auto-organização e contingência da biologia evolutiva
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Autoorganização e contingênciaTRANSCRIPT
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Jerzy Andr Brzozowski
AUTO-ORGANIZAO E CONTINGNCIA DA BIOLOGIA EVOLUTIVA
Um estudo sobre os desafios de Stuart Kauffman e
Stephen Jay Gould ao darwinismo
Dissertao submetida ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia. rea de concentrao: Epistemologia Orientador: Prof. Dr. Gustavo Andrs Caponi
Florianpolis, SC
2007
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Para minha famlia.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer ao argentino perdido nas cincias da vida, Gustavo Caponi, que, alm de ter sido meu professor e orientador (nos mais plenos sentidos desses termos), interlocutor de conversas sobre literatura, cinema, msica e a arte de escrever. Gustavo sempre tem um aforismo para cada um desses temas (o Borges que ele me ensinou a apreciar uma constncia) e, quando no tem, inventa algum ad hoc. Em um esprito aforsmico, ento, devo dizer que a vida tem momentos kierkegaardianos de inflexo. O momento em que Gustavo me convidou para fazer esse mestrado foi uma das mais felizes inflexes de minha vida, me fez sentir, como gostamos de brincar, at home in the universe.
Agradeo tambm aos professores da Epistemologia, Alberto Cupani, Luiz Henrique Dutra, Marco Franciotti e Dcio Krause, pelo acolhimento e pacincia em ensinar filosofia a algum que no era da rea. Quando, neste trabalho, demonstro lucidez filosfica, em grande medida do trabalho deles que ela deriva. CAPES, pelo apoio financeiro. A Carlos Roberto Zanetti, Jaime Cofre e Francielly Grassi, que foram meus professores na graduao, fica uma grande dvida por terem me mostrado as maravilhas do mundo biolgico e como pensar criticamente sobre elas. No posso deixar de agradecer aos professores Paulo Hofmann e Kay Saalfeld, com quem nunca tive formalmente nenhuma aula. Kay Saalfeld, com seu mtodo socrtico e lacnico, desfez algumas de minhas concepes errneas mais profundamente enraizadas. A Paulo Hoffman devo as coisas certas que falo aqui sobre gentica de populaes (as coisas erradas so minhas mesmo) e a preciso com que uso alguns termos de biologia evolutiva. Os comentrios dele sobre uma verso preliminar deste trabalho foram inestimveis.
Aos colegas de mestrado Thiagus Mateus Batista e Joo Francisco Chico Botelho, pelas discusses, amizade e festas. Chico foi tambm colega de orientao e, informalmente, meu co-orientador, pelo aporte bibliogrfico e pelas importantes discusses. Thiagus me ensinou a ver algumas coisas de outros ngulos, me mostrando as virtudes da maneira behaviorista de pensar (se que pensamos). Ao colega de orientao e estudioso da paleontologia Frederico Felipe Faria, a quem devo as precises sobre uniformitarismo e catastrofismo.
Aos cohabitas Hoaiany Casagranda, Roberto Prtile, Eduardo Duda Prtile e Ricardo Woyciekowski, por alguns dos anos mais intensos que vivi. Este trabalho tem uma dvida especial com o Roberto, porque foi ele quem, por uma contingncia, me fez entrar em contato com a obra de Kauffman. A Bruno Costa da Silva, em memria das noites fazendo relatrios de fsico-qumica e em agradecimento pelos resumos que tanto nos ajudaram a estudar. Bruno, Fabola, Roberto e eu ramos os Trs Mosqueteiros e DArtagnan na graduao. Ao Adilson Koslowski, o grande responsvel pelo meu enveredamento inicial pela Epistemologia na UFSC; ele foi o primeiro a me falar sobre Dennett, Putnam e Quine.
Aos tios Alceu e Elizete, que estiveram em Santa Fe, agradeo por todos esses anos de convivncia, boa gastronomia, acolhimento, carinho e apoio, em todos os sentidos. Tambm prima Viviane, pelos telefonemas (morvamos na mesma cidade mas era sempre ela quem tomava a iniciativa de telefonar), visitas, bolos e rocamboles! Vocs foram os representantes de minha famlia (lato sensu) aqui em Florianpolis, e estiveram sempre presentes. Aos amigos de meus tios, que contriburam indiretamente, mas no com menor importncia, para a realizao deste trabalho: Cludia e Roberto Pinto, Stella e Elson Pereira, Stephany e Charles Braglia Barreto.
Aos meus sogros Marisa e Jos Zeca Stolf e cunhada Franciele, que sempre perguntavam como que vai o mestrado?. Agora posso responder com orgulho: terminei!.
Ao meu pai Jerzy, por tudo, mas em especial por ter despertado em mim o interesse pela filosofia e me mostrado Stanisaw Lem. minha me Denise e ao meu irmo Julian, tambm por tudo, mas tambm em especial pela fora, carinho e inspirao. O Julian, com sua enorme criatividade, me distraiu (no bom sentido) desse trabalho: juntos, escrevemos contos, criamos msicas e desenhos. Minha me, por sua vez, fez todas aquelas coisas que s uma me sabe fazer: se preocupou, riu e chorou nas horas certas, nos acolheu e se apaixonou pelo netinho.
Por fim, para aquelas duas pessoas a quem no tenho palavras para expressar meu agradecimento: minha esposa Fabola e meu filho Artur. H um pouquinho de vocs em cada pgina deste trabalho, que pelo nosso futuro.
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claro que temos que enxergar mais longe que Darwin,
mas o faremos nos apoiando em seus ombros,
no virando as costas a ele.
-- John Maynard Smith,
Do we need a new evolutionary paradigm?
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RESUMO
O objetivo deste estudo contrastar a tese da auto-organizao de Stuart Kauffman e a tese da contingncia de Stephen Jay Gould com a viso darwiniana da evoluo. Inicialmente, caracterizamos o darwinismo como o que Kim Sterelny e Paul Griffiths chamaram de viso aceita da evoluo, acrescida dos trs princpios gouldianos que detalham o papel da seleo natural na teoria darwiniana. A tese da auto-organizao pode ser caracterizada como nomolgica, na medida em que procura mostrar como as leis da auto-organizao so responsveis por grande parte da ordem biolgica. A tese da contingncia, por outro lado, enfatiza o papel do acaso e da imprevisibilidade na evoluo, podendo assim ser vista como a defesa de uma abordagem idiogrfica para a biologia. Kauffman questiona o poder causal da seleo natural na produo do fenmeno adaptativo. Nesse sentido, argumenta que a auto-organizao uma espcie de pr-requisito para a ao da seleo natural. No entanto, argumentamos que, vista como a condio de possibilidade da ao da seleo natural, no se pode dizer que a auto-organizao tome o lugar da seleo natural em causar adaptaes. Por sua vez, Gould est preocupado com o poder explicativo do princpio de seleo natural. Gould defende que, dada a imprevisibilidade a longo prazo exibida pelo fenmeno evolutivo, o princpio de seleo natural insuficiente para explicar a histria da vida na Terra. Sterelny e Griffiths afirmam que a tese da contingncia deve ser lida como a viso de que o fenmeno evolutivo no apresenta resilincia contrafatual. Sob essa e outras interpretaes, procuramos mostrar que a tese da contingncia mal-sucedida ao desafiar o poder explicativo do princpio de seleo natural. Por fim, analisamos as bases epistemolgicas das duas teses, mostrando que a tese da auto-organizao se baseia em um conceito de lei notoriamente diferente daquele defendido pelos estruturalistas. A tese da contingncia est assentada em uma posio clssica da epistemologia: a noo de que explicao e predio so, em algum sentido, simtricas. A partir da, procuramos caracterizar a abordagem kauffmaniana como uma forma de ahistoricismo explicativo, aproximando-se daquela desenvolvida por R. A. Fisher e S. Wright em gentica de populaes. Caracterizamos a posio de Gould, por outro lado, como um contingentismo causal. Dado que nenhuma das duas teses nega que a seleo natural a causa da adaptao, pode-se dizer que elas concordam no nvel causal. Essa constatao faz delas compatveis, e mesmo complementares, ao darwinismo. Alm disso, enquanto elas aparentemente discordam no nvel explicativo, as abordagens nomolgica e idiogrfica no so mutuamente excludentes, conforme atesta a coexistncia de algumas disciplinas em outras reas cientficas.
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ABSTRACT
The object of this study is to contrast Stuart Kauffmans self-organization thesis and Stephen Jay Goulds contingency thesis with the standard Darwinian view of evolution. Darwinism is here equated with what Kim Sterelny and Paul Griffiths have termed the received view of evolution, together with Goulds three principles that provide further detail about the role played by natural selection in Darwins theory. The self-organization thesis the idea that self-organization provides some of the order seen in organisms comes from a nomological perspective of biology, one that sees the discovery of laws as the primary goal of biological inquiry. On the other hand, the contingency thesis greatly emphasizes the evolutionary role of randomness and unpredictability, and thus may be regarded as a defense of biology as a predominantly idiographic science. We seek to assess whether the two theses under study would demand revisions in the Darwinian view. Kauffman challenges the causal role of natural selection in bringing about adaptive phenomena. In this vein, he claims that self-organization is some kind of pre-requisite to natural selection. But we argue that, seen as condition of possibility for the action of natural selection, self-organization cannot be said to take the causal role of the former in producing adaptations. Gould is concerned with the explanatory power of the principle of natural selection. He argues that the principle of natural selection is insufficient as an explanatory principle for lifes history, because evolutionary outcomes cannot be predicted in the long run. We adopt Kim Sterelny and Paul Griffithss reading that the contingency thesis is the claim that the history of life on Earth is not counterfactually resilient. Under this and other interpretations, we contend that Goulds thesis does not succeed as the challenge it purports to be. Finally, we analyze the epistemological underpinnings of both theses. The self-organization thesis rests on a concept of law notably different from that championed by structuralists. On its turn, the contingency thesis is based on the more classical thesis of symmetry between explanation and prediction. Thus, we construe Kauffmans position as a form of explanatory ahistoricism akin to the early approaches in population genetics conducted by R. A. Fisher and S. Wright. Goulds position, on the other hand, may be thought of as a causal contingentism. Since none of those theses denies that natural selection is the cause of adaptation, they can be said to agree on the causal level. This makes them compatible, and even complementary, to Darwinism. Furthermore, while they may apparently disagree on the explanatory level, the nomological and idiographic approaches to scientific explanation are not mutually exclusive. The coexistence of nomological and idiographic disciplines in other areas of science attests to this fact.
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SUMRIO
Resumo.......................................................................................................................... i
Abstract ........................................................................................................................ii
1 Introduo ........................................................................................................... 1
1.1 Apresentao................................................................................................. 1
1.2 Darwinismo, neodarwinismo, pluralismo..................................................... 4
1.2.1 O darwinismo e a viso aceita.............................................................. 6
1.2.2 O neodarwinismo .................................................................................. 9
1.2.3 O pluralismo ....................................................................................... 10
1.3 Perguntas..................................................................................................... 13
1.4 Seleo natural e auto-organizao............................................................. 15
1.5 A tese da contingncia evolutiva ................................................................ 16
1.6 Poder causal e poder explicativo da seleo natural................................... 18
2 A tese da auto-organizao .............................................................................. 21
2.1 Apresentao............................................................................................... 21
2.2 A inspirao bioqumica da tese da auto-organizao................................ 22
2.3 A explicao por articulao de partes ....................................................... 24
2.4 Redes booleanas aleatrias como um modelo ciberntico para o genoma .27
2.4.1 Definies ........................................................................................... 29
2.4.2 A interpretao ontogentica das redes booleanas ............................ 31
2.4.3 Redes booleanas e filogenia ............................................................... 33
2.5 A auto-organizao em Kauffman.............................................................. 35
2.5.1 Auto-organizao como ordem gratuita............................................. 36
2.5.2 Auto-organizao como adaptabilidade: a hiptese ousada ......... 36
2.6 A tese da auto-organizao e a viso aceita................................................ 39
3 A tese da contingncia ...................................................................................... 43
3.1 Apresentao............................................................................................... 43
3.2 A contingncia na evoluo........................................................................ 44
3.3 A natureza dos eventos contingentes .......................................................... 46
3.3.1 Largos canais, estreitos detalhes........................................................ 46
3.3.2 Resilincia contrafatual ...................................................................... 50
3.3.3 Trs tipos de contingncia .................................................................. 51
3.4 Extrapolacionismo ...................................................................................... 53
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3.5 As mesmas regras ou regras diferentes? ..................................................... 55
3.6 A natureza algortmica do processo evolutivo............................................ 58
4 Discusso: o nomottico e o histrico em Kauffman e Gould ....................... 61
4.1 Apresentao: o problema das leis em biologia.......................................... 61
4.2 Kauffman um estruturalista? ................................................................... 64
4.2.1 O que o estruturalismo em biologia?............................................... 65
4.2.2 Explicao selecional, explicao transformacional e explicao de
equilbrio 69
4.2.3 Kauffman e as bases analticas da organizao................................. 72
4.3 A tese da contingncia e o estatuto das explicaes paleobiolgicas......... 75
4.3.1 A tese da simetria entre explicao e predio .................................. 76
4.3.2 A explicao narrativa nas cincias histricas .................................. 77
4.4 A tese da contingncia frente tese da auto-organizao .......................... 81
4.4.1 O ahistoricismo explicativo de Kauffman........................................... 81
4.4.2 O contingentismo causal de Gould ..................................................... 85
5 Concluso........................................................................................................... 87
6 Referncias ........................................................................................................ 92
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1 INTRODUO
1.1 Apresentao
O filsofo dinamarqus Sren Kierkegaard escreveu que a vida vivida para frente,
mas entendida em retrospectiva (2000 [1843], p. 12). E complementa: quanto mais
pensamos sobre isso, mais nos convencemos de que jamais exceto, talvez, na morte
atingimos o repouso prprio para tomar a postura perfeitamente retrospectiva.
Obviamente, Kierkegaard estava se referindo vida enquanto existncia de um
indivduo da espcie humana, porm, conotaes impensadas surgem se estendermos o
trecho de Kierkegaard vida no sentido biolgico e, especialmente, no sentido
evolutivo. Aparentemente, a frase de Kierkegaard pressupe que, enquanto est
acontecendo, a vida parece eminentemente contingente e desafia explicaes; apenas
em retrospectiva conseguimos explicitar alguma espcie de lgica por trs do que
ocorreu. A vida teria certa dualidade aparentemente contraditria, uma natureza ao
mesmo tempo anmala, isto , refratria explicao por leis, mas ainda assim regular,
de modo que padres gerais pudessem ser evidenciados ao se olhar retrospectivamente
para sua histria.
O presente estudo uma investigao sobre essa dualidade ou, mais especificamente,
sobre como ela entrevista de maneiras diferentes nas obras de dois bilogos
contemporneos: Stuart Kauffman e Stephen Jay Gould. Queremos saber se as teses
defendidas por esses dois autores exigem alguma reviso na forma clssica que
chamaremos de viso aceita de se conceber e explicar a histria da vida. Justifica-se
essa abordagem pelo fato de que os discursos de ambos os autores buscam, de certa
forma, polemizar com a viso aceita da histria da vida. Analisaremos primeiramente a
crtica de Kauffman, a qual chamaremos de tese da auto-organizao e que pode ser
considerada de natureza nomolgica. Muitos autores escreveram sobre o tema da auto-
organizao, mas nos parece que Kauffman o mais preocupado em fazer suas idias
contrastveis com as dos bilogos evolutivos. A tese da auto-organizao a hiptese
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ousada [bold hypothesis] de Kauffman (1993), ou seja, a idia de que a vida tem a
propriedade de auto-organizao e que a ao da seleo natural, em algum sentido,
limitada por ela. A segunda crtica de que trataremos a tese da contingncia,
apresentada no livro Vida Maravilhosa (1990), de Gould, que enfatiza o carter instvel
e aberto a contingncias, do processo evolutivo.
Para que nossa discusso sobre os aspectos contingentes, ou particulares, e os
nomolgicos, ou legaliformes, da histria da vida possa ser proveitosa, ento
necessrio situ-la no mbito do grande campo de estudos aberto por Darwin: a biologia
evolutiva. Evidentemente, a histria da biologia nos mostra que a prpria noo de
histria da vida esteve longe de ser acontroversa e se hoje h um consenso, por limitado
que seja, a biologia tem um dbito impagvel a Charles Darwin. Somente foi possvel
dar sentido a uma cincia histrica da vida, com um vocabulrio e gramtica prprios, a
partir da publicao da Origem das Espcies (1859). No h dvidas de que a dualidade
de que estamos falamos entre a anomalia e a regularidade da histria da vida j
estava contemplada naquela obra. Darwin estabeleceu o fato da evoluo das espcies
como um processo histrico e contingente, ao mesmo tempo em que props um
mecanismo regular por meio do qual esse processo poderia ocorrer (a seleo natural).
Assim, estamos contrastando essa tradio com a biologia funcional, que centra no
organismo individual o seu objeto de estudo, em detrimento da perspectiva populacional
da biologia evolutiva. A diviso entre os campos evolutivo e funcional da biologia foi
proposta por Ernst Mayr (1988; 1998) e fundamental para entendermos as diferenas
entre o tipo de questes, a noo de causalidade e os modelos explicativos formulados
em cada um desses dois domnios.
A biologia funcional est associada tradio de pesquisa antomo-fisiolgica: o
organismo individual sua unidade mxima, embora seja palco de todos os fenmenos
de interesse para esse campo. Nas palavras de Mayr, [o] bilogo funcional est [...]
preocupado com a operao e a interao de elementos estruturais, de molculas a
rgos e indivduos completos (1988, p. 25). O bilogo funcional pergunta pelo
como dos fenmenos: como tal molcula produzida?, como tal processo
metablico contribui para tal funo vital? e, em geral, como o organismo funciona?.
esse ltimo tipo de interrogao que estabelece as diretrizes metodolgicas e unifica
sob o mesmo nome disciplinas como a biologia celular e molecular, a bioqumica e a
fisiologia. So disciplinas cujos mtodos so predominantemente experimentais e se
aproximam daqueles da fsica e da qumica.
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Em contrapartida, a biologia evolutiva est associada histria natural ps-
darwiniana e se refere ao estudo de variaes inter-individuais em populaes de
organismos. Essa preocupao pelo nvel populacional pode ser mascarada por
perguntas sobre o organismo individual, mas as perguntas do bilogo evolutivo so
caracteristicamente do tipo por que: por que a clula contm tal molcula?, por
que este organismo realiza este processo metablico? e por que os seres vivos so
assim (e no de outras formas alternativas concebveis)?. importante perceber que,
mesmo fazendo perguntas como por que esse organismo realiza esse processo
metablico?, o bilogo evolutivo est pensando em um nvel populacional. Perguntas
do tipo por que pressupem alternativas concebveis, isto , so sempre perguntas
por que esse e no outro?. Assim, s fazem sentido se fizerem referncia a uma
populao de alternativas diferentes, sendo algumas das quais mais bem-sucedidas do
que outras (Sober, 1984). A biologia evolutiva classicamente caracterizada como
sendo mais observacional do que experimental, embora englobe disciplinas com alto
grau de experimentao (Caponi, 2000).
Por exemplo, a constatao de que uma determinada flor reflete luz ultravioleta pode
suscitar no bilogo funcional perguntas do tipo como esse pigmento produzido? ou
qual a funo desse pigmento para a planta?. O bilogo evolutivo pode se perguntar
por que essa espcie de planta tem esse pigmento?: ser uma pergunta pelo valor
adaptativo daquele pigmento, isto , qual a vantagem competitiva que a sua produo
deu aos indivduos de uma populao na competio com outros indivduos que no o
produziam? O trabalho explicativo do bilogo evolutivo orientado pelo princpio de
seleo natural: dada duas estruturas alternativas E1 e E2, constatadas em uma
populao P, se E1 constitui uma melhor resposta para a presso seletiva S do que E2,
com o curso das geraes, E1 predominar em P1.
Alm de um modelo explicativo prprio, a biologia evolutiva tem uma noo
anticonvencional de causalidade. Enquanto a biologia funcional investiga as causas
prximas dos fenmenos biolgicos, a biologia evolutiva tenta elucidar as causas
remotas2. Um exemplo de Mayr ajuda a entender esse ponto: suponhamos que se
constate que uma determinada espcie de pssaro inicie sua migrao em um dia do
1 V. Sober (1993) e Caponi (2000) para outras formulaes. 2 Seguimos aqui a terminologia de Mayr (1988; 1998). A distino encontra paralelos nas categorias
causais aristotlicas: as causas prximas so afins s eficientes, e as causas remotas, s finais.
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incio do inverno (cf. Mayr, 1988, p. 27s). Diante da pergunta o que causou a migrao
daquele pssaro?, podemos formular dois tipos de resposta. O primeiro tipo apontar
como causas as respostas fisiolgicas do pssaro fotoperiodicidade e diminuio da
temperatura uma resposta que diz respeito s causas prximas da migrao, porque
podem ser percebidas no organismo individual e leva em conta uma ou poucas
geraes. O segundo tipo de resposta apelaria a causas remotas, ou seja, presses
seletivas como a escassez de alimento durante o inverno, que fixaram o comportamento
migratrio naquela espcie de pssaro. Essa segunda explicao pressupe que, em um
determinado momento da histria evolutiva da espcie, havia duas variantes de
indivduos: aqueles que realizavam o comportamento migratrio e outros que no. Os
indivduos que migravam durante o inverno receberam algum tipo de recompensa por
exemplo, mais alimento e, com isso, obtiveram maior sucesso reprodutivo diferencial
do que os indivduos que no praticavam o comportamento.
A problemtica que estamos delimitando aqui se insere, ento, na biologia evolutiva,
que caracterizamos como o campo da biologia que estuda mudanas na composio das
populaes causadas por foras evolutivas (causas remotas3). No entanto, para
entendermos contra quais pontos as teses da auto-organizao e da contingncia buscam
fazer frente, necessrio detalharmos um conjunto de princpios que possamos
identificar como a viso aceita do processo evolutivo.
1.2 Darwinismo, neodarwinismo, pluralismo
H, pelo menos, dois modos gerais de caracterizar essas grandes tradies cientficas
das quais a biologia evolutiva um exemplo: a primeira seria descrev-la como uma
linhagem de idias e mtodos de estudo acerca do mundo natural, transmitidos de
professor para aluno; a segunda seria apontar um ncleo conceitual ou conjunto de
princpios imutveis que identificasse o trabalho de um determinado cientista sem que
tivssemos de nos reportar histria acadmica dele. Uma abordagem semelhante ao
primeiro tipo a epistemologia evolutiva de David Hull (cf. Ruiz e Ayala, 1998, para
uma introduo), enquanto talvez o melhor exemplo do segundo tipo seja a reconstruo
da estrutura da teoria evolutiva feita por Gould4 (2002).
3 As causas remotas clssicas correspondem s quatro foras da gentica de populaes: seleo,
deriva, mutao e fluxo gnico. Esse repertrio, entretanto, no pretende ser exaustivo. 4 importante perceber que Gould tem um duplo papel em nossa investigao: ao mesmo tempo em que
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Alternativamente, poderamos adotar uma perspectiva intermediria e, seguindo
Larry Laudan (1977), chamar a biologia evolutiva de uma tradio de pesquisa. As
tradies de pesquisa, na terminologia de Laudan, so entidades mais amplas que as
teorias cientficas e estariam aproximadamente no mesmo nvel de generalidade que os
paradigmas de Kuhn e os programas de pesquisa de Lakatos (cf. Dutra, 1998). Os
exemplos de tradies de pesquisa que Laudan d so o darwinismo, a teoria quntica
e a teoria eletromagntica da luz (1977, p. 78), porm ressalta:
Toda disciplina intelectual, cientfica ou no-cientfica, tem uma histria repleta de
tradies de pesquisa: empirismo e nominalismo em filosofia, voluntarismo e
necessitarianismo em teologia, behaviorismo e freudianismo em psicologia, utilitarismo e
intuicionismo em tica, marxismo e capitalismo na economia, mecanicismo e vitalismo
em fisiologia, para enumerar alguns poucos. (Laudan, 1977, p. 78)
Uma tradio de pesquisa um conjunto de diretrizes para a construo de teorias
cientficas em especfico e, portanto, tem uma longevidade muito maior que as teorias.
Por isso, cada tradio de pesquisa passa por um grande nmero de formulaes e
reformulaes, s vezes mutuamente contraditrias (cf. Laudan, 1977, p. 79). Dada sua
natureza histrica, uma tradio de pesquisa pode sofrer vastas modificaes em alguns
de seus elementos mais centrais, como alguns de seus principais pressupostos e teorias
(Laudan, 1977, p. 96). De certa forma, as tradies de pesquisa so mais do que
linhagens de pesquisadores, mas tambm so mais flexveis que ncleos conceituais
imutveis.
Reconstruir a biologia evolutiva como uma tradio de pesquisa, ento, reconhec-
la como uma entidade histrica, que sofreu mudanas em seu ncleo conceitual, mas
que, de alguma forma, manteve sua identidade. Poderia-se argumentar que o que d
unidade biologia evolutiva o reconhecimento da seleo natural como fora
evolutiva ou, em termos mais gerais, a adoo de uma perspectiva selecional da
evoluo (v. captulo 4). Entretanto, diferentes pesquisadores deram diferentes pesos ao
papel da seleo natural como causa da mudana evolutiva, sem falar nas mudanas
conceituais causadas pelas prprias descobertas na rea.
Ento, se visualizssemos a histria da biologia evolutiva como uma rvore,
contribui para o estabelecimento da base conceitual (nesse sentido, as referncias so Gould, 1982;
1994a; 2002), tambm um dos protagonistas da problemtica (Gould, 1986; 1990; 1994b; 1995;
1997; 2001).
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semelhante metfora da rvore da vida que Darwin tornou famosa (Gayon, 2003),
poderamos fazer trs seces transversais que correspondem a trs grandes momentos
de definio de ncleos conceituais. Um primeiro momento, que poderamos chamar de
darwinismo em um sentido estrito, o estabelecimento dos trs princpios que Gould
(2002) props como definitrios da seleo natural tal como apresentada por Darwin:
agncia, eficcia e alcance (v. seo 1.2.1, a seguir). O chamado eclipse do
darwinismo (Bowler, 1998), no fim do sculo 19 e incio do 20, foi, segundo Gould
(cf. 2002, p. 12-3), um perodo em que concepes alternativas de evoluo desafiaram
esses princpios, fazendo-os temas centrais de importantes debates. O segundo momento
o neodarwinismo, que teve incio com a instaurao da Sntese Moderna, a partir da
dcada de 1930, e foi um endurecimento em torno dos trs pricpios, munido por
resultados das pesquisas em gentica de populaes. Por fim, o terceiro momento, que
teve incio no tero final do sculo 20, e continua at hoje, marcado por um novo
questionamento dos princpios estabelecidos por Darwin, desta vez originado dentro da
prpria biologia evolutiva. Se percebe, ento, um pluralismo5 que, segundo Gould
(2002), resultar em uma estrutura revisada da teoria evolutiva.
Examinaremos a seguir cada um dos trs momentos em maiores detalhes, mas
cumpre realizarmos um breve esclarecimento. Existe certa tendncia em caracterizar o
momento pluralista que estamos vivendo hoje como uma espcie de retorno com
ressalvas s idias originais de Darwin; a sntese neodarwiniana, por sua vez, tende a
ser vista como um episdio pontual e frutfero, porm limitado (Gould, 1982; Eldredge,
1995). No de nossa competncia julgar tal interpretao, mas, dada a natureza de
nossa investigao, inevitavelmente nos demoraremos mais sobre os princpios originais
do darwinismo e sobre os recentes desafios pluralistas a essas concepes.
1.2.1 O darwinismo e a viso aceita
A teoria darwiniana da evoluo, teoria central da biologia evolutiva como tradio
de pesquisa, certamente no tem uma definio unvoca. Depew e Weber escrevem que
a idia de seleo natural o ncleo conceitual da tradio darwiniana de pesquisa
(1995, p. 3). Enquanto concordamos com essa afirmao, no deixamos de reconhecer
que existem diferentes aspectos da seleo natural e, a cada um deles, pode ser atribudo
5 Embora Gould se auto-denomine pluralista, estamos aqui usando o termo pluralismo em um sentido
bem especfico: designar a noo de que a seleo natural, embora ainda ocupe um lugar central na
biologia evolutiva, no mais totipotente quanto agncia, eficcia e alcance (v. a seguir).
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um peso diferente, resultando em diferentes formulaes da teoria evolutiva.
Tentaremos, nessa seo, identificar esses aspectos e estabelecer qual o peso dado a eles
pelo prprio Darwin.
Gould escreve, no artigo Darwinism and the Expansion of Evolutionary Theory
(1982), que, ao mesmo tempo em que estabeleceu o fato da evoluo das espcies,
Darwin tambm props um mecanismo (a seleo natural) por meio do qual ela
ocorreria. Gould enfatiza ainda o papel central que a seleo natural cumpre no
darwinismo, salientanto que ela entendida por Darwin como uma fora criativa. Em
um desenvolvimento posterior, essa idia se tornou um dos trs princpios que so, na
opinio de Gould, o trip que sustenta a estrutura da teoria evolutiva. Podemos resumir
esses princpios que caracterizam a seleo natural, no sentido estritamente darwiniano,
associando-os s seguintes afirmativas (cf. Gould, 2002, p. 14-5):
AGNCIA. Os organismos (e no as espcies ou outros taxa maiores) so o
foco da seleo natural.
EFICCIA. A seleo natural a vera causa da mudana adaptativa. Alm
disso, uma fora criativa na medida em que no for vista como simples
peneira, mas como um processo de acumulao gradual de mutaes
favorveis atravs das geraes.
ALCANCE. A macroevoluo uma conseqncia da microevoluo6, ou seja,
s h um mecanismo evolutivo (a seleo natural), e o surgimento de taxa
maiores se d pela extrapolao, no tempo geolgico, desse mecanismo.
No entanto, esses princpios s fazem sentido dentro de um contexto maior, que
estabelea aspectos mais gerais da ao da seleo natural. De certa forma, esse
contexto mais geral, que chamaremos de viso aceita, menos controverso que os
prprios princpios darwinianos (stricto sensu) enunciados por Gould. A viso aceita
um darwinismo no sentido amplo; uma espcie de comprometimento mnimo para que
se possa fazer biologia evolutiva. Segundo Kim Sterelny e Paul Griffiths, a tarefa da
biologia evolutiva explicar trs fenmenos fundamentais: a diversidade das formas de
6 Microevoluo se refere aos processos evolutivos verificados em espcies ou populaes; a
macroevoluo diz respeito evoluo dos grupos taxonmicos (taxa) superiores, isto , acima do
nvel do gnero.
-
8
organismos existentes, a adaptao e a ontogenia (1999, p. 22). Para esses autores, a
viso aceita uma espcie de lgica interna do processo evolutivo, um modelo
filogentico, que d conta de explicar a diversidade e a adaptao, entretanto no nos
diz nada a respeito da relao entre ontogenia e filogenia7. Os princpios da viso aceita,
tomados de Mayr (1998) e enunciados por Sterelny e Griffiths, so:
1. O mundo vivo em geral no constante; mudanas evolutivas ocorreram.
2. As mudanas evolutivas tm um padro arborescente. As espcies hoje vivas so
descendentes de um (ou poucos) ancestral(is) remoto(s).
3. Novas espcies se formam quando uma populao se divide e os fragmentos
divergem. Mais especificamente, a maioria das novas espcies formada pelo
isolamento de sub-populaes na periferia do domnio da espcie ancestral.
4. As mudanas evolutivas so graduais. Poucos organismos que diferem
dramaticamente de seus pais sobrevivem para fundar populaes.
5. O mecanismo para as mudanas adaptativas a seleo natural. (Sterelny e
Griffiths 1999, p. 31)
Algumas consideraes sobre a viso aceita merecem ser feitas. Em primeiro lugar,
ela no diretamente um modelo explicativo; o princpio de seleo natural (v. seo
1.1) , mais propriamente, o modelo explicativo da viso aceita. Quer dizer, a viso
aceita uma concepo abstrata de evoluo, necessria para que se faa pesquisa em
biologia evolutiva, mas o trabalho efetivo do bilogo a aplicao do princpio de
seleo natural a casos concretos. Em segundo lugar, talvez os trs princpios a respeito
da seleo natural caibam como um detalhamento do item 5 da viso aceita (o
mecanismo para as mudanas adaptativas a seleo natural). Com essa incluso e
considerando ainda o item 4 (as mudanas evolutivas so graduais), se torna patente
que a viso aceita uma concepo microevolutiva. De fato, precisamente o
gradualismo e os princpios da agncia e do alcance so os preceitos darwinianos mais
contestados pelos tericos da macroevoluo (cf. Eldredge, 1995; Gould, 2002). A
macroevoluo, por definio, se refere a um nvel hierrquico maior que o da espcie
7 Entendemos aqui filogenia, processo evolutivo e evoluo como sinnimos que se referem ao
conjunto de micro e macroevoluo, embora estejamos cientes de que uma anlise mais fina revela
diferenas semnticas entre esses termos. Ontogenia, por sua vez, o desenvolvimento do
organismo individual at a fase adulta.
-
9
(contra o princpio da agncia); alm disso, segundo os macroevolucionistas, a evoluo
ocorre de forma saltacionista (contra o gradualismo) e tem seus prprios processos8
independentes, em certa medida, da microevoluo (contra o princpio do alcance).
De qualquer maneira, contra a viso aceita, enriquecida pelos trs princpios de
Gould, que iremos contrastar as teses da auto-organizao e da contingncia. Em nossa
caracterizao do darwinismo, deixamos de fora inmeros aspectos epistemolgicos que
certamente dariam origem a outras proveitosas discusses; ironicamente, sequer citamos
Darwin. Porm, nossa omisso estratgica: voltaremos a discutir o darwinismo luz
de um vocabulrio filosfico na seo 1.6.
1.2.2 O neodarwinismo
Poderamos descrever brevemente a sntese neodarwiniana como o aporte de
mtodos, resultados e conceitos da gentica de populaes para a consolidao dos
princpios darwinianos de que falamos na seo anterior9. A gentica de populaes
permitiu que a evoluo fosse definida e medida como mudanas nas freqncias
gnicas das populaes. Essas mudanas, para os geneticistas de populaes, so
resultantes da interao de quatro foras evolutivas: mutao, deriva gentica, migrao
(fluxo gnico) e seleo. Nas palavras do bilogo evolutivo Douglas Futuyma:
Os princpios fundamentais da sntese evolutiva eram que as populaes contm variao
gentica que surge atravs de mutao ao acaso (isto , no dirigida adaptativamente) e
recombinao; que as populaes evoluem por mudanas nas freqncias gnicas trazidas
pela deriva gentica aleatria, fluxo gnico e, especialmente, pela seleo natural; que a
maior parte das variantes genticas adaptativas apresentam pequenos efeitos fenotpicos
individuais, de tal modo que as mudanas fenotpicas so graduais [...]; que a
diversificao vem atravs da especiao, a qual ordinariamente acarreta a evoluo
gradual do isolamento reprodutivo entre populaes; que esses processos, se continuados
por tempo suficientemente longo, do origem a mudanas de tal magnitude que facultam
a designao de nveis taxonmicos superiores (gneros, famlias, e assim por diante).
(Futuyma, 2003, p.13)
O neodarwinismo, ento, transformou a teoria evolutiva em uma teoria de foras
(Sober, 1984); assim, definiu com rigor matemtico no s os conceitos, mas tambm o
8 Se h ou no processos causais estritamente macroevolutivos ser assunto de outras investigaes. 9 Um detalhadamento da histria da sntese foge aos nossos propsitos. Uma boa referncia histrica
Sturtevant (2001 [1965]). Para uma interpretao da sntese, ver o captulo 7 de Gould (2002).
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10
ideal de ordem natural (Toulmin, 1961; Caponi, 2004a) da biologia evolutiva: a lei de
Hardy-Weinberg. Um ideal de ordem natural um princpio metafsico, inerente a uma
teoria cientfica, que postula o estado natural das coisas de acordo com aquela teoria;
uma aluso ao conjunto de fenmenos que no demanda explicao. Na fsica
newtoniana, por exemplo, o princpio da inrcia o ideal de ordem natural: o repouso e
a inrcia no precisam de explicaes dentro da teoria, mas o movimento sim. Ento, a
lei (tambm conhecida como princpio ou equilbio) de Hardy-Weinberg nos diz o que
acontece com as freqncias de dois alelos em uma determinada populao sobre a qual
nenhuma das quatro foras evolutivas esteja agindo.
Nas dcadas de 1920 e 1930, os geneticistas de populaes R. A. Fisher, J. B. S.
Haldane e S. Wright trataram algebricamente (diramos, analiticamente: v. seo 4.2.3)
a lei de Hardy-Weinberg, derivando os efeitos evolutivos do tamanho da populao, da
intensidade da presso seletiva, da taxa de mutao, dentre outros. Uma segunda
gerao da sntese, epitomizada pela figura de Theodosius Dobzhansky, buscou aplicar
esses resultados a populaes reais (Sturtevant, 2001 [1965]). O darwinismo, que tinha
uma formulao frouxa at a sntese neodarwiniana, com ela passa a se legitimar,
instituindo rigorosamente sua prpria metodologia e ontologia.
1.2.3 O pluralismo
A sntese neodarwiniana foi um consenso limitado (Gould, 2002); algumas
disciplinas biolgicas, como a biologia do desenvolvimento e o estudo da
macroevoluo, foram deixadas de fora10. A partir da dcada de 1970, h esforos
renovados em integrar esses campos biologia evolutiva, e uma das figuras de destaque
nesse cenrio , uma vez mais, Gould. Alm de ser o autor da obra que reviveu os
debates sobre a relao entre ontogenia e filogenia (Gould, 1977; cf. Arthur, 2002),
tambm deu contribuies importantssimas paleobiologia macroevolutiva11 (v.
10 Estritamente falando, entretanto, o paleontlogo George Gaylord Simpson, que talvez possa ser
considerado o fundador da paleobiologia (v. nota seguinte) e do estudo da macroevoluo tal como
entendidos hoje, participou da sntese neodarwiniana. No entanto, sua interpretao inicialmente
inovadora, que postulava mecanismos macroevolutivos com relativa independncia da microevoluo,
mais tarde se desvirtuou, prezando os mecanismos microevolutivos (cf. Gould, 1994a; Gould, 2002,
p. 530). 11 A paleobiologia o estudo quantitativo (em comparao com a abordagem mais qualitativa da
paleontologia clssica) do registro fossilfero. Assim, ao invs de focar aspectos de classificao
filogentica, aborda eventos de extino, diversificao e especiao, bem como padres de variao,
-
11
Gould, 1995, para uma breve retrospectiva). Conforme mencionamos, para Gould, a
sntese, sendo um endurecimento dos trs princpios darwinianos, teria passado por
cima de outros aspectos importantes do fenmeno evolutivo, os estruturais e os
histricos (v. a seguir). A biologia do desenvolvimento e a macroevoluo, ao enfatizar,
respectivamente, cada um desses aspectos, poderiam ter fornecido contribuies
importantes sntese (Gould, 2002).
Niles Eldredge, colega de Gould, descreve a situao atual da biologia evolutiva
como uma diviso entre ultradarwinistas e naturalistas (1995). Os ultradarwinistas so
figuras como John Maynard Smith (aluno de J. B. S. Haldane), Richard Dawkins e
George Williams, responsveis por propagar uma viso genecentrista e adaptacionista
(Gould e Lewontin, 1979) da evoluo, reminescente do neodarwinismo. Os
naturalistas, como os paleobilogos, eclogos e sistematas, em contapartida, defendem
uma abordagem anti-reducionista da evoluo, reconhecendo a complexidade dos
fenmenos biolgicos e, freqentemente, buscando causas extra-biolgicas para os
fenmenos estudados. Diante de uma extino em massa, por exemplo, um
ultradarwinista poderia apontar um fator biolgico como causa do evento, por exemplo,
uma situao de m adaptao dos organismos extintos em relao a seu ambiente. Um
naturalista, por outro lado, procuraria por causas fsicas, como impactos de meteoros e
episdios de resfriamento global12.
Gould prope um outro esquema conceitual que, acreditamos, nos permite entender
as diferentes vises tericas sobre a evoluo com uma clareza maior do que a simples
diviso entre ultradarwinistas e naturalistas. Poderamos dividir os tericos de acordo
com as influncias que eles consideram mais importantes na determinao da ordem (ou
forma) dos organismos: os funcionalistas (no bilogos funcionais, mas o equivalente
gouldiano dos ultradarwinistas), os historicistas e os estruturalistas. De maneira geral,
os historicistas e os estruturalistas, na medida em que buscam fatores no estritamente
biolgicos (leia-se: no estritamente adaptativos) na determinao da ordem
biolgica, podem ser considerados naturalistas no sentido de Eldredge (1995).
O esquema apresentado na figura 1.1, chamado de tringulo aptativo, ilustra de
abundncia e distribuio espao-temporal de taxa fsseis (cf. as diretrizes para publicao do Journal
of Paleontology e as do Paleobiology, ambos publicados pela Paleontological Society:
http://www.paleosc.org). 12 Para a distino entre causas biolgicas e fsicas das extines, v. Raup (1991).
-
12
forma simples as diferentes influncias que podem ocorrer sobre a ordem biolgica.
Cabe ressaltar que o termo tringulo aptativo se refere ao conceito de aptao13 de
Gould e Elisabeth Vrba (1998 [1982]). Nesses termos, dizer que toda a ordem biolgica
provm de adaptaes enxergar apenas parte do quadro geral da evoluo. Gould nos
diz, com esse esquema, que qualquer aptao pode ter sido (1) construda por um
processo que diretamente a lapidou para sua funo atual aqui sim, uma adaptao
(vrtice funcional); (2) herdada de uma forma ancestral (vrtice histrico); ou (3)
construda por um mecanismo ou processo estrutural no diretamente relacionado s, ou
engendrado pelas, necessidades funcionais da populao (vrtice das influncias
formais ou estruturais; Gould, 2002, p. 1052). Entre os mecanismos ou processos
estruturais, duas diferentes causas produzem estruturas aptativas: (1) a modelagem
fsica do material plstico de que so feitos os organismos; e (2) o que Gould chama de
seqelas arquiteturais, spandrels (Gould e Lewontin, 1979), conseqncias no-
adaptativas de outras caractersticas que, mais tarde, se tornam disponveis para co-
opo com fins aptativos em taxa descendentes, isto , se tornam exaptaes (Gould,
2002, p. 81).
13 Gould e Vrba chamam ateno para o fato de que a palavra adaptao vem de ad e aptus, ou seja,
apto para alguma coisa. Assim, criaram o termo exaptao (ex e aptus, apto a partir de) para
designar caractersticas que, embora no cumprissem inicialmente um papel adaptativo, no momento
em que passam a faz-lo, so selecionadas. Adaptaes e exaptaes fazem parte de uma categoria
mais ampla de Gould e Vrba, a das aptaes. Nas palavras de Gould e Vrba, [o] fenmeno geral e
esttico de estar apto deveria ser chamado aptao, no adaptao (Gould e Vrba, 1998 [1982],
p. 55).
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13
Figura 1.1 O tringulo aptativo das influncias sobre a ordem biolgica
(extrado de Gould, 2002, p. 259).
Agora, o tringulo pode servir para posicionarmos diferentes tericos da evoluo de
acordo com o peso que do para cada um dos trs fatores. Conforme j mencionamos,
os ultradarwinistas de Eldredge (1995), por exemplo, privilegiariam o vrtice funcional
em detrimento dos outros dois. Um estruturalista como Brian Goodwin14 se ocuparia do
vrtice estrutural, enquanto um cladista centraria sua ateno nos aspectos histricos da
determinao da forma (Gould, 2002, p. 1060). importante perceber que Darwin,
embora tenha detalhado e privilegiado as influncias funcionais (adaptativas) na
determinao de caracteres morfolgicos, no negligenciou de todo os outros dois
vrtices. De fato, Gould salienta que a preocupao histrica pela forma, traduzida no
raciocnio unidade do tipo, logo ascendncia comum15, uma inveno darwiniana
(Gould, 2002, p. 256-7).
1.3 Perguntas
A dualidade entre os aspectos nomolgico e histrico de que falvamos se enquadra
no esquema que acabamos de definir. Trivialmente, pode-se dizer que algumas
14 Na seo 4.2, definiremos com maior preciso a tradio estruturalista e o programa de Brian Goodwin. 15 Esse raciocnio inclusive chamado de modus Darwin por Elliott Sober (1988).
Histricas contingncias da filogenia
Formais
regras de estrutura
Funcionais adaptao ativa
-
14
abordagens contingentistas (no sentido de que ocupam o vrtice histrico do tringulo
aptativo) buscam resgatar os aspectos histricos, no-legaliformes, da histria da vida.
Aspectos nomolgicos, por sua vez, ocupam tanto o vrtice funcional quanto o
estrutural, mas nesse ltimo que aparecem com mais rigor, quando entendemos
estruturalismo como o estudo das influncias fsicas sobre o material de que so feitos
os organismos. As regularidades que ocupam o vrtice funcional, por sua vez, so
aquelas prprias gentica de populaes, ou seja, so extenses do mecanismo regular
que a seleo natural.
De maneira geral, as abordagens historicistas so motivadas por uma crena de que
impraticvel estudar a biologia por meio de leis, e por isso se opem aos vrtices
funcionalista e estruturalista. Os estruturalistas, pelo contrrio, acreditam que a biologia
tem de buscar leis to rigorosas quanto aquelas encontradas na fsica, e polemizam
ainda com os funcionalistas ao argumentar que a seleo natural no d conta de
produzir a totalidade das formas dos organismos existentes.
Estamos agora em uma posio que nos permite formular nossa problemtica em
termos mais precisos. Em um primeiro momento, investigaremos uma abordagem
considerada estruturalista (a tese da auto-organizao de Kauffman) e uma claramente
historicista (a tese da contingncia de Gould), comparando cada uma delas com a viso
aceita (seo 1.2.1), que representaria o vrtice funcional. Compararemos, tambm, as
duas teses entre si, mas somente aps discutirmos se Kauffman realmente pode ser
considerado um estruralista, e quais as implicaes do modelo de explicao proposto
por Gould para a paleobiologia. Na tabela 1.1, resumimos as perguntas que orientam
nossa investigao e em quais captulos ou sees elas recebem tratamento explcito.
Tabela 1.1 Viso geral da estrutura desta dissertao, enfocando as perguntas que orientam cada um dos
captulos ou sees do trabalho. Pergunta Captulo/Seo Como a tese da auto-organizao se relaciona com a viso aceita? 2 Como a tese da contingncia se relaciona com a viso aceita? 3 A caracterizao que se faz de Kauffman como estruturalista adequada?
4.2
Quais as implicaes da tese da contingncia para o tipo de explicao proposto por Gould para a paleobiologia?
4.3
Como as teses da auto-organizao e da contingncia se relacionam entre si?
4.4
A seguir, apresentaremos brevemente cada uma das duas teses, e na seo final deste
captulo assentaremos a base filosfica sobre a qual nossa discusso ser edificada.
-
15
1.4 Seleo natural e auto-organizao
Auto-organizao o nome dado a uma srie de fenmenos em que padres no nvel
global de um determinado sistema emergem espontaneamente, somente a partir de
interaes entre as subunidades do sistema (Anderson, 2002). Se h informaes vindas
do exterior, ou se os padres so impostos artificialmente ao sistema, no h auto-
organizao (Maynard Smith, 1998). Uma comparao com o trabalho humano nos
ajuda a compreender esse ponto:
Considere, por exemplo, um grupo de trabalhadores. Falamos ento de organizao ou,
mais exatamente, de comportamento organizado se cada trabalhador atua de uma maneira
bem definida sobre ordens dadas externamente, isto , pelo chefe. Chamaramos este
mesmo processo de auto-organizado se no houver ordens externas, mas os trabalhadores
trabalham juntos por alguma espcie de consentimento mtuo. (Haken, 1970 apud
Camazine et al., 2003, p. 8)
Kauffman um dos pesquisadores ligados ao estudo da auto-organizao que mais se
preocupa em apontar implicaes que seus resultados podem ter para a biologia
evolutiva. A chamada hiptese ousada de Kauffman a idia de que a auto-
organizao, como propriedade dos seres vivos, seria uma condio para a ao da
seleo natural. Ao mesmo tempo, defende Kauffman, a seleo natural por si prpria
otimiza a capacidade de auto-organizao. Realizando diversos experimentos com
simulao computacional, Kauffman mostrou, por exemplo, que sistemas que no
possuam a propriedade de auto-organizao so incapazes de desenvolver adaptaes:
poderia-se dizer que so refratrios ao da seleo natural. Sua obra principal, The
Origins of Order (1993) um apanhado exaustivo desses experimentos (alm de alguns
experimentos convencionais) que buscam explicitar a relao entre auto-organizao e
seleo natural.
Os captulos iniciais dos livros de Kauffman sobre auto-organizao (1993; 1995)
estabelecem os termos para uma abordagem formal do problema da origem da vida. O
modelo apresentado bastante semelhante clssica sopa primordial, embora
Kauffman prefira o termo rede metablica. O argumento que, dada uma sopa de
elementos que catalizem reaes entre si, mesmo que as probabilidades dessas
catlises mtuas sejam muito pequenas, a formao de uma rede fechada de reaes
ocorre espontaneamente. Quer dizer, o produto de uma reao passa a ser o catalizador
de outra, e assim por diante, at que o conjunto se assemelhe bastante a vias metablicas
-
16
dos organismos que conhecemos. Isso significa, para Kauffman, que as redes
metablicas se auto-organizam (Kauffman, 1997).
Assim, por exemplo, podemos ter uma sopa de dois elementos, A e B: A pode
catalizar a reao entre A e B formando o elemento AB, que por sua vez pode catalizar a
reao entre ele mesmo e B, formando ABB, etc. Segundo Kauffman, condies desse
tipo so plausveis em um cenrio para o incio da vida, dado que existem muitas
molculas simples com a propriedade de auto-catlise16 (Kauffman, 1995).
As redes metablicas so, para Kauffman, o paradigma de sistema auto-organizante:
elas podem no somente ser um bom modelo para a origem da vida, como tambm nos
revelar insights sobre a relao entre auto-organizao e seleo natural. Em relao ao
segundo aspecto, Kauffman tinha a intuio de que diferentes nveis de conectividade
entre os elementos promoveriam diferenas no comportamento evolutivo da rede como
um todo. Para testar essa hiptese, ele criou um modelo de simulao computacional a
partir da idia de rede metablica: as redes booleanas aleatrias.
Nas redes booleanas aleatrias, que definiremos em maiores detalhes no captulo 2,
cada elemento (molcula) de uma rede metablica descrito por uma varivel binria
(ou seja, pode assumir o valor 0 ou o valor 1), que representa a presena ou ausncia
daquele elemento na rede. Esses elementos esto conectados entre si, isto , a presena
ou ausncia de um elemento depende da presena ou ausncia de outros K elementos, de
acordo com funes booleanas (lgicas) escolhidas aleatoriamente. A varivel K, de
suma importncia para o entendimento da tese da auto-organizao de Kauffman, uma
medida de conectividade: se K = 2, cada elemento da rede booleana est conectado a
outros dois. O estudo da relao entre K e o nmero N de elementos da rede permitiu
que Kauffman estabelecesse um repertrio de comportamentos possveis das redes
booleanas. Submetendo essas redes a simulaes de fenmenos de seleo natural (v.
sees 2.4.3 e 2.5), Kauffman foi capaz de determinar qual o valor de K para que a
seleo natural gere adaptaes da maneira mais eficaz possvel.
1.5 A tese da contingncia evolutiva
Bilogos e leigos se maravilham com a histria da vida na Terra. A conjuno de
fatores de contingncias, diria Gould (1990) que desembocaram na vida inteligente
16 Uma molcula auto-cataltica consegue, semelhana de A no exemplo que demos, catalisar a reao
entre ela mesma e outra molcula.
-
17
irreprodutvel. A estupefao de Gould diante da fragilidade da linha (ou melhor,
linhagem) que conduz at ns, seres humanos, comea com uma contemplao do
fenmeno conhecido como Exploso Cambriana. Durante o perodo Cambriano, h
aproximadamente 540 milhes de anos, rapidamente apareceram muitos planos
morfolgicos dspares, uma cornucpia de variedade que, segundo Gould, no encontra
paralelo na histria da vida. A essa exploso, rapidamente se seguiu uma extino
massiva que eliminou os taxa hegemnicos, mas que surpreendentemente poupou um
txon minoritrio, o Pikaia, um dos ancestrais dos cordados que conhecemos hoje. Se,
por alguma razo, o Pikaia tivesse sido extinto, escreve Gould, a Terra no teria
cordados, tampouco seres humanos (Gould, 1990).
Gould sugere que no h por que pensarmos que o surgimento e a sobrevivncia de
Pikaia, ou mesmo de qualquer taxon, sejam, em algum sentido, necessrios. Se
rebobinssemos a fita da vida e a tocssemos novamente, nos diz Gould (1986), temos
todas as razes para pensar que a histria seria diferente e, muito provavelmente, o
Homo sapiens sequer estaria no elenco. Na verdade, experimentos de pensamento desse
tipo so chamados de histrias contrafatuais, isto , verses alternativas, diferentes da
Histria que realmente aconteceu. Sterelny e Griffiths (1999) lem que um processo
aberto a contingncias, para Gould, no apresentaria resilincia contrafatual, ou seja,
capacidade de regenerao frente a histrias contrafatuais. Com esse termo,
resilincia contrafatual, possvel esclarecer com bastante especificidade o que Gould
quer dizer com processo aberto a contingncias. Afinal, poderamos argumentar que a
tese de Gould trivial, que qualquer processo est aberto a contingncias. Claramente,
entretanto, Gould no diria que o desenvolvimento embrionrio est aberto a
contingncias no sentido que emprega em Vida Maravilhosa (1990). Para colocar as
concluses de Gould usando as palavras de Sterelny e Griffiths, o desenvolvimento
embrionrio apresenta resilincia contrafatual, enquanto o processo evolutivo no. Em
certo sentido, a filogenia tem muito mais opes de vias a percorrer do que a ontogenia.
Essa enormidade de opes inviabiliza, segundo Gould, quaisquer tentativas de
prever o estado futuro de uma determinada populao. Deste fato, Gould conclui que
no se pode explicar as mudanas evolutivas de larga escala (isto , mudanas
macroevolutivas) como sendo acumulaes de mudanas graduais ocorrendo em
espcies, na vastido do tempo geolgico17. Claramente, ento, a viso aceita
17 Essa viso, que pode ser considerada uma formulao do princpio do alcance, chamada por Gould de
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18
extrapolacionista, pois envolve o princpio do alcance e atesta explicitamente que as
mudanas evolutivas so graduais. Gould parece nos alertar que o perigo do
extrapolacionismo est na tentativa de transformar em nomolgico algo que
contingente. Mas importante, conforme veremos, no confundir macroevoluo e
microevoluo: pode ser que o extrapolacionismo, e a viso aceita em geral, fornea
bases suficentes para a explicao da microevoluo.
1.6 Poder causal e poder explicativo da seleo natural
Responder s perguntas que propusemos na seo 1.3 requer a importante distino,
proposta pelo filsofo da biologia Jean Gayon, entre poder causal18 e poder explicativo,
atribudos respectivamente seleo natural enquanto agente produtor da mudana
adaptativa, e ao princpio de seleo natural enquanto princpio explicativo de uma
classe de fenmenos (Gayon, 1997). A distino, segundo Gayon, pode ser entendida a
partir do prprio Darwin, para quem a seleo natural tinha um poder soberano em
causar a mudana adaptativa (ou seja, as adaptaes so, por definio, o produto da
ao da seleo natural). Modernamente, entretanto, o poder da seleo natural tem sido
criticado em um outro sentido, que no est explcito em Darwin: trata-se de seu poder
explicativo. A medida do poder explicativo do princpio de seleo natural quais
classes independentes de fenmenos ele consegue explicar. Nas palavras de Gayon:
[E]xtino, divergncia, ou padres de classificao, enquanto possam ser apresentados
como conseqncias da seleo natural, pertencem a seu poder explicativo. Entretanto, o
prprio Darwin no falava do poder da seleo nesse sentido. Ao invs disso, ele
costumava restringi-la [a seleo] explicao de apenas uma classe de fenmenos, a
modificao adaptativa das espcies. somente neste contexto preciso que ele
qualificava a seleo como um poder soberano [paramount power], ou simplesmente
(na Origem das Espcies) como um poder, ou ento como agente. No vocabulrio
filosfico espontneo de Darwin, o poder da seleo, seja artificial ou natural, consistia
no resultado imediato de sua ao. Em outros contextos explicativos, ele preferia dizer
que a seleo natural acarreta, leva a, explica, induz ou mesmo causa, por
exemplo, a extino, a divergncia, ou as afinidades. (Gayon, 1997, p. 266)
extrapolacionismo (v. captulo 3). 18 A expresso nossa; Gayon se remete constantemente expresso poder soberano, utilizada por
Darwin em As Variaes dos Animais e Plantas sob Domesticao (1883 [1868]).
-
19
Gayon traa ainda um breve panorama sobre os usos das expresses hiptese e
teoria da seleo natural em Darwin. Na introduo Variao, Darwin comenta que
[n]as investigaes cientficas, permitido inventar qualquer hiptese, e se ela explicar
vrias classes amplas e independentes de fenmenos, se eleva ao nvel de uma teoria
bem-fundamentada (Darwin, 1883 [1868], p. 9). Analogamente, a hiptese da seleo
natural derivada de algumas premissas empricas, como a taxa de reproduo das
espcies, a limitao dos recursos e fatos sobre variao e herana, por um lado, e o
modelo da seleo artificial por outro (figura 1.2). A extenso dessa hiptese
explicao de fenmenos como os instintos animais, extino, divergncia, distribuio
geogrfica das espcies, afinidades e homologias, empreendida por Darwin nos
captulos 7 a 12 da primeira edio da Origem, constitui a teoria da seleo natural
(parte inferior da figura 1.2; Gayon, 1997).
Figura 1.2 A relao entre hiptese, teoria, e as classes de fenmenos que podem ser explicados por ela,
de acordo com Darwin (adaptada de Gayon, 1997).
Onde se encaixa, nesse quadro, o poder causal ou soberano da seleo natural? De
todo o espectro de fenmenos passveis de serem explicados pelo prisma da hiptese,
Darwin invoca o poder soberano da seleo natural como causa das adaptaes
morfolgicas e dos instintos (figura 1.2, parte inferior, esquerda). Gayon esclarece
que:
A afirmao de Darwin de que a seleo, se no a nica fora orientando a mudana
evolutiva, capaz de driblar [overcome] qualquer outra fora (como: variao aleatria,
correlao de rgos, ou o efeito do uso e desuso). Embora essa tese fosse absolutamente
-
20
crucial para Darwin, no deve ser confundida com a representao da seleo como
unificando todo o campo da histria natural da vida. Modificao das espcies uma
coisa; extino, distribuio geogrfica das espcies, divergncia e diversidade (como
refletidas na classificao) so outras. A tese do poder soberano est preocupada
apenas com a modificao adaptativa das espcies. (Gayon, 1997, p. 269)
Conforme se pode perceber, na viso aceita, o poder causal da seleo natural no
processo adaptativo est contemplado no item 5 (o mecanismo para as mudanas
adaptativas a seleo natural), aliado ao princpio de eficcia (seo 1.2.1). E,
conforme atestam algumas releituras modernas (Gould, 1982; 2002; Sterelny e
Griffiths, 1999), o princpio de seleo natural, por sua vez, parece ser o mais
importante recurso explicativo da viso aceita. Talvez poderamos reapresentar o
endurecimento da sntese, utilizando o vocabulrio filosfico espontneo de Darwin,
como tendo extrapolado inescrupulosamente o poder causal da seleo natural para
todas as classes de fenmenos da teoria da seleo natural. A seleo natural, e o
respectivo princpio explicativo, acabaram sendo entronados pelo neodarwinismo como
totipotentes em suas posies.
Toda a nossa investigao se articular sobre a distino que acabamos de
apresentar: a afronta de Gould ao extrapolacionismo busca mostrar que o poder
explicativo do princpio de seleo natural insuficiente diante da histria da vida na
Terra; por outro lado, o prprio Gayon apresenta a tese da auto-organizao de
Kauffman como uma crtica ao poder causal da seleo natural (cf. Gayon, 1997). A
pergunta sobre a relao das duas teses com a viso aceita passa necessariamente por
uma avaliao sobre se essas crticas so de fato o que pretendem ser.
-
21
2 A TESE DA AUTO-ORGANIZAO
2.1 Apresentao
Incrustada no deserto do sudoeste norte-americano, em uma paisagem dominada por
mesas e tingida de terracota, est a pitoresca cidade de Santa Fe. A arquitetura
minimalista dos ndios Pueblo ubqua, ostentando construes em adobe (mistura de
argila e palha, seca ao sol) que poderiam ter sido projetadas por um Le Corbusier com
gosto tnico. O aspecto planltico que a ausncia de telhados angulados confere quelas
construes parece querer imitar as mesas. Ao mesmo tempo, faz contraponto s
encostas das montanhas Sangre de Cristo, no horizonte. Paradoxalmente, aquela
paisagem elementar, minimalista como retratada nas telas de Georgia OKeeffe, foi o
local escolhido para a instalao de um dos mais importantes centros mundiais para o
estudo da complexidade, o Santa Fe Institute.
De suas pesquisas naquele instituto, Stuart Kauffman reuniu os resultados que
constituem o cerne de The Origins of Order (1993), seu opus magnum. Mas talvez o
subttulo de seu segundo livro, At Home in the Universe (1995), descreva melhor o fio
condutor de todo o trabalho de Kauffman: a busca pelas leis da auto-organizao e da
complexidade. Explicitamente, a idia de Kauffman integrar estas leis ao quadro
da seleo natural, na inteno de conceber uma viso mais adequada da evoluo.
Neste captulo, apresentaremos brevemente algumas questes histricas e
metodolgicas por trs das idias de Kauffman e descreveremos o modelo por ele
utilizado para fundamentar suas concluses sobre auto-organizao: as redes booleanas
aleatrias. Por fim, gostaramos de sugerir que o conceito de auto-organizao em
Kauffman tem duas conotaes, ordem gratuita e adaptabilidade. A segunda delas
tem maior pertinncia para a presente discusso, em particular na formulao que
Kauffman chama de hiptese ousada [bold hypothesis], que se refere estreita
interdependncia entre seleo natural e auto-organizao. Queremos identificar o que
chamamos de tese da auto-organizao com a hiptese ousada.
-
22
2.2 A inspirao da biologia molecular para a tese da auto-organizao
O estudo da biologia funcional passou por uma radical molecularizao durante o
sculo 20, refletida na evoluo da microscopia. Enquanto o poder de resoluo dos
melhores microscpios, no incio daquele sculo, permitia apenas a visualizao de
organelas celulares, s margens do sculo 21, cientistas j eram capazes de visualizar os
contornos dos tomos. Na medida em que a ontologia do conhecido e do conhecvel
no nvel microscpico ia sendo preenchida, outras tcnicas experimentais
acompanharam o movimento.
A gentica molecular um dos grandes frutos dessas exploraes; a descoberta do
operon lac, por Franois Jacob, Jacques Monod, e Andr Lwoff, atesta a maturidade
que as tcnicas de experimentao molecular haviam atingido por volta de 1950, e
mostra da sedimentao da biologia molecular como disciplina (Morange, 1994,
p. 194). Os prprios protagonistas da descoberta se preocuparam, nas dcadas seguintes,
em mostrar como ela poderia ser compatibilizada com o restante da biologia, e
especialmente com a biologia evolutiva, escrevendo trs grandes clssicos de
divulgao cientfica.
Dificilmente, por exemplo, encontramos uma definio mais sucinta e precisa de
ordem biolgica do que no livro de Lwoff dedicado ao tema:
Um certo aspecto da ordem o arranjo determinado presente na constituio existente das
coisas. A ordem pode assim ser considerada uma seqncia, ou uma sucesso, no espao
ou no tempo. A ordem biolgica tudo isso, e especialmente uma seqncia no espao e
no tempo. A ordem biolgica possui uma dualidade estrutural e funcional, esttica e
dinmica. Os dois tipos de ordem, estrutural e funcional, representam os aspectos
complementares do ser vivo. Um ser vivo um sistema de ordem dupla. Devemos saber
em que consiste esse duplo sistema. (Lwoff, 1969, p. 20)
Poderamos dizer que esse conceito de ordem subjacente a grande parte das
discusses sobre ordem, organizao, e mesmo auto-organizao, que ocorreram na
biologia do sculo 20. Certamente, adequado para a presente discusso, e convm
manter sua generalidade, porque combina com o ideal de universalidade buscado pelos
experimentos de Kauffman. Conforme veremos adiante, Kauffman est preocupado
com as influncias lgicas sobre a ordem biolgica em um mbito bastante amplo.
Monod, particularmente, rejeita fortemente a necessidade de apelar ao que ele chama
de animismos para explicar essa espantosa ordem bioqumica existente nos seres vivos.
-
23
O surgimento da ordem biolgica, para ele, resultante da seleo natural, qual alude
como um jogo entre acaso e necessidade. O primeiro fonte de invenes cegas que,
caso satisfaam a necessidade, passam a figurar definitivamente na certeza, isto , na
ordem biolgica (Monod, 1970).
De maneira semelhante, Franois Jacob compara a seleo natural bricolagem.
Jacob chama ateno para as diferenas entre o bricoleur19 e o engenheiro, mostrando
como a seleo natural se aproxima daquele e no deste:
Semelhantemente [ao bricoleur], a evoluo faz uma asa a partir de uma perna ou uma
parte da orelha a partir de um pedao de mandbula. [...] A evoluo se comporta como
um bricoleur que, por eras e eras, vai modificando sua obra, incessantemente retocando,
cortando aqui, emendando ali, aproveitando as oportunidades para adapt-la
progressivamente para seu novo uso. (Jacob, 1977, p. 1164)
A descoberta do operon lac, assim como tais declaraes posteriores por parte dos
descobridores, influenciou Kauffman em trs sentidos. Em primeiro lugar, a idia de
redes genmicas regulatrias, cujo paradigma o operon lac, est na base da
concepo do modelo de redes booleanas aleatrias (v. seo 1.4):
Desde que Jacob e Monod descobriram que os produtos de um gene podem ativar ou
reprimir as atividades de outros genes, os bilogos passaram a pensar no sistema
genmico como um tipo de computador bioqumico. Os genes estruturais e regulatrios
esto ligados em uma espcie de circuitaria, regulando e coordenando o comportamento
uns dos outros. (Kauffman, 1992a, p. 167)
O segundo sentido da influncia foi, por assim dizer, negativo. Enquanto Kauffman
se entusiasmou (Lewin, 1994, p. 39) com a metfora do computador bioqumico, no
aceitou a idia que a seleo natural era a nica responsvel pela ligao da circuitaria.
Afinal, [na] viso de mundo da bricolagem, a seleo a nica, ou se no a nica,
fonte preeminente de ordem (Kauffman, 1992b, p. 305). Kauffman se mostrou
incrdulo de que, a partir de um genoma de 100.000 genes, a seleo natural teste
cada um dos 1030.000 estados possveis (v. sees 2.4.1 e 2.4.2), encontrando o nmero
ideal de tipos celulares que possam ser produzidos a partir deles (Kauffman, 1991,
19 Algumas tradutores utilizam o substantivo remendo (v. p. ex. a traduo de Talita M. Rodrigues em
Dennett, 1998, p. 228) para traduzir tinkerer (do ingls) e bricoleur (do francs), mas optamos por
preservar o original francs, mantendo-o em itlico, uma vez que o abrasileiramento bricolagem j
bastante usado.
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24
p. 69; Lewin, 1994, p. 40). A soluo, contra-intuitiva nas palavras de Kauffman, de
que mesmo redes genmicas construdas ao acaso podem apresentar ordem espontnea,
e configurar automaticamente um determinado nmero de tipos celulares:
Traando a histria dessa descoberta, a descoberta de que sistemas extremamente
complexos podem exibir ordem gratuita, de que nossas intuies estavam
profundamente enganadas, comea com a intuio de que mesmo circuitos moleculares
aleatoriamente ligados [wired] e com lgica tambm aleatria exibiam
comportamento ordenado se cada gene ou varivel molecular fosse controlada por apenas
alguns poucos outros [genes ou variveis moleculares]. (Kauffman, 1992b, p. 305)
Frente a essa descoberta, a biologia teria de ser repensada, e a evoluo
reapresentada como um casamento entre seleo natural e auto-organizao
(Kauffman, 1997, p. 133).
O terceiro ponto que tanto Lwoff quanto Monod pareciam estar imersos no
Zeitgeist da ciberntica e da teoria da informao, ao se mostrarem preocupados em
estabelecer uma ciberntica microscpica (Monod, 1970, p. 87-107) e em provar que
a vida no viola o segundo princpio da termodinmica (Lwoff, 1969, p. 164-176;
Monod, 1970). A seguir, comentaremos como a ciberntica motivou a metodologia de
simulao computacional de Kauffman.
2.3 A explicao por articulao de partes
Em um dos raros artigos em que comenta sobre seus pressupostos metodolgicos,
Kauffman (1998 [1970]) afirma que o trabalho de construo de hipteses em biologia
(diramos, funcional) se d por meio da postulao de modelos simblicos que
indiquem como as diferentes partes do sistema estudado poderiam se articular para
produzir um determinado comportamento de interesse. Assim, as explicaes biolgicas
seriam explicaes por articulao de partes, contrastando com outros tipos de
explicao, como algumas da fsica clssica, em que o comportamento de um sistema
no funo da interao entre suas partes. Kauffman utiliza o termo modelo
ciberntico para designar o modelo simblico que o bilogo constri antes de apresentar
um modelo causal:
O uso de uma descrio adequada de um organismo que faz algo em particular, para guiar
nossa decomposio de tal organismo em suas partes e processos inter-relacionados e
que de fato parte da lgica da investigao , est intimamente vinculado s condies
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25
suficientes para uma descrio adequada. Em particular, podemos usar as condies
suficientes para gerar um modelo ciberntico que mostre como as partes simblicas
podem se articular para produzir uma verso tambm simblica do comportamento
descrito. [...] Podemos usar o modelo ciberntico para nos ajudar a encontrar um modelo
causal isomrfico que mostre como as supostas partes e processos do sistema real podem
se articular para produzir o comportamento descrito. (Kauffman, 1998 [1970], p. 43)
Antes de apresentarmos em maiores detalhes a proposta da explicao por
articulao de partes, cabe um comentrio a respeito do uso do termo ciberntica em
Kauffman (1998 [1970]. Ao se reportar ciberntica, est endossando uma tradio de
pesquisa que prima pela decomposio lgica do objeto de estudo. Conforme assinala
Philippe Goujon (cf. 1999), a abordagem precursora da ciberntica foi a formalizao
do conceito de mquina, feita na dcada de 1930 por Turing e outros autores. A
ciberntica seria a concepo simblica, lgica, operacional, mesmo informacional, da
natureza (Goujon, 1999, p. 104), desenvolvida nas dcadas seguintes e levada a cabo
por duas escolas diferentes (Primeira e Segunda). Da mesma forma que os autmatos de
Von Neumann procuravam simular a auto-reproduo, no no nvel gentico ou
bioqumico, mas lgico (Goujon, 1999, p. 109), Kauffman estava inicialmente
interessado em criar um modelo lgico (ou ciberntico sensu Kauffman) de como a
clula alcana sua individualidade (Emmeche, 1994, p. 102).
Outra influncia ciberntica para Kauffman foi Warren McCulloch, um dos
protagonistas da Segunda Ciberntica e co-autor de um dos artigos fundadores da teoria
de redes neurais (McCulloch e Pitts, 1943). Kauffman foi aluno de McCulloch no MIT
e, juntos, escreveram o primeiro artigo contendo resultados de redes booleanas (Lewin,
1994, p. 60). Alm isso, a idealizao ligado/desligado para o gene foi inspirada pela
teoria de redes neurais de McCulloch (Kauffman, 1993, p. 227).
Por fim, o modelo kauffmaniano de adaptao como um percurso em um espao de
estados de um sistema (v. sees 2.4.1 e 2.4.3) inspirado pelo Design for a Brain
(1960), de Ross Ashby, tambm da Segunda Ciberntica (Kauffman, 1993, p. 209).
Ashby tambm cunhou o conceito de auto-organizao, que definiu como indicativo de
uma mquina determinada, mas ainda capaz de sofrer mudanas espontneas de
organizao interna (Ashby, 1947 apud Anderson, 2002, p. 248).
Cremos que as redes booleanas possam ser consideradas modelos cibernticos (sensu
Kauffman) de processos metablicos, redes regulatrias genmicas ou de outros
processos, no necessariamente biolgicos, mas que envolvam a interao sincrnica
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mediada por regras lgicas de elementos interconectados (Kauffman, 1993, p. 182-3;
1995, p. 77). A idia que, se Kauffman conseguisse mostrar que as regras lgicas so
suficientes para descrever comportamentos como a diferenciao celular, uma boa parte
da biologia moderna poderia ser descartada (cf. Sterelny e Griffiths, 1999, p. 375).
Justifica-se esse ponto pelo fato de que, embora Kauffman reconhea que um
comportamento de um sistema pode ser descrito de diferentes maneiras, parece querer
implicar que s uma delas se revelar bem-sucedida empiricamente20. Sobre esse
aspecto, vale lembrar que Kauffman no est propondo um modelo explicativo, e sim
um conjunto de diretrizes para a formulao de hipteses explicativas (os modelos
cibernticos) em biologia funcional. Diferentes modelos cibernticos de um mesmo
comportamento so hipteses explicativas concorrentes que apontam conjuntos
alternativos de causas suficientes21 que, por sua vez, levam a cabo o comportamento em
questo. O modelo ciberntico que for empiricamente bem-sucedido acarreta uma
explicao por articulao de partes, que um modelo causal de como as partes do
sistema real interagem para produzir o comportamento estudado.
Em outras palavras, um comportamento de um sistema biolgico pode ter diversas
causas suficientes e cada modelo ciberntico que for feito para esse comportamento
envolver um subconjunto delas. A implicao dessa idia que, se apenas um modelo
ciberntico se revelar empiricamente bem-sucedido, as causas suficientes postuladas
pelos outros modelos cibernticos podem ser excludas como causas do comportamento
em questo (cf. Kauffman, 1998 [1970], p. 50; p. 56).
Por exemplo, dois bilogos funcionais, Fulano e Ciclano, podem estar interessados
em explicar causalmente o processo de reagregao celular em porferos. Uma
descrio desse sistema envolveria especificaes sobre o movimento das clulas na
gua, sobre quais tipos celulares se avizinham a quais outros, em que orientao, e quais
deles forram o exterior e o interior da estrutura final (Kauffman, 1998 [1970], p. 46). A
partir da, o bilogo Fulano elege um processo ou conjunto A de processos (simblicos),
20 Kauffman (cf. 1998 [1970]) no nos d indicaes sobre quais os critrios de sucesso emprico para um
modelo ciberntico. Talvez um critrio seja o isomorfismo em relao a um sistema causal real, mas
Kauffman tampouco fornece diretrizes para avaliarmos se um modelo ciberntico isomrfico a um
modelo causal. 21 A rigor, a literatura filosfica reservou os conceitos de necessidade e suficincia para se falar de
condies, e no causas, mas como as causas aqui so hipotticas, cremos que se justifica falar em
causas suficientes para abreviar causas prximas hipoteticamente suficientes.
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que so causas suficientes para produzir o estado de coisas descrito esse seu modelo
ciberntico. Ciclano faz a mesma coisa com um conjunto B de causas suficientes,
gerando um outro modelo ciberntico. Apenas um desses modelos ser isomrfico a um
modelo causal do sistema real e esse ser empiricamente bem-sucedido, pois gerar uma
explicao por articulao de partes do comportamento descrito.
Essas consideraes nos sugerem que uma das motivaes iniciais de Kauffman era a
construo de um modelo ciberntico (as redes booleanas) que fornecesse condies
suficientes para descrever alguns comportamentos, como a diferenciao celular,
prprios do domnio de estudo da biologia funcional. Essa viso transformaria outros
conjuntos de causas suficientes classicamente estudados (no exemplo da diferenciao
celular, a difuso de molculas indutoras) em causas no pertinentes para a produo do
comportamento. A seguir, apresentaremos tal modelo e, no fim deste captulo,
tentaremos argumentar que ele no se sustenta como uma proposta de causa suficiente
para fenmenos da biologia evolutiva.
2.4 Redes booleanas aleatrias como um modelo ciberntico para o genoma
A grande contribuio de Kauffman para a biologia funcional terica foi a criao de
um modelo ciberntico para o computador molecular do genoma. Nesta seo,
tentaremos reconstruir a descrio a partir da qual Kauffman formulou o modelo de
redes booleanas aleatrias, explicitando algumas idealizaes envolvidas.
A primeira caracterstica do genoma a ser levada em conta o processamento
paralelo. Na clula, inmeros eventos de transcrio, traduo e regulao acontecem
simultaneamente. Por si s, essa caracterstica torna o computador genmico impossvel
de ser descrito em termos de processamento serial, em que etapas discretas de
processamento sucedem umas s outras no tempo. Assim sendo, a arquitetura mais
adequada para o modelo ciberntico do genoma a de rede, na qual nenhum dos
elementos tem prioridade temporal sobre outro: computaes sobre todas as variveis
so processadas de maneira sincrnica.
A segunda exigncia que o modelo deve ser capaz de representar diferentes estados
de atividade de cada gene. Se pudssemos tirar fotos dos genes, isto , congelar a
clula em um determinado instante e sondar a atividade de diferentes genes,
constataramos que um gene pode, grosso modo, estar ativo ou inativo22. Nosso modelo
22 Essa , evidentemente, uma simplificao: existem, na realidade, taxas de atividade, mas Kauffman
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ciberntico poderia, ento, atribuir uma varivel binria para cada gene, isto , uma
varivel que possa assumir um dentre dois valores por exemplo, 0 ou 123.
Em terceiro lugar, o modelo do operon lac nos fornece insights sobre como a
atividade de um gene tem influncia na atividade de um ou mais outros genes. Em
gentica, fenmenos desse tipo so agrupados sob o nome de epistasia:
[Epistasia ] [u]m efeito sinergtico, sobre o fentipo ou sobre a adaptabilidade, de dois
ou mais locos gnicos, pelo qual seu efeito conjugado difere da soma dos locos quando
tomados separadamente. (Futuyma, 2003, p. 580)
Kauffman, entretanto, usa o termo epistasia para se referir a interaes genticas
em geral (1993, p. 40; 1992a, p. 160). De certa maneira, a exigncia de que nosso
modelo seja episttico j est contemplada pela arquitetura de rede que escolhemos. As
conexes entre os elementos determinam os caminhos de influncia de atividade. Resta
especificar um conjunto de regras para a regulao de atividade.
Por fim, Kauffman percebeu que o comportamento do operon lac, por exemplo, pode
ser descrito por uma regra booleana (no se, tabela 2.1a, que corresponde F3 da
tabela 2.1b). Regras (ou funes) booleanas so conectivos lgicos, como se, e,
ou, no, que determinam o valor de verdade de uma frmula molecular em funo
do valor de verdade de suas frmulas atmicas. No caso do modelo ciberntico de que
estamos falando, o comportamento de uma varivel binria (o output) computado em
funo de outras (os inputs), podendo ser descrito por tabelas como as tabelas de
verdade da lgica (tabela 2.1b).
Tabela 2.1 (a) A lgica do operon lac (adaptado de Kauffman, 1995, p. 101); (b) os outputs de acordo
com cada uma das 16 funes booleanas possveis para 2 inputs. Ver texto para detalhes.
alo-lactose repressor Operador 0 0 0 0 1 1 1 0 0 1 1 0 Regra: no se (F3)
A
apresenta (1993, p. 183-188) um detalhado argumento sobre porque elas podem ser desprezadas. 23 A analogia clssica para esse tipo de varivel imaginar uma lmpada que, quando assume o valor 1,
est ligada; e quando igual a 0, desligada.
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Inputs Outputs A B F1 F2 F3 F4 F5 F6 F7 F8 F9 F10 F11 F12 F13 F14 F15 F16 1 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 1 0 0 0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 0 1 0 0 0 0 1 1 1 1 0 0 0 0 1 1 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 1 1 1 1 1 1 B
Todas essas funes podem ser definidas a partir de um conjunto inicial de
conectivos lgicos, mas uma reproduo dessas definies foge aos propsitos de nosso
estudo. O importante perceber que esse conjunto de funes pode ser obtido por
simples anlise combinatria. Isso uma primeira mostra da natureza analtica (quer
dizer, despreocupada com as particularidades biolgicas) da abordagem kauffmaniana,
que detalharemos no captulo 4.
De posse desta noo geral a respeito das caractersticas que Kauffman incorporou
em sua formalizao do genoma, passaremos agora a uma descrio do modelo
propriamente dito. Apresentaremos tambm duas interpretaes diferentes desse
modelo, que propomos como uma classificao geral dos experimentos de Kauffman
com redes booleanas aleatrias.
2.4.1 Definies
Redes booleanas aleatrias so modelos de simulao computacional para
fenmenos que envolvam interaes epistticas entre os componentes de uma rede
qualquer24; redes genmicas regulatrias e redes metablicas so exemplos do domnio
biolgico que podem ser estudados pelas redes booleanas. Para compreender como as
redes booleanas podem acrescentar idias inovadoras aos mecanismos conhecidos de
ontogenia e filogenia, faz-se necessria uma apresentao terminolgica inicial.
Uma rede booleana, descrita topologicamente, composta de ns e arestas ou
conexes entre os ns. As arestas tm um sentido, isto , vo de um n a outro, e podem
ser visualizadas como setas (figura 2.1a). A rede pode ser caracterizada atravs de duas
variveis: o