mulheres e as relaes de gnero em nossos fazeres cientficos.

    Assumimos como nossa aqui, uma das urgncias36 que Evelyn Fox Keller e Helen Longino reconhecem como necessria para que os estudos de gnero e cincias no permaneam incompletos, sem uma profunda compreenso de como as interconeces entre raa, gnero e ideologias colonialistas se manifestam nas cincias. Trata-se da construo de uma comunidade acadmica feminista multicultural e 34 LOPES, Maria Margaret. A Cincia no uma jovem de costumes fceis: aspectos das relaes de gnero na Histria da Cincia no Brasil. Cadernos IG/UNICAMP, vol. 2, n 1, 1992, pp.90-107. Neste artigo fizemos uma reviso das menes participao de mulheres nas principais coletneas sobre Histria das Cincias no Brasil. 35 Sobre uma bibliografia parcial da produo brasileira que contempla aspectos que poderamos relacionar Histria das Cincias, tais como mulheres-naturalistas, estudos de indicadores cientficos, presena e barreiras nas Universidades, a produo dos ncleos universitrios de gnero, etc., ver o artigo: LOPES, Maria Margaret. Mulheres e Cincias no Brasil: uma histria a ser escrita. Revista do IEB (no prelo), que tambm coloca a questo dos discursos do catolicismo ultramontano e do cientificismo brasileiro, do final do sculo XIX, sobre as mulheres. 36 A outra urgncia se refere ampliao dos estudos crticos da cincia para alm das reas de cincias naturais e biolgicas, particularmente para os estudos sobre as cincias fsicas.

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    multinacional que, refletindo sobre gnero e cincias, traga novas questes, novas perspectivas, novas transformaes para esse campo de estudos to provocativo e desafiador.

    E, para terminar, uma explicao necessria para o ttulo desse artigo, que tomo como definidor de uma postura metodolgica, que na prtica acarreta em somar outros complicadores em nossa j longa lista, quando pensamos em considerar mulheres, gnero e Histria das Cincias no pas.

    Apropriei-me do aventureira do texto de Mariza Corra, citado em epgrafe, porque essa apreenso feminista da dubiedade com que se caracterizou a ornitloga Emlia Snethlage a primeira naturalista a dirigir um Museu de Histria Natural na Amrica Latina capta muito bem um dos sentidos que eu identifico com o que apontaram Naomi Oreskes e Maria Ligia Coelho Prado37. Aos homens que enfrentaram as agruras do campo em prol da cincia confere-se o atributo de heris, s mulheres, quanto muito o de aventureiras. No contexto das lutas de independncia na Amrica Latina, quando no h jeito e preciso oficializar histria de mulheres, aquelas que haviam se aventurado a lutar, haviam sido rebeldes, insubordinadas, desobedecido maridos, desafiado instituies e metrpoles, fugido com amantes, transformam-se, atravs de biografias domesticadas, em modelos exemplares de esposas e mes, e, acima de tudo, a sim, em patriticas heronas.

    E at por que talvez no sejamos heronas e a figura da cientista acima de qualquer suspeita no existe (embora muitos ainda acreditem que a do cientista pode existir), as mulheres de cincias compartilham todas e mais algumas das contradies, dubiedades e conflitos que caracterizam as prticas cientficas. Nem todas foram necessariamente esposas devotadas que 37 COELHO PRADO, Maria Ligia. Em busca da participao das mulheres nas lutas pela independncia poltica da Amrica Latina. Revista Brasileira de Histria 12 (23/24), set 1991/ago1992, pp.77-90.

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    auxiliaram seus maridos, os quais vrias vezes lhes roubaram os crditos dos trabalhos cientficos; ou filhas queridas de pais famosos que lhes abriram portas nas instituies. Vrias podem ter transcendido sua sexualidade exatamente por sua completa identificao com as marcas masculinas da cincia, contraditrias com suas manifestaes de gnero femininas; vrias podem ter sido amantes de seus professores ou colegas de trabalho, e, muitas, vezes so lembradas exatamente por isso, tendo que pagar, ainda, altos preos por suas ligaes perigosas. Mas todas foram e tm sido mulheres que, explicitamente ou no, assumidamente ou no, em suas trajetrias pessoais, coletivas, cognitivas, tm ousado de alguma forma se aventurarem a abrir novos caminhos nas cincias.

    Representativa tambm desta postura que pensamos deve estar presente em nossos estudos sobre mulheres/gnero e cincias no Brasil, foi a atitude de Bella Abzug, na cerimnia de encerramento do Women Caucus, preparatrio para a ECO-92, realizada em Miami em 1991, que me marcou profundamente.

    A senadora norte-americana uma das figuras centrais na articulao da internacionalizao do movimento de mulheres desse final de dcada interrompeu o discurso de um dos principais representantes da ONU, na organizao da Conferncia, a sua segunda palavra. Quando este homem falou ladies and Bella Abzug tomou a palavra, dizendo que ali nem todas ns ramos ladies e nem tampouco gostaramos de ser confundidas como tal. ramos, sim, com nossas profundas diferenas de feminismos, raas, etnias, credos, opes sexuais, polticas, cientficas, com todas as contradies que nos unificavam naquele momento, ramos, todas, mulheres, refletindo e lutando por novas maneiras de se entender, viver e transformar o mundo, e queramos ser consideradas como tais.