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AUTOS DE TUTORIA E CONTRATO DE ÓRFÃOS (1891-1920): FONTE PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Ana Cristina do Canto Lopes Bastos / USF
Este texto tem como objetivo demonstrar resultados ainda que parciais, da pesquisa
que venho realizando, tendo como principal fonte autos cíveis de tutoria e contrato de
órfãos no século XIX e início do XX. Essa documentação pertence ao acervo do Fundo do
Poder Judiciário da Comarca de Bragança-SP, custodiado pelo Centro de Documentação e
Apoio à Pesquisa em História da Educação (CDAPH), da Universidade São Francisco.
Pretende-se analisar os significados dessa relação de tutela, de modo a contribuir para a
história da educação e da infância.
As fontes escolhidas podem representar novas perspectivas para a expansão de
temas e abordagens na história da educação. São fontes ainda pouco utilizadas e podem
conter informações importantes para ampliar o debate na redefinição de novos objetos e
metodologias entre os pesquisadores da área1.
No levantamento realizado, localizaram-se 361 autos envolvendo menores, dos
quais apenas 99 não dispõem diretamente sobre tutela e contrato de soldada. Desse total,
256 autos pertencem ao período de 1891-1920. Dos demais autos, dezenove estão
distribuídos em período anterior (1822-1889) e oitenta e seis em período posterior (1921-
1936).2
Considero importante, desde já, apresentar algumas definições de expressões que
serão utilizadas ao longo deste estudo tais como tutoria e tutela. Ambas aparecem na capa
dos autos, como definidores do tipo de processo em curso. A palavra tutoria é usada com
muito mais freqüência, embora defina o exercício da tutela. Segundo Rodrigues Nunes,
tutoria “diz-se ao cargo ou da autoridade de tutor” (1997, p. 544). Enquanto que tutela, de
acordo com o mesmo autor, é “encargo civil que a lei confere a alguém juridicamente
capaz para governar e proteger a pessoa do menor que se acha fora do pátrio poder,
administrar seu patrimônio e representá-lo nos atos da vida civil” (1997, p. 544).
Segundo Pedro Nunes, soldada é a “remuneração de criados, operários e
1Este trabalho está inserido no âmbito do projeto História da educação da criança brasileira nos séculos XIX
e XX, coordenado pelo Prof. Dr. Moysés Kuhlmann Jr.
2 oitenta mil processos entre 1798-1980, compõem o arquivo do judiciário do CDAPH.
trabalhadores” (1956, p.405). Nos processos, o contrato de soldada era o documento
assinado pelo contratante pela locação dos serviços dos órfãos intermediado pelo Poder
Judiciário.
É ainda necessário definir o que chamamos de auto e o que chamamos de processo.
A terminologia Auto significa o conteúdo documental gerado durante o processo. Ainda
segundo o dicionário de arquivística é o conjunto ordenado das peças de um processo
judicial ou administrativo. Enquanto Processo é o conjunto de procedimentos adotados na
administração da justiça até a sentença. Segundo o mesmo dicionário, é a unidade
documental em que se reúnem oficialmente documentos de natureza diversa, no decurso de
uma ação administrativa ou judiciária, formando um conjunto materialmente indivisível
(CAMARGO; BELLOTO, 1996 pp.11 e 62).3 Processo Orfanológico é “[...] aquelle em
que se descreve, avalia e reparte o patrimônio dos que deixaram por sua morte herdeiros
menores ou incapazes por algum outro motivo da administração de seus bens” Citação do
autor retirada das Ordenações Filipinas “Ord. do Liv. 1.º, Tit. 88 e Liv. 4.º, Tit. 96”
(CARVALHO, 1915, p. 11). Carvalho continua dizendo que o Processo Orfanológico
“não é somente o do inventário e partilha de bens [...] é também o de outras cousas que
interessem as mesmas pessoas sujeitas a jurisdição dos juizes de órphãos, como a
renovação de tutores, curadores e outros” (1915, p. 12). A amplitude que “outras cousas”
indica, pode em certa medida respaldar a ação diferenciada adotada pelos Juizes em
relação as decisões sobre o destino dos órfãos.
Cabe, com relação a esse aspecto, considerações a respeito da diferença que se nota
entre os autos da mesma natureza, ou seja, os autos de tutoria e contrato de órfãos.
Encontram-se procedimentos diferentes, o tipo de documentação não é o mesmo em todos
os processos. Por exemplo, em alguns processos a partir de 1896, há no texto do contrato
um item que diz da obrigatoriedade do tutor em mandar o órfão para a escola, conforme o
Decreto n° 218, de novembro de mil oitocentos e noventa e três, - aprova o regulamento da
instrução pública - para execução das lei de n.º 88, de oito de setembro de mil oitocentos e
noventa e dois, e a lei de n.º 169, de sete de agosto de mil oitocentos e noventa e três,
artigos 200 e 201 (REIS FILHO, 1998, p.23)4. Enquanto que em outros autos do mesmo
ano não aparece esse encaminhamento. Outra observação se dá em relação aos recibos dos
3 Há que se definir também o que são processos cíveis e processos criminais. O processo cível, diz-se do que
se instaura para resolver conflitos envolvendo relações de ordem privada. Enquanto que processo crime, diz-se do que se instaura a fim de apurar a prática ou não de um delito penal, e que termina pela condenação do indiciado pela exclusão de sua punibilidade ou por sua absolvição (NEVES, 1978, p.s/n).
4 Antes de 1896, não localizei nenhum processo em que esse encaminhamento pudesse ser verificado.
depósitos feitos no cofre de órfãos que não aparecem em todos os processos, embora seja
obrigação do contratante depositar o valor das soldadas combinado entre o juiz e o tutor.
Os autos possuem uma profusão de indícios a serem investigados. Para Le Goff, o
documento é um monumento e o principal dever do historiador “é a crítica do documento –
qualquer que ele seja – enquanto monumento. O documento não é qualquer coisa que fica
por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de
força que aí detinham o poder” (1984, p.102), daí ser necessária a análise do documento.
De acordo com o mesmo autor, “só a análise do documento permite à memória coletiva
recuperá-lo [...]” (p.102). É necessário, portanto, “demolir” o documento enquanto
monumento, desestruturar sua construção e analisar “porque um monumento é em primeiro
lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem” (p. 104).
Seu caráter de documento oficial não lhe assegura a expressão da verdade, “não
existe documento-verdade” (LE GOFF, 1984, p.103), razão pela qual devem ser
analisados. Constituem fonte de estudo de rico conteúdo para trazer à tona as formas de
vida de homens, mulheres e crianças, tanto das classes dominantes quanto das classes
menos favorecidas.
A leitura dos autos de tutoria permite identificar quem eram os órfãos dados aos
contratos de soldada e refletir sobre o universo desses menores, sobretudo das crianças
pobres que foram alvo da ação dos juizes.
A maior incidência de fontes localizadas no período entre 1891-1920, permite
identificar as relações dos autos de tutoria e contrato com o trabalho compulsório dos
órfãos. Notadamente, é nesta época que a infância pobre, desvalida e, mais especificamente
no caso desta pesquisa, os órfãos, passaram a ser vistos mais pontualmente. Isso porque a
crença no trabalho para as classes pobres como forma de evitar a marginalidade ia ao
encontro do discurso da carência de mão-de-obra no período relacionado às visões sobre o
trabalho que estavam sendo construídas no momento da abolição/imigração. Segundo
Sidney Chalhoub, em Trabalho, lar e botequim, o que se verifica não é a carência de
trabalhadores e sim a dificuldade em ajustá-los às condições concretas de luta pela
sobrevivência. “A oferta abundante aumentava a competição entre os trabalhadores,
dificultava a organização das lutas reivindicatórias” (1986, p. 37). Trata-se de um período
complexo em que não cabem tentativas de generalização. Uma nova relação vai surgindo
entre empregadores e trabalhadores que nem sempre se ajustam ao esquema proposto.
Conforme o mesmo autor.
Esse esquema não dá conta de milhares de indivíduos que, não conseguindo ou não desejando se tornar trabalhadores assalariados, sobreviviam sem se integrarem ao tal “mercado”, mantendo-se como ambulantes, vendedores de jogo de bicho, jogadores profissionais, mendigos, biscateiros, etc. (1986, p.37).
Embora em se tratando de estudo ambientado na cidade do Rio de Janeiro, que
tanto na época quanto hoje difere em muito da cidade Bragança - SP, local de origem da
documentação, podemos buscar em Chalhoub uma pista para entender a procura pela mão-
de-obra infantil através dos autos de tutela e contratos de soldada, num momento em que
segundo o autor não havia falta de trabalhadores. Pode-se aventar então a hipótese que o
trabalho era considerado um dos principais meios de educação para as crianças e jovens
pobres.
Ainda que a legislação previsse a responsabilidade do tutor com relação à
escolarização dessas crianças, observa-se que isso não era objeto de grandes preocupações
nas práticas da administração da justiça, pois a educação dos órfãos, ao contrário das luzes,
isto é, do ideário civilizatório iluminista, esteve muito mais atrelada à moralização e ao
ajustamento ao trabalho imposto pela nova ordem social.
Em Instrução elementar no século XIX, Luciano Mendes de Faria Filho aponta
que: “Como componente central desse ideário estava a idéia da necessidade de alargar as
possibilidades de acesso a um número cada vez maior de pessoas às instruções e práticas
civilizatórias” (2000, p.140). No Brasil, segundo o mesmo autor, os diagnósticos apontam
para uma realidade contrária a esse ideário. Os autos de tutoria e contrato de órfãos
indicam que para muitos jovens e crianças pobres a única possibilidade era o trabalho.
Identificam-se também situações de violência contra as crianças tuteladas que
transparecem em alguns autos. Outro aspecto que merece ser analisado relaciona-se à
verificação de quem eram esses menores chamados órfãos que ficavam sob a jurisdição do
Poder Judiciário, disponíveis às tutelas e contratos de soldadas, uma vez que em sua
maioria - nos autos lidos até o momento - a presença da mãe está confirmada na
documentação.
Outro aspecto que despertou atenção foi o grande interesse que a tutela de menores
gerava entre comerciantes e proprietários de terra, em sua maioria pessoas com certa
ascendência social e econômica na Comarca. Aos poucos, na leitura dos mesmos, foram
surgindo outros detalhes intrigantes: a identificação de “cofre de órfãos”, documentos de
prestação de contas, recibo de valores depositados pelos tutores, informação sobre o
empréstimo desses valores ao governo a juros de 5% ao ano, resgate desses valores feitos
pelos tutelados, por ocasião de sua maioridade ou para fins de casamento. Nota-se, no
entanto, que nem sempre o contratante cumpria a obrigação de depositar as soldadas
combinadas, tendo que ser algumas vezes intimado pela Justiça. Nesses casos,
normalmente, apresentavam-se desculpas relacionadas à saúde do órfão, que por ser doente
não dava conta do trabalho, dando-lhe somente despesa. Ou ainda, apresentavam
testemunhas para confirmar sua alegação de fuga do menor de seu domicílio.
O tratamento de órfão dado pela Justiça a esses menores nos autos de tutoria e
contrato também me parece um fato intrigante, uma vez que em sua maioria os menores
tinham mãe, conforme mencionado anteriormente. Inicialmente atribuí essa prática ao fato
de a mãe não possuir o direito ao pátrio poder, que só lhe foi dado a partir de janeiro de
1890, pelo artigo 92 da lei 181 do Código Penal (2003, p.68). Ainda assim, as práticas de
tutoria de órfãos que viviam em companhia das mães continuaram a ocorrer apresentando
um aumento expressivo, conforme se verifica na documentação.
Um outro aspecto relevante é o fato de que as crianças tuteladas que aparecem nos
autos lidos até o momento pertenciam a famílias de extratos sociais carentes, algumas delas
tinham sua tutela pedida por conta da conduta questionável das mães e dos pais, sobretudo
das mães com quem elas viviam normalmente, segundo consta nos autos. É importante
notar que as acusações sobre a incapacidade das mães manterem seus filhos em sua
companhia partia do interessado em contratar o menor. Chamou-me a atenção também que
alguns desses menores eram filhos de ex-escravos, o que pode significar um forte indício
de que essas tutelas e contratos permitiam a continuidade da condição de exploração do
afro-descendente, suprindo com mão-de-obra livre e infantil a carência do mercado de
trabalho propagada nos discursos da época. Vale lembrar que a Lei do Ventre Livre foi
instituída em 1871, a Lei Áurea em 1888, e a incidência desse tipo de auto - tutoria e
contrato de órfãos - torna-se significativa a partir de 1890. Este é o momento em que
ocorre o processo de mudança do trabalho escravo para o assalariado. Enquanto preparava-
se a abolição da escravidão os juristas do período organizavam mecanismos que pudessem
garantir a manutenção do trabalho compulsório. Ao que tudo indica as tutelas e contratos
de órfãos nos apontam essa relação.
Este estudo, privilegiando sobretudo os órfãos pobres, foi motivado também a
partir do meu envolvimento com crianças e jovens em situação de abandono quando estive
trabalhando na Secretaria da Criança, Família e Bem-Estar Social em São Paulo.
Guardadas as especificidades de cada época, o descaso e o drama vivido por essa
população se assemelha, uma vez que seu princípio ancora-se na miséria. Essa condição
humana, tanto hoje quanto no passado, acaba muitas vezes sendo tratada como “caso de
polícia” e o Poder Judiciário torna-se mais um aparato do Estado com a função de
disciplinar e até mesmo condenar, muito mais do que inseri-los ao convívio social.
Pretende-se investigar nesta pesquisa aspectos relacionados à situação histórica da
criança em aspectos relacionados ao trabalho infantil, violência contra menores, quais as
idades consideradas para se definir as fases da vida, quanto nas questões relativas ao
entendimento do que poderia significar infância no século XIX, que guardam
particularidades em relação ao que entendemos hoje como infância.
Philippe Ariès nos mostra que na sociedade medieval - época que tomou como
ponto de partida para seu estudo - “o sentimento da infância não existia o que não quer
dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas [...] essencial é
saber distinguir a particularidade que há entre a criança e o adulto” (1998, p.156).
A idade definindo os períodos da vida, por exemplo, não seguiu ao longo do tempo
o mesmo padrão. As Ordenações Filipinas, com seu conjunto de leis que vigoraram no
Brasil por todo o Período Colonial e parte do Império, fixavam como idade adequada para
o casamento de meninas doze anos e, para os meninos, quatorze anos, o que aos olhos de
hoje pode parecer inadequado.
Kuhlmann Jr. aborda a questão da idade sob o ponto de vista de que cada sociedade
possui seu sistema de classes e idade e que tanto a infância como qualquer outra fase da
vida tem um significado genérico e esse significado é função das transformações sociais,
ou seja, o sentimento de infância vai sendo construído de acordo com o desenvolvimento
de cada sociedade e da percepção que se pode traçar sobre as diferentes etapas da vida
(1998, p.31).
A Resolução de 31 de outubro de 1831 – Trigo Loureiro § 236 – considerava que
menores “§ 566 são todos aquelles, homens ou mulheres, que não completaram vinte e um
annos de edade”. Entretanto, no § 567, o autor observa que para os expostos a maior idade
dava-se tão logo o menor completasse vinte anos de idade (TOLEDO, 1912, p. 153). Pode-
se observar que os critérios para definir os limites etários, pressupunham variações na
própria legislação.
Antes do século XIX, a criança não havia despertado interesse, ou seja, não
possuía representação como ser social, a não ser internamente à estrutura familiar e pelo
nascimento. Somente quando é percebida como mão-de-obra, o interesse jurídico sobre ela
é despertado, tornando a criança um objeto de posse, sobretudo as mais pobres. Em
Lembranças do passado, Palma de Oliveira lembra que:
O século XIX, foi marcado por duas formas paradoxais de existência da infância, de um lado as crianças da burguesia com o período de infância alongado graças ao período de escolarização; de outro, a persistência de um elemento do modelo medieval: a precocidade da passagem para a idade adulta nas camadas mais pobres da população. Fato que se fortaleceu pela demanda de mão-de-obra infantil... (2001, p.14.)
Para Kuhlmann Jr., guardados os limites etários amplos, a infância traz em si
mesma, aspectos de sua história social, sem que o sentimento de infância seja somente o
que o adulto possa expressar sobre essa condição humana. De acordo com o autor, “a
história seria uma maneira de contar, de narrar a unificação de tempos, de ligar tempos
diversos a um tempo da humanidade, de conferir sentidos de modo a configurar processos
históricos” (1998, p.30).
O estudo à partir de autos de tutoria e contrato de órfãos do século XIX e início do
XX, vem ao encontro da idéia de “ligação dos tempos” proposta pelo autor, pois, essa
documentação não objetiva expressar um sentimento de infância elaborado
deliberadamente com esse fim. Entretanto, nos liga a um tempo em que, guardadas as
particularidades, crianças e jovens desvalidos viviam dificuldades similares ao tempo
presente, possibilitando análises que permitam o entendimento de formas de vida social em
diferentes épocas.
Os autos de tutoria e contrato de órfãos não foram elaborados com a pretensão de
montar uma história da infância. Seu conteúdo entretanto, aponta situações vividas por
uma parcela de crianças e jovens em determinada época, no caso desta pesquisa o século
XIX e início do XX, que nos ajudam a compreender aspectos de sua própria história social.
A complexidade das histórias narradas por esses autos, pode ser visualizada, por
exemplo, em um processo de 1895 (1895, Caixa 117, Pasta 03). Nele, a mãe contratou
verbalmente Belmira, sua filha menor de apenas 12 anos, para Nicolino Nacaratti e este se
recusa a devolvê-la alegando que só o faria após conseguir outra esposa uma vez que ficou
viúvo. Nicolino não propõe casamento à Belmira. Entretanto, esta substituiria a esposa
falecida até que o mesmo se casasse novamente. Dessa forma, os autos possuem uma
profusão de indícios a serem investigados. Tanto no que diz respeito à situação histórica
das crianças, nas situações do trabalho infantil, quanto nas questões relativas à condição
feminina.
A própria Justiça, indica no Artigo 2711 (1864, p. 1014) que o órfão até sete anos
deveria ser criado. Estabelecia oito anos como idade ideal para a contratação de serviços de
menores. Entretanto, encontra-se na documentação, autos de contrato de serviço de
crianças com idade inferior ao que estava previsto. Caso da menor Ermelinda, filha natural
da ex-escrava Belizaria Maria de Jesus, que aos seis anos de idade teve seus serviços
contratados com Albino da Silva Leme (1895, Caixa 117, Pasta 07).
Amparando-se na lei que determinava que todo órfão ou abandonado deveria ter
tutor, o Juiz de Órfãos facilitava a entrega dos menores a tutores e contratantes que
buscavam neles não mais que criados baratos.
A tutela não impunha pagamento pela prestação de serviço dos menores. A
considerar esse fato, o contrato de soldada acabou por beneficiar crianças e jovens como
único meio de ter seu trabalho remunerado, ainda que o recebimento do valor depositado
no cofre dos órfãos só pudesse ser resgatado quando o menor atingisse a maioridade, bem
como a ocorrência de falta de pagamento por parte de contratantes negligentes que não
depositavam o dinheiro no cofre, burlando a lei.
Os Juizes estipulavam um valor a ser pago em troca dos serviços prestados pelos
órfãos. Esses valores variavam, ao que tudo indica, de acordo com a idade e o sexo da
criança ou adolescente, como demonstra o caso dos irmãos Martinho, onze anos, e
Sebastião, quatorze anos. Os dois foram tutelados e contratados pelo mesmo tutor pelo
prazo de dois anos. Martinho receberia pela prestação de serviços a quantia de 86:000 reis.
Enquanto que seu irmão Sebastião, três anos mais velho, teria direito a um valor maior,
108:000 reis, que seriam depositados no cofre dos órfãos (1918, Caixa 165, Pasta 05).
Neste caso os órfãos permaneceram com o mesmo tutor até completarem a maior idade e
resgataram o valor das soldadas do cofre dos órfãos.
Já no caso de Benedita, quinze anos, e sua irmã Lourdes, treze anos, que tiveram
seus serviços contratados dois anos antes do exemplo acima, tiveram sua soldada
estipulada em 60:000 reis para ambas. Porém, não consta no auto nenhum recibo de
depósito feito a favor das menores no cofre dos órfãos, o que pode significar o não
pagamento das soldadas. Este Auto traz uma curiosidade que ainda não foi possível
averiguar. Trata-se da contratante Carolina Villaça que pode pertencer à mesma família do
juiz de direito Manoel José Villaça que, na Comarca, de Bragança, teve papel fundamental
nos despachos envolvendo tutoria e contrato de órfãos, no período em que essa prática teve
aumento significativo. (1916, Caixa 179, Pasta 05)
O contrato de soldada foi substituindo o pedido de tutela, a qual tinha como
objetivo encontrar uma família para cuidar da criança que se encontrasse em situação de
abandono. Em virtude do aumento dos pedidos de tutela, pode-se levantar a hipótese de
que houve um entendimento por parte da justiça de que seu objetivo atrelava-se, sobretudo
à utilização dos serviços dos menores. Os juizes passaram a legitimar a soldada como um
contrato de trabalho que, embora não garantisse o bem-estar do menor, visava alguma
garantia de seus direitos determinando o pagamento pelos seus serviços.
As questões dos menores abandonados ou apenas pobres, não escaparam aos
conflitos envolvendo o judiciário e a população. Situações de tensão e confronto são
observadas através dos documentos, seja da parte de mães que, não desejando ter seus
filhos sob a tutela de outros, burlavam as decisões da Justiça não entregando seus filhos
aos candidatos a tutores ou até mesmo fugindo com estes para escapar da apreensão. Seja
por parte dos tutores que para burlar o pagamento da soldada estipulada por lei, alegava ter
o órfão se tornado desobediente e por esta razão não pretendiam ficar com o mesmo,
solicitando desistência da tutela e contrato e a dispensa do pagamento da soldada. Caso que
se verifica no auto de tutoria e contrato da menor Amélia, de dez anos, filha de ex-escravos
que diz o seguinte:
Diz o suplicante Jacintho Domingues de Oliveira que, tendo assignado contrato dos serviços da órfã Amélia, com a clausula de pagar o duplo das soldadas estipuladas no caso de rescindir o contrato, sem motivo justificável, antes de terminado o prazo respectivo: vem requerer a V. Exa. se digne dispensá-lo de pagar o duplo dessas soldadas, apezar de ter antes do prazo rescindido o contrato, por isso o que fez pelos justíssimos e (ilegível) motivos que passa e expor: A órfã, desde muito, tem manifestado muitíssimo pouca vontade de prestar serviços ao suplicante, tanto que na sua ausência, não obedece a sua esposa, respondendo-lhe mal e não dá a menor importância as suas admoestações. O suplicante teve até agora paciência na esperança de melhorar o procedimento da mesma, mas, vendo que ela não se corrige, e não se importa com castigos morais: e, não podendo nem querendo fazer uso de castigos physicos, convenceu-se de que o melhor alvitre a seguir era fazer sahir de sua casa quem nella não queira estar, isto a bem da tranquilidade não só de sua família como da própria órfã, que, em outra casa, talvez possa viver melhor, melhor cumprindo com os seus deveres (1896, Caixa 120, Pasta 04).
Os trabalhos de E. P. Thompson apresentam-se como referência porque além da
denúncia de dominação, procura recuperar as experiências próprias desses sujeitos, que
embora sendo objeto de interesse e controle de outros grupos sociais que pretendem
controlar sua forma de pensar, de se comportar e de viver, criam mecanismos de resistência
com o intuito de proteger seus “costumes”. Ainda que fossem desiguais as formas de
enfrentar esse conflito, o poder deveria se submeter a algumas restrições. Conforme o
mesmo autor, “não só porque o costume tinha endosso jurídico e podia ser ele próprio uma
‘propriedade’, mas também porque o poder poderia se ver em perigo se o abuso dos
direitos enfurecesse o populacho” (1998, p.96). Embora na maioria das vezes a justiça
esteja ao lado das classes dominantes em outras faz-se necessário observar os interesses
das classes menos favorecidas.
A leitura dos processos aponta atitudes de mães que relutavam em entregar seus
filhos aos contratos de soldadas fugindo algumas vezes para outras cidades. Há ainda
iniciativa dos próprios órfãos que evadiam-se da casa de seus contratantes e que eram
devolvidos a estes após busca e apreensão e nunca espontaneamente. Embora a tutela e
contrato de órfãos fosse apresentado como algo positivo, que livraria os menores da
marginalidade e da vadiagem, por exemplo, a imposição dessa prática às famílias pobres,
gerava desconfiança.
A prática de contratação dos serviços de crianças e jovens pobres facilitados pela
justiça está articulada com as novas visões sobre o trabalho que vem sendo construídas
desde o momento da abolição da escravidão e posteriormente a entrada de imigrantes no
país. Ao que tudo indica não se tratava de falta de mão-de-obra e sim da utilização dos
serviços de pequenos trabalhadores que além de representarem um acréscimo nos lucros do
contratante, pois suas soldadas eram menores – como se verifica nos autos, as soldadas
eram estipuladas, ao que tudo indica, de acordo com a idade – eram ainda incentivados
pela idéia de que estes eram mais fáceis de ser disciplinados.
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Autos cíveis de tutoria e contrato de órfãos pertencentes ao arquivo do CDAPH.
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III Congresso Brasileiro de História da Educação A Educação Escolar em Perspectiva Histórica
Ficha de Inscrição 1 (para participantes com apresentação de trabalhos)
Nome: ANA CRISTINA DO CANTO LOPES BASTOS
End.Residencial:_Rua Ernesto Lo Sardo, 211 Jd. California Bragança Paulista – São Paulo - SP
CEP:12.919-450__________________________________________________
Telefone: 40338199________________________________________________
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Instituição: UNIVERSIDADE SÂO FRANCISCO - USF
( ) Professor ( X) Estudante de pós-graduação ( ) Estudante de graduação
Identifique um eixo temático:
( X) Arquivos, fontes e historiografia;
( ) Estudos comparados;
( ) Políticas educacionais e modelos pedagógicos;
( ) Cultura escolar e práticas educativas;
( ) Profissão docente;
( ) Gênero, etnia e educação escolar;
( ) Movimentos sociais e democratização do saber;
( ) Ensino de história da educação.