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XXVI ENEGEP - Fortaleza, CE, Brasil, 9 a 11 de Outubro de 2006 1 ENEGEP 2006 ABEPRO Avaliação de riscos de acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes na atividade de limpeza de hospitais públicos através da análise ergonômica do trabalho José Mauro de Araújo Acosta (Petrobras) [email protected] Eliza Helena Oliveira Echternacht (UFMG) [email protected] Resumo Este artigo aborda a avaliação de riscos de acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes no trabalho terceirizado de limpeza realizado em hospitais da rede pública estadual a partir do olhar da Ergonomia, colocando as atividades e as situações de trabalho no centro da análise. Conhecendo-se o contexto hospitalar e as reais situações de trabalho que as serventes encontram para executar suas atividades, foi possível buscar elementos para compreender que o modelo tradicional de prevenção adotado, baseado na prescrição de normas e comportamentos seguros, é ineficaz quando se têm condicionantes que comprimem os espaços de regulação dos trabalhadores. Os resultados encontrados permitem concluir que a gestão dos riscos pode ser transformada se houver compreensão da realidade do trabalho, privilegiando sempre a construção conjunta de medidas que possam efetivamente contribuir para a segurança de todos. Palavras-chave: Riscos; Instrumentos pérfuro-cortantes; Análise Ergonômica do Trabalho. 1. Introdução Em contextos hospitalares os acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes são eventos que ocorrem de forma intensa entre os profissionais de saúde, principalmente médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. A preocupação com o tema é mundial, em virtude das sérias doenças que podem ser transmitidas em decorrência das perfurações e até o presente momento se configuram como um problema de difícil resolução. O presente artigo insere-se no campo da saúde ocupacional e tem seu foco em uma categoria de trabalhadores que vive o mesmo sofrimento que os profissionais de saúde em relação a esse tipo de acidente, porém com características bastante diversas daqueles: não desempenham atividades diretamente ligadas aos cuidados da saúde humana e manipulam ferramentas de trabalho completamente diferentes do pessoal de saúde. Esta pesquisa desenvolveu-se sobre o coletivo de trabalhadores da limpeza hospitalar, ou, como são mais conhecidos, os serventes de limpeza. Para investigar o problema e diagnosticar as causas do acidente, utilizou-se a Análise Ergonômica do Trabalho – AET, metodologia que possibilita compreender a diferença entre o trabalho prescrito (tarefa) e o trabalho real (atividade), avaliando as dificuldades concretas da situação, a percepção por parte do trabalhador e as estratégias que são adotadas para responder às exigências do trabalho e, em particular, às contingências (WISNER, 2005). A Análise Ergonômica do Trabalho usada como ferramenta de avaliação de riscos evidenciou uma série de disfuncionamentos que potencializavam situações para a concretização de

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1 ENEGEP 2006 ABEPRO

Avaliação de r iscos de acidentes com instrumentos pér furo-cor tantes na atividade de limpeza de hospitais públicos através da análise

ergonômica do trabalho

José Mauro de Araújo Acosta (Petrobras) [email protected] Eliza Helena Oliveira Echternacht (UFMG) [email protected]

Resumo

Este artigo aborda a avaliação de riscos de acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes no trabalho terceirizado de limpeza realizado em hospitais da rede pública estadual a partir do olhar da Ergonomia, colocando as atividades e as situações de trabalho no centro da análise. Conhecendo-se o contexto hospitalar e as reais situações de trabalho que as serventes encontram para executar suas atividades, foi possível buscar elementos para compreender que o modelo tradicional de prevenção adotado, baseado na prescrição de normas e comportamentos seguros, é ineficaz quando se têm condicionantes que comprimem os espaços de regulação dos trabalhadores. Os resultados encontrados permitem concluir que a gestão dos riscos pode ser transformada se houver compreensão da realidade do trabalho, privilegiando sempre a construção conjunta de medidas que possam efetivamente contribuir para a segurança de todos. Palavras-chave: Riscos; Instrumentos pérfuro-cortantes; Análise Ergonômica do Trabalho.

1. Introdução

Em contextos hospitalares os acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes são eventos que ocorrem de forma intensa entre os profissionais de saúde, principalmente médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. A preocupação com o tema é mundial, em virtude das sérias doenças que podem ser transmitidas em decorrência das perfurações e até o presente momento se configuram como um problema de difícil resolução.

O presente artigo insere-se no campo da saúde ocupacional e tem seu foco em uma categoria de trabalhadores que vive o mesmo sofrimento que os profissionais de saúde em relação a esse tipo de acidente, porém com características bastante diversas daqueles: não desempenham atividades diretamente ligadas aos cuidados da saúde humana e manipulam ferramentas de trabalho completamente diferentes do pessoal de saúde. Esta pesquisa desenvolveu-se sobre o coletivo de trabalhadores da limpeza hospitalar, ou, como são mais conhecidos, os serventes de limpeza.

Para investigar o problema e diagnosticar as causas do acidente, utilizou-se a Análise Ergonômica do Trabalho – AET, metodologia que possibilita compreender a diferença entre o trabalho prescrito (tarefa) e o trabalho real (atividade), avaliando as dificuldades concretas da situação, a percepção por parte do trabalhador e as estratégias que são adotadas para responder às exigências do trabalho e, em particular, às contingências (WISNER, 2005).

A Análise Ergonômica do Trabalho usada como ferramenta de avaliação de riscos evidenciou uma série de disfuncionamentos que potencializavam situações para a concretização de

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acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes que não eram levadas em consideração na proposição das medidas institucionais de segurança.

2. As etapas das investigações de campo

A primeira etapa da pesquisa concentrou-se em duas unidades que compõem a rede de 23 hospitais públicos distribuídos no Estado de Minas Gerais, com objetivo de compreender a dinâmica hospitalar e observar as situações de trabalho das serventes de limpeza, principalmente naqueles setores onde poderia haver maior manipulação de instrumentos pérfuro-cortantes. Também foram consultados vários documentos e manuais técnicos referentes aos procedimentos de limpeza.

Com o decorrer do tempo, a pesquisa de campo se ampliou a todas as outras unidades. Nesta fase, além de observações, foram aplicados questionários e entrevistadas várias serventes, individualmente e em grupos.

Os trabalhos de conclusão, realizados em um dos hospitais da rede, foram direcionados para as atividades desenvolvidas nos setores considerados mais críticos – enfermarias e outros locais de atendimento a pacientes. Vários procedimentos da metodologia ergonômica foram utilizados para analisar o trabalho das serventes de limpeza, como observações, anotações, entrevistas e gravações. As observações focadas, ou seja, aquelas planejadas para verificar todas as condicionantes da atividade, como deslocamentos, posturas, comunicações e tomadas de decisão em situação de trabalho, tornaram-se mais freqüentes.

A investigação demonstrou que os riscos são conhecidos e aparentemente bem representados pela servente, evidenciado nos cuidados que ela tinha quando torcia um pano de chão ou quando transportava manualmente os sacos de lixo. Porém, suas estratégias não eram suficientes para evitar o acidente.

3. A amplitude dos acidentes com instrumentos pér furo-cor tantes

A OSHA – Occupational Safety and Health Administration – calcula que entre 600.000 e 800.000 trabalhadores se acidentam anualmente com algum tipo de instrumento pérfuro-cortante nos Estados Unidos. Já o CDC – Centers for Disease Control and Prevention (1998) estima que ocorram anualmente cerca de 384.000 desses acidentes somente nos hospitais americanos, sem considerar outros locais onde se manipulam instrumentos pérfuro-cortantes, como clínicas médicas e odontológicas.

No Brasil, o Ministério da Saúde (1995) vem divulgando medidas de prevenção que devem ser utilizadas pelo pessoal da saúde quando manipular sangue, secreções e excreções de pacientes. Isso inclui também o uso de equipamentos de proteção individual e cuidados específicos na manipulação e no descarte de instrumentos pérfuro-cortantes contaminados por material orgânico. As medidas de segurança tentam evitar as conseqüências nefastas que um acidente desse tipo causa nos trabalhadores de unidades destinadas aos cuidados da saúde humana, principalmente hospitais.

3.1 Focalizando o problema dos acidentes nos hospitais investigados

Os acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes ocorriam com elevada freqüência nos trabalhadores da limpeza que prestavam serviços nas unidades hospitalares investigadas. No período em que a pesquisa foi realizada, entre 2000 e 2002, mais de 30% do número total de

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acidentes cadastrados pela empresa terceirizada nesses hospitais eram devidos a perfurações, conforme ilustra a Tabela 1 abaixo.

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100

200

300

Total de acidentes 108 109 68 285

Acidentes porperfuração

40 37 22 99

2000 2001 2002 TOTAL

Fonte: CAT. Acidentes cadastrados até julho de 2002

Tabela 1 – número de acidentes por perfuração em relação ao número total de acidentes cadastrados na área hospitalar entre 2000 e 2002

Esses acidentes eram constrangedores para quem se acidentava e por mais que se tentasse proteger o trabalhador, ainda assim eles aconteciam em grande número. A demanda para aprofundamento do estudo tornou-se evidente quando uma servente se dirigiu ao escritório da empresa terceirizada para abertura da Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT e ao descrever o acidente por perfuração de agulha, teve uma crise nervosa seguida de um desabafo em tom de profundo desapontamento com a situação que estava vivenciando: “ Será que ninguém pode fazer nada pela gente? Será que a gente vai continuar se acidentando e ninguém vai fazer nada?” .

A partir de uma indignação individualizada, mas que refletia toda a angústia da população das serventes de limpeza frente à situação de fragilidade dos mecanismos de segurança propostos, iniciamos os estudos de campo para compreender os caminhos que levavam aos acidentes de trabalho com instrumentos pérfuro-cortantes, pois os hospitais dispunham de normas e procedimentos rigorosos para a manipulação e descarte desses objetos, a maioria das serventes possuía experiência na limpeza de hospitais e todas dispunham de equipamentos de proteção individual adequado para o serviço.

4. O contexto hospitalar

O ambiente hospitalar é um espaço de trabalho que apresenta grande complexidade, necessitando do interfaceamento de diferentes campos técnicos, uns ligados diretamente ao processo de prestação de serviços destinados aos cuidados à saúde humana e outros com a função de apoio ou de gestão. Apesar do crescente uso de tecnologia, é o relacionamento entre seres humanos que dá dinamicidade a todo o sistema, diferenciando-o assim de outras instituições.

Acrescido a essas características, diversos riscos estão presentes nas atividades desenvolvidas dentro do hospital. Agentes físicos, químicos, biológicos, somados aos riscos mecânicos e

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ergonômicos, compõem o conjunto de possibilidades de perigos existentes naquele sistema. De acordo com Sznelwar, Lancman et. al (2005), um aspecto fundamental que se deve considerar no ambiente hospitalar é o cuidado, por apresentar diversos tipos de constrangimentos. Inseridos neste contexto, estão os serviços de limpeza, que apesar de ser considerada periférica, dá suporte a toda estrutura operacional hospitalar.

4.1 As condições de trabalho dos hospitais investigados e seus problemas específicos

Somados à complexidade comum a todos os hospitais, na época da investigação, as unidades hospitalares tinham vários problemas como deficiência de recursos financeiros, sub-dimensionamento da mão-de-obra, contratações temporárias de profissionais de saúde, equipamentos obsoletos, edificações antigas e degradadas, alta demanda para atendimentos de clientes e excesso de burocracia para a compra de produtos. Todos esses problemas contribuíam para a precariedade dos serviços de limpeza.

Especificamente para o trabalho da servente, esses aspectos negativos se potencializavam pelas dificuldades em se realizar um trabalho de boa qualidade, cumprir o serviço com a rapidez exigida pelos setores e proteger-se contra os riscos de acidentes.

4.2 A organização dos serviços de limpeza

Os serviços de limpeza normalmente são difíceis de serem executados conforme planejado por causa da imprevisibilidade de ocorrência das situações emergenciais. Os locais e horários definidos nas rotinas de trabalho tinham que ser adaptados à realidade que a servente encontrava no campo. A própria relação com os outros atores sociais era fragilizada em função dos serviços serem terceirizados, e que não permitia margens de negociação para a servente, que se submetia muito mais às ordens diretas do hospital do que da própria empresa que a contratava. Assim, qualquer ação que desagradasse o contratante, seja por ineficácia de trabalho ou por insubordinação, a substituição do material humano deficiente por outro supostamente mais produtivo ou mais dócil tornava-se inevitável e fácil de ser concretizada.

4.3 Conhecendo as serventes de limpeza

Nos 23 hospitais investigados trabalhavam como serventes de limpeza, na época em que a pesquisa foi realizada, 787 pessoas, sendo que 88% do efetivo era composto por mulheres e 85% tinham mais de 31 anos de idade. Em relação à experiência no trabalho de limpeza hospitalar, verificou-se que 70% das serventes exerciam o desempenho desta atividade há mais de 3 anos, significando que não se tratava de um coletivo de trabalho de iniciantes, mas sim de profissionais experientes. Apesar de ser considerado um serviço especializado, por exigir de quem o executa uma série de competências individuais, como força física, coragem para conviver com o sofrimento de pacientes, flexibilidade para se adaptar a novas situações, habilidade para tratar com pessoas e destreza para manusear ferramentas de trabalho, o levantamento mostrou um baixo grau de escolaridade para o desempenho da função (90% não chegaram até o ensino fundamental).

5. As lacunas na prevenção de acidentes com instrumentos pér furo-cor tantes A Análise Ergonômica do Trabalho permitiu identificar diversas lacunas no sistema de prevenção de incidentes e de acidentes de trabalho com instrumentos pérfuro-cortantes que não são levados em consideração pelo modelo tradicional de segurança, que tem como principal pilar de sustentação a obediência das pessoas ao cumprimento de normas e procedimentos, ou seja, priorizando aspectos comportamentais dos indivíduos.

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5.1 As condutas de segurança estabelecidas e as práticas cotidianas

Dentre as várias condutas estabelecidas pela organização, uma é de grande importância para evitar acidentes com agulhas: os procedimentos para descarte de instrumentos pérfuro-cortantes. Estes têm que ser desprezados em recipientes apropriados denominados coletores. Dentro deles têm que ser descartadas somente agulhas e seringas, respeitando-se sempre os limites de enchimento demarcados. Depois de lacrado pelas auxiliares de enfermagem, as serventes de limpeza são as responsáveis por retirar e transportar o coletor do interior das unidades até o depósito de lixo.

Entretanto, o que se observou foi uma situação completamente oposta. Os coletores de agulhas quase sempre estão cheios, além de seu limite de segurança, deixando as pontas expostas para o lado de fora da caixa, tornando-se uma fonte de grande perigo, principalmente para a servente, que na realidade, é responsável não somente por transportar e jogar os coletores dentro dos sacos de lixo, mas também por fechá-los. Alguns acidentes ocorreram com as serventes em função do excesso de agulhas nos coletores. Elas tentam organizar as agulhas dentro da caixa para poder fechá-la e acabam se acidentando.

O risco também aumenta em função do recolhimento de agulhas que as serventes encontram jogadas fora dos coletores, conforme declaração de uma delas: “ Estamos sempre encontrando pérfuro-cortante no chão e sempre temos que colocá-los nas caixas” . Mesmo usando equipamentos de proteção, conforme recomendado pelas práticas de segurança, há uma limitação destes contra as perfurações com agulha. Assim, se o acidente ocorre, a culpa recai na própria servente, que não deveria ter realizado um procedimento inseguro como aquele. Ela acaba sendo duplamente penalizada: por aqueles que organizam o trabalho e pela própria consecução do acidente.

A coleta de lixo também é bastante diversa do que é preconizado pela legislação, onde, de acordo com a NBR 12809, o transporte manual para sacos de lixo não pode exceder a vinte litros de capacidade. A partir desse valor deve-se usar veículo coletor apropriado. No trabalho real, as serventes carregam manualmente sacos de até 100 litros e os carrinhos coletores são inexistentes. Alguns acidentes ocorreram quando se transportava saco de lixo, conforme registro de uma acidentada:

“ Eu tinha ido recolher o lixo lá do CTI. Lá tem que ser tudo rápido. Não pode acumular lixo. Eu já estava meio cansada. Quando descia pela escada segurando o saco de lixo, senti uma dor na minha perna. Tinha furado a batata da perna com uma agulha muito grossa. Sangrou muito. Aquilo me deixou apavorada. Ainda levei uma bronca da encarregada, que falou que eu não segui o que me ensinaram nos treinamentos.”

Apesar do treinamento que recebem para aplicação correta das técnicas de limpeza, onde são abordadas inclusive as formas seguras para se torcer panos de chão (40% dos acidentes ocorreram quando se realizava esta atividade), a alta demanda de pacientes nos hospitais e a necessidade de rapidez na realização da limpeza não permite à servente aplicar aquilo que aprendeu. O trabalho real é muito mais dinâmico do que o previsto. A todo o momento ela é solicitada para limpar e desinfetar enfermarias e corredores, dar assistência dentro das unidades e centros de tratamento intensivo, subir e descer escadas carregando manualmente seus instrumentos de trabalho. O desgaste físico e cognitivo é inevitável. Após uma jornada de 12 horas, a recomendação para prestar atenção parece não surtir mais efeito. Ao cansaço

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físico de seus corpos decorrentes de posturas desconfortáveis soma-se à exigência cognitiva, onde a servente, em situações de emergência médica, tem que elaborar a melhor estratégia para poder entrar em um setor sem atrapalhar os serviços ou mesmo incomodar o paciente. Esses e outros elementos emergentes nas situações de trabalho vão aos poucos minando suas estratégias operatórias e o acidente acaba se concretizando.

5.2 As evidências de um trabalho inser ido em um ambiente complexo, dinâmico e incer to

O modelo tradicional não leva em consideração a complexidade, a dinamicidade e a incerteza do ambiente hospitalar, onde a prescrição das condutas supõe um ambiente relativamente estável e passível de aplicação de regras e procedimentos de segurança como fator para barrar os acidentes (RASMUSSEN, 1997).

No trabalho real a servente de limpeza depara-se frente a várias circunstâncias que podem conduzir ao acidente com instrumentos pérfuro-cortantes. As condições de risco encontram-se sob várias formas, latentes ou ativas (REASON, 2000). Diferentemente do que está prescrito, as normas e procedimentos de segurança não são plenamente executáveis no ambiente hospitalar observado, onde problemas estruturais e conjunturais levam à precariedade do trabalho nos estabelecimentos de saúde estudados.

Fatores externos como dificuldades financeiras e alta demanda de atendimentos, somados aos problemas internos como número insuficiente de profissionais de saúde, equipamentos de limpeza obsoletos, relacionamentos conflituosos (principalmente entre auxiliares de enfermagem e as serventes de limpeza), dificuldade para trocar informações entre pessoas situadas em níveis hierárquicos diferentes, construções hospitalares ultrapassadas e até mesmo falta de material de limpeza, vão refletir de forma direta e indireta na ocorrência de acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes. Nessas circunstâncias, as pessoas têm que trabalhar no limite de suas performances, e quando este limite é ultrapassado, a possibilidade de acidente fica mais factível de acontecer (RASMUSSEN, 1997).

A incerteza foi outra característica observada nos serviços de limpeza dos hospitais estudados. As emergências para desinfecção de um piso ou parede, principalmente nos locais onde têm pacientes internados, como enfermarias, interrompem a tarefa programada. Muitas vezes a servente não dispõe de tempo para avaliar com cuidado o local a ser limpo. Isso requer uma enorme capacidade preditiva de antecipação aos riscos, o que nem sempre funciona, conforme declara uma servente que havia se acidentado: “ A gente muitas vezes não consegue, mesmo quando avisam para gente que tem agulha lá, ter certeza de que não vai se acidentar quando torce o pano de chão. Parece que a agulha some. A gente só sente a dor da fincada” . Esta declaração evidencia que mesmo as defesas coletivas às vezes não são suficientes para evitar os acidentes, apesar dos avisos de cuidado, conforme observamos em uma conversa entre duas serventes ocorrida na troca de plantão: “ O setor hoje está muito tumultuado. Já encontrei duas agulhas jogadas no chão. Cuidado” .

A análise ergonômica do trabalho também evidenciou que a servente ainda é tratada como parte isolada do sistema. Os treinamentos, parte formal que a organização instituiu para resolução dos problemas e para o aprimoramento das competências profissionais, são realizados sem ouvir suas sugestões para a melhoria das situações de trabalho. As informações sobre os riscos que dizem respeito a coletivos que trabalham juntos no mesmo espaço são passadas separadamente, em treinamentos distintos.

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Assim, um trabalho que é extremamente dependente do compartilhamento de opiniões e de troca de informações que deveriam ser discutidas dentro de um espaço comum, está sendo organizado formalmente de forma fragmentada, seletiva e estratificada, não propiciando a participação conjunta de todos os interessados nos problemas cotidianos do hospital. Para a servente acaba sobrando a maior carga desses disfuncionamentos, que se traduzem muitas vezes em acidentes de trabalho.

5.3 As conseqüências dos acidentes sobre a saúde e a vida da servente de limpeza O risco de acidente com instrumentos pérfuro-cortantes é a situação que as serventes mais temem dentro dos setores hospitalares. A possibilidade de contaminação decorrente de uma perfuração está presente no cotidiano do trabalho e é representada quase sempre pela possibilidade de se contrair alguma doença, sendo a AIDS a que causa maior medo.

A perfuração causará à servente uma sensação de impotência por ela nada poder fazer para evitar a doença, iniciando-se um processo de sofrimento que irá durar até o resultado dos exames. Neste período, resta-lhe somente esperar, tomar a medicação recomendada e aguardar a confirmação ou não da contaminação.

Com relação aos medicamentos, os anti-retrovirais produzem uma série de efeitos sobre o organismo que variam muito de pessoa para pessoa. As serventes entrevistadas reclamaram muito dos efeitos colaterais dos medicamentos. As principais queixas foram: enjôo e vômitos, dor de cabeça, tonturas, estado de fraqueza, desânimo, sono, perda de apetite e alterações hormonais no ciclo menstrual.

Os acidentes envolvendo agentes biológicos possuem uma característica diferenciada de outros infortúnios, pois sua abrangência ultrapassa os limites de quem se acidenta. As preocupações estendem-se também para as outras pessoas que convivem com a acidentada dentro ou fora do seu local de trabalho, pois, após o acidente, ela terá que se precaver contra o risco de transmitir seu problema a uma outra pessoa, fato que a obrigará a evitar contatos mais próximos com os outros e lhe causará um processo de clivagem social. Em algumas situações relatadas por serventes que se perfuraram, o acidente acabou interferindo até mesmo na sua vida sexual, pois tiveram que informar aos parceiros que eles teriam que usar preservativos para não se contaminarem. A prevenção acaba se transformando em desconfiança.

Dessa forma, a amplitude do acidente com instrumento pérfuro-cortante vai além do que se pode imaginar, interferindo em todos os aspectos da vida daqueles que se acidentam. Dejours (2004) cita que quando o confronto com o real leva a repetição constante dos mesmos problemas, dos mesmos fracassos, o sofrimento se torna patogênico, insuportável.

No modelo de prevenção adotado pelos hospitais investigados as soluções não são construídas pelos interlocutores que vivem o risco dos acidentes com instrumentos perfuro-cortantes. Nesse tipo de tratamento dado à segurança, não se consideram as singularidades inerentes a cada local, suas variabilidades e a intensidade dos disfuncionamentos próprios de cada unidade, que aumentam significativamente a probabilidade de perfurações. Como lembra Reason (2000), os riscos apresentam-se em condições latentes, aguardando a conjunção de pequenos desvios no tempo e no espaço para concretização do acidente.

6. Conclusão

Buscou-se evidenciar neste artigo que a Análise Ergonômica do Trabalho pode se constituir, dentro do contexto de trabalho investigado, como uma ferramenta de análise capaz de

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melhorar a gestão de riscos de acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes, por evidenciar situações que muitas vezes não são identificadas pelos métodos tradicionais.

A aplicação pura e simples das normas de segurança ou das rotinas referentes às precauções universais somado às medidas de prevenção baseadas na sua maior parte no comportamental e na proteção individual não conseguem evitar os acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes. Observou-se que as proposições de segurança não levam em consideração os disfuncionamentos existentes nas unidades hospitalares investigadas, causados basicamente pelos diversos problemas ilustrados nas páginas anteriores. Assim, as recomendações não podem ser seguidas a contento em função de uma série de desvios que acabam condicionando os acidentes com instrumentos pérfuro-cortantes.

Chanlat (2000) cita que as modificações na gestão de saúde e segurança no trabalho são possíveis se a filosofia de gestão for coerente com a prática, ou seja, se o método de gestão prescrito se aproximar o máximo possível do modo de gestão real. Além do conhecimento da realidade das situações, a Análise Ergonômica do Trabalho possibilita a construção social de formas de intervenção mais eficientes, onde a participação de todos os envolvidos e a discussão conjunta dos problemas contribua para favorecer a proposição de soluções que efetivamente possam ser aplicadas para reduzir as perfurações, mesmo considerando as limitações econômicas existentes, onde o investimento na melhoria das situações é condicionante para a correção dos disfuncionamentos observados.

Finalizando, concordamos com Vicente (2005) quando este cita que determinados acidentes são subprodutos da vida que vivemos atualmente, num mundo cheio de sistemas tecnológicos complexos, seres humanos falíveis e pressões sociais dinâmicas.

7. Referências bibliográficas

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VICENTE, K. Homens e máquinas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

WISNER, A. A construção de problemas e a sua descrição pela Análise Ergonômica do Trabalho. In: CASTILLO, J.; VILLENA, J. (Org.). Ergonomia Conceitos e Métodos. Lisboa: Dinalivro, 2005.

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