auto-organização e contingência da biologia evolutiva

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Autoorganização e contingência

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  • Jerzy Andr Brzozowski

    AUTO-ORGANIZAO E CONTINGNCIA DA BIOLOGIA EVOLUTIVA

    Um estudo sobre os desafios de Stuart Kauffman e

    Stephen Jay Gould ao darwinismo

    Dissertao submetida ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia. rea de concentrao: Epistemologia Orientador: Prof. Dr. Gustavo Andrs Caponi

    Florianpolis, SC

    2007

  • Para minha famlia.

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente, gostaria de agradecer ao argentino perdido nas cincias da vida, Gustavo Caponi, que, alm de ter sido meu professor e orientador (nos mais plenos sentidos desses termos), interlocutor de conversas sobre literatura, cinema, msica e a arte de escrever. Gustavo sempre tem um aforismo para cada um desses temas (o Borges que ele me ensinou a apreciar uma constncia) e, quando no tem, inventa algum ad hoc. Em um esprito aforsmico, ento, devo dizer que a vida tem momentos kierkegaardianos de inflexo. O momento em que Gustavo me convidou para fazer esse mestrado foi uma das mais felizes inflexes de minha vida, me fez sentir, como gostamos de brincar, at home in the universe.

    Agradeo tambm aos professores da Epistemologia, Alberto Cupani, Luiz Henrique Dutra, Marco Franciotti e Dcio Krause, pelo acolhimento e pacincia em ensinar filosofia a algum que no era da rea. Quando, neste trabalho, demonstro lucidez filosfica, em grande medida do trabalho deles que ela deriva. CAPES, pelo apoio financeiro. A Carlos Roberto Zanetti, Jaime Cofre e Francielly Grassi, que foram meus professores na graduao, fica uma grande dvida por terem me mostrado as maravilhas do mundo biolgico e como pensar criticamente sobre elas. No posso deixar de agradecer aos professores Paulo Hofmann e Kay Saalfeld, com quem nunca tive formalmente nenhuma aula. Kay Saalfeld, com seu mtodo socrtico e lacnico, desfez algumas de minhas concepes errneas mais profundamente enraizadas. A Paulo Hoffman devo as coisas certas que falo aqui sobre gentica de populaes (as coisas erradas so minhas mesmo) e a preciso com que uso alguns termos de biologia evolutiva. Os comentrios dele sobre uma verso preliminar deste trabalho foram inestimveis.

    Aos colegas de mestrado Thiagus Mateus Batista e Joo Francisco Chico Botelho, pelas discusses, amizade e festas. Chico foi tambm colega de orientao e, informalmente, meu co-orientador, pelo aporte bibliogrfico e pelas importantes discusses. Thiagus me ensinou a ver algumas coisas de outros ngulos, me mostrando as virtudes da maneira behaviorista de pensar (se que pensamos). Ao colega de orientao e estudioso da paleontologia Frederico Felipe Faria, a quem devo as precises sobre uniformitarismo e catastrofismo.

    Aos cohabitas Hoaiany Casagranda, Roberto Prtile, Eduardo Duda Prtile e Ricardo Woyciekowski, por alguns dos anos mais intensos que vivi. Este trabalho tem uma dvida especial com o Roberto, porque foi ele quem, por uma contingncia, me fez entrar em contato com a obra de Kauffman. A Bruno Costa da Silva, em memria das noites fazendo relatrios de fsico-qumica e em agradecimento pelos resumos que tanto nos ajudaram a estudar. Bruno, Fabola, Roberto e eu ramos os Trs Mosqueteiros e DArtagnan na graduao. Ao Adilson Koslowski, o grande responsvel pelo meu enveredamento inicial pela Epistemologia na UFSC; ele foi o primeiro a me falar sobre Dennett, Putnam e Quine.

    Aos tios Alceu e Elizete, que estiveram em Santa Fe, agradeo por todos esses anos de convivncia, boa gastronomia, acolhimento, carinho e apoio, em todos os sentidos. Tambm prima Viviane, pelos telefonemas (morvamos na mesma cidade mas era sempre ela quem tomava a iniciativa de telefonar), visitas, bolos e rocamboles! Vocs foram os representantes de minha famlia (lato sensu) aqui em Florianpolis, e estiveram sempre presentes. Aos amigos de meus tios, que contriburam indiretamente, mas no com menor importncia, para a realizao deste trabalho: Cludia e Roberto Pinto, Stella e Elson Pereira, Stephany e Charles Braglia Barreto.

    Aos meus sogros Marisa e Jos Zeca Stolf e cunhada Franciele, que sempre perguntavam como que vai o mestrado?. Agora posso responder com orgulho: terminei!.

    Ao meu pai Jerzy, por tudo, mas em especial por ter despertado em mim o interesse pela filosofia e me mostrado Stanisaw Lem. minha me Denise e ao meu irmo Julian, tambm por tudo, mas tambm em especial pela fora, carinho e inspirao. O Julian, com sua enorme criatividade, me distraiu (no bom sentido) desse trabalho: juntos, escrevemos contos, criamos msicas e desenhos. Minha me, por sua vez, fez todas aquelas coisas que s uma me sabe fazer: se preocupou, riu e chorou nas horas certas, nos acolheu e se apaixonou pelo netinho.

    Por fim, para aquelas duas pessoas a quem no tenho palavras para expressar meu agradecimento: minha esposa Fabola e meu filho Artur. H um pouquinho de vocs em cada pgina deste trabalho, que pelo nosso futuro.

  • claro que temos que enxergar mais longe que Darwin,

    mas o faremos nos apoiando em seus ombros,

    no virando as costas a ele.

    -- John Maynard Smith,

    Do we need a new evolutionary paradigm?

  • i

    RESUMO

    O objetivo deste estudo contrastar a tese da auto-organizao de Stuart Kauffman e a tese da contingncia de Stephen Jay Gould com a viso darwiniana da evoluo. Inicialmente, caracterizamos o darwinismo como o que Kim Sterelny e Paul Griffiths chamaram de viso aceita da evoluo, acrescida dos trs princpios gouldianos que detalham o papel da seleo natural na teoria darwiniana. A tese da auto-organizao pode ser caracterizada como nomolgica, na medida em que procura mostrar como as leis da auto-organizao so responsveis por grande parte da ordem biolgica. A tese da contingncia, por outro lado, enfatiza o papel do acaso e da imprevisibilidade na evoluo, podendo assim ser vista como a defesa de uma abordagem idiogrfica para a biologia. Kauffman questiona o poder causal da seleo natural na produo do fenmeno adaptativo. Nesse sentido, argumenta que a auto-organizao uma espcie de pr-requisito para a ao da seleo natural. No entanto, argumentamos que, vista como a condio de possibilidade da ao da seleo natural, no se pode dizer que a auto-organizao tome o lugar da seleo natural em causar adaptaes. Por sua vez, Gould est preocupado com o poder explicativo do princpio de seleo natural. Gould defende que, dada a imprevisibilidade a longo prazo exibida pelo fenmeno evolutivo, o princpio de seleo natural insuficiente para explicar a histria da vida na Terra. Sterelny e Griffiths afirmam que a tese da contingncia deve ser lida como a viso de que o fenmeno evolutivo no apresenta resilincia contrafatual. Sob essa e outras interpretaes, procuramos mostrar que a tese da contingncia mal-sucedida ao desafiar o poder explicativo do princpio de seleo natural. Por fim, analisamos as bases epistemolgicas das duas teses, mostrando que a tese da auto-organizao se baseia em um conceito de lei notoriamente diferente daquele defendido pelos estruturalistas. A tese da contingncia est assentada em uma posio clssica da epistemologia: a noo de que explicao e predio so, em algum sentido, simtricas. A partir da, procuramos caracterizar a abordagem kauffmaniana como uma forma de ahistoricismo explicativo, aproximando-se daquela desenvolvida por R. A. Fisher e S. Wright em gentica de populaes. Caracterizamos a posio de Gould, por outro lado, como um contingentismo causal. Dado que nenhuma das duas teses nega que a seleo natural a causa da adaptao, pode-se dizer que elas concordam no nvel causal. Essa constatao faz delas compatveis, e mesmo complementares, ao darwinismo. Alm disso, enquanto elas aparentemente discordam no nvel explicativo, as abordagens nomolgica e idiogrfica no so mutuamente excludentes, conforme atesta a coexistncia de algumas disciplinas em outras reas cientficas.

  • ii

    ABSTRACT

    The object of this study is to contrast Stuart Kauffmans self-organization thesis and Stephen Jay Goulds contingency thesis with the standard Darwinian view of evolution. Darwinism is here equated with what Kim Sterelny and Paul Griffiths have termed the received view of evolution, together with Goulds three principles that provide further detail about the role played by natural selection in Darwins theory. The self-organization thesis the idea that self-organization provides some of the order seen in organisms comes from a nomological perspective of biology, one that sees the discovery of laws as the primary goal of biological inquiry. On the other hand, the contingency thesis greatly emphasizes the evolutionary role of randomness and unpredictability, and thus may be regarded as a defense of biology as a predominantly idiographic science. We seek to assess whether the two theses under study would demand revisions in the Darwinian view. Kauffman challenges the causal role of natural selection in bringing about adaptive phenomena. In this vein, he claims that self-organization is some kind of pre-requisite to natural selection. But we argue that, seen as condition of possibility for the action of natural selection, self-organization cannot be said to take the causal role of the former in producing adaptations. Gould is concerned with the explanatory power of the principle of natural selection. He argues that the principle of natural selection is insufficient as an explanatory principle for lifes history, because evolutionary outcomes cannot be predicted in the long run. We adopt Kim Sterelny and Paul Griffithss reading that the contingency thesis is the claim that the history of life on Earth is not counterfactually resilient. Under this and other interpretations, we contend that Goulds thesis does not succeed as the challenge it purports to be. Finally, we analyze the epistemological underpinnings of both theses. The self-organization thesis rests on a concept of law notably different from that championed by structuralists. On its turn, the contingency thesis is based on the more classical thesis of symmetry between explanation and prediction. Thus, we construe Kauffmans position as a form of explanatory ahistoricism akin to the early approaches in population genetics conducted by R. A. Fisher and S. Wright. Goulds position, on the other hand, may be thought of as a causal contingentism. Since none of those theses denies that natural selection is the cause of adaptation, they can be said to agree on the causal level. This makes them compatible, and even complementary, to Darwinism. Furthermore, while they may apparently disagree on the explanatory level, the nomological and idiographic approaches to scientific explanation are not mutually exclusive. The coexistence of nomological and idiographic disciplines in other areas of science attests to this fact.

  • iii

    SUMRIO

    Resumo.......................................................................................................................... i

    Abstract ........................................................................................................................ii

    1 Introduo ........................................................................................................... 1

    1.1 Apresentao................................................................................................. 1

    1.2 Darwinismo, neodarwinismo, pluralismo..................................................... 4

    1.2.1 O darwinismo e a viso aceita.............................................................. 6

    1.2.2 O neodarwinismo .................................................................................. 9

    1.2.3 O pluralismo ....................................................................................... 10

    1.3 Perguntas..................................................................................................... 13

    1.4 Seleo natural e auto-organizao............................................................. 15

    1.5 A tese da contingncia evolutiva ................................................................ 16

    1.6 Poder causal e poder explicativo da seleo natural................................... 18

    2 A tese da auto-organizao .............................................................................. 21

    2.1 Apresentao............................................................................................... 21

    2.2 A inspirao bioqumica da tese da auto-organizao................................ 22

    2.3 A explicao por articulao de partes ....................................................... 24

    2.4 Redes booleanas aleatrias como um modelo ciberntico para o genoma .27

    2.4.1 Definies ........................................................................................... 29

    2.4.2 A interpretao ontogentica das redes booleanas ............................ 31

    2.4.3 Redes booleanas e filogenia ............................................................... 33

    2.5 A auto-organizao em Kauffman.............................................................. 35

    2.5.1 Auto-organizao como ordem gratuita............................................. 36

    2.5.2 Auto-organizao como adaptabilidade: a hiptese ousada ......... 36

    2.6 A tese da auto-organizao e a viso aceita................................................ 39

    3 A tese da contingncia ...................................................................................... 43

    3.1 Apresentao............................................................................................... 43

    3.2 A contingncia na evoluo........................................................................ 44

    3.3 A natureza dos eventos contingentes .......................................................... 46

    3.3.1 Largos canais, estreitos detalhes........................................................ 46

    3.3.2 Resilincia contrafatual ...................................................................... 50

    3.3.3 Trs tipos de contingncia .................................................................. 51

    3.4 Extrapolacionismo ...................................................................................... 53

  • iv

    3.5 As mesmas regras ou regras diferentes? ..................................................... 55

    3.6 A natureza algortmica do processo evolutivo............................................ 58

    4 Discusso: o nomottico e o histrico em Kauffman e Gould ....................... 61

    4.1 Apresentao: o problema das leis em biologia.......................................... 61

    4.2 Kauffman um estruturalista? ................................................................... 64

    4.2.1 O que o estruturalismo em biologia?............................................... 65

    4.2.2 Explicao selecional, explicao transformacional e explicao de

    equilbrio 69

    4.2.3 Kauffman e as bases analticas da organizao................................. 72

    4.3 A tese da contingncia e o estatuto das explicaes paleobiolgicas......... 75

    4.3.1 A tese da simetria entre explicao e predio .................................. 76

    4.3.2 A explicao narrativa nas cincias histricas .................................. 77

    4.4 A tese da contingncia frente tese da auto-organizao .......................... 81

    4.4.1 O ahistoricismo explicativo de Kauffman........................................... 81

    4.4.2 O contingentismo causal de Gould ..................................................... 85

    5 Concluso........................................................................................................... 87

    6 Referncias ........................................................................................................ 92

  • 1

    1 INTRODUO

    1.1 Apresentao

    O filsofo dinamarqus Sren Kierkegaard escreveu que a vida vivida para frente,

    mas entendida em retrospectiva (2000 [1843], p. 12). E complementa: quanto mais

    pensamos sobre isso, mais nos convencemos de que jamais exceto, talvez, na morte

    atingimos o repouso prprio para tomar a postura perfeitamente retrospectiva.

    Obviamente, Kierkegaard estava se referindo vida enquanto existncia de um

    indivduo da espcie humana, porm, conotaes impensadas surgem se estendermos o

    trecho de Kierkegaard vida no sentido biolgico e, especialmente, no sentido

    evolutivo. Aparentemente, a frase de Kierkegaard pressupe que, enquanto est

    acontecendo, a vida parece eminentemente contingente e desafia explicaes; apenas

    em retrospectiva conseguimos explicitar alguma espcie de lgica por trs do que

    ocorreu. A vida teria certa dualidade aparentemente contraditria, uma natureza ao

    mesmo tempo anmala, isto , refratria explicao por leis, mas ainda assim regular,

    de modo que padres gerais pudessem ser evidenciados ao se olhar retrospectivamente

    para sua histria.

    O presente estudo uma investigao sobre essa dualidade ou, mais especificamente,

    sobre como ela entrevista de maneiras diferentes nas obras de dois bilogos

    contemporneos: Stuart Kauffman e Stephen Jay Gould. Queremos saber se as teses

    defendidas por esses dois autores exigem alguma reviso na forma clssica que

    chamaremos de viso aceita de se conceber e explicar a histria da vida. Justifica-se

    essa abordagem pelo fato de que os discursos de ambos os autores buscam, de certa

    forma, polemizar com a viso aceita da histria da vida. Analisaremos primeiramente a

    crtica de Kauffman, a qual chamaremos de tese da auto-organizao e que pode ser

    considerada de natureza nomolgica. Muitos autores escreveram sobre o tema da auto-

    organizao, mas nos parece que Kauffman o mais preocupado em fazer suas idias

    contrastveis com as dos bilogos evolutivos. A tese da auto-organizao a hiptese

  • 2

    ousada [bold hypothesis] de Kauffman (1993), ou seja, a idia de que a vida tem a

    propriedade de auto-organizao e que a ao da seleo natural, em algum sentido,

    limitada por ela. A segunda crtica de que trataremos a tese da contingncia,

    apresentada no livro Vida Maravilhosa (1990), de Gould, que enfatiza o carter instvel

    e aberto a contingncias, do processo evolutivo.

    Para que nossa discusso sobre os aspectos contingentes, ou particulares, e os

    nomolgicos, ou legaliformes, da histria da vida possa ser proveitosa, ento

    necessrio situ-la no mbito do grande campo de estudos aberto por Darwin: a biologia

    evolutiva. Evidentemente, a histria da biologia nos mostra que a prpria noo de

    histria da vida esteve longe de ser acontroversa e se hoje h um consenso, por limitado

    que seja, a biologia tem um dbito impagvel a Charles Darwin. Somente foi possvel

    dar sentido a uma cincia histrica da vida, com um vocabulrio e gramtica prprios, a

    partir da publicao da Origem das Espcies (1859). No h dvidas de que a dualidade

    de que estamos falamos entre a anomalia e a regularidade da histria da vida j

    estava contemplada naquela obra. Darwin estabeleceu o fato da evoluo das espcies

    como um processo histrico e contingente, ao mesmo tempo em que props um

    mecanismo regular por meio do qual esse processo poderia ocorrer (a seleo natural).

    Assim, estamos contrastando essa tradio com a biologia funcional, que centra no

    organismo individual o seu objeto de estudo, em detrimento da perspectiva populacional

    da biologia evolutiva. A diviso entre os campos evolutivo e funcional da biologia foi

    proposta por Ernst Mayr (1988; 1998) e fundamental para entendermos as diferenas

    entre o tipo de questes, a noo de causalidade e os modelos explicativos formulados

    em cada um desses dois domnios.

    A biologia funcional est associada tradio de pesquisa antomo-fisiolgica: o

    organismo individual sua unidade mxima, embora seja palco de todos os fenmenos

    de interesse para esse campo. Nas palavras de Mayr, [o] bilogo funcional est [...]

    preocupado com a operao e a interao de elementos estruturais, de molculas a

    rgos e indivduos completos (1988, p. 25). O bilogo funcional pergunta pelo

    como dos fenmenos: como tal molcula produzida?, como tal processo

    metablico contribui para tal funo vital? e, em geral, como o organismo funciona?.

    esse ltimo tipo de interrogao que estabelece as diretrizes metodolgicas e unifica

    sob o mesmo nome disciplinas como a biologia celular e molecular, a bioqumica e a

    fisiologia. So disciplinas cujos mtodos so predominantemente experimentais e se

    aproximam daqueles da fsica e da qumica.

  • 3

    Em contrapartida, a biologia evolutiva est associada histria natural ps-

    darwiniana e se refere ao estudo de variaes inter-individuais em populaes de

    organismos. Essa preocupao pelo nvel populacional pode ser mascarada por

    perguntas sobre o organismo individual, mas as perguntas do bilogo evolutivo so

    caracteristicamente do tipo por que: por que a clula contm tal molcula?, por

    que este organismo realiza este processo metablico? e por que os seres vivos so

    assim (e no de outras formas alternativas concebveis)?. importante perceber que,

    mesmo fazendo perguntas como por que esse organismo realiza esse processo

    metablico?, o bilogo evolutivo est pensando em um nvel populacional. Perguntas

    do tipo por que pressupem alternativas concebveis, isto , so sempre perguntas

    por que esse e no outro?. Assim, s fazem sentido se fizerem referncia a uma

    populao de alternativas diferentes, sendo algumas das quais mais bem-sucedidas do

    que outras (Sober, 1984). A biologia evolutiva classicamente caracterizada como

    sendo mais observacional do que experimental, embora englobe disciplinas com alto

    grau de experimentao (Caponi, 2000).

    Por exemplo, a constatao de que uma determinada flor reflete luz ultravioleta pode

    suscitar no bilogo funcional perguntas do tipo como esse pigmento produzido? ou

    qual a funo desse pigmento para a planta?. O bilogo evolutivo pode se perguntar

    por que essa espcie de planta tem esse pigmento?: ser uma pergunta pelo valor

    adaptativo daquele pigmento, isto , qual a vantagem competitiva que a sua produo

    deu aos indivduos de uma populao na competio com outros indivduos que no o

    produziam? O trabalho explicativo do bilogo evolutivo orientado pelo princpio de

    seleo natural: dada duas estruturas alternativas E1 e E2, constatadas em uma

    populao P, se E1 constitui uma melhor resposta para a presso seletiva S do que E2,

    com o curso das geraes, E1 predominar em P1.

    Alm de um modelo explicativo prprio, a biologia evolutiva tem uma noo

    anticonvencional de causalidade. Enquanto a biologia funcional investiga as causas

    prximas dos fenmenos biolgicos, a biologia evolutiva tenta elucidar as causas

    remotas2. Um exemplo de Mayr ajuda a entender esse ponto: suponhamos que se

    constate que uma determinada espcie de pssaro inicie sua migrao em um dia do

    1 V. Sober (1993) e Caponi (2000) para outras formulaes. 2 Seguimos aqui a terminologia de Mayr (1988; 1998). A distino encontra paralelos nas categorias

    causais aristotlicas: as causas prximas so afins s eficientes, e as causas remotas, s finais.

  • 4

    incio do inverno (cf. Mayr, 1988, p. 27s). Diante da pergunta o que causou a migrao

    daquele pssaro?, podemos formular dois tipos de resposta. O primeiro tipo apontar

    como causas as respostas fisiolgicas do pssaro fotoperiodicidade e diminuio da

    temperatura uma resposta que diz respeito s causas prximas da migrao, porque

    podem ser percebidas no organismo individual e leva em conta uma ou poucas

    geraes. O segundo tipo de resposta apelaria a causas remotas, ou seja, presses

    seletivas como a escassez de alimento durante o inverno, que fixaram o comportamento

    migratrio naquela espcie de pssaro. Essa segunda explicao pressupe que, em um

    determinado momento da histria evolutiva da espcie, havia duas variantes de

    indivduos: aqueles que realizavam o comportamento migratrio e outros que no. Os

    indivduos que migravam durante o inverno receberam algum tipo de recompensa por

    exemplo, mais alimento e, com isso, obtiveram maior sucesso reprodutivo diferencial

    do que os indivduos que no praticavam o comportamento.

    A problemtica que estamos delimitando aqui se insere, ento, na biologia evolutiva,

    que caracterizamos como o campo da biologia que estuda mudanas na composio das

    populaes causadas por foras evolutivas (causas remotas3). No entanto, para

    entendermos contra quais pontos as teses da auto-organizao e da contingncia buscam

    fazer frente, necessrio detalharmos um conjunto de princpios que possamos

    identificar como a viso aceita do processo evolutivo.

    1.2 Darwinismo, neodarwinismo, pluralismo

    H, pelo menos, dois modos gerais de caracterizar essas grandes tradies cientficas

    das quais a biologia evolutiva um exemplo: a primeira seria descrev-la como uma

    linhagem de idias e mtodos de estudo acerca do mundo natural, transmitidos de

    professor para aluno; a segunda seria apontar um ncleo conceitual ou conjunto de

    princpios imutveis que identificasse o trabalho de um determinado cientista sem que

    tivssemos de nos reportar histria acadmica dele. Uma abordagem semelhante ao

    primeiro tipo a epistemologia evolutiva de David Hull (cf. Ruiz e Ayala, 1998, para

    uma introduo), enquanto talvez o melhor exemplo do segundo tipo seja a reconstruo

    da estrutura da teoria evolutiva feita por Gould4 (2002).

    3 As causas remotas clssicas correspondem s quatro foras da gentica de populaes: seleo,

    deriva, mutao e fluxo gnico. Esse repertrio, entretanto, no pretende ser exaustivo. 4 importante perceber que Gould tem um duplo papel em nossa investigao: ao mesmo tempo em que

  • 5

    Alternativamente, poderamos adotar uma perspectiva intermediria e, seguindo

    Larry Laudan (1977), chamar a biologia evolutiva de uma tradio de pesquisa. As

    tradies de pesquisa, na terminologia de Laudan, so entidades mais amplas que as

    teorias cientficas e estariam aproximadamente no mesmo nvel de generalidade que os

    paradigmas de Kuhn e os programas de pesquisa de Lakatos (cf. Dutra, 1998). Os

    exemplos de tradies de pesquisa que Laudan d so o darwinismo, a teoria quntica

    e a teoria eletromagntica da luz (1977, p. 78), porm ressalta:

    Toda disciplina intelectual, cientfica ou no-cientfica, tem uma histria repleta de

    tradies de pesquisa: empirismo e nominalismo em filosofia, voluntarismo e

    necessitarianismo em teologia, behaviorismo e freudianismo em psicologia, utilitarismo e

    intuicionismo em tica, marxismo e capitalismo na economia, mecanicismo e vitalismo

    em fisiologia, para enumerar alguns poucos. (Laudan, 1977, p. 78)

    Uma tradio de pesquisa um conjunto de diretrizes para a construo de teorias

    cientficas em especfico e, portanto, tem uma longevidade muito maior que as teorias.

    Por isso, cada tradio de pesquisa passa por um grande nmero de formulaes e

    reformulaes, s vezes mutuamente contraditrias (cf. Laudan, 1977, p. 79). Dada sua

    natureza histrica, uma tradio de pesquisa pode sofrer vastas modificaes em alguns

    de seus elementos mais centrais, como alguns de seus principais pressupostos e teorias

    (Laudan, 1977, p. 96). De certa forma, as tradies de pesquisa so mais do que

    linhagens de pesquisadores, mas tambm so mais flexveis que ncleos conceituais

    imutveis.

    Reconstruir a biologia evolutiva como uma tradio de pesquisa, ento, reconhec-

    la como uma entidade histrica, que sofreu mudanas em seu ncleo conceitual, mas

    que, de alguma forma, manteve sua identidade. Poderia-se argumentar que o que d

    unidade biologia evolutiva o reconhecimento da seleo natural como fora

    evolutiva ou, em termos mais gerais, a adoo de uma perspectiva selecional da

    evoluo (v. captulo 4). Entretanto, diferentes pesquisadores deram diferentes pesos ao

    papel da seleo natural como causa da mudana evolutiva, sem falar nas mudanas

    conceituais causadas pelas prprias descobertas na rea.

    Ento, se visualizssemos a histria da biologia evolutiva como uma rvore,

    contribui para o estabelecimento da base conceitual (nesse sentido, as referncias so Gould, 1982;

    1994a; 2002), tambm um dos protagonistas da problemtica (Gould, 1986; 1990; 1994b; 1995;

    1997; 2001).

  • 6

    semelhante metfora da rvore da vida que Darwin tornou famosa (Gayon, 2003),

    poderamos fazer trs seces transversais que correspondem a trs grandes momentos

    de definio de ncleos conceituais. Um primeiro momento, que poderamos chamar de

    darwinismo em um sentido estrito, o estabelecimento dos trs princpios que Gould

    (2002) props como definitrios da seleo natural tal como apresentada por Darwin:

    agncia, eficcia e alcance (v. seo 1.2.1, a seguir). O chamado eclipse do

    darwinismo (Bowler, 1998), no fim do sculo 19 e incio do 20, foi, segundo Gould

    (cf. 2002, p. 12-3), um perodo em que concepes alternativas de evoluo desafiaram

    esses princpios, fazendo-os temas centrais de importantes debates. O segundo momento

    o neodarwinismo, que teve incio com a instaurao da Sntese Moderna, a partir da

    dcada de 1930, e foi um endurecimento em torno dos trs pricpios, munido por

    resultados das pesquisas em gentica de populaes. Por fim, o terceiro momento, que

    teve incio no tero final do sculo 20, e continua at hoje, marcado por um novo

    questionamento dos princpios estabelecidos por Darwin, desta vez originado dentro da

    prpria biologia evolutiva. Se percebe, ento, um pluralismo5 que, segundo Gould

    (2002), resultar em uma estrutura revisada da teoria evolutiva.

    Examinaremos a seguir cada um dos trs momentos em maiores detalhes, mas

    cumpre realizarmos um breve esclarecimento. Existe certa tendncia em caracterizar o

    momento pluralista que estamos vivendo hoje como uma espcie de retorno com

    ressalvas s idias originais de Darwin; a sntese neodarwiniana, por sua vez, tende a

    ser vista como um episdio pontual e frutfero, porm limitado (Gould, 1982; Eldredge,

    1995). No de nossa competncia julgar tal interpretao, mas, dada a natureza de

    nossa investigao, inevitavelmente nos demoraremos mais sobre os princpios originais

    do darwinismo e sobre os recentes desafios pluralistas a essas concepes.

    1.2.1 O darwinismo e a viso aceita

    A teoria darwiniana da evoluo, teoria central da biologia evolutiva como tradio

    de pesquisa, certamente no tem uma definio unvoca. Depew e Weber escrevem que

    a idia de seleo natural o ncleo conceitual da tradio darwiniana de pesquisa

    (1995, p. 3). Enquanto concordamos com essa afirmao, no deixamos de reconhecer

    que existem diferentes aspectos da seleo natural e, a cada um deles, pode ser atribudo

    5 Embora Gould se auto-denomine pluralista, estamos aqui usando o termo pluralismo em um sentido

    bem especfico: designar a noo de que a seleo natural, embora ainda ocupe um lugar central na

    biologia evolutiva, no mais totipotente quanto agncia, eficcia e alcance (v. a seguir).

  • 7

    um peso diferente, resultando em diferentes formulaes da teoria evolutiva.

    Tentaremos, nessa seo, identificar esses aspectos e estabelecer qual o peso dado a eles

    pelo prprio Darwin.

    Gould escreve, no artigo Darwinism and the Expansion of Evolutionary Theory

    (1982), que, ao mesmo tempo em que estabeleceu o fato da evoluo das espcies,

    Darwin tambm props um mecanismo (a seleo natural) por meio do qual ela

    ocorreria. Gould enfatiza ainda o papel central que a seleo natural cumpre no

    darwinismo, salientanto que ela entendida por Darwin como uma fora criativa. Em

    um desenvolvimento posterior, essa idia se tornou um dos trs princpios que so, na

    opinio de Gould, o trip que sustenta a estrutura da teoria evolutiva. Podemos resumir

    esses princpios que caracterizam a seleo natural, no sentido estritamente darwiniano,

    associando-os s seguintes afirmativas (cf. Gould, 2002, p. 14-5):

    AGNCIA. Os organismos (e no as espcies ou outros taxa maiores) so o

    foco da seleo natural.

    EFICCIA. A seleo natural a vera causa da mudana adaptativa. Alm

    disso, uma fora criativa na medida em que no for vista como simples

    peneira, mas como um processo de acumulao gradual de mutaes

    favorveis atravs das geraes.

    ALCANCE. A macroevoluo uma conseqncia da microevoluo6, ou seja,

    s h um mecanismo evolutivo (a seleo natural), e o surgimento de taxa

    maiores se d pela extrapolao, no tempo geolgico, desse mecanismo.

    No entanto, esses princpios s fazem sentido dentro de um contexto maior, que

    estabelea aspectos mais gerais da ao da seleo natural. De certa forma, esse

    contexto mais geral, que chamaremos de viso aceita, menos controverso que os

    prprios princpios darwinianos (stricto sensu) enunciados por Gould. A viso aceita

    um darwinismo no sentido amplo; uma espcie de comprometimento mnimo para que

    se possa fazer biologia evolutiva. Segundo Kim Sterelny e Paul Griffiths, a tarefa da

    biologia evolutiva explicar trs fenmenos fundamentais: a diversidade das formas de

    6 Microevoluo se refere aos processos evolutivos verificados em espcies ou populaes; a

    macroevoluo diz respeito evoluo dos grupos taxonmicos (taxa) superiores, isto , acima do

    nvel do gnero.

  • 8

    organismos existentes, a adaptao e a ontogenia (1999, p. 22). Para esses autores, a

    viso aceita uma espcie de lgica interna do processo evolutivo, um modelo

    filogentico, que d conta de explicar a diversidade e a adaptao, entretanto no nos

    diz nada a respeito da relao entre ontogenia e filogenia7. Os princpios da viso aceita,

    tomados de Mayr (1998) e enunciados por Sterelny e Griffiths, so:

    1. O mundo vivo em geral no constante; mudanas evolutivas ocorreram.

    2. As mudanas evolutivas tm um padro arborescente. As espcies hoje vivas so

    descendentes de um (ou poucos) ancestral(is) remoto(s).

    3. Novas espcies se formam quando uma populao se divide e os fragmentos

    divergem. Mais especificamente, a maioria das novas espcies formada pelo

    isolamento de sub-populaes na periferia do domnio da espcie ancestral.

    4. As mudanas evolutivas so graduais. Poucos organismos que diferem

    dramaticamente de seus pais sobrevivem para fundar populaes.

    5. O mecanismo para as mudanas adaptativas a seleo natural. (Sterelny e

    Griffiths 1999, p. 31)

    Algumas consideraes sobre a viso aceita merecem ser feitas. Em primeiro lugar,

    ela no diretamente um modelo explicativo; o princpio de seleo natural (v. seo

    1.1) , mais propriamente, o modelo explicativo da viso aceita. Quer dizer, a viso

    aceita uma concepo abstrata de evoluo, necessria para que se faa pesquisa em

    biologia evolutiva, mas o trabalho efetivo do bilogo a aplicao do princpio de

    seleo natural a casos concretos. Em segundo lugar, talvez os trs princpios a respeito

    da seleo natural caibam como um detalhamento do item 5 da viso aceita (o

    mecanismo para as mudanas adaptativas a seleo natural). Com essa incluso e

    considerando ainda o item 4 (as mudanas evolutivas so graduais), se torna patente

    que a viso aceita uma concepo microevolutiva. De fato, precisamente o

    gradualismo e os princpios da agncia e do alcance so os preceitos darwinianos mais

    contestados pelos tericos da macroevoluo (cf. Eldredge, 1995; Gould, 2002). A

    macroevoluo, por definio, se refere a um nvel hierrquico maior que o da espcie

    7 Entendemos aqui filogenia, processo evolutivo e evoluo como sinnimos que se referem ao

    conjunto de micro e macroevoluo, embora estejamos cientes de que uma anlise mais fina revela

    diferenas semnticas entre esses termos. Ontogenia, por sua vez, o desenvolvimento do

    organismo individual at a fase adulta.

  • 9

    (contra o princpio da agncia); alm disso, segundo os macroevolucionistas, a evoluo

    ocorre de forma saltacionista (contra o gradualismo) e tem seus prprios processos8

    independentes, em certa medida, da microevoluo (contra o princpio do alcance).

    De qualquer maneira, contra a viso aceita, enriquecida pelos trs princpios de

    Gould, que iremos contrastar as teses da auto-organizao e da contingncia. Em nossa

    caracterizao do darwinismo, deixamos de fora inmeros aspectos epistemolgicos que

    certamente dariam origem a outras proveitosas discusses; ironicamente, sequer citamos

    Darwin. Porm, nossa omisso estratgica: voltaremos a discutir o darwinismo luz

    de um vocabulrio filosfico na seo 1.6.

    1.2.2 O neodarwinismo

    Poderamos descrever brevemente a sntese neodarwiniana como o aporte de

    mtodos, resultados e conceitos da gentica de populaes para a consolidao dos

    princpios darwinianos de que falamos na seo anterior9. A gentica de populaes

    permitiu que a evoluo fosse definida e medida como mudanas nas freqncias

    gnicas das populaes. Essas mudanas, para os geneticistas de populaes, so

    resultantes da interao de quatro foras evolutivas: mutao, deriva gentica, migrao

    (fluxo gnico) e seleo. Nas palavras do bilogo evolutivo Douglas Futuyma:

    Os princpios fundamentais da sntese evolutiva eram que as populaes contm variao

    gentica que surge atravs de mutao ao acaso (isto , no dirigida adaptativamente) e

    recombinao; que as populaes evoluem por mudanas nas freqncias gnicas trazidas

    pela deriva gentica aleatria, fluxo gnico e, especialmente, pela seleo natural; que a

    maior parte das variantes genticas adaptativas apresentam pequenos efeitos fenotpicos

    individuais, de tal modo que as mudanas fenotpicas so graduais [...]; que a

    diversificao vem atravs da especiao, a qual ordinariamente acarreta a evoluo

    gradual do isolamento reprodutivo entre populaes; que esses processos, se continuados

    por tempo suficientemente longo, do origem a mudanas de tal magnitude que facultam

    a designao de nveis taxonmicos superiores (gneros, famlias, e assim por diante).

    (Futuyma, 2003, p.13)

    O neodarwinismo, ento, transformou a teoria evolutiva em uma teoria de foras

    (Sober, 1984); assim, definiu com rigor matemtico no s os conceitos, mas tambm o

    8 Se h ou no processos causais estritamente macroevolutivos ser assunto de outras investigaes. 9 Um detalhadamento da histria da sntese foge aos nossos propsitos. Uma boa referncia histrica

    Sturtevant (2001 [1965]). Para uma interpretao da sntese, ver o captulo 7 de Gould (2002).

  • 10

    ideal de ordem natural (Toulmin, 1961; Caponi, 2004a) da biologia evolutiva: a lei de

    Hardy-Weinberg. Um ideal de ordem natural um princpio metafsico, inerente a uma

    teoria cientfica, que postula o estado natural das coisas de acordo com aquela teoria;

    uma aluso ao conjunto de fenmenos que no demanda explicao. Na fsica

    newtoniana, por exemplo, o princpio da inrcia o ideal de ordem natural: o repouso e

    a inrcia no precisam de explicaes dentro da teoria, mas o movimento sim. Ento, a

    lei (tambm conhecida como princpio ou equilbio) de Hardy-Weinberg nos diz o que

    acontece com as freqncias de dois alelos em uma determinada populao sobre a qual

    nenhuma das quatro foras evolutivas esteja agindo.

    Nas dcadas de 1920 e 1930, os geneticistas de populaes R. A. Fisher, J. B. S.

    Haldane e S. Wright trataram algebricamente (diramos, analiticamente: v. seo 4.2.3)

    a lei de Hardy-Weinberg, derivando os efeitos evolutivos do tamanho da populao, da

    intensidade da presso seletiva, da taxa de mutao, dentre outros. Uma segunda

    gerao da sntese, epitomizada pela figura de Theodosius Dobzhansky, buscou aplicar

    esses resultados a populaes reais (Sturtevant, 2001 [1965]). O darwinismo, que tinha

    uma formulao frouxa at a sntese neodarwiniana, com ela passa a se legitimar,

    instituindo rigorosamente sua prpria metodologia e ontologia.

    1.2.3 O pluralismo

    A sntese neodarwiniana foi um consenso limitado (Gould, 2002); algumas

    disciplinas biolgicas, como a biologia do desenvolvimento e o estudo da

    macroevoluo, foram deixadas de fora10. A partir da dcada de 1970, h esforos

    renovados em integrar esses campos biologia evolutiva, e uma das figuras de destaque

    nesse cenrio , uma vez mais, Gould. Alm de ser o autor da obra que reviveu os

    debates sobre a relao entre ontogenia e filogenia (Gould, 1977; cf. Arthur, 2002),

    tambm deu contribuies importantssimas paleobiologia macroevolutiva11 (v.

    10 Estritamente falando, entretanto, o paleontlogo George Gaylord Simpson, que talvez possa ser

    considerado o fundador da paleobiologia (v. nota seguinte) e do estudo da macroevoluo tal como

    entendidos hoje, participou da sntese neodarwiniana. No entanto, sua interpretao inicialmente

    inovadora, que postulava mecanismos macroevolutivos com relativa independncia da microevoluo,

    mais tarde se desvirtuou, prezando os mecanismos microevolutivos (cf. Gould, 1994a; Gould, 2002,

    p. 530). 11 A paleobiologia o estudo quantitativo (em comparao com a abordagem mais qualitativa da

    paleontologia clssica) do registro fossilfero. Assim, ao invs de focar aspectos de classificao

    filogentica, aborda eventos de extino, diversificao e especiao, bem como padres de variao,

  • 11

    Gould, 1995, para uma breve retrospectiva). Conforme mencionamos, para Gould, a

    sntese, sendo um endurecimento dos trs princpios darwinianos, teria passado por

    cima de outros aspectos importantes do fenmeno evolutivo, os estruturais e os

    histricos (v. a seguir). A biologia do desenvolvimento e a macroevoluo, ao enfatizar,

    respectivamente, cada um desses aspectos, poderiam ter fornecido contribuies

    importantes sntese (Gould, 2002).

    Niles Eldredge, colega de Gould, descreve a situao atual da biologia evolutiva

    como uma diviso entre ultradarwinistas e naturalistas (1995). Os ultradarwinistas so

    figuras como John Maynard Smith (aluno de J. B. S. Haldane), Richard Dawkins e

    George Williams, responsveis por propagar uma viso genecentrista e adaptacionista

    (Gould e Lewontin, 1979) da evoluo, reminescente do neodarwinismo. Os

    naturalistas, como os paleobilogos, eclogos e sistematas, em contapartida, defendem

    uma abordagem anti-reducionista da evoluo, reconhecendo a complexidade dos

    fenmenos biolgicos e, freqentemente, buscando causas extra-biolgicas para os

    fenmenos estudados. Diante de uma extino em massa, por exemplo, um

    ultradarwinista poderia apontar um fator biolgico como causa do evento, por exemplo,

    uma situao de m adaptao dos organismos extintos em relao a seu ambiente. Um

    naturalista, por outro lado, procuraria por causas fsicas, como impactos de meteoros e

    episdios de resfriamento global12.

    Gould prope um outro esquema conceitual que, acreditamos, nos permite entender

    as diferentes vises tericas sobre a evoluo com uma clareza maior do que a simples

    diviso entre ultradarwinistas e naturalistas. Poderamos dividir os tericos de acordo

    com as influncias que eles consideram mais importantes na determinao da ordem (ou

    forma) dos organismos: os funcionalistas (no bilogos funcionais, mas o equivalente

    gouldiano dos ultradarwinistas), os historicistas e os estruturalistas. De maneira geral,

    os historicistas e os estruturalistas, na medida em que buscam fatores no estritamente

    biolgicos (leia-se: no estritamente adaptativos) na determinao da ordem

    biolgica, podem ser considerados naturalistas no sentido de Eldredge (1995).

    O esquema apresentado na figura 1.1, chamado de tringulo aptativo, ilustra de

    abundncia e distribuio espao-temporal de taxa fsseis (cf. as diretrizes para publicao do Journal

    of Paleontology e as do Paleobiology, ambos publicados pela Paleontological Society:

    http://www.paleosc.org). 12 Para a distino entre causas biolgicas e fsicas das extines, v. Raup (1991).

  • 12

    forma simples as diferentes influncias que podem ocorrer sobre a ordem biolgica.

    Cabe ressaltar que o termo tringulo aptativo se refere ao conceito de aptao13 de

    Gould e Elisabeth Vrba (1998 [1982]). Nesses termos, dizer que toda a ordem biolgica

    provm de adaptaes enxergar apenas parte do quadro geral da evoluo. Gould nos

    diz, com esse esquema, que qualquer aptao pode ter sido (1) construda por um

    processo que diretamente a lapidou para sua funo atual aqui sim, uma adaptao

    (vrtice funcional); (2) herdada de uma forma ancestral (vrtice histrico); ou (3)

    construda por um mecanismo ou processo estrutural no diretamente relacionado s, ou

    engendrado pelas, necessidades funcionais da populao (vrtice das influncias

    formais ou estruturais; Gould, 2002, p. 1052). Entre os mecanismos ou processos

    estruturais, duas diferentes causas produzem estruturas aptativas: (1) a modelagem

    fsica do material plstico de que so feitos os organismos; e (2) o que Gould chama de

    seqelas arquiteturais, spandrels (Gould e Lewontin, 1979), conseqncias no-

    adaptativas de outras caractersticas que, mais tarde, se tornam disponveis para co-

    opo com fins aptativos em taxa descendentes, isto , se tornam exaptaes (Gould,

    2002, p. 81).

    13 Gould e Vrba chamam ateno para o fato de que a palavra adaptao vem de ad e aptus, ou seja,

    apto para alguma coisa. Assim, criaram o termo exaptao (ex e aptus, apto a partir de) para

    designar caractersticas que, embora no cumprissem inicialmente um papel adaptativo, no momento

    em que passam a faz-lo, so selecionadas. Adaptaes e exaptaes fazem parte de uma categoria

    mais ampla de Gould e Vrba, a das aptaes. Nas palavras de Gould e Vrba, [o] fenmeno geral e

    esttico de estar apto deveria ser chamado aptao, no adaptao (Gould e Vrba, 1998 [1982],

    p. 55).

  • 13

    Figura 1.1 O tringulo aptativo das influncias sobre a ordem biolgica

    (extrado de Gould, 2002, p. 259).

    Agora, o tringulo pode servir para posicionarmos diferentes tericos da evoluo de

    acordo com o peso que do para cada um dos trs fatores. Conforme j mencionamos,

    os ultradarwinistas de Eldredge (1995), por exemplo, privilegiariam o vrtice funcional

    em detrimento dos outros dois. Um estruturalista como Brian Goodwin14 se ocuparia do

    vrtice estrutural, enquanto um cladista centraria sua ateno nos aspectos histricos da

    determinao da forma (Gould, 2002, p. 1060). importante perceber que Darwin,

    embora tenha detalhado e privilegiado as influncias funcionais (adaptativas) na

    determinao de caracteres morfolgicos, no negligenciou de todo os outros dois

    vrtices. De fato, Gould salienta que a preocupao histrica pela forma, traduzida no

    raciocnio unidade do tipo, logo ascendncia comum15, uma inveno darwiniana

    (Gould, 2002, p. 256-7).

    1.3 Perguntas

    A dualidade entre os aspectos nomolgico e histrico de que falvamos se enquadra

    no esquema que acabamos de definir. Trivialmente, pode-se dizer que algumas

    14 Na seo 4.2, definiremos com maior preciso a tradio estruturalista e o programa de Brian Goodwin. 15 Esse raciocnio inclusive chamado de modus Darwin por Elliott Sober (1988).

    Histricas contingncias da filogenia

    Formais

    regras de estrutura

    Funcionais adaptao ativa

  • 14

    abordagens contingentistas (no sentido de que ocupam o vrtice histrico do tringulo

    aptativo) buscam resgatar os aspectos histricos, no-legaliformes, da histria da vida.

    Aspectos nomolgicos, por sua vez, ocupam tanto o vrtice funcional quanto o

    estrutural, mas nesse ltimo que aparecem com mais rigor, quando entendemos

    estruturalismo como o estudo das influncias fsicas sobre o material de que so feitos

    os organismos. As regularidades que ocupam o vrtice funcional, por sua vez, so

    aquelas prprias gentica de populaes, ou seja, so extenses do mecanismo regular

    que a seleo natural.

    De maneira geral, as abordagens historicistas so motivadas por uma crena de que

    impraticvel estudar a biologia por meio de leis, e por isso se opem aos vrtices

    funcionalista e estruturalista. Os estruturalistas, pelo contrrio, acreditam que a biologia

    tem de buscar leis to rigorosas quanto aquelas encontradas na fsica, e polemizam

    ainda com os funcionalistas ao argumentar que a seleo natural no d conta de

    produzir a totalidade das formas dos organismos existentes.

    Estamos agora em uma posio que nos permite formular nossa problemtica em

    termos mais precisos. Em um primeiro momento, investigaremos uma abordagem

    considerada estruturalista (a tese da auto-organizao de Kauffman) e uma claramente

    historicista (a tese da contingncia de Gould), comparando cada uma delas com a viso

    aceita (seo 1.2.1), que representaria o vrtice funcional. Compararemos, tambm, as

    duas teses entre si, mas somente aps discutirmos se Kauffman realmente pode ser

    considerado um estruralista, e quais as implicaes do modelo de explicao proposto

    por Gould para a paleobiologia. Na tabela 1.1, resumimos as perguntas que orientam

    nossa investigao e em quais captulos ou sees elas recebem tratamento explcito.

    Tabela 1.1 Viso geral da estrutura desta dissertao, enfocando as perguntas que orientam cada um dos

    captulos ou sees do trabalho. Pergunta Captulo/Seo Como a tese da auto-organizao se relaciona com a viso aceita? 2 Como a tese da contingncia se relaciona com a viso aceita? 3 A caracterizao que se faz de Kauffman como estruturalista adequada?

    4.2

    Quais as implicaes da tese da contingncia para o tipo de explicao proposto por Gould para a paleobiologia?

    4.3

    Como as teses da auto-organizao e da contingncia se relacionam entre si?

    4.4

    A seguir, apresentaremos brevemente cada uma das duas teses, e na seo final deste

    captulo assentaremos a base filosfica sobre a qual nossa discusso ser edificada.

  • 15

    1.4 Seleo natural e auto-organizao

    Auto-organizao o nome dado a uma srie de fenmenos em que padres no nvel

    global de um determinado sistema emergem espontaneamente, somente a partir de

    interaes entre as subunidades do sistema (Anderson, 2002). Se h informaes vindas

    do exterior, ou se os padres so impostos artificialmente ao sistema, no h auto-

    organizao (Maynard Smith, 1998). Uma comparao com o trabalho humano nos

    ajuda a compreender esse ponto:

    Considere, por exemplo, um grupo de trabalhadores. Falamos ento de organizao ou,

    mais exatamente, de comportamento organizado se cada trabalhador atua de uma maneira

    bem definida sobre ordens dadas externamente, isto , pelo chefe. Chamaramos este

    mesmo processo de auto-organizado se no houver ordens externas, mas os trabalhadores

    trabalham juntos por alguma espcie de consentimento mtuo. (Haken, 1970 apud

    Camazine et al., 2003, p. 8)

    Kauffman um dos pesquisadores ligados ao estudo da auto-organizao que mais se

    preocupa em apontar implicaes que seus resultados podem ter para a biologia

    evolutiva. A chamada hiptese ousada de Kauffman a idia de que a auto-

    organizao, como propriedade dos seres vivos, seria uma condio para a ao da

    seleo natural. Ao mesmo tempo, defende Kauffman, a seleo natural por si prpria

    otimiza a capacidade de auto-organizao. Realizando diversos experimentos com

    simulao computacional, Kauffman mostrou, por exemplo, que sistemas que no

    possuam a propriedade de auto-organizao so incapazes de desenvolver adaptaes:

    poderia-se dizer que so refratrios ao da seleo natural. Sua obra principal, The

    Origins of Order (1993) um apanhado exaustivo desses experimentos (alm de alguns

    experimentos convencionais) que buscam explicitar a relao entre auto-organizao e

    seleo natural.

    Os captulos iniciais dos livros de Kauffman sobre auto-organizao (1993; 1995)

    estabelecem os termos para uma abordagem formal do problema da origem da vida. O

    modelo apresentado bastante semelhante clssica sopa primordial, embora

    Kauffman prefira o termo rede metablica. O argumento que, dada uma sopa de

    elementos que catalizem reaes entre si, mesmo que as probabilidades dessas

    catlises mtuas sejam muito pequenas, a formao de uma rede fechada de reaes

    ocorre espontaneamente. Quer dizer, o produto de uma reao passa a ser o catalizador

    de outra, e assim por diante, at que o conjunto se assemelhe bastante a vias metablicas

  • 16

    dos organismos que conhecemos. Isso significa, para Kauffman, que as redes

    metablicas se auto-organizam (Kauffman, 1997).

    Assim, por exemplo, podemos ter uma sopa de dois elementos, A e B: A pode

    catalizar a reao entre A e B formando o elemento AB, que por sua vez pode catalizar a

    reao entre ele mesmo e B, formando ABB, etc. Segundo Kauffman, condies desse

    tipo so plausveis em um cenrio para o incio da vida, dado que existem muitas

    molculas simples com a propriedade de auto-catlise16 (Kauffman, 1995).

    As redes metablicas so, para Kauffman, o paradigma de sistema auto-organizante:

    elas podem no somente ser um bom modelo para a origem da vida, como tambm nos

    revelar insights sobre a relao entre auto-organizao e seleo natural. Em relao ao

    segundo aspecto, Kauffman tinha a intuio de que diferentes nveis de conectividade

    entre os elementos promoveriam diferenas no comportamento evolutivo da rede como

    um todo. Para testar essa hiptese, ele criou um modelo de simulao computacional a

    partir da idia de rede metablica: as redes booleanas aleatrias.

    Nas redes booleanas aleatrias, que definiremos em maiores detalhes no captulo 2,

    cada elemento (molcula) de uma rede metablica descrito por uma varivel binria

    (ou seja, pode assumir o valor 0 ou o valor 1), que representa a presena ou ausncia

    daquele elemento na rede. Esses elementos esto conectados entre si, isto , a presena

    ou ausncia de um elemento depende da presena ou ausncia de outros K elementos, de

    acordo com funes booleanas (lgicas) escolhidas aleatoriamente. A varivel K, de

    suma importncia para o entendimento da tese da auto-organizao de Kauffman, uma

    medida de conectividade: se K = 2, cada elemento da rede booleana est conectado a

    outros dois. O estudo da relao entre K e o nmero N de elementos da rede permitiu

    que Kauffman estabelecesse um repertrio de comportamentos possveis das redes

    booleanas. Submetendo essas redes a simulaes de fenmenos de seleo natural (v.

    sees 2.4.3 e 2.5), Kauffman foi capaz de determinar qual o valor de K para que a

    seleo natural gere adaptaes da maneira mais eficaz possvel.

    1.5 A tese da contingncia evolutiva

    Bilogos e leigos se maravilham com a histria da vida na Terra. A conjuno de

    fatores de contingncias, diria Gould (1990) que desembocaram na vida inteligente

    16 Uma molcula auto-cataltica consegue, semelhana de A no exemplo que demos, catalisar a reao

    entre ela mesma e outra molcula.

  • 17

    irreprodutvel. A estupefao de Gould diante da fragilidade da linha (ou melhor,

    linhagem) que conduz at ns, seres humanos, comea com uma contemplao do

    fenmeno conhecido como Exploso Cambriana. Durante o perodo Cambriano, h

    aproximadamente 540 milhes de anos, rapidamente apareceram muitos planos

    morfolgicos dspares, uma cornucpia de variedade que, segundo Gould, no encontra

    paralelo na histria da vida. A essa exploso, rapidamente se seguiu uma extino

    massiva que eliminou os taxa hegemnicos, mas que surpreendentemente poupou um

    txon minoritrio, o Pikaia, um dos ancestrais dos cordados que conhecemos hoje. Se,

    por alguma razo, o Pikaia tivesse sido extinto, escreve Gould, a Terra no teria

    cordados, tampouco seres humanos (Gould, 1990).

    Gould sugere que no h por que pensarmos que o surgimento e a sobrevivncia de

    Pikaia, ou mesmo de qualquer taxon, sejam, em algum sentido, necessrios. Se

    rebobinssemos a fita da vida e a tocssemos novamente, nos diz Gould (1986), temos

    todas as razes para pensar que a histria seria diferente e, muito provavelmente, o

    Homo sapiens sequer estaria no elenco. Na verdade, experimentos de pensamento desse

    tipo so chamados de histrias contrafatuais, isto , verses alternativas, diferentes da

    Histria que realmente aconteceu. Sterelny e Griffiths (1999) lem que um processo

    aberto a contingncias, para Gould, no apresentaria resilincia contrafatual, ou seja,

    capacidade de regenerao frente a histrias contrafatuais. Com esse termo,

    resilincia contrafatual, possvel esclarecer com bastante especificidade o que Gould

    quer dizer com processo aberto a contingncias. Afinal, poderamos argumentar que a

    tese de Gould trivial, que qualquer processo est aberto a contingncias. Claramente,

    entretanto, Gould no diria que o desenvolvimento embrionrio est aberto a

    contingncias no sentido que emprega em Vida Maravilhosa (1990). Para colocar as

    concluses de Gould usando as palavras de Sterelny e Griffiths, o desenvolvimento

    embrionrio apresenta resilincia contrafatual, enquanto o processo evolutivo no. Em

    certo sentido, a filogenia tem muito mais opes de vias a percorrer do que a ontogenia.

    Essa enormidade de opes inviabiliza, segundo Gould, quaisquer tentativas de

    prever o estado futuro de uma determinada populao. Deste fato, Gould conclui que

    no se pode explicar as mudanas evolutivas de larga escala (isto , mudanas

    macroevolutivas) como sendo acumulaes de mudanas graduais ocorrendo em

    espcies, na vastido do tempo geolgico17. Claramente, ento, a viso aceita

    17 Essa viso, que pode ser considerada uma formulao do princpio do alcance, chamada por Gould de

  • 18

    extrapolacionista, pois envolve o princpio do alcance e atesta explicitamente que as

    mudanas evolutivas so graduais. Gould parece nos alertar que o perigo do

    extrapolacionismo est na tentativa de transformar em nomolgico algo que

    contingente. Mas importante, conforme veremos, no confundir macroevoluo e

    microevoluo: pode ser que o extrapolacionismo, e a viso aceita em geral, fornea

    bases suficentes para a explicao da microevoluo.

    1.6 Poder causal e poder explicativo da seleo natural

    Responder s perguntas que propusemos na seo 1.3 requer a importante distino,

    proposta pelo filsofo da biologia Jean Gayon, entre poder causal18 e poder explicativo,

    atribudos respectivamente seleo natural enquanto agente produtor da mudana

    adaptativa, e ao princpio de seleo natural enquanto princpio explicativo de uma

    classe de fenmenos (Gayon, 1997). A distino, segundo Gayon, pode ser entendida a

    partir do prprio Darwin, para quem a seleo natural tinha um poder soberano em

    causar a mudana adaptativa (ou seja, as adaptaes so, por definio, o produto da

    ao da seleo natural). Modernamente, entretanto, o poder da seleo natural tem sido

    criticado em um outro sentido, que no est explcito em Darwin: trata-se de seu poder

    explicativo. A medida do poder explicativo do princpio de seleo natural quais

    classes independentes de fenmenos ele consegue explicar. Nas palavras de Gayon:

    [E]xtino, divergncia, ou padres de classificao, enquanto possam ser apresentados

    como conseqncias da seleo natural, pertencem a seu poder explicativo. Entretanto, o

    prprio Darwin no falava do poder da seleo nesse sentido. Ao invs disso, ele

    costumava restringi-la [a seleo] explicao de apenas uma classe de fenmenos, a

    modificao adaptativa das espcies. somente neste contexto preciso que ele

    qualificava a seleo como um poder soberano [paramount power], ou simplesmente

    (na Origem das Espcies) como um poder, ou ento como agente. No vocabulrio

    filosfico espontneo de Darwin, o poder da seleo, seja artificial ou natural, consistia

    no resultado imediato de sua ao. Em outros contextos explicativos, ele preferia dizer

    que a seleo natural acarreta, leva a, explica, induz ou mesmo causa, por

    exemplo, a extino, a divergncia, ou as afinidades. (Gayon, 1997, p. 266)

    extrapolacionismo (v. captulo 3). 18 A expresso nossa; Gayon se remete constantemente expresso poder soberano, utilizada por

    Darwin em As Variaes dos Animais e Plantas sob Domesticao (1883 [1868]).

  • 19

    Gayon traa ainda um breve panorama sobre os usos das expresses hiptese e

    teoria da seleo natural em Darwin. Na introduo Variao, Darwin comenta que

    [n]as investigaes cientficas, permitido inventar qualquer hiptese, e se ela explicar

    vrias classes amplas e independentes de fenmenos, se eleva ao nvel de uma teoria

    bem-fundamentada (Darwin, 1883 [1868], p. 9). Analogamente, a hiptese da seleo

    natural derivada de algumas premissas empricas, como a taxa de reproduo das

    espcies, a limitao dos recursos e fatos sobre variao e herana, por um lado, e o

    modelo da seleo artificial por outro (figura 1.2). A extenso dessa hiptese

    explicao de fenmenos como os instintos animais, extino, divergncia, distribuio

    geogrfica das espcies, afinidades e homologias, empreendida por Darwin nos

    captulos 7 a 12 da primeira edio da Origem, constitui a teoria da seleo natural

    (parte inferior da figura 1.2; Gayon, 1997).

    Figura 1.2 A relao entre hiptese, teoria, e as classes de fenmenos que podem ser explicados por ela,

    de acordo com Darwin (adaptada de Gayon, 1997).

    Onde se encaixa, nesse quadro, o poder causal ou soberano da seleo natural? De

    todo o espectro de fenmenos passveis de serem explicados pelo prisma da hiptese,

    Darwin invoca o poder soberano da seleo natural como causa das adaptaes

    morfolgicas e dos instintos (figura 1.2, parte inferior, esquerda). Gayon esclarece

    que:

    A afirmao de Darwin de que a seleo, se no a nica fora orientando a mudana

    evolutiva, capaz de driblar [overcome] qualquer outra fora (como: variao aleatria,

    correlao de rgos, ou o efeito do uso e desuso). Embora essa tese fosse absolutamente

  • 20

    crucial para Darwin, no deve ser confundida com a representao da seleo como

    unificando todo o campo da histria natural da vida. Modificao das espcies uma

    coisa; extino, distribuio geogrfica das espcies, divergncia e diversidade (como

    refletidas na classificao) so outras. A tese do poder soberano est preocupada

    apenas com a modificao adaptativa das espcies. (Gayon, 1997, p. 269)

    Conforme se pode perceber, na viso aceita, o poder causal da seleo natural no

    processo adaptativo est contemplado no item 5 (o mecanismo para as mudanas

    adaptativas a seleo natural), aliado ao princpio de eficcia (seo 1.2.1). E,

    conforme atestam algumas releituras modernas (Gould, 1982; 2002; Sterelny e

    Griffiths, 1999), o princpio de seleo natural, por sua vez, parece ser o mais

    importante recurso explicativo da viso aceita. Talvez poderamos reapresentar o

    endurecimento da sntese, utilizando o vocabulrio filosfico espontneo de Darwin,

    como tendo extrapolado inescrupulosamente o poder causal da seleo natural para

    todas as classes de fenmenos da teoria da seleo natural. A seleo natural, e o

    respectivo princpio explicativo, acabaram sendo entronados pelo neodarwinismo como

    totipotentes em suas posies.

    Toda a nossa investigao se articular sobre a distino que acabamos de

    apresentar: a afronta de Gould ao extrapolacionismo busca mostrar que o poder

    explicativo do princpio de seleo natural insuficiente diante da histria da vida na

    Terra; por outro lado, o prprio Gayon apresenta a tese da auto-organizao de

    Kauffman como uma crtica ao poder causal da seleo natural (cf. Gayon, 1997). A

    pergunta sobre a relao das duas teses com a viso aceita passa necessariamente por

    uma avaliao sobre se essas crticas so de fato o que pretendem ser.

  • 21

    2 A TESE DA AUTO-ORGANIZAO

    2.1 Apresentao

    Incrustada no deserto do sudoeste norte-americano, em uma paisagem dominada por

    mesas e tingida de terracota, est a pitoresca cidade de Santa Fe. A arquitetura

    minimalista dos ndios Pueblo ubqua, ostentando construes em adobe (mistura de

    argila e palha, seca ao sol) que poderiam ter sido projetadas por um Le Corbusier com

    gosto tnico. O aspecto planltico que a ausncia de telhados angulados confere quelas

    construes parece querer imitar as mesas. Ao mesmo tempo, faz contraponto s

    encostas das montanhas Sangre de Cristo, no horizonte. Paradoxalmente, aquela

    paisagem elementar, minimalista como retratada nas telas de Georgia OKeeffe, foi o

    local escolhido para a instalao de um dos mais importantes centros mundiais para o

    estudo da complexidade, o Santa Fe Institute.

    De suas pesquisas naquele instituto, Stuart Kauffman reuniu os resultados que

    constituem o cerne de The Origins of Order (1993), seu opus magnum. Mas talvez o

    subttulo de seu segundo livro, At Home in the Universe (1995), descreva melhor o fio

    condutor de todo o trabalho de Kauffman: a busca pelas leis da auto-organizao e da

    complexidade. Explicitamente, a idia de Kauffman integrar estas leis ao quadro

    da seleo natural, na inteno de conceber uma viso mais adequada da evoluo.

    Neste captulo, apresentaremos brevemente algumas questes histricas e

    metodolgicas por trs das idias de Kauffman e descreveremos o modelo por ele

    utilizado para fundamentar suas concluses sobre auto-organizao: as redes booleanas

    aleatrias. Por fim, gostaramos de sugerir que o conceito de auto-organizao em

    Kauffman tem duas conotaes, ordem gratuita e adaptabilidade. A segunda delas

    tem maior pertinncia para a presente discusso, em particular na formulao que

    Kauffman chama de hiptese ousada [bold hypothesis], que se refere estreita

    interdependncia entre seleo natural e auto-organizao. Queremos identificar o que

    chamamos de tese da auto-organizao com a hiptese ousada.

  • 22

    2.2 A inspirao da biologia molecular para a tese da auto-organizao

    O estudo da biologia funcional passou por uma radical molecularizao durante o

    sculo 20, refletida na evoluo da microscopia. Enquanto o poder de resoluo dos

    melhores microscpios, no incio daquele sculo, permitia apenas a visualizao de

    organelas celulares, s margens do sculo 21, cientistas j eram capazes de visualizar os

    contornos dos tomos. Na medida em que a ontologia do conhecido e do conhecvel

    no nvel microscpico ia sendo preenchida, outras tcnicas experimentais

    acompanharam o movimento.

    A gentica molecular um dos grandes frutos dessas exploraes; a descoberta do

    operon lac, por Franois Jacob, Jacques Monod, e Andr Lwoff, atesta a maturidade

    que as tcnicas de experimentao molecular haviam atingido por volta de 1950, e

    mostra da sedimentao da biologia molecular como disciplina (Morange, 1994,

    p. 194). Os prprios protagonistas da descoberta se preocuparam, nas dcadas seguintes,

    em mostrar como ela poderia ser compatibilizada com o restante da biologia, e

    especialmente com a biologia evolutiva, escrevendo trs grandes clssicos de

    divulgao cientfica.

    Dificilmente, por exemplo, encontramos uma definio mais sucinta e precisa de

    ordem biolgica do que no livro de Lwoff dedicado ao tema:

    Um certo aspecto da ordem o arranjo determinado presente na constituio existente das

    coisas. A ordem pode assim ser considerada uma seqncia, ou uma sucesso, no espao

    ou no tempo. A ordem biolgica tudo isso, e especialmente uma seqncia no espao e

    no tempo. A ordem biolgica possui uma dualidade estrutural e funcional, esttica e

    dinmica. Os dois tipos de ordem, estrutural e funcional, representam os aspectos

    complementares do ser vivo. Um ser vivo um sistema de ordem dupla. Devemos saber

    em que consiste esse duplo sistema. (Lwoff, 1969, p. 20)

    Poderamos dizer que esse conceito de ordem subjacente a grande parte das

    discusses sobre ordem, organizao, e mesmo auto-organizao, que ocorreram na

    biologia do sculo 20. Certamente, adequado para a presente discusso, e convm

    manter sua generalidade, porque combina com o ideal de universalidade buscado pelos

    experimentos de Kauffman. Conforme veremos adiante, Kauffman est preocupado

    com as influncias lgicas sobre a ordem biolgica em um mbito bastante amplo.

    Monod, particularmente, rejeita fortemente a necessidade de apelar ao que ele chama

    de animismos para explicar essa espantosa ordem bioqumica existente nos seres vivos.

  • 23

    O surgimento da ordem biolgica, para ele, resultante da seleo natural, qual alude

    como um jogo entre acaso e necessidade. O primeiro fonte de invenes cegas que,

    caso satisfaam a necessidade, passam a figurar definitivamente na certeza, isto , na

    ordem biolgica (Monod, 1970).

    De maneira semelhante, Franois Jacob compara a seleo natural bricolagem.

    Jacob chama ateno para as diferenas entre o bricoleur19 e o engenheiro, mostrando

    como a seleo natural se aproxima daquele e no deste:

    Semelhantemente [ao bricoleur], a evoluo faz uma asa a partir de uma perna ou uma

    parte da orelha a partir de um pedao de mandbula. [...] A evoluo se comporta como

    um bricoleur que, por eras e eras, vai modificando sua obra, incessantemente retocando,

    cortando aqui, emendando ali, aproveitando as oportunidades para adapt-la

    progressivamente para seu novo uso. (Jacob, 1977, p. 1164)

    A descoberta do operon lac, assim como tais declaraes posteriores por parte dos

    descobridores, influenciou Kauffman em trs sentidos. Em primeiro lugar, a idia de

    redes genmicas regulatrias, cujo paradigma o operon lac, est na base da

    concepo do modelo de redes booleanas aleatrias (v. seo 1.4):

    Desde que Jacob e Monod descobriram que os produtos de um gene podem ativar ou

    reprimir as atividades de outros genes, os bilogos passaram a pensar no sistema

    genmico como um tipo de computador bioqumico. Os genes estruturais e regulatrios

    esto ligados em uma espcie de circuitaria, regulando e coordenando o comportamento

    uns dos outros. (Kauffman, 1992a, p. 167)

    O segundo sentido da influncia foi, por assim dizer, negativo. Enquanto Kauffman

    se entusiasmou (Lewin, 1994, p. 39) com a metfora do computador bioqumico, no

    aceitou a idia que a seleo natural era a nica responsvel pela ligao da circuitaria.

    Afinal, [na] viso de mundo da bricolagem, a seleo a nica, ou se no a nica,

    fonte preeminente de ordem (Kauffman, 1992b, p. 305). Kauffman se mostrou

    incrdulo de que, a partir de um genoma de 100.000 genes, a seleo natural teste

    cada um dos 1030.000 estados possveis (v. sees 2.4.1 e 2.4.2), encontrando o nmero

    ideal de tipos celulares que possam ser produzidos a partir deles (Kauffman, 1991,

    19 Algumas tradutores utilizam o substantivo remendo (v. p. ex. a traduo de Talita M. Rodrigues em

    Dennett, 1998, p. 228) para traduzir tinkerer (do ingls) e bricoleur (do francs), mas optamos por

    preservar o original francs, mantendo-o em itlico, uma vez que o abrasileiramento bricolagem j

    bastante usado.

  • 24

    p. 69; Lewin, 1994, p. 40). A soluo, contra-intuitiva nas palavras de Kauffman, de

    que mesmo redes genmicas construdas ao acaso podem apresentar ordem espontnea,

    e configurar automaticamente um determinado nmero de tipos celulares:

    Traando a histria dessa descoberta, a descoberta de que sistemas extremamente

    complexos podem exibir ordem gratuita, de que nossas intuies estavam

    profundamente enganadas, comea com a intuio de que mesmo circuitos moleculares

    aleatoriamente ligados [wired] e com lgica tambm aleatria exibiam

    comportamento ordenado se cada gene ou varivel molecular fosse controlada por apenas

    alguns poucos outros [genes ou variveis moleculares]. (Kauffman, 1992b, p. 305)

    Frente a essa descoberta, a biologia teria de ser repensada, e a evoluo

    reapresentada como um casamento entre seleo natural e auto-organizao

    (Kauffman, 1997, p. 133).

    O terceiro ponto que tanto Lwoff quanto Monod pareciam estar imersos no

    Zeitgeist da ciberntica e da teoria da informao, ao se mostrarem preocupados em

    estabelecer uma ciberntica microscpica (Monod, 1970, p. 87-107) e em provar que

    a vida no viola o segundo princpio da termodinmica (Lwoff, 1969, p. 164-176;

    Monod, 1970). A seguir, comentaremos como a ciberntica motivou a metodologia de

    simulao computacional de Kauffman.

    2.3 A explicao por articulao de partes

    Em um dos raros artigos em que comenta sobre seus pressupostos metodolgicos,

    Kauffman (1998 [1970]) afirma que o trabalho de construo de hipteses em biologia

    (diramos, funcional) se d por meio da postulao de modelos simblicos que

    indiquem como as diferentes partes do sistema estudado poderiam se articular para

    produzir um determinado comportamento de interesse. Assim, as explicaes biolgicas

    seriam explicaes por articulao de partes, contrastando com outros tipos de

    explicao, como algumas da fsica clssica, em que o comportamento de um sistema

    no funo da interao entre suas partes. Kauffman utiliza o termo modelo

    ciberntico para designar o modelo simblico que o bilogo constri antes de apresentar

    um modelo causal:

    O uso de uma descrio adequada de um organismo que faz algo em particular, para guiar

    nossa decomposio de tal organismo em suas partes e processos inter-relacionados e

    que de fato parte da lgica da investigao , est intimamente vinculado s condies

  • 25

    suficientes para uma descrio adequada. Em particular, podemos usar as condies

    suficientes para gerar um modelo ciberntico que mostre como as partes simblicas

    podem se articular para produzir uma verso tambm simblica do comportamento

    descrito. [...] Podemos usar o modelo ciberntico para nos ajudar a encontrar um modelo

    causal isomrfico que mostre como as supostas partes e processos do sistema real podem

    se articular para produzir o comportamento descrito. (Kauffman, 1998 [1970], p. 43)

    Antes de apresentarmos em maiores detalhes a proposta da explicao por

    articulao de partes, cabe um comentrio a respeito do uso do termo ciberntica em

    Kauffman (1998 [1970]. Ao se reportar ciberntica, est endossando uma tradio de

    pesquisa que prima pela decomposio lgica do objeto de estudo. Conforme assinala

    Philippe Goujon (cf. 1999), a abordagem precursora da ciberntica foi a formalizao

    do conceito de mquina, feita na dcada de 1930 por Turing e outros autores. A

    ciberntica seria a concepo simblica, lgica, operacional, mesmo informacional, da

    natureza (Goujon, 1999, p. 104), desenvolvida nas dcadas seguintes e levada a cabo

    por duas escolas diferentes (Primeira e Segunda). Da mesma forma que os autmatos de

    Von Neumann procuravam simular a auto-reproduo, no no nvel gentico ou

    bioqumico, mas lgico (Goujon, 1999, p. 109), Kauffman estava inicialmente

    interessado em criar um modelo lgico (ou ciberntico sensu Kauffman) de como a

    clula alcana sua individualidade (Emmeche, 1994, p. 102).

    Outra influncia ciberntica para Kauffman foi Warren McCulloch, um dos

    protagonistas da Segunda Ciberntica e co-autor de um dos artigos fundadores da teoria

    de redes neurais (McCulloch e Pitts, 1943). Kauffman foi aluno de McCulloch no MIT

    e, juntos, escreveram o primeiro artigo contendo resultados de redes booleanas (Lewin,

    1994, p. 60). Alm isso, a idealizao ligado/desligado para o gene foi inspirada pela

    teoria de redes neurais de McCulloch (Kauffman, 1993, p. 227).

    Por fim, o modelo kauffmaniano de adaptao como um percurso em um espao de

    estados de um sistema (v. sees 2.4.1 e 2.4.3) inspirado pelo Design for a Brain

    (1960), de Ross Ashby, tambm da Segunda Ciberntica (Kauffman, 1993, p. 209).

    Ashby tambm cunhou o conceito de auto-organizao, que definiu como indicativo de

    uma mquina determinada, mas ainda capaz de sofrer mudanas espontneas de

    organizao interna (Ashby, 1947 apud Anderson, 2002, p. 248).

    Cremos que as redes booleanas possam ser consideradas modelos cibernticos (sensu

    Kauffman) de processos metablicos, redes regulatrias genmicas ou de outros

    processos, no necessariamente biolgicos, mas que envolvam a interao sincrnica

  • 26

    mediada por regras lgicas de elementos interconectados (Kauffman, 1993, p. 182-3;

    1995, p. 77). A idia que, se Kauffman conseguisse mostrar que as regras lgicas so

    suficientes para descrever comportamentos como a diferenciao celular, uma boa parte

    da biologia moderna poderia ser descartada (cf. Sterelny e Griffiths, 1999, p. 375).

    Justifica-se esse ponto pelo fato de que, embora Kauffman reconhea que um

    comportamento de um sistema pode ser descrito de diferentes maneiras, parece querer

    implicar que s uma delas se revelar bem-sucedida empiricamente20. Sobre esse

    aspecto, vale lembrar que Kauffman no est propondo um modelo explicativo, e sim

    um conjunto de diretrizes para a formulao de hipteses explicativas (os modelos

    cibernticos) em biologia funcional. Diferentes modelos cibernticos de um mesmo

    comportamento so hipteses explicativas concorrentes que apontam conjuntos

    alternativos de causas suficientes21 que, por sua vez, levam a cabo o comportamento em

    questo. O modelo ciberntico que for empiricamente bem-sucedido acarreta uma

    explicao por articulao de partes, que um modelo causal de como as partes do

    sistema real interagem para produzir o comportamento estudado.

    Em outras palavras, um comportamento de um sistema biolgico pode ter diversas

    causas suficientes e cada modelo ciberntico que for feito para esse comportamento

    envolver um subconjunto delas. A implicao dessa idia que, se apenas um modelo

    ciberntico se revelar empiricamente bem-sucedido, as causas suficientes postuladas

    pelos outros modelos cibernticos podem ser excludas como causas do comportamento

    em questo (cf. Kauffman, 1998 [1970], p. 50; p. 56).

    Por exemplo, dois bilogos funcionais, Fulano e Ciclano, podem estar interessados

    em explicar causalmente o processo de reagregao celular em porferos. Uma

    descrio desse sistema envolveria especificaes sobre o movimento das clulas na

    gua, sobre quais tipos celulares se avizinham a quais outros, em que orientao, e quais

    deles forram o exterior e o interior da estrutura final (Kauffman, 1998 [1970], p. 46). A

    partir da, o bilogo Fulano elege um processo ou conjunto A de processos (simblicos),

    20 Kauffman (cf. 1998 [1970]) no nos d indicaes sobre quais os critrios de sucesso emprico para um

    modelo ciberntico. Talvez um critrio seja o isomorfismo em relao a um sistema causal real, mas

    Kauffman tampouco fornece diretrizes para avaliarmos se um modelo ciberntico isomrfico a um

    modelo causal. 21 A rigor, a literatura filosfica reservou os conceitos de necessidade e suficincia para se falar de

    condies, e no causas, mas como as causas aqui so hipotticas, cremos que se justifica falar em

    causas suficientes para abreviar causas prximas hipoteticamente suficientes.

  • 27

    que so causas suficientes para produzir o estado de coisas descrito esse seu modelo

    ciberntico. Ciclano faz a mesma coisa com um conjunto B de causas suficientes,

    gerando um outro modelo ciberntico. Apenas um desses modelos ser isomrfico a um

    modelo causal do sistema real e esse ser empiricamente bem-sucedido, pois gerar uma

    explicao por articulao de partes do comportamento descrito.

    Essas consideraes nos sugerem que uma das motivaes iniciais de Kauffman era a

    construo de um modelo ciberntico (as redes booleanas) que fornecesse condies

    suficientes para descrever alguns comportamentos, como a diferenciao celular,

    prprios do domnio de estudo da biologia funcional. Essa viso transformaria outros

    conjuntos de causas suficientes classicamente estudados (no exemplo da diferenciao

    celular, a difuso de molculas indutoras) em causas no pertinentes para a produo do

    comportamento. A seguir, apresentaremos tal modelo e, no fim deste captulo,

    tentaremos argumentar que ele no se sustenta como uma proposta de causa suficiente

    para fenmenos da biologia evolutiva.

    2.4 Redes booleanas aleatrias como um modelo ciberntico para o genoma

    A grande contribuio de Kauffman para a biologia funcional terica foi a criao de

    um modelo ciberntico para o computador molecular do genoma. Nesta seo,

    tentaremos reconstruir a descrio a partir da qual Kauffman formulou o modelo de

    redes booleanas aleatrias, explicitando algumas idealizaes envolvidas.

    A primeira caracterstica do genoma a ser levada em conta o processamento

    paralelo. Na clula, inmeros eventos de transcrio, traduo e regulao acontecem

    simultaneamente. Por si s, essa caracterstica torna o computador genmico impossvel

    de ser descrito em termos de processamento serial, em que etapas discretas de

    processamento sucedem umas s outras no tempo. Assim sendo, a arquitetura mais

    adequada para o modelo ciberntico do genoma a de rede, na qual nenhum dos

    elementos tem prioridade temporal sobre outro: computaes sobre todas as variveis

    so processadas de maneira sincrnica.

    A segunda exigncia que o modelo deve ser capaz de representar diferentes estados

    de atividade de cada gene. Se pudssemos tirar fotos dos genes, isto , congelar a

    clula em um determinado instante e sondar a atividade de diferentes genes,

    constataramos que um gene pode, grosso modo, estar ativo ou inativo22. Nosso modelo

    22 Essa , evidentemente, uma simplificao: existem, na realidade, taxas de atividade, mas Kauffman

  • 28

    ciberntico poderia, ento, atribuir uma varivel binria para cada gene, isto , uma

    varivel que possa assumir um dentre dois valores por exemplo, 0 ou 123.

    Em terceiro lugar, o modelo do operon lac nos fornece insights sobre como a

    atividade de um gene tem influncia na atividade de um ou mais outros genes. Em

    gentica, fenmenos desse tipo so agrupados sob o nome de epistasia:

    [Epistasia ] [u]m efeito sinergtico, sobre o fentipo ou sobre a adaptabilidade, de dois

    ou mais locos gnicos, pelo qual seu efeito conjugado difere da soma dos locos quando

    tomados separadamente. (Futuyma, 2003, p. 580)

    Kauffman, entretanto, usa o termo epistasia para se referir a interaes genticas

    em geral (1993, p. 40; 1992a, p. 160). De certa maneira, a exigncia de que nosso

    modelo seja episttico j est contemplada pela arquitetura de rede que escolhemos. As

    conexes entre os elementos determinam os caminhos de influncia de atividade. Resta

    especificar um conjunto de regras para a regulao de atividade.

    Por fim, Kauffman percebeu que o comportamento do operon lac, por exemplo, pode

    ser descrito por uma regra booleana (no se, tabela 2.1a, que corresponde F3 da

    tabela 2.1b). Regras (ou funes) booleanas so conectivos lgicos, como se, e,

    ou, no, que determinam o valor de verdade de uma frmula molecular em funo

    do valor de verdade de suas frmulas atmicas. No caso do modelo ciberntico de que

    estamos falando, o comportamento de uma varivel binria (o output) computado em

    funo de outras (os inputs), podendo ser descrito por tabelas como as tabelas de

    verdade da lgica (tabela 2.1b).

    Tabela 2.1 (a) A lgica do operon lac (adaptado de Kauffman, 1995, p. 101); (b) os outputs de acordo

    com cada uma das 16 funes booleanas possveis para 2 inputs. Ver texto para detalhes.

    alo-lactose repressor Operador 0 0 0 0 1 1 1 0 0 1 1 0 Regra: no se (F3)

    A

    apresenta (1993, p. 183-188) um detalhado argumento sobre porque elas podem ser desprezadas. 23 A analogia clssica para esse tipo de varivel imaginar uma lmpada que, quando assume o valor 1,

    est ligada; e quando igual a 0, desligada.

  • 29

    Inputs Outputs A B F1 F2 F3 F4 F5 F6 F7 F8 F9 F10 F11 F12 F13 F14 F15 F16 1 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 1 0 0 0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 0 1 0 0 0 0 1 1 1 1 0 0 0 0 1 1 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 1 1 1 1 1 1 B

    Todas essas funes podem ser definidas a partir de um conjunto inicial de

    conectivos lgicos, mas uma reproduo dessas definies foge aos propsitos de nosso

    estudo. O importante perceber que esse conjunto de funes pode ser obtido por

    simples anlise combinatria. Isso uma primeira mostra da natureza analtica (quer

    dizer, despreocupada com as particularidades biolgicas) da abordagem kauffmaniana,

    que detalharemos no captulo 4.

    De posse desta noo geral a respeito das caractersticas que Kauffman incorporou

    em sua formalizao do genoma, passaremos agora a uma descrio do modelo

    propriamente dito. Apresentaremos tambm duas interpretaes diferentes desse

    modelo, que propomos como uma classificao geral dos experimentos de Kauffman

    com redes booleanas aleatrias.

    2.4.1 Definies

    Redes booleanas aleatrias so modelos de simulao computacional para

    fenmenos que envolvam interaes epistticas entre os componentes de uma rede

    qualquer24; redes genmicas regulatrias e redes metablicas so exemplos do domnio

    biolgico que podem ser estudados pelas redes booleanas. Para compreender como as

    redes booleanas podem acrescentar idias inovadoras aos mecanismos conhecidos de

    ontogenia e filogenia, faz-se necessria uma apresentao terminolgica inicial.

    Uma rede booleana, descrita topologicamente, composta de ns e arestas ou

    conexes entre os ns. As arestas tm um sentido, isto , vo de um n a outro, e podem

    ser visualizadas como setas (figura 2.1a). A rede pode ser caracterizada atravs de duas

    variveis: o