auto das fadas - gil vicente

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Peça de Gil Vicente

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  • VICENTECOLECO DIRIGIDA POR OSRIO MATEUS

    Quimera LISBOA 1989 | e-book 2005

    Jos CamesFADAS

  • 3

    O texto do Auto das Fadas est inserido no livro quarto da Copilaam detodalas obras de Gil Vicente o das farsas sem indicao de data nemlocal de representao, tal como acontece com o Auto dos Fsicos. Todas asoutras farsas esto localizadas no tempo e/ou no espao e o editor organizou--as cronologicamente. Fadas encontra-se entre Velho da Horta (1512) e InsPereira (1523). Mas o texto fornece dados para a sua contextualizao. A darf a um verso do sermo pregado pelo frade, o auto ter sido projectado pararepresentao em Lisboa: Por eso est cara esta vuestra Lixbona (210.05). Nomesmo sermo, o frade apela a convertere ad dominum (210.07), exclamaodas cerimnias religiosas da semana santa quarta, quinta e sexta-feira ea poca da Pscoa aparece referida na estrofe seguinte: cirio pascoal (210.11).Os estudiosos tm apontado as balizas 1511 (Braamcamp Freire 1919) e 1527(Rvah 1960). So datas muito distantes que correspondem a pocas distintasna produo teatral de Gil Vicente: os reinados de D. Manuel e de D. Joo III.Inclino-me para a proposta de Braamcamp Freire, pois o texto refere oprncipe e as ifantes, ou seja, D. Joo (futuro rei), D. Isabel e D. Beatriz. Spode ter sido representao do reinado de D. Manuel. Em 1527, D. Joo j rei (III), e no prncipe, e D. Beatriz e D. Isabel j no se encontram emPortugal; casaram e partiram, respectivamente para Sabia (1521) e paraCastela (1526).No entanto, no partilho os argumentos de Braamcamp Freire para a dataodo auto. Este estudioso indica o dia 4 de Maro de 1511 como data da primeirarepresentao de Fadas por ter sido nesse dia o Entrudo. Leva-o a apontar oCarnaval o facto de ser uma festa que permite a mascarada de uns sessentabichos, que a sua leitura das sortes por planetas e animais. Mais frentedarei a minha interpretao daquele jogo. Adianto uma hiptese de pblicoprevisto: rei D. Manuel, rainha (D. Maria?), prncipe D. Joo, infantasD. Isabel e D. Beatriz. Pelo menos mais trinta e seis homens e vinte e trsmulheres. O infante D. Fernando pode estar presente e o seu planeta serMercrio, como em Exortao:

    senhor ifante dom Fernandovosso signo de prudnciaMercrio por excelnciafavorece vosso bando. 158a

    Avano a possibilidade de ter assistido representao a rainha D. Leonor,viva de D. Joo II, irm do rei e protectora de Gil Vicente. A omisso de doisplanetas no final do auto, quando se distribuem as sortes, pode cobrir estahiptese: um dos planetas que faltam seria destinado rainha viva.O auto encena uma prtica com pena prevista nas Ordenaes Manuelinas.Mas a feitiaria feita no pao e na presena do rei e da corte. A transgresso sempre motivo de cmico.A defesa da feiticeira pretexto para um desenrolar de intrigas da vida dopao, nomeando pessoas identificveis que talvez estejam a assistir ao auto.Este jogo mais tarde reutilizado no sermo do frade pregador.

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    No novidade teatral a nomeao de pessoas da corte, possveisespectadores. um processo que se repete noutros autos de Vicente: Velho,Exortao, Cortes, Nau, Frgoa, Romagem, Clrigo. E sempre um momentocmico.Pode tratar-se de um dos autos indicados no Rol dos livros defesos (1551), eestar nomeado entre outros de Gil Vicente. Transcrevo a indicao dos quetm a palavra auto e pela ordem em que a se encontram mencionados.

    O auto de dom Duardos que nom tiver censura como foi emendado.O auto de Lusitnia com os diabos/sem eles poder-se- emprimir.O auto de pedreanes/por causa das matinas.O auto do Jubileu damores.O auto da aderncia do pao.O auto da vida do pao.O auto dos fsicos.

    Ao contrrio do que o ttulo poderia sugerir vida do pao a censuraactuaria no porque se punham a ridculo pessoas da nobreza e sedesvendavam segredos (pblicos) de amor, mas sim porque o teatrorepresentava o proibido: a bruxaria e a heresia. A censura aqui legalista, e nomoralista.Na reedio da Copilaam, em 1586, censurada pela Inquisio, o texto doauto desaparece integralmente.

    A tcnica teatral utilizada a dos nmeros soltos. Considero setemomentos na estrutura do auto:

    I FeiticeiraII Feiticeira + Diabo

    III Feiticeira + Diabo + FradesIV FradeV Feiticeira + Diabo

    VI Feiticeira + Diabo + FadasVII FadasEsta estrutura afigura-se perfeitamente paralela e simtrica, num esquema depersonagens em cena de 1, 2, 3.A articulao dos momentos feita por nmeros soltos da Feiticeira: a feiturade feitios e a proferio da ladainha.

    Como em outros autos de Vicente, coexistem nesta farsa vrias formasliterrias isolveis e que constituem unidades: Monlogo, Sermo, Ladainha,Cantiga, Orao, Sortes.Monlogo: o grande nmero de abertura. So cerca de duzentos versos emredondilha maior que constituem uma das maiores falas dos autos de Vicentepara mais de um actor. A Feiticeira apresenta-se, interpela o pblico, queixa--se, defende-se, profere palavras mgicas e programa o auto.

  • 5

    Sermo: trata-se de um sermo burlesco, prtica parateatral comum na IdadeMdia e que Gil Vicente ainda utilizou nalguns dos seus autos (Mofina aabertura; Fadas um nmero intermdio; e um auto que um sermo Pregao).A prtica de homem leigo pregar sermo era habitual na festa de SantoEstevo, a 26 de Dezembro, e o poder sempre tentou censurar esse teatro. Em1500, as Constituies do Bispado da Guarda referiam o abominvel costumede os homens leigos levarem para dentro das igrejas jograees, os quaesmandam poer e poeem no pulpeto da ygreja, donde dizem muitasdesonestidades (cito por Mrio Martins 1978). Nas trovas Dlvaro de Brito aLus Fogaa sendo vereador na cidade de Lisboa, em que lhe d maneira paraos ares maus serem fora dela, includas no Cancioneiro Geral, tambm opoeta denuncia que os

    estudantes pregadoresmetem santas escreturasem sermesdirivados em amoresfazem de falsas segurastentaes.

    E aconselha:quando virem tal caminhode m pregao safastemos que ouvemdem-lhe todos de foinhotais metforas contrastem,e deslouvem.

    Ladainha: entoada pela feiticeira enquanto espera pelas fadas. O refro omesmo do da ladainha de todos os santos.Cantiga: msica diegtica que vem a propsito, faz sentido narrativo. No msica que aparece como remate. Pode ser, como em Frgoa, feita polo autorao propsito.Orao: rezada pelo frade infernal a Cupido. O invitatrio que a inicia nopertence a nenhum dos salmos. As referncias bblicas aparecem contudo nointerior das duas estrofes que compem a orao: o salmo LXXXIV. Omesmo salmo referido em Romagem e traduzido em Alma.Sortes: Gonalves Viana (1906) define-as como um Jogo de sala no qualcada fidalgo tomava por sua divisa o nome de uma ave ou de outro animal. Hsemelhanas com as trovas feitas por Garcia de Resende para um jogo decartas, a pedido do rei D. Manuel, para um sero. Leitura em voz alta pelapessoa a quem saiu a sorte (implica que toda a assistncia saiba ler, o que achopouco provvel). A do rei e as das outras pessoas reais no podem serdistribudas ao acaso. Ao rei atribudo o planeta Jpiter, como da suacondio: rex regnum, Dominus Dominantium, como se diz em Feira. EmSerra existe o mesmo jogo, mas entre personagens do auto:

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    Ermito . Filhas aqui estais escritas 172dfilhos tomai vossa sortee cada um se comportedando graas infinitasa Deos e a el rei e corte.

    Tirou o Ermito da manga trs papelinhos escritos e os deu aospastores que tomasse cada um sua sorte ...

    As personagens: todas as deste auto encontram correspondente noutros autosdo autor.Feiticeira: na comdia de Rubena (1521), h tambm uma feiticeira que fazfeitios em encruzilhadas, e manda vir quatro diabos que vo ter por misso irbuscar fadas. exactamente como em Fadas. Tem afinidades com uma outrapersonagem mais comum no teatro de Gil Vicente a alcoviteira.Fadas: numa Arenga ou Relao das Festas que se fizeram na cidade devora no prazo do casamento do Prncipe D. Afonso, composta por AiresTeles de Menezes, h notcia de Fadas que fadam a realeza:

    . Aqui as fadas estavamsegundo lhe coube em sorteque princesa fadaramcada qual de sua sorte.

    Em Triunfo do Inverno h duas sereias, nome por que tambm so designadasas fadas marinhas no Auto das Fadas.Frades: o auto parece estar muito prximo da feitura de Exortao da Guerra(1513). O incio semelhante um frade nigromante (de actividade paralela feitiaria) vai fazer bruxedos na presena do rei, revela os seus poderes, dizpor que o faz, e por artes mgicas chama at si dois diabos com a misso deirem ao buscar personagens inferno. O mesmo acontece em Fadas. Noutrosautos de Vicente a figura do Frade retomada com variaes: o Frade doudo,o Clrigo, e at um muito prximo deste frade pregador no Auto dos Fsicos.Diabo: pode ser o primeiro representado por corpo no teatro de Gil Vicente.J antes, em 1506, tinha sido dito por palavras na Pregao: aquellas visionesde nuestro enemigo. um diabo que vem do Inferno e de Frana. Estajustaposio pode ter tido um sentido que hoje nos escapa.Fadas um auto apenas referido e (pouco) estudado devido ao dialecto faladopelo diabo o picardo.Gil Vicente pode ter ouvido a lngua em som directo, atravs de diplomatasportugueses que se deslocavam frequentemente a Frana, nomeadamenteJoo da Silveira, que se sabe ter estado nesse pas nos fins de 1509 ou em1510. No entanto, parece-me mais plausvel que conhecesse aquele dialectopor via escrita, j que, se em letra impressa a rima est desenhada, o mesmono acontece na oralidade dos versos. No Cancioneiro Geral, Diogo Zeimoto,

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    zombando da atitude ridcula de Nuno Pereira que quis evidenciar grandesconhecimentos de etiqueta ao intitular o Prncipe de Peralteza, afirma:

    Eu andei j Picardia 163'e a terra do DalfimFrana e a Lombardiae tam gram sensaborianam sachara como em mim.com toda minha friezanom sam eu tam sensaborquescrevesse peraltezado prncepe nosso senhor.

    pois possvel que Gil Vicente estivesse em permanente contacto com oshomens da corte que viajavam por Frana e por eles conhecesse a lnguaestrangeira. Osrio Mateus (1989) pe a hiptese de Gil Vicente conhecer teatroeuropeu seu contemporneo evidenciando os exemplos de modelos francesesque se encontram em forma de a enselada que veio de Frana, no auto da F,de cantiga francesa, no auto dos Quatro Tempos, e ainda patente nas lnguasfaladas pelo Francs do auto da Fama e pelo Diabo no auto das Fadas.

    A farsa encena um jogo de cumplicidades entre pblico e actores. A dinmicadesse jogo assenta em matria do foro amoroso, lembrando os divertimentos dognero referidos no Cancioneiro Geral. Ponho a hiptese de no se tratar deum projecto pensado como um todo, mas sim de um aproveitamento de materialpr-existente que foi articulado e desenvolvido. Sabe-se por outros autos queGil Vicente adiava ideias e projectos para momentos talvez mais oportunos.Disso nos do conta os finais de Frgoa:

    Copido . Vmonos no eademos 156bcantando a nueso placery nuestra fragoa llevemosque lo que est por hacerotro da lo haremos.

    e de Clrigo:

    PedrEanes . E ao que quereis saber 238ddas damas e amadoreso domingo que viereu direi quanto souberdelas e seus servidores.

    No h dvida de que o que se anuncia corresponde ao programa de Fadas odesvendar de casos amorosos. Mas Clrigo de 1526, e, como disse atrs,Fadas um auto do perodo manuelino.H outros autos com afinidades: Nau, Devisa, Mofina.

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    Apresento o texto integral, transcrito da Copilaam de 1562, flios 207 a 213'.O texto do auto ser intercalado com comentrio e anlise. As citaes dostextos de autos de Gil Vicente, bem como a transcrio de Fadas, so feitaspela edio fac-similada da Copilaam de 1562, editada pela BibliotecaNacional em 1928; os nmeros e letras que se encontram na margem direitado texto transcrito, ou em texto citado, entre parntesis, indicam os flios ecolunas.O auto abre com uma personagem feminina que faz um percurso numdeterminado espao. No se sabe onde comea, mas acaba junto do rei. Falaao mesmo tempo que anda: entrando (rubrica 207.05), como l v (207a10), comovou (207a19), chega a el rei (rubrica 207a27).

    Na farsa seguinte se contm que a feiticeira temendo-se que aprendessem por usar de seu ofcio se vai queixar a el rei mostrando-lheper rezes que pera isso lhe d quam necessrios so seus feitios. Eentrando ela no pao embaraada de se ver nele comea dizendo:

    . Jesu quem trouxe ora c 207aesta cabea de ventosiso de cacaraceu nam sei como l vtamanha vergonha sento.e pois sam tam vergonhosaencolhida e temerosaque venho fazer paoporque eu mesma membaraode mimosa

    ai que farei dempachadaoh vergonhosa de micomo vou abrasiadaamara corrida e torvadamas pressa me traz aquionde nam vejo lugarem que homem queira mijarnem ouso espirrar somentepor algum nam se soltarantre gente

    Chega a el rei e rainha e diz:

    senhores embora estedescom sade com prazermuitos anos vs logredesos ramos que florecedesDeos os queira engradecer

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    assi como vs queredes.Ao prncipe oh que jias esmaltadase ifantes oh que boninas dos ceos

    oh que rosas prefumadass damas Jesu que santas douradas

    bom prazer veja eu de vse boas fadas

    Depois de ter elogiado a famlia real com encmios de circunstncia, afeiticeira vai agora apresentar-se, dizer quem e o que faz, a razo por que aliest. Fala directamente para o rei utilizando vrias formas de tratamento,sendo de salientar vossa majestade por ser frmula pouco comum na primeirametade do sculo XVI. Diz-se praticante das virtudes crists (o bem, apiedade) e apela ao poder real para que reconhea a oportunidade do seuofcio: uma actividade praticada ao longo de quarenta anos, ao servio dacorte (nas tripas do pao) no pode ser assim interrompida por uma leimandada aplicar por Estevam Dias, um negro meirinho.Durante a longa exposio, Genebra Pereira anuncia j o programa do auto as fadas. So vrias as referncias a estas entidades: as bem fadadas, porexemplo, que traz memria o voto formulado pouco antes s damas.No seu monlogo, a feiticeira interpela pessoas e objectos ao longo de 54pares de versos rimados, agrupados em estrofes, numa forma que no temparalelo em nenhum outro auto de Vicente. O ltimo verso de cada uma rimas com o primeiro da seguinte.

    eu sam Genebra Pereiraque moro ali Pedreiravezinha de Joam de Tarasolteira j velha amara 207bsem marido e sem nobrezafui criada em gentilezadentro nas tripas do paoe por feitios que eu faodizem que sam feiticeira

    porm Genebra Pereiranunca fez mal a ningummas antes por querer bemando nas encruzilhadass horas que as bem fadadasdormem sono repousado.e eu estou com um enforcadopapeando-lhe orelhaisto provar esta velhamuito milhor do que o diz

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    ora agora Estevam Dizdiz que defendedes istoui dou-vos a Jesu Cristopera que era ora tiradoquanto tenho esprementadoe usado quarenta anos.estorvado muitos danosper esconjuros provadosfazendo vir dez finadospor saber a verdade

    e havendo piedadede molheres mal casadase as ver bem maridadasando polos adros nuasem companhia nenhasenam um sino samometido num coraode gato preto e nam alisto senhor nam malpois pera fazer bem

    outro si quando a mi vem 207cnamorado sem confortodesejando antes ser mortoque ter aquela paixocavalgo no meu cabroe vou-me a Val de Cavalinhose ando quebrando os focinhospor aquelas oliveiraschamando frades e freirasque morreram por amores.oh se vsseis os temoresque passo nesta canseiranam temeria a Pereiratanto os corregedores

    Na estrofe seguinte pode estar contida uma forma de comicidade que assenta,por um lado, na homonmia dos nomes comum e prprio que referem afidelidade no matrimnio e, por outro, na memria da ironia construda sobrea mesma homonmia no Auto da ndia.

    sempre ando neste marteirovem-se a mi homem solteiroque quer casar com Costanasem nenha esperana

  • 11

    triste morto de paixo.e eu co sangue do liomexido co rabo da hujae ali o fel da curujaei-lo mancebo aviado.vem um frade escomungadoque o benza do quebrantovou e fao-lhe outro tantoassi senhor vejeu prazer

    Terminada a lista de tormentos por que passa ao servio do bem, GenebraPereira enuncia casos concretos de pessoas da corte que se valeram ounecessitariam dos seus prstimos. Quase de certeza que as pessoas nomeadasse encontram no pao a assistir representao. No podemos hoje saber omodo como reagiram ao ouvir os seus segredos revelados por uma velhaque os torna alvo de riso.

    vem a modo de dizerGonalo da Silva a mie diz-me que fora de sipola Francisca da Guerraquers que seja eu tam perraque o nam encomende demoque o livre do estremoem que posto seu esprito?e se vier Gaspar de Britopor Caterina Limonam irei no meu cabroenfeitiar a Limeira?

    e assi desta maneirase vier o Marichalpor Guiomar do Atadebuscar a minha sade per fora pr-me a risco 207de se me rogar dom Franciscoque lhe enfeitice a Beneniseu nam for muito roimnam lhe posso negar cousa.e l o Martim de Sousaque morre pola Perimintelnam lhhei-de ser infiel

    assi que as tais feitiariasso senhor obras mui piase nam h mais na verdade

  • 12

    saiba vossa majestadequem Genebra Pereiraque sempre quis ser solteirapor mais estado de graa.agora nam sei que faaco este negro meirinhorosto de sam Sadorninho

    Anuncia-se um programa: este one woman show vai aproximar-se da suaparte mais espectacular. Diante do rei, e talvez dos corregedores, vai serrepresentada a transgresso, vai fazer-se o que proibido para divertimentodos que proibem.O que se segue na actuao da feiticeira indito e fantstico. Como umnmero de circo, necessita de aviso prvio. Antes de sair, Genebra Pereira,maliciosamente, recomenda s damas que se sirvam dos seus servidores.

    ui amara e que me querse vossa alteza quiserver os feitios queu faoaqui logo neste paoos veredes muito asinha.e vs senhora rainhainfantes e cortesoslevantai aos ceos as mosesforai e nam pasmedesdas ms cousas que veredes

    esperade um poucochinhoestade assi manas quedasvou polo alguidarinhoa candea e o saquinhoe veredes labaredas.se vos tremerem as pelesdespantos e de temores esto vossos servidoresencostade-vos a elese cobride-vos damores

    Traz a feiticeira um alguidar e um saco preto em que traz os feitios

    So vrios os objectos necessrios, alguns deles referidos como malignos edefesos de estarem em posse de pessoas em Constituies de Arcebispados dosculo XVI. Era tambm interdito lanar sortes para adivinhar, especialmenteem encruzilhadas. Ora a isso mesmo que o rei vai assistir.

    os quais comea a fazer dizendo:

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    alguidar alguidar 208aque feito foste ao lardebaixo das sete estrelascom cospinhos de donzelaste mandei eu amassar. cospinhos preciososde beios tam preciososdai ora prazera quem vos bem quere dai boas fadasnas encruzilhadas

    este caminho vai pera lestoutro atravessa cvs no meo alguidarque aqui cruz nam h-destar

    embora esteis encruzilhadaperequi entrou pereli saiubem venhades dona honradavai a estrada pola estradabenta a gata que pariu.gato negro negro o gatobode negro anda no matonegro o corvo e negro o peznegro o rei do enxadreznegra a vira do sapatonegro o saco que eu desato

    isto fersura de sapoque est neste guardanapoeis aqui mama de porcabarbas de bode furtadofel de morto escomungadoseixinhos do p da forca.bolo de trigo alqueivadocom dous ratos no meu larper minha mo sameadocolhido modo amassadonas costas do alguidar

    achegade-vos a mimque papades meu querubim?escumas de demuninhado 208bquem vo-las deu?

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    dei-vo-las eufel de morto meu confortobolo cornudo vs sabedes tudobico de pego asa de morcegobafo de drago tudo vos tragoeu nam juro nem esconjuromas galo negro surocantou no meu monturoe ditas as santas palavrasei-lo demo vai ei-lo demo vemco as bragas dependuradas.

    Segundo momento: o diabo picardo. Pode tratar-se de uma lngua inventada,com base no francs, e apenas se pretender o efeito de aravia. Para a feiticeirao diabo da Turquia, fala latim e alemo.Na literatura europeia contempornea de Vicente, o picardo surge j comolngua de marca de personagem para produzir efeito de cmico, como na farsade Pathelin e em Rabelais.Paul Teyssier (1959) diz tratar-se de uma tentativa de registar o dialectopicardo. No Auto da Fama a personagem que fala francs tem um discurso quepouco se aproxima da lngua francesa. Em Fadas o diabo apresenta marcas queso indubitavelmente do picardo: os verbos transitivos com auxiliar avoir emvez de tre, a passagem do grupo el a iau, a forma aveu em vez de avec, osgrupos chi, che que evoluiram dos grupos latinos ci, ce. Por outro lado, no nospodemos esquecer que se trata de um divertimento teatral destinado a umpblico que, na sua maioria, no fala outra lngua que no o portugus e ocastelhano. Por isso se encontram misturadas com expresses do francs outrasportuguesas adaptadas sonoridade francesa.Se quando a lngua a portuguesa existem problemas de transcrio, quando alngua estrangeira os problemas aumentam. Da que nas falas do diabo tenhaoptado por uma transcrio diplomtica na coluna da esquerda, e por umatentativa de interpretao, na coluna da direita.

    Vem um diabo a chamado da feiticeira o qual lhe fala em lngoa picardadesta maneira:

    . dame jordene Oh dame jordonne/jordainevu seae la bien trovee vous soyez la bien trouvetu es fause t humyne tu es fausset humainesou ye vous esposee. souyez vous pouse

    Feiticeira . Que lingoagem essa tal?ui e ele fala araviaolhede o nabo de Turquiafalade aram Portugal.

  • 15

    Diabo . Tu as fet biauco de mal Tu as fait biaucoup de malaveu un frayre jacopim. aveu un frre jacopin

    Feiticeira . M pesar vejeu de tidize m trama te naaque dizes que nam tentendofazes escrneo de mimora juro a Deos que graa demo que teu encomendocamanho tu ests .

    Diabo . Macarele de limosim Maquerelle de limousintripiere de sancto Ouim. tripire de saint Ouin

    Feiticeira . D demo esse latimque nam entendo o que .

    Diabo . Tu nas oy tene vergonhe. Tu nas oi tenez vergogneFeiticeira . Que fiz eu?

    Diabo . De tois le ses en aute vois. De toi les seins en haut te vois 208cFeiticeira . Vs me diredes depois

    o que isso quer dizer.Diabo . Tu aspete de bem la mer. Tu as pt dedans la mer

    Feiticeira . Ui pt que pode seresta que lingoagem ?

    Diabo . Tan sant y xi noble en trapisu. Tant sainte et chi noble entrepriseFeiticeira . Viste-lo demo em que vem.

    Diabo . E la ribalde norrem Et la ribaud nentend/eu rieny puis gessa venu. et puis je suis venu

    Feiticeira . Pois pera que vieste tusenam pera servios meus?

    Diabo . Dime tos xem que tu veus Dis-moi tout che que tu veuxfame dum vilhem cocu. femme dun vilain cocu

    Feiticeira . Quem viu diabo alemodize rogo-to bargantemau quebranto te quebranteno falas doutra feiopor vida de Genebra Pereiravelha ladra alcouviteiraque chame o nome de Jesu.

    Diabo . Eu eu que dile tu. Eu eu que dis l tu

    Feiticeira . Esconjuro-te malinonembro da ira de Deospola terra e polos ceose por teu malvado sinotu hs-me-de responder.

  • 16

    O esconjuro parece resultar, pois o diabo fala agora em portugus. Podermgico ou erro de tipgrafo? O segundo verso no rima com nenhum outro.

    Diabo . Oh que maldita molherque me queres infernal?

    A feiticeira, pelo sim, pelo no, resolve namorar o diabo para continuar aentend-lo.

    Feiticeira . Quero-vos mano entenderminha rosa vinde cmeu quebranto dai-ma fque me nam faleis por le adoro o rabo de boi.

    Diabo . Te toy te toy Tais-toi tais-toitu merum la caboxes. tu me romps la caboche

    Feiticeira . Falai aram portugusat qui estou zombandotu hs-dir onde teu mando.

    Diabo . Irei inda que me ps.Feiticeira . Vai logo s ilhas perdidas

    no mar das penas ou vinhas 208dtraze trs fadas marinhasque sejam mui escolhidasparte logo ora sus.

    Diabo . Tu as desataque la pendus. Tu as desataqu la pendu

    Vai-se o diabo e a feiticeira torna s feitios dizendo:

    . Que fazeis relquias minhasnesta agoa clara metidas?havedes mister mexidasco lixo das andorinhas.

    Vai comear o terceiro momento. Para surpresa e gozo do espectador o diabovolta, no das ilhas perdidas, mas do inferno onde foi buscar dois frades queali se encontravam em penitncia. Mais uma vez o espao de representaoparece permitir um percurso longo, pois s passados 64 versos estaspersonagens se juntam feiticeira que tinha ficado s. A entrada das novasfiguras, com o monlogo de um dos frades, assemelha-se entrada inicial deGenebra Pereira. de notar que fala apenas um dos religiosos, o que vaipregar o sermo. A Copilaam utiliza abreviaturas diferentes: fr. pr., Fra. ePre. Penso que correspondem mesma personagem e que so de desenvolverem Frade pregador, Frade e Pregador.

  • 17

    Vem o messageiro e em lugar das fadas que lhe a feiticeira mandoutrazer traz-lhe dous frades infernais, um deles tangendo a gaita e ooutro foi pregador mas enquanto viveu foi muito namorado o qual dizlogo:

    Frade . Qu gran tormiento me disteen traerme aqu mal puntoita vere.

    Diabo . Qu hobiste?Frade . Aqu nos hacen ms triste

    que el infierno todo junto.

    O diabo picardo fala latim, assim como o frade castelhano. Este reflecte sobreo que daqui a pouco vai ser o tema do seu sermo. Mais uma vez umapersonagem fala dos espectadores (destos seores) descobrindo que sofrem,como ele, de mal de amores. A associao entre morte e amor, de tradiopotica medieval, aqui parodiada, no chegando, no entanto, crueldadeevidenciada em Velho da Horta.

    Diabo . Per quam regula diremos.Frade . Porque muy cierto sabemos

    quia dedit Deus potestatema las damas que nos mateny nos que las adoremos

    ms me lastima el dolorque tengo destos seoresporque supe que es amorque no el infernal ardorde los tormentos mayores.como basta sufrimientoal namorado tormiento 209asi el amor es apuradoque no lo mata el cuidadoy ahoga el pensamiento

    esto es lo que yo sy us cuando vevadesto tal os dar feesto es lo que estudiesta era mi libraraaquestas contemplacioneseran siempre mis licionesy en esto gast mis aospredicando con sermonesla grandeza de mis daos

  • 18

    con lgrimas dolorosasdentro de mi oratoriocontemplando en las fermosasal cabo de ciertas prosasdeca este vitatorio

    al santo templo damordonde las almas perdemosvenit todos y adoremos

    Carolina Michalis de Vasconcelos (1949) identificou este invitatrio com odo hino Adeste fideles, que figura no Manual da Missa em Concanim.

    venid de gana muy ledaa la triste devocindonde mata la pasiny siempre la vida quedapara ms luenga prisiny pues la tal perdicinpor ganancia la tenemosvenit todos y adoremos

    adoramos y exalzamosa aqullas que nos mataronopera manum suarumson los sospiros que damosin hac vita lachrimaruma las que mal nos trataronpues por diosas las tenemosvenit todos y adoremos

    Terminou a orao. As personagens esto agora perto da feiticeira e o fradeimiscui a mitologia pag na crist.

    prima tercia sexta y nona 209brezaba daquesta suerteporque siempre mi personadesque hecho de coronafue damores a la muertecantaba te Deum laudamuscon los ojos en Copidodiciendo a ti adoramoslos que sin ventura estamoscon tanto tiempo servido.

    A feiticeira est, como sempre, de mau humor. Roga uma praga ao ver que o

  • 19

    diabo lhe desobedeceu, trazendo frades em vez de fadas. A dificuldade decomunicao entre o diabo e a feiticeira gerou um jogo cmico de paronmiaque origina o desentendimento e a troca das figuras pedidas.

    Chegam onde est a feiticeira e ela vendo-os diz:

    Feiticeira . Mau somio e mau marteirovenha por tuas queixadaseu mandei-te polas fadase tu trazes-me um gaiteiroe estes frades a que vem?

    Diabo . Vus ma ves dexem. Vous mavez dit cheFeiticeira . Assi vivas tu amem.

    Diabo . E peme foy xiaa. [?]Feiticeira . Venhas muitieram

    com tuas balcarriadasnam te dixeu a ti fadas?

    Diabo . Fradas.Feiticeira . Fadas.

    Diabo . Frades.Feiticeira . Ainda vos aprofiades.

    Frade . Dadnos algo que hacero nos enviad al infierno.

    Feiticeira . Que hs-de fazer? dou-t demoeu nam thavia mister

    A distino entre dois mundos, vida e morte: ac e all. A dicotomia ordem /caos expressa em predicador / tecelo motivo corrente no teatro do autor,exemplificado de forma magnfica em Tormenta.A feiticeira, privada por enquanto das fadas, decide-se por um pragmatismoconformista e ordena ao frade que pregue um sermo s damas da corte. Noh fadas, mas frades. o que h.

    e l que ofcio te doa ti e teu tangedor?

    Frade . Ac fui gran predicadorall me hicieron tecelo.

    Feiticeira . Ora fazede um sermomuito breve a estas senhorasalto logo nessas horastomai o tema dom ladro.

    O sermo do frade retoma o tpico do amor no pao, apresentado pelafeiticeira. Muitos dos homens referidos pelas duas personagens so poetasdo Cancioneiro Geral de Resende Gonalo da Silva, lvaro/FernandoCoutinho (o Marichal), D. Francisco conde do Vimioso, D. Lus de Meneses,

  • 20

    Juan de Saldaa e so referidos noutros autos de Vicente. Assim comoGenebra Pereira comeou o seu monlogo com consideraes gerais e sdepois passou a enumerar especificidades, tambm o frade vai dividir o seusermo em duas partes: uma geral, em que discorre sobre o poder do amor e dasmulheres, e outra em que relata casos de pessoas, que podem estar presentes, eque confirmam a tese apresentada: o poder do amor soberano e as mulheresno podem subestimar os comportamentos masculinos, especialmente quandose trata de portugueses. um sermo que segue as regras da oratria, com tema, traduo do tema,exrdio, etc. O tema tambm pardia. Em vez de um versculo da Bblia, umverso de Virglio; em vez do sagrado, o profano: Amor vincit omnia. Ohexmetro de Virglio omnia vincit amor et nos cedamus amori. A inversoda ordem das palavras pode ser justificada por questes de ritmo, ou por aordem das palavras em portugus ser sujeito + verbo + objecto.

    Tema

    Frade . Amor vincit omnialoco et capitulojam per elegatis

    discretas illustres seoras hermosas 209'en cuyo servicio es justo el morirla verba del tema quiere decirel amor vence a todas las cosas.oh qu palabras tan maravillosasoh qu palabras de tanto saberescrebilas el gran poeta Vergilioguardaldas seoras que es muy gran alivioa quien del amor se siente vencer

    porque son palabras de tanto misterioque ciega o alumbra la humana razndespida la vida cualquier coraznpues que vos tenis sobre amor imperio.en muchos lugares do escribe Valerioque vuestro podero no es humanalmas una gran fuerza sobrenaturalque fuerza las fuerzas de nuestro hemisperio

    Assoa-se com o seu guardanapo.

    Esta rubrica pode estar deslocada, por erro de tipografia. A sua ocorrnciaseria mais previsvel quando a feiticeira enumera os objectos de que necessitapara a sua prtica e indica um guardanapo onde traz embrulhada fersura desapo (208a28/29).

  • 21

    haced ora all esos nios callar

    O verso causa perplexidade. Que crianas so aquelas? possvel que sejamos infantes D. Lus e D. Fernando nascidos, respectivamente, em 1506 e 1507.O verso foi programado? Se sim, ento o choro ou outro modo de interrupopor parte das crianas tambm o foi. Mas pode tratar-se de um improviso, oude uma previso, por parte de quem est habituado a poetar e a representar.Lembro que quando foi pela primeira vez representada a Comdia do vivo,Gil Vicente tinha que ter preparados dois finais para o auto, pois cabia aoprncipe D. Joo decidir qual das figuras femininas casaria, e os versos tinhamde respeitar a deciso do prncipe.

    amor vincit omnia hermanas prudentesel cual amor viene por tres accidentessin vuestras mercedes seren de culpar.del uno es causa vuestro mirary la hermosura que mira con vosel otro la gracia cuitados de nosque todas las cosas vencs a matar

    el otro accidente que ms atromientarosas del mundo y ms de sentirson los engaos del dulce decircon ciertos desvos en cabo de cuenta.oh causadoras de tanta tormientaubes muy claras lloviendo sospirossobre los tristes que para servirosno dudan la muerte ni temen afrenta

    anda el discreto y noble personaGonalo da Silva mordiendo la tierra 210porque ans lo ciega contino la guerracomo si l fuese rocn de atahona.por eso est cara esta vuestra Lixbonaporque seoras pecis mortalmenteconvertere a Dominum que matis la gentecon dulces meneos y el hecho en Pamplona

    anda el cuitado tan puesto nel hiloel Calataud por la Anriquez talque dicen por l oh cirio pascoalque ya fuiste cera y ahora es pabilo.oh graciosas riberas del Nilopietate vestra super omnes gentesdejadlos crueles inconvenientesque aunque grosero delgado lo hilo

  • 22

    no quiero olvidar don Lus de Menesesa que doa Leonor de Castro tien muertoque parece barco que vino del Puertosin mantenimiento tres o cuatro meses.dejad esas maas de vuesos revesesseoras ne perdas animam vivampues de sus ganas por vos se cautivanut non dessoletur que son portugueses

    oh Cristovan Freire leal caballeroque a doa Ginebra tom por su Diosque parece galgo de Puerto de Mschupado destras por ese terrero.y otros seores que nombrar no quieroquia non debemus de plaza decirque sufren las llagas del triste encobrirlos cuales padecen tormiento ms fiero

    pues por qu seoras no os confesisque hacis a los vivos morir por serviroshacis a los muertos all dar sospirosporque no estn ac donde estis.amor vincit omnia y vos lo causis 210'orbis terrarum et semitas marisoh diesas hermosas julgadas per Parisadnde se escriben las vidas que dais

    plega al seor Juan de Saldaaque tiene las llaves de vuestro parasoque Dios le d gracia que salgan de sisolas llaves o vos o l o su caa.no es tiempo ahora de ms predicarel que quisiere or mi sermnvaya al infierno con gran devociny desta manera se puede salvar

    las cosas que os suelen ser encomendadasos encomiendo conviene sabertodo el mal que pudieredes hacerhaceldo seoras que hayis buenas hadas.

    Terminou o sermo e com ele a interveno deste frade. O frade que no fala,mas toca msica tambm pode terminar aqui a sua actuao. No h notciade como ou quando saram, mas possvel que acompanhem o diabo queparte a cumprir nova ordem da feiticeira.

  • 23

    Feiticeira . Ora sus m criatura 210ci-me logo polas fadasmarinhas bem assombradase tornai essa amargura.

    Mais uma vez, antes de se dar incio a um novo momento, a protagonista ficas em cena preenchendo o tempo, no com feitios, como antes, mas comuma ladainha. O refro da melopeia retoma o da ladainha de todos os santos.Antes de comear, Genebra Pereira tem nova oportunidade de se afirmarpessoa de bem:

    donde vindes? dalmolinaque trazedes? farinhatornai l que nam minha

    olhade a gente honradaque me trazia o ladroum que foi amancebadoalcouviteiro provadoe um frade rafio.sabeis quam mal me parecempessoas de mau vivermais qua moscas mavorrecemnam nas posso ouvir nem ver

    Tira as contas e diz:

    praza conjuno carnalde frei Graviel com Martasua filha espritualque me venha este enxovalque j desperar sam farta.e traga as fadas asinha senhora ladainha 210dajudade-me ora vscabra preta vai por vinhavai por vinha mana minhate rogamos audi nos

    quando fordes igrejanam vos esquea a soberbatomadora meu conselho aoutes do conselhoque estrearam meus avste rogamos audi nos

  • 24

    ladainha da Pereiraescrita em pele de ratatinta de pingo de pataassada per mo de mgueira picota da Ribeiraque estrearam meus avste rogamos audi nos.

    Segue-se o momento das fadas. So sereias que entram a cantar. Podem trazercaracterizao e o espectador identifica-as imediatamente como seresmarinhos. O movimento cnico de conjunto; andam as trs muito perto ecom uma cadncia prpria, que leva a feiticeira a tang-las como a patas.Penso que est tambm representada a gua do mar.

    Vem as fadas marinhas cantando a cantiga seguinte:

    . Qual de ns vem mais cansadanesta cansada jornadaqual de ns vem mais cansada.

    Feiticeira . Pitas pitas pitas pitas 211apatelas patelas patelasbem venhais minhas donzelaslingoadas frescas fritas.

    Diabo . Oo fauxe buxiere malvada Oh fausse busire malvadavaxites a buxions. voichi tes abusions

    Feiticeira . J tu tornas esses tonstartaranha escomungada.

    Diabo . Mi gene memie mi. Mi je ne mai mie misFeiticeira . Cal-te eram pera ti

    e leixa-me a mi falar.Diz s fadas: como vos vai nesse marRespondem as tam profundo e espaoso?sereas cantando: . Nosso mar fortunoso

    nosso viver lacrimosoe o chegar regurosoao cabo desta jornadaqual de ns vem mais cansadanesta cansada jornada.

    Novo indcio de mau gnio numa fala que interrompe o canto. GenebraPereira no tem tido muita sorte com os seus interlocutores. Primeiro umdiabo que no se faz entender, depois um frade que ela no esperava, e quandofinalmente tudo parecia estar a correr bem, surgem-lhe personagens quecantam em vez de falarem.

  • 25

    Feiticeira . Nam podedes vs falarque respondedes cantando? 211b

    Cantam as fadas:

    . Ns partimos caminhandocom lgrimas sospirandosem saber como nem quandofar fim nossa jornadaqual de ns vem mais cansadanesta cansada jornada.

    Diabo . Melior cantele quien Melior cante le quieny le hoyssos de villee. et loiseau de ville

    Feiticeira . Cal-te corvo de Noque nam sabes que cousa cantar mal nem cantar bem

    E Genebra Pereira recorre linguagem persuasiva do namoro, como j antestivera que fazer com o diabo, para que as fadas respeitem a sua vontade ecumpram o que lhes devido.

    minhas flores da ribeiradescanso desta alma minharainhas da vida marinhahonrade ora esta romeira.fadai de linda maneiraeste estrado de bs fadosque Deos lhos dar dobradospraza a ele que assi vir.

    Esta estrofe fornece indicaes sobre o espao de representao que coincidecom o espao representado: o estrado de onde o rei assiste representao. sabido que o mesmo espao era construdo para ser ocupado pela realeza embanquetes, festas, seres. H uma diviso hierrquica que separa osespectadores. Da que seja possvel a metonmia no discurso para significar aspessoas que ocupam o estrado o rei e a rainha.As fadas fadam em arte maior. O assunto elevado, a forma dignifica-se. Osfados so apresentados em metforas da natureza.

    Fadam as fadas el rei e a rainha cada a per sua vez. Diz a primeira:

    . Os fados que deram ser s estrelas 211quando a terra estava vaziafaam caminhos a vossa alegriaper onde vos venha tam clara comelas.

  • 26

    e aqueles fadosque pera dar dita so determinadosvos tragam as vossas das mais escolhidase os instrumentos que alongam as vidasvos veja dobrados

    os fados que deram orvalhos s rosasvesitem as flores do vosso estradoe todo o cuidar de triste cuidadonam hajam lugar nas altezas vossas.e aquelas fadasque tem as ribeiras de verde pintadasvos pintem as vidas dalegre pinturae as altas sortes que parte venturavos sejam guardadas.

    Fada segunda . As cousas que fazem a terra parir 211'lrios alvos e veas divinascerquem os quadros de vossas cortinase sempre vitria vos faa dormir.e a fada primeiraque fez a fortuna geral despenseirae fez nossos mares e cos por medidavos faa gozar o gozo da vidade nova maneira.

    Fada terceira . As novas que temos nas ondas do marso que na terra h pouca verdadee pois de verdades h m novidadepor novidade as haveis de tomar.ora pera vertome vossa alteza qualquer que quiserque todo verdade as sortes que sotomai desses sete planetas que voa que vos vier.

    Aqui daro as sortes, primeiramente a el rei.

    Dos sete planetas anunciados apenas se encontram registados cinco. Como jreferi atrs, Mercrio pode ser um dos que faltam, e ser atributo do infanteD. Fernando. Por outro lado, surge Copido que nunca integrou os conjuntosastrolgicos. No ser por acaso que a sorte diz Deos em vez de planeta. No a primeira vez que Cupido utilizado em autos de Vicente. Recordo quecom poderes semelhantes aos anunciados neste auto se encontra a figura emDuardos e Almocreves.

  • 27

    Jupiter. 211cdel rei Este planeta escolhido

    escolheu porque profundoo mais alto bem do mundo.

    Sol. rainha Muitos bens deu Deos na terra

    porm se este nam vieranunca nos amanhecera.

    Copido.ao prncipe Este Deos muito amado

    e adoradoporque tem dominaosobre todo corao.

    La. ifante do- Esta senhora Dianana Isabel tem do co sua feitura

    e do sol a fermosura.

    Vnus. ifante do- A este planeta sna Breatiz olham todalas estrelas 211d

    porque mais clara quelas.

    Terminada a srie real segue-se a distribuio das restantes sortes pelopblico. A primeira parte consta de trinta e seis aforismos amorososdestinados aos homens. Os animais terrestres so sorteados e a possvelidentificao do galante com o que lhe coube em sorte motivo de riso ealegria. Os animais so de vrias espcies e a mistura ela prpria motivo degraa potica, como no caso do cgado que nam carne nem peixe. H aindadois animais fantsticos: sagitrio e olicrnio, com referncia arma para acaa desta rs uma donzela.

    Daqui a diante se seguem as sortes ventureiras dos galantes, peranimais.

    Camelo.Este alegres novas traze leva tristes de sicada vez que vai daqui.

    Marta.Aqueste animal forromostra-se de fora lisomas de dentro nam isso.

  • 28

    Sagitrio.Este tem dous coraeslastimados de um pesarque nunca s h-dacabar. 212a

    Arminho.Este animal prezadode todo o mundo em gerale aqui fazem-lhe mal.

    Cabra.Este animal se apacentana mais spera verdurapor esprementar ventura.

    Foro.Este h mester aamadoporque tam argulhosoque passa de querenoso.

    Podengo.Este animal alevantaa caa porque a cataporm sempre outrem a mata.

    Rato.Este bonito animalnam sei que faz o coitadoque sempre anda homeziado.

    Cgado.Quem tever este animalnam muito que o leixepois nam carne nem peixe.

    Camaleo.Tem este fraco animaltam estranho alamentoque nam se farta de vento.

    Lobo.Este morre com razoporque tal contrairo temque emprega a morte bem.

    Ourio cacheiro.Este animal enganado

  • 29

    cuida que ama escondidoe ele mais conhecidorebuado.

    Porco monts.Este animal se recolhes matas mais escondidas 212be l lhe vo dar feridas.

    Veado.Este mui bravo animalem guardar-se tinha o tentomas amor furtou-lho vento.

    Coro.Os saltos deste galantenam o podero salvardum mal que tem de passar.

    Carneiro.Este se um amor o cobred a pouco se trosquiae logo outro novo cria.

    Porco espim.Destes h poucos na terradeve ser mui estimadoda fortuna e namoradosem ter guerra.

    Usso.Este animal tem venturae dita porque sofridoca sofrer gram partidose atura.

    Lontra.Este nunca se contentanem contente se verporque quer o que nam h.

    Gato.Este animal caseiroe nam quer bem a Copidotem amor a ser maridocom dinheiro.

  • 30

    Lio.Este mui forte animalnunca sabe que temormas teme-se do amore nam dal.

    Olicrnio. 212cEsta rs mui esquivacaa-se com a donzelae nam per outra cautelase cativa.

    Dromedrio.Este traz grandes carretose requere seu proveitoporm nam pede dereito.

    Cavalo.Este animal furiosose namora sem consertopois nam ama em lugar certo.

    GalgoEste animal delicadonam sei por que cansa a vidatrs quem tem certa guarida.

    Lebrel.Este tem em pouco a vidae bem que a d baratapois quer ferir a quem mata.

    Bogio.Este animal comprendequanto se pode cuidarporm o seu nam falarencobre e sofre o que entende.

    Touro.Este nam sendo culpado feridoe quanto mais, mais ardido.

    Coelho.Este cativo animal tam vivo namoradoque h-de morrer cajado.

  • 31

    Raposo.Deste se devem guardarque se finge manco e tortoe s vezes se faz mortopor caar.

    Alifante.Aqueste s animal 212dtem veas no coraoonde lgrimas esto.

    Ona.Este ligeiro animalse de trs saltos nam caaemproviso leixa a caa.

    Azmala.A vida deste animal de noite em meijoadae pola menh palhada.

    Sendeiro galego.Este b servidorparece mui bem seladomas milhor albardado.

    Rafeiro.Este falso e fagueirosorrateiroquando virdes este colevai sempre um pau na mo.

    Doninha.Este nam bem foronem gineta nem esquio um bichinho vadio.

    Depois dos galantes, as damas. So vinte e trs as sortes disponveis quedevem corresponder a outras tantas mulheres. O jogo o mesmo do doshomens. A identificao cmica. So tambm utilizadas aves maravilhosas,como a fnix. A sorte anunciada pelo Francelho pode indicar o modo do jogo:leitura dirigida a algum.

    Sortes das damas por aves.

    Falco.Esta ave tem crueldade

  • 32

    sem piedadee quem na quiser tomartem muito que sospirar.

    Gara.Esta ave temerosae fermosae nam se toma per manhanem cai senam per faanha.

    Melroa. 213aEsta ave namoradadeclaradae faz seu ninho de praae tudo com muita graa.

    Rousinol.Esta ave tem seus amorescom as floresdous meses n mais no anoporm ama sem engano.

    guia.Esta vence o sol com a vistae cega toda relque com ela tem mais f.

    Gavio.Esta ave mui ligeirae lisonjeiradesama logo por nada fermosa e alteradaem gr maneira.

    Estorninho.Esta ave de condioque se pe em grande alturae confia na venturacom razo.

    Pomba.Esta ave parece santaporque dissimuladamas no certo refalsada.

    Rola.Esta deseja casar

  • 33

    mas quer bem tam escolhidoque temo que h-de ficarsem marido.

    Pavo.Esta ave tam namoradada fermosura que temque sei certo que a ningumtem em nada.

    Fnix.Esta parceira nam tems faz vida em forte matae nam na mata ningum 213bela se mata.

    Cirne.Esta ave segue um estremoque canta contra razoquando mata o corao.

    Pega.Esta ave nunca sessega galante e muito oufanamas a hora que nam engananam pega.

    dem.Esta se tem por real tam brava e tam esquivaque nam quer ver cousa viva.

    Alvela.Esta avezinha fermosafaz que aguardamas pardeos mui bem se guarda.

    Francelho.Esta ave sempre peneirae nunca deita farinhatal sois vs senhora minha.

    Andorinha.Esta ave bem assombrada confiadaseus amores vo e vemnenha certeza tem.

  • 34

    Calhandra.Esta nunca tem tristezasobe-se no ar cada horae canta porque outrem chora.

    Oja.Esta ave segue um temortraz a rel assombradaporque cada hora mudada.

    Gaivota.Esta s ave se enfunana fortunanam teme mar nem tormenta 213cnaceu forra e vive isenta.

    Perdiz.Esta ave muito prezada avisadae se a enganar algumjuro a Deos que caa bem.

    Grou.Esta ave sempre vegianunca dorme assossegadaporque sonha noite e diaem ser casada.

    Minhoto. 213dEsta ave diz-nos que viumas nam pode ver mais bemque a dama que ora o tem.

    Como em outros autos de Vicente, a msica que assinala o fim do teatro. Diza Copilaam:

    E acabadas de dar assi estas sortes se foram todos com sua msica e seacabou a dita farsa.

    FINIS.

    Que eu saiba, depois da repesentao quinhentista de Fadas s na dcada de80 do sculo XX que as palavras deste auto voltaram ao teatro nosespectculos menino ou menina? de A Barraca em 1980, e Lusitnia dePersona em 1989.

  • 35

    Referncias

    Anselmo Braamcamp FREIRE1919 Vida e Obras de Gil Vicente Trovador, Mestre da Balana

    Porto

    Mrio MARTINS1978 O riso, o sorriso e a pardia na literatura portuguesa de Quatrocentos.

    Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa

    Osrio MATEUS1989 Pregao. Vicente

    Lisboa: Quimera

    I. S. REVAH1960 Vicente, Gil

    Dicionrio de Literaturas Portuguesa, Galega e BrasileiraPorto: Figueirinhas

    Paul TEYSSIER1959 La Langue de Gil Vicente

    Paris: Klincksieck

    Carolina Michalis de VASCONCELOS1949 Notas Vicentinas

    Lisboa: Ocidente

    Aniceto Gonalves VIANA1906 Apostilas aos Dicionrios Portugueses 2

    Porto: A. M. Teixeira