avaliação do estudo tipo caso-controle na pesquisa...

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Hev. Paul. Med. IIlS (2): 96-99, 1'Jl!7 v Atualização Avaliação do estudo tipo caso-controle na pesquisa médica RICARDO DE CASTRO CINTRA SESSO 1, ADAUTO CASTELO FILH0 2 , Luis FRANCISCO MARCOPIT0 2 ALVARO NAGIB ATALLAH 3 , CLAUDIO TORRES DE MiRANDA 4 Os autores fazem uma avaliação crítica do emprego de estudos tipo caso-controle (retrospectivos) na pesquisa clinico-epiderniológica. Algumas de suas vantagens e desvantagens são analisadas. Orienta- ção prática na leitura de, estudos caso-controle é fornecida . Unitermos: Estudo caso-controle. Estudo retrospectivo. Epidemiologia clínica. Uniterms: Case-control study. Retrospective study. C1inical epidemiology. INTRODUÇÃO O estudo tipo caso-controle é um tipo de estudo re- trospectivo, que tem sido salvo de preconceitos e fre- qüentes críticas por parte de alguns pesquisadores médi- cos, devido à sua suscetibilidade aos chamados "bias" ou tendenciosidades. No entanto, quando apropriada- mente efetuado, pode fornecer informações valiosas, co- mo fica evidenciado pelo crescente emprego, recente- mente, desse tipo de método, na literatura interna- cional(2). Neste tipo de investigação clinico-epiderniológica, compara-se um grupo de pacientes que realmente pos- suem a doença ou atributo de interesse em estudo (ca- sos), com um grupo que sabidamente não possui a doen- ça ou atributo de interesse em estudo (controles). Investi- ga-se então, em cada grupo, a freqüência de fatores su- postamente de risco e que estariam associados ao proces- so de doença. Característica peculiar desta metodologia é Trabalho do Grupo Interdísciplinar de Epidemiologia Clínica (GRI- DEC). Departamento de Clínica Médica, Escola Paulista de Medicina. Aprovado para publicação em 28/4/87. I. Médico, pesquisador. 2. Prof. Assistente, Depto. Clín. Médica. 3. Prof. Adjunto, Depto. Clãi. Médica. 4. Prof. Assistente, Depto. Psiquiatria. 96 o fato de que os casos possuem o atributo de interesse, ao mesmo tempo em que os possíveis fatores de risco são medidos; tal peculiaridade pode induzir a erros de inter- pretação, como discutiremos a seguir. Por exemplo: tem sido sugerido que a ingestão de alho na dieta, devido à sua ação redutora da trigliceridemia e da colesterolemia, poderia proteger pacientes de doença cardíaca coronaria- na (1). Um estudo caso-controle sobre a int1uência da in- gestão de alho sobre coronariopatia compararia a fre- qüência de ingestão regular de alho em um grupo de indi- víduos com coronariopatia (casos) e em um grupo de in- divíduos sem doença cardíaca isquêmica (controles). O atributo de interesse, coronariopatia, já está presente nos casos e é o ponto de partida na seleção de casos e contro- les; esta característica pode afetar de diversas formas o inquérito sobre a ingestão de alho no passado, que é um suposto fator protetor para a doença. Por exemplo, pa- cientes coronariopatas podem ter sido melhor examina- dos no passado e eventualmente terem sofrido modifica- ções de sua dieta; pacientes cardíacos, pelo simples fato de estarem doentes, podem estar mais motivados a se lembrar de fatos passados que se associem à doença atual (6). Esta estratégia retrospectiva deve ser diferen- ciada de outra abordagem na qual um grupo de indiví- duos que ingere alho na dieta regularmente e outros que não são identificados e acompanhados ao longo do tem- po para se avaliar o aparecimento de coronariopatia. Tal Rev. Paul Med 105 (2) _. Março/Abril. 1987

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Hev. Paul. Med. IIlS (2): 96-99, 1'Jl!7

v

Atualização

Avaliação do estudo tipo caso-controlena pesquisa médica

RICARDO DE CASTRO CINTRA SESSO 1, ADAUTO CASTELO FILH02, Luis FRANCISCO MARCOPIT02

ALVARO NAGIB ATALLAH3, CLAUDIO TORRES DE MiRANDA4

Os autores fazem uma avaliação crítica do emprego de estudos tipo caso-controle (retrospectivos)na pesquisa clinico-epiderniológica. Algumas de suas vantagens e desvantagens são analisadas. Orienta-ção prática na leitura de, estudos caso-controle é fornecida .•

Unitermos: Estudo caso-controle. Estudo retrospectivo. Epidemiologia clínica.

Uniterms: Case-control study. Retrospective study. C1inical epidemiology.

INTRODUÇÃO

O estudo tipo caso-controle é um tipo de estudo re-trospectivo, que tem sido salvo de preconceitos e fre-qüentes críticas por parte de alguns pesquisadores médi-cos, devido à sua suscetibilidade aos chamados "bias"ou tendenciosidades. No entanto, quando apropriada-mente efetuado, pode fornecer informações valiosas, co-mo fica evidenciado pelo crescente emprego, recente-mente, desse tipo de método, na literatura interna-cional(2).

Neste tipo de investigação clinico-epiderniológica,compara-se um grupo de pacientes que realmente pos-suem a doença ou atributo de interesse em estudo (ca-sos), com um grupo que sabidamente não possui a doen-ça ou atributo de interesse em estudo (controles). Investi-ga-se então, em cada grupo, a freqüência de fatores su-postamente de risco e que estariam associados ao proces-so de doença. Característica peculiar desta metodologia é

Trabalho do Grupo Interdísciplinar de Epidemiologia Clínica (GRI-DEC). Departamento de Clínica Médica, Escola Paulista de Medicina.Aprovado para publicação em 28/4/87.

I. Médico, pesquisador.

2. Prof. Assistente, Depto. Clín. Médica.

3. Prof. Adjunto, Depto. Clãi. Médica.4. Prof. Assistente, Depto. Psiquiatria.

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o fato de que os casos possuem o atributo de interesse, aomesmo tempo em que os possíveis fatores de risco sãomedidos; tal peculiaridade pode induzir a erros de inter-pretação, como discutiremos a seguir. Por exemplo: temsido sugerido que a ingestão de alho na dieta, devido àsua ação redutora da trigliceridemia e da colesterolemia,poderia proteger pacientes de doença cardíaca coronaria-na (1). Um estudo caso-controle sobre a int1uência da in-gestão de alho sobre coronariopatia compararia a fre-qüência de ingestão regular de alho em um grupo de indi-víduos com coronariopatia (casos) e em um grupo de in-divíduos sem doença cardíaca isquêmica (controles). Oatributo de interesse, coronariopatia, já está presente noscasos e é o ponto de partida na seleção de casos e contro-les; esta característica pode afetar de diversas formas oinquérito sobre a ingestão de alho no passado, que é umsuposto fator protetor para a doença. Por exemplo, pa-cientes coronariopatas podem ter sido melhor examina-dos no passado e eventualmente terem sofrido modifica-ções de sua dieta; pacientes cardíacos, pelo simples fatode estarem doentes, podem estar mais motivados a selembrar de fatos passados que se associem à doençaatual (6). Esta estratégia retrospectiva deve ser diferen-ciada de outra abordagem na qual um grupo de indiví-duos que ingere alho na dieta regularmente e outros quenão são identificados e acompanhados ao longo do tem-po para se avaliar o aparecimento de coronariopatia. Tal

Rev. Paul Med 105 (2) _. Março/Abril. 1987

FIg. 1 - Estudo tipo caso--controle versus coorte

para investigar o possívelefeito da dieta com alho

sobre coronariopatia

Fig. 2 - Tabela 2x2mostrando como a

associação entre umaexposição e doença é

calculada para estudoscaso-controle e coorte

lnOlvlOuOS com n v uaselevada ingestêo ~ comde alho coronario atia

indivíduos com indivíduoselevada ingestão ~ semde alho coronariopatia

ESTUDO COORTE

indivlduos comalta lnqe s t ão

de alho

Passado Tempo Zero-.••••••.------ Inicio do Estudo --- .•~••.Futuro

CASOS CONTROLES

EXPOSTOS A B A + B

NAo EXPOSTOS c o c , O

A + C B + O

RISCO RELATIVO

A (A + B)

C (C + O)

estudo é conhecido como prospectivo, longitudinal oucoorte (figura 1).

A pergunta básica quando se faz um estudo caso--controle é se há maior risco ou não de desenvolver uma•doença em indivíduos expostos aos fatores sob investiga-ção(6). A figura 2 mostra o tipo de tabela 2 x 2 normal-

aev. Paul. Med. 105121 - Março/Abr~. 1987

<ocos RATIO".

A (A + C)C (A + C) • A / C • AOB tB + b) tr"T1J-rn;

'r (tl b)

mente empregada na análise dos dados. Retomando oexemplo citado anteriormente, conhecemos no início doestudo o total de casos (A + C) de indivíduos com coro-nariopatia e o total de controles (B + O) de indivíduossem coronariopatia e retrospectivamente descobrimos afreqüência dos que ingerem regularmente" alho em cadagrupo (caselas A e B).

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Na análise estatística usa-se o chamado odds ratio,que compara a freqi.lência de exposição (dieta com alho)entre casos e controles. O odds ratio nada mais é queuma estimativa do risco relativo, que mede a incidênciarelativa de doença entre expostos e não expostos num es-tudo prospectivo. O risco relativo não pode ser calculadodiretamente em estudos tipo caso-controle, porque tantoos casos como os controles são selecionados a priori peloinvestigador, o que torna a freqi.lência da doença naamostra estudada diferente da freqüência real na popula-ção.

VANT AGENS DO ESTUDO TIPOCASO-CONTROLE (3,4)

É método adequado para estudos iniciais sobre testede novas hipóteses. Por ser rápido, eficiente e barato, éfreqüentemente empregado antes que estudos mais dis-pendiosos, como o prospectivo ou o randomizado con-trolado, sejam realizados. Amplamente conhecida é suautilidade no estudo de doenças raras. Dessa forma, o in-vestigador não fica limitado pela freqüência natural dadoença da população. Por exemplo, se fosse feito um es-tudo prospectivo sobre o risco do uso de estrógeno em100 mulheres com câncer endometrial, seria precisoacompanhar um grupo coorte de 10.000 mulheres napós-menopausa por cerca de 10 anos(4). Em contraste,várias dezenas de mulheres com câncer de endométriopodem ser rapidamente contactadas e entrevistadas numestudo retrospectivo. Outra vantagem é a exploração deefeitos de fatores causais ou prognósticos em doençascom longo período de latência (período entre exposição aum fator e a expressão clínica de seus efeitos patológi-cos). Por exemplo, é estimado que 15 ou mais anos po-dem passar antes que o efeito carcinogênico de váriosprodutos químicos se manifeste. É possível, ainda, es-tudar-se, ao mesmo tempo, diversos fatores de risco pos-sivelmente associados à doença em questão, o que seriaimpraticável no estudo prospectivo. Ressalte-se aindaque o estudo caso-controle é ético e permite estudo de hi-póteses que muitas vezes não são possíveis ser investiga-das em outros modelos de pesquisa.

DIFICULDADES NO ESTUDO TIPOCASO-CONTROLE (3,4 ,5)

1) Seleção de gruposCasos e controles serão comparáveis se tiverem tido

a mesma chance de serem expostos aos fatores em estu-do. Assim sendo, casos e controles devem ser representa-tivos de uma mesma população. Por exemplo, a oportu-nidade de terem recebido estrógeno na pós-menopausaserá maior em mulheres que fazem exame ginecológicoregularmente, visto'que estrógeno é freqi.lentemente pres-crito para sangramento e outros distúrbios hormonais

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nesse período. Os controles, neste exemplo, serão com-paráveis se tiverem tido similar experiência médica.

Na tentativa de se assegurar comparabilidade, casose controles podem ser pareados em relação a característi-cas como idade, raça, sexo, pois estes fatores estão fre-qüentemente associados, por si s6, à ocorrência da doen-ça. O pareamento melhora a eficiência de um estudo,mantendo constantes ou controlando fatores que se sa-bem relacionados ao atributo de interesse e que podemconfundir os resultados se ocorrerem desproporcional-mente nos grupos comparados. Por exemplo, suponha-mos que um pesquisador queira investigar a associaçãoentre o fumo e coronariopatia através de estudo caso--controle. Sabe-se que O· consumo de cigarros aumentacom a idade. Se porventura os casos tiverem média deidade de 50 anos e os controles de 30 anos, tal diferençapode per se justificar um achado de maior prevalência defumantes entre os casos (coronariopatas). Se efetuadocorretamente, o pareamento maximiza informações obti-das, pois reduz diferenças entre os grupos em relação aoutros determinantes da doença além daqueles conside-rados, e permite portanto uma análise mais sensível daassociação. Outra estratégia é usar mais de um grupocontrole a fim de evitar o erro sistemático decorrente deuso de apenas um grupo controle pouco comparável.

Cuidado deve ser tomado na obtenção de casos emcentros de referência terciários, que podem, por exem-plo, receber mais casos de câncer disseminado ou utilizarterapêuticas mais sofisticadas, o que tornaria tais casosdificeis de serem agrupados com outros (em estudos mul-ticêntricos) ou forneceria conclusões restritas a um grupolimitado de pacientes. Também deve ser tomada precau-ção em relação à escolha de controles; muitos investiga-dores acreditam que tendenciosidades ocorrem comqualquer grupo de controles hospitalizados e preferemum grupo controle retirado da população geral, não hos-pitalizada.

2) Tendenciosidade ("bias") na medida de exposi-ção

Vários problemas podem ocorrer: 1) a presença doresultado final pode diretamente afetar a medida da ex-posição. Por exemplo, foi postulado que o uso de estró-geno por mulheres na pós-menopausa estaria causalmen-te associado ao câncer endometrial. Embora a seqi.lênciade eventos, câncer endometrial levando a sangramentovaginal e este a administração de estrógenos, pareça ra-ra, ela representa um modo pelo qual a presença de umsintoma (sangramento vaginal) do atributo de interesse(câncer endometrial) pode levar ao descobrimento da ex-posição (administração de estrógenos). Ao contrário, aseqüência natural seria estrógenos (exposição) levandoao câncer (atributo final); 2) pessoas doentes podem re-cordar suas experiências passadas diferentemente das

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não doentes, visto que os primeiros estão mais alertas aopassado, procurando razões que expliquem seus infortú-nios. Este tipo de erro sistemático é muito comum nos es-tudos retrospectivos, mas talvez seja supervalorizado pe-los críticos da literatura; 3) os próprios pesquisadores,cientes da presença do atributo de interesse em estudo,em um dos grupos (casos), podem inconscientemente ounão conduzir a pesquisa para o objetivo desejado. Estatendenciosidade pode ser evitada por meio de estudo"duplo cego".

ORIENTAÇÃO PRÁTICA NA AVALIAÇÃO DE UMARTIGO

Uma vez que o estudo foi identificado como do tipocaso-controle, cabe perguntar o seguinte:

I) Os dados foram coletados de maneira confiável?Foi usado questionário (qual a sua validade?) ou infor-mação escrita de prontuários?

2) Se os dados eram baseados na memória dos pa-cientes, a tendenciosidade na lembrança foi avaliada? Os

p

autores tentaram estudar este fator, por exemplo, che-cando informações do questionário com as do prontuá-rio?

3) Quão semelhantes são os casos e controles? Sãorealmente provenientes de uma mesma população? Fo-ram usadas técnicas (como pareamento ou estratificação)para controlar fatores que possam confundir a associa-ção em estudo?

4) Que tipo de população os casos representam? Pa-ra que tipo de população a generalização dos resultados épossível?

5) Há outras tendenciosidades evidentes? Casos sobobservação mais minuciosa, informação mais voluntáriaou exame mais extensivo dos casos que dos controles?

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Dada a vulnerabilidade dos estudos caso-controleaos erros sistemáticos citados, que lugar eles ocupariamna pesquisa clínico-epidemiológica? Para alguns, esse ti-po de estudo não é científico nem lógico. Para outrosconstitui passo inicial no estudo da maioria das questõesmédicas importantes. No entanto, existe consenso de queestudos prospectivos fornecem evidências mais válidas efortes, quando exequíveis, a respeito de associações cau-sais. Entretanto, com apropriada atenção e cuidado, es-tudos tipo caso-controle podem constituir um métodoválido e eficiente para responder a muitas questões clíni-cas. Tem, dessa forma, particular importância no estudoda.etiologia e de fatores de risco de doenças raras.

SUMMARY

The authors present a critical appraisal of case-control studies in clinical-epidemiologycal research. So-me of their advantages and disadvantages are analyzed.A guideline for readers of case-control studies is given.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BORDIA, A. - Effect of garlic on blood lipids in patients with co-ronary disease. Am. J. Clin , Nutr. 34: 2.100-2.103, 1981.

2. COLE, P. - The evolving case-control study. J. Chron. Dls. 32:15-27, 1979.

3. FLETCHER, R.H.; FLETCHER, S.W.; WAGNER, E.H. - Clínl-cal epidemiology - The essentials. Baltimore, Williams & Wilkins,1982, pg. 168-184.

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6. SCHLESSELMAN, 1.1. - Case-control studies. Oxford UniversityPress. Oxford, 1982, pg. 124-143.

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