auto da feira - gil vicente

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  • 8/14/2019 Auto Da Feira - Gil Vicente

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    Universidade da Amaznia

    Au to da Feir a

    de Gil Vice ntede Gil Vice nte

    NEAD NCLEO DE EDUCAO A DISTNCIAAv. Alcindo Cacela, 287 Umarizal

    CEP: 66060-902

    Belm Par

    Fones: (91) 210-3196 / 210-3181

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    E-mail: [email protected]

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    Auto da Feirade Gil Vicente

    A obra seguinte chamada Auto da Feira. Foi representada ao mui excelentePrncipe El Rei Dom Joo, o terceiro em Portugal deste nome, na sua nobre esempre leal cidade de Lisboa, s matinas do Natal, na era do Senhor de 1527.

    Figuras:Mercrio, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amncio Vaz, Diniz Loureno,

    Branca Anes, Marta Dias, Justina, Leonarda, Teodora, Moneca, Giralda, Juliana,Tesaura, Merenciana, Dorotia, Gilberto, Nabor, Dionsio, Vicente, Mateus.

    Entra primeiramente Mercrio, e posto em seu assento, diz:

    MercrioPera que me conheais,

    e entendais meus partidos,todos quantos aqui estais

    afinai bem os sentidos,mais que nunca, muito mais.

    Eu sou estrela do cu,e depois vos direi qual,

    e quem me c descendeue a qu, e todo o al

    que me a mi aconteceu.

    E porque a astronomiaanda agora mui maneira,mal sabida e lisonjeira,eu, honra deste dia,vos direi a verdadeira.

    Muitos presumem saberas operaes dos cus,

    e que morte ho-de morrer,e o que h-de aconteceraos anjos e a Deus,

    e ao mundo e ao diabo.E que o sabem tm por f;

    e eles todos em cabotero um co polo rabo,

    e no sabem cujo .E cada um sabe o que monta

    nas estrelas que olhou;

    e ao moo que mandou,no lhe sabe tomar contad' um vintm que lh' entregou.

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    Porm, quero-vos pregar,sem mentiras nem cautelas,o que per curso d' estrelas

    se poder adivinhar,

    pois no cu nasci com elas.E se Francisco de Melo,que sabe cincia avondo,diz que o cu redondo,

    e o sol sobre amarelo;diz verdade, no lh' o escondo.

    Que se o cu fora quadrado,no fora redondo, senhor.E se o sol fora azulado,

    d' azul fora a sua cor

    e no fora assi dourado.E porque est governadoper seus cursos naturais,neste mundo onde moraisnenhum homem aleijado,

    se for manco e corcovado,no corre por isso mais.

    E assi os corpos celestesvos trazem to compassados,que todos quantos nascestes,

    se nascestes e crescestes,primeiro fostes gerados.E que fazem os poderes

    dos sinos resplandecentes?Que fazem que toda las gentes

    ou so homens ou mulheres,ou crianas inocentes.

    E porque Saturno a nenhuminflui vida continha,

    a morte de cada um aquela de que se fina,e no d' outro mal nenhum.

    Outrossim o terremoto,que s vezes causa perigo,

    faz fazer ao morto votode no bulir mais consigo,canta de seu prprio moto.

    E a claridade acendidados raios piramidais

    causa sempre nesta vidaque quando a vista perdida,os olhos so por demais.

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    E que mais quereis saberdesses temporais e disso,seno que, se quer chover,

    est o cu pera isso,

    e a terra pera a receber?a lua tem este jeito:v que clrigos e frades

    j no tm ao Cu respeito,mingua-lhes as santidades,

    e cresce-lhes o proveito.

    Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus, Regina musicae,secundum Joanes Monteregio:

    Mars, planeta dos soldados,

    faz nas guerras contedas,em que os reis so ocupados,

    que morrem de homens barbadosmais que mulheres barbudas.

    E quando Vnus declina,e retrograda em seu cargo,no se paga o desembargo

    no dia que s' ele assinamas antes por tempo largo.

    Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer Capricornius positus in firmamentocoeli:

    E quanto ao Touro e Carneiro,so to maus d' haver agora

    que quando os pe no madeiro,chama o povo ao carniceiroSenhor, c' os barretes fora.Depois do povo agravado,

    que j mais fazer no pode,invoca o signo do Bode,

    Capricrnio chamado,porque Libra no lhe acode.

    E se este no hs tomado,nem Touro, Carneiro assi,vai-te ao sino do Pescado,chamado Piscisem latim,

    e sers remedeado:e se Piscisno tem ensejo,porque pode no no haver,

    vai-te ao signo do Caranguejo,

    Signum Cancer, Ribatejo,que est ali a quem no quer.

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    Sequuntur mirabilia Jupiter Rex regum, Dominus dominantium.

    Jpiter, rei das estrelas,deus das pedras preciosas,

    mui mais precioso qu' elaspintor de toda las rosas,rosa mais formosa delas; to alto seu reinado ,influncia e senhoria,

    que faz percurso ordenadoque tanto vale um cruzado

    de noite como de dia.

    E faz que uma nau veleiramui forte, muito segura,

    que inda que o mar no queira,e seja de cedro a madeira,no preste sem pregadura.

    Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur declaratio operationemsuam.

    Ao Zodaco acharodoze moradas palhaas,

    onde os sinos estono Inverno e no Vero,

    dando a Deus infindas graas.Escutai bem, no durmais,

    sabereis por conjeturasque os corpos celestiais

    no so menos nem so maisque suas mesmas granduras.

    E os que se desvelaram,se das estrelas souberam,

    foi que a estrela que olharam,

    est onde a puseram,e faz o que lhe mandaram.E cuidam que Ursa Maior,Ursa Menor e o Drago,e Lepus, que tm paixo,

    porque um corregedormanda enforcar um ladro.

    No, porque as constelaesno alcanam mais poderes,

    que fazer que os ladres

    sejam filhos de mulheres,e os mesmos pais vares.E aqui quero acabar.

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    Aqui achareis o temor de Deus,que j perdido em todos Estados;aqui achareis as chaves dos Cus,

    muito bem guarnecidas em cordes dourados.

    E mais achareissoma de contas, todas de contarquo poucos e poucos haveis de lograras feiras mundanas; e mais contareis

    as contas sem conto qu' esto por contar.E porque as virtudes, Senhor Deus, que digo,

    se foram perdendo de dias em dias,com a vontade que deste Messias

    memoria o teu Anjo que ande comigo,Senhor, porque temo

    ser esta feira de maus compradores,

    porque agora os mais sabedoresfazem as compras na feira do Demo,

    e os mesmos Diabos so seus corretores.

    Entra um Serafim enviado por Deus a petio do Tempo, e diz:

    Serafim

    feira, a feira igrejas, mosteiros,pastores das almas, Papas adormidos;comprai aqui panos, mudai os vestidos,

    buscai as samarras dos outros primeiros,os antecessores.

    Feirai o caro que trazeis dourado; presidentes do crucificado,

    lembrai-vos da vida dos santos pastoresdo tempo passado.

    Prncipes altos, imprio facundo,guardai-vos da ira do Senhor dos Cus;comprai grande soma do temor de Deusna feira da Virgem, Senhora do Mundo,

    exemplo da paz,pastora dos anjos, luz das estrelas. feira da Virgem, donas e donzelas,

    porque este mercador sabei que aqui trazas cousas mais belas.

    Entra um Diabo com uma tendinha adiante de si, como bofalinheiro, e diz:

    Diabo

    Eu bem me posso gavar,e cada vez que quiser,

    que na feira onde eu entrarsempre tenho que vender,e acho quem me comprar.

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    E mais, vendo muito bem,porque sei bem o que entendo;

    e de tudo quanto vendono pago siza a ningum

    por tratos que ande fazendo.

    Quero-me fazer velanesta santa feira nova.Verei os que vm a ela,

    e mais verei quem m' estorvade ser eu o maior dela.

    Tempo s tu tambm mercador, que a tal feira t' ofereces?Diabo Eu no sei se me conheces.Tempo Falando com salvador, tu Diabo me pareces.

    DiaboFalando com salvos rabosinda que me tens por vil,achars homens cem mil

    honrados, que so Diabos,(que eu no tenho nem ceitil)

    e bem honrados te digo,e homens de muita renda,

    que tm dvida comigo.Pois no me tolhas a venda,

    que no hei nada contigo.

    Tempo ao Serafim

    Tempo

    Senhor, em toda maneiraacudi a este ladro,

    que h-de danar a feira.

    Diabo

    Ladro? Pois haj' eu perdo

    se vos meter em canseira.Olhai c, Anjo de bem,eu, como cousa perdida,nunca me tolhe ningum

    que no ganhe minha vida,como quem vida no tem.

    Vendo dessa marmelada,e s vezes gros torrados,

    isto no releva nada;e em todo los mercados

    entra a minha quintalada.Serafim Muito bem sabemos ns que vendes tu cousas vis.

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    Diabo I h de homens ruins mais mil vezes que no ps, como vs mui bemsentis.

    E estes ho-de comprardisto que trago a vender,

    que so artes de enganar,e cousas pera esquecero que deviam lembrar.Que o sages mercadorh-de levar ao mercado

    o que lhe compram melhor;porque a ruim compradorlevar-lhe ruim borcado.

    E mais as boas pessoasso todas pobres a eito;

    e eu por este respeitonunca trato em cousas boas,porque no trazem proveito.

    Toda a glria de viverdas gentes ter dinheiro,e quem muito quiser ter

    cumpre-lhe de ser primeiroo mais ruim que puder.

    E pois so desta maneiraos contratos dos mortais,

    no me lanceis vs da feiraonde eu hei de vender mais

    que todos derradeira.Serafim Venders muito perigo, que tens nas trevas escuras.Diabo Eu vendo perfumaduras, que, pondo-as no umbigo, se salvam as criaturas.

    s vezes vendo virotes,e trago d' Andaluzia

    naipes com que os sacerdotesarreneguem cada dia,

    e joguem at os pelotes.Serafim No venders tu aqui isso, que esta feira dos cus: vai l vender aoabisso, logo, da parte de Deus!Diabo Senhor, apelo eu disso.

    S' eu fosse to mau rapazque fizesse fora a algum,

    era isso muito bem;mas cada um veja o que faz,porque eu no foro ningum.Se me vem comprar qualquer

    clrigo, ou leigo, ou fradefalsas manhas de viver,

    muito por sua vontade;senhor, que lh' hei de fazer?E se o que quer bispar

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    h mister hipocrisiae com ela quer caar,

    tendo eu tanta em perfia,porque lh' a hei de negar?

    E se uma doce freiravem feirapor comprar um inguento,com que voe do convento,

    senhor, inda que eu no queira,lh' hei-de dar aviamento.

    Mercrio Alto, Tempo, aparelhar, porque Roma vem feira.Diabo Quero-me eu concertar, porque lhe sei a maneira de seu vender ecomprar.

    Entra Roma, cantando.

    Roma

    Sobre mi armavam guerra;ver quero eu quem a mi leva.

    Trs amigos que eu havia,sobre mi armam porfia;

    ver quero eu quem a mi leva.

    Fala:

    Vejamos se nesta feira,que Mercrio aqui faz,acharei a vender paz,

    que me livre da canseiraem que a fortuna me traz.

    Se os meus me desbaratam,o meu socorro onde est

    Se os Cristos mesmos me matam,a vida quem m' a dar,

    que todos me desacatam?

    Pois s' eu aqui no achara paz firme e de verdadena santa feira a comprar,

    cant' a mi d-me a vontadeque mourisco hei-de falar.

    Diabo Senhora, se vos prouver, eu vos darei bom recado.Roma No pareces tu azado pera trazer a vender o que eu trago no cuidado.

    No julgueis vs pela cor,porque em al vai o engano;c dizem que sob mau pano

    est o bom bebedor;nem vs digais mal do ano.Eu venho feira direita

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    comprar paz, verdade e f.Diabo A verdade pera qu?

    Cousa que no aproveita,e aborrece, pera que ?

    No trazeis bons fundamentospera o que haveis mister;e a segundo so os tempos,assim ho-de ser os tentos,

    pera saberdes viver.

    E pois agora verdadechamam Maria Peonha,e parvoce vergonha,

    e aviso ruindade,peitai a quem vo-la ponha,

    a ruindade digo eu:e aconselho-vos mui bem,porque quem bondade temnunca o mundo ser seu,e mil canseiras lhe vem.

    Vender-vos-ei nesta feiramentiras vinte trs mil,todas de nova maneira,

    cada uma to subtil,que no vivais em canseira:

    mentiras pera senhores,mentiras pera senhoras,mentiras pera os amores,

    mentiras, que a todas as horasvos nasam delas favores.

    E como formos avindosnos preos disto que digo,vender-vos-ei como amigomuitos enganos infindos,

    que aqui trago comigo.Roma Tudo isso tu vendias, e tudo isso feirei tanto, que inda venderei, e outrassujas mercancias, que por meu mal te comprei.

    Porque a troco do amorde Deus, te comprei mentira,

    e a troco do temorque tinha da sua ira,

    me deste o seu desamor;e a troco da fama minhae santas prosperidades,me deste mil torpidades;

    e quantas virtudes tinhate troquei pelas maldades.E pois j sei o teu jeito,

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    quero ir ver que vai c.Diabo As cousas que vendem l so de bem pouco proveito a quem quer que ascomprar.

    Vai-se Roma ao Tempo e Mercrio e diz Roma:

    Roma

    To honrados mercadoresno podem deixar de ter

    cousas de grandes primores;e quant' eu houver mister

    deveis vs de ter, senhores.

    SerafimSinal de boa feira

    virem a ela as donas tais,e pois vs sois a primeira,queremos ver que feiraissegundo vossa maneira.

    C, se vs a paz quereissenhora, sereis servida,

    e logo a levareisa troco de santa vida;

    mas no sei se a trazeis.Porque, senhora eu me fundo

    que quem tem guerra com Deus,no pode ter paz c ' o mundo ;

    porque tudo vem dos cus,daquele poder profundo.

    Roma

    A troco das estaesno fareis algum partido,e a troco dos perdes,

    que tesouro concedido

    pera quaisquer remisses?Oh, vendei-me a paz dos cus,pois tenho o poder na terra.

    Serafim Senhora, a quem Deus d guerra, grande guerra faz a Deus, que certoque Deus no erra.

    Vede vs que lhe fazeis,vede como o estimais,vede bem se o temeis ;atentai com quem lidais,

    que temo que caireis.

    Roma Assi que a paz no se d a troco de jubileus?Mercrio Roma, sempre vi l que matas pecados c, e deixas viver os teus.Tu no te corras de mi;

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    mas com teu poder facundoassolves a todo o mundo,

    e no te lembras de ti,nem vs que te vs ao fundo.

    Roma Mercrio, valei-me ora, que vejo maus aparelhos.Mercrio D-lhe, Tempo, a essa senhora o cofre de meus conselhos: e podes-te ir muit' embora.

    Um espelho a achars,que foi da Virgem Sagrada,

    co' ele te toucarsporque vives mal toucada,e no sentes como ests:

    e achars a maneiracomo emendes a vida:

    e no digas mal da feira;

    porque tu sers perdida,se no mudas a carreira.

    No culpes aos reis do mundo,que tudo te vem de cima,

    pelo que fazes c em fundo:que, ofendendo a causa prima,

    se resulta o mal segundo.E tambm o digo a vs

    e a qualquer meu amigo,quem no quer guerra consigo:tenha sempre paz com Deus,

    e no temer perigo.

    Diabo Propsito Frei Sueiro, diz l o exemplo velho: d-me tu a mi dinheiro, e dao demo o conselho.

    Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amncio Vaz eoutro Diniz Loureno, e diz Amncio Vaz:

    Amncio Vaz Compadre, vs tu feira?Diniz Loureno feira, compadre.Amncio Vaz Assi, ora vamos eu e ti longo desta ribeira.Diniz Loureno Vamos.Amncio Vaz Folgo bem de te vir aqui achar.Diniz Loureno Vs tu l buscar algum, ou esperas de comprar?

    Amncio Vaz

    Isso te quero contar,e iremos patorneando,e tambm aguardandopelas moas do lugar.

    Compadre, esta mulher

    muito destemperada,e agora, se Deus quiser,fao conta de a vender,

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    e d-la-ei por quase nada.

    Qu'eu quando casei com eladiziam-me, Htega .

    E eu cuidei pela abofque mais cedo morresse ela,e ela anda inda em p.

    E porque era htega assimfoi o que m' a mim danou:avonda qu'ela engordoue fez-me htego a mim.

    Diniz Loureno Tens boa mulher de teu: no sei que tu hs, amigo.Amncio Vaz S'ela casara contigo renegaras tu com' eu e disseras o que eudigo.Diniz Loureno Pois, compadre, cant' minha, to mole e desatada, que nunca

    d peneirada que no derrame a farinha.

    E no pe cousa a guardar,que a tope quando a cata;

    e por mais que homem se mata,de birra no quer falar.

    Trs d' uma pulga andartrs dias, e oito, e dez,

    sem lhe lembrar o que fez,nem to pouco o que far.

    Pera que t'hei-de falar?Quando ontem cheguei do mato

    ps uma enguia a assar,e crua a deixou levar,

    por no dizer sape a um gato.Quant'a mansa, mansa ela;

    dei-m' logo conta disso.Amncio Vaz Juro-t'eu que mais vale isso cinqenta vezes qu'ela.

    A minha te digo euque se a visses assanhada,

    parece demoniada,ante So Bartolameu.Diniz Loureno J sequer ter esp'rito: mas renega da mulher que tempo domister no cabra nem cabrito.

    Amncio VazA minha tinh'eu em guarda

    pera bem da minha prol,cuidando que era ourinol,e tornou-se-me bombarda.

    Folga tu que ess'outra tenhas,porque a minha tal perigo,

    que por nada que lhe digologo me salta nas grenhas.

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    Ento tanto punho secome chimpa nestes focinhos;

    eu chamo pelos vizinhos,e ela nego dar-me em seco.

    Diniz Loureno Isso de corauda; no cures de a vender, que s'algum te malfizer, j sequer tens quem te acuda.Mas a minha to corts,que se viesse ora mo

    que m'espancasse um rasco,no diria, Mal fazs.Mas antes s' assentaria

    a olhar como eu bradava.Todavia a mulher brava

    , compadre, a qu'eu queria.Amncio Vaz Pardeus! Tanto me fars que feire a minha contigo.

    Diniz Loureno Se queres feirar comigo, vejamos que me dars.Amncio Vaz Mas antes m' hs de tornar pois te dou mulher to forte, que tecastigue de sorte que no ouses de falar, nem no mato nem na corte.

    Outro bem ters com ela:quando vieres da arada,

    comers sardinha assada,porqu ' ela janta a panela.Ento geme, pardeus, si,diz que lhe di a moleira.

    Diniz Loureno Eu faria per maneira que esperasse ela por mi.Amncio Vaz Que lh'havias de fazer?Diniz Loureno Amncio Vaz, eu o sei bem.Amncio Vaz Diniz Loureno, ei-las c vm!

    Vamo-nos ns esconder,vejamos que vm catar,

    qu'elas ambas vm feira.Mete-te nessa silveira,

    qu'eu daqui hei-d' espreitar.

    Vm Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:

    Branca Anes

    Pois casei m hora, e nela,e com tal marido, prima,

    comprarei c uma gamela,para o ter debaixo dela,

    e um gro penedo em cima.Porque vai-se-me s figueiras,

    e come verde e maduro ;e quantas uvas penduroajeita nas gorgomileiras:parece negro monturo.

    Vai-se-m's ameixieirasantes que sejam maduras,

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    ele quebra as cerejeiras,ele vindima as parreiras,

    e no sei que faz das uvas.Ele no vai lavrada,

    ele todo o dia come,ele toda a noite dorme,ele no faz nunca nada,

    e sempre me diz que h fome.

    Jesus! Jesus! Posso-te dizere jurar e tresjurar,

    e provar e reprovar,e andar e revolver,

    qu' melhor pera beber,que no pera maridar.

    O demo que o fez marido,que assim seco como beber a torre da S!

    Ento arma um arrudoassi debaixo do p.

    Marta Dias Pois bom homem parece ele.Diniz Loureno Aquela a minha frouxa.Marta Dias Deu-t'ele a fraldinha roxa?Branca Anes Melhor lh'esfole eu a pele.

    Que homem h i da puxa. diabo que o eu dou,que o leve em fatiota,

    e o ladro que m'o gabou;e o frade que me casouinda o veja na picota.

    E rogo Virgem da Estrela,e a santa Gerjalem,

    e os choros de Madalenae asninha de Belm,

    que o veja ir velapera donde nunca vem.Diniz Loureno Compadre, no mais sofrer: sai de l desse silvado.Amncio Vaz Pera eu ser arrepelado.

    No havi'eu mais mister.Diniz Loureno E no n'hs tu de vender?Amncio Vaz Tu dizes que a qus feirar.Diniz Loureno No qu'ela se me tomar

    deixar-m' quando quiser.Mas demo-las m estreia;e voto que nos tornemos,

    e depois tornaremoscom as cachopas d'aldeia:entonces concertaremos.

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    Justina Andar em burra e ter bem: ouvide ora o rasca-piolhos (azeite no micho!)em que vem!Vicente Minha vida, Leonarda, traz caa pera vender?Leonarda Vossa vida negra e parda no lhe abastar comer da vaca com da

    mostarda?Vicente E a mesa de meu senhor ir sem ave de pena?Leonarda Quem? E vs sois comprador?

    Pois nem grande nem pequena no matou o caador.Vicente Matais-me vs logo bem com dous olhinhos qu'eu digo.Leonarda Mais vos mata a vs o trigo, porque no vale a vintm, e traz maumicho consigo.Vicente Vs fazeis de mi rasco.Leonarda Pao vos fizestes vs; porm bem nos vimos ns guardar bois noAlqueido.Mateus Que vindes vender feira,

    Teodora, alma minha?minha alma, minha canseira?

    Trazei alguma galinha?Teodora So vossa alma galinheira.

    Que m ora c viestes pera quem vos ps no pao!Mateus Senhora, eu vos fao,

    que vos agastais to prestes?Dizei-me vs, Teodora,

    trazeis vs tal cousa e taldeste jeito, muito embora?

    Mas l dessoutro metalno falam lavradora.

    Vicente Senhora Moneca, trazeis algum cabrito recente?Moneca No bof, Senhor Vicente: quisera ora trazer trs, de que vs foreiscontente.Vicente Juro Santa Cruz de palha qu' hei de ver o que aqui est.Moneca No revolvais aram, que no trago nem migalha.Vicente No me faais descorts, nem queirais ser to garrida.Moneca Pela vossa negra vida!

    Olha de como corts !Oh, que lhe saia m sada.

    Mateus Giralda, eu achar-vos-ei dous pares de passarinhos?GIralda Irei por eles aos ninhos, entonces os venderei.

    Comereis vs estorninhos?Mateus Respondeis como mulher muito de sua vontade.GIralda Pois digo-vo-la verdade: pssaros hei de vender?

    Olhai aquela piedade!Vicente Senhora minha Juliana

    peo-vos que me faleisdiscreta palenciana,

    e dizei-me que vendeis.Juliana Vendo favas de Viana.

    Vicente Tendes alguns laparinhos?Juliana Sim, de porca.Vicente Nem coelhos?

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    Juliana Quereis comprar dous francelhos, pera caardes ratinhos?Juliana Quero, pelos Evangelhos!Mateus Vs, Tesaura, minha estrela, no vireis c em vo.Tesaura Pois si, vossa estrela vos er'ela: como aquilo de rasco!

    Mateus Mas como isso de donzela!Porm v j como vai, e casemo-nos, senhora.Tesaura Pois casai co'ele, casai,

    Casar, ma ora, meu ai, casar, m hora.Mateus Porm trazeis algum pato?Tesaura E quanto dareis por ele?

    Hui, e ele revolve o fato: olho mau se meta nele.Mateus No trazeis vs o qu'eu cato.Vicente Merenciana deve ter neste cesto algum cabrito.

    No m'haveis de revolverMerenciana Seno, pardeus, que d grito tamanho, que haveis de ver.

    Vicente Eu hei de ver que trazeis.Merenciana Se vs no cesto bulis. . .Vicente Senhora, que me fareis?Merenciana Um aqui-d'el-rei, ouvis?

    No sejais vs descorts.Vicente No quero seno amores, pois vosso, senhora, sou.Merenciana Amores de vosso av, o da ilha dos Aores.

    Andar aram vs s.Mateus Vamo-nos daqui, Vicente.Vicente Bof vamos.Mateus Nunca vi tal feira.Vicente Vamos comprar Ribeira, que anda l cousa mais quente.

    Vo-se os compradores, e diz o Serafim s moas:

    Serafim Vs outras quereis comprar das virtudes?Senhor, no.

    Serafim Saibamos por que razo.Dorotia Porque no nosso lugar

    no do por virtudes po.Nem casar no vejo eu

    por virtudes a ningum.Quem tiver muito de seu,e to bons olhos com'eu

    sem isso casar bem.Serafim Pois porque viestes ora cansar feira de p?Teodora Porque nos dizem que

    feira de Nossa Senhora:e vedes aqui porqu.

    E as graas que dizeisque tendes aqui na praa,se vs outros as vendeis,

    a Virgem as d de graaaos bons, como sabeis.

  • 8/14/2019 Auto Da Feira - Gil Vicente

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    E porque a graa e alegria,a madre da consolaodeu ao mundo neste dia,ns vimos com devoo

    a cantar-lhe uma folia.E pois que j descansamosassi em boa maneira,

    moas, assi como estamos,demos fim a esta feira,

    primeiro que nos partamos.

    Alevantam-se todas, e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte, comque se despediram.

    Cantiga.

    I CoroBlanca estais colorada,

    Virgem sagrada.Em Belm vila do amorda rosa nasceu a flor:

    Virgem sagrada.

    II CoroEm Belm vila do amornasceu a rosa do rosal:

    Virgem sagrada.

    I CoroDa rosa nasceu a flor:pera nosso Salvador:

    Virgem sagrada.

    II CoroNasceu a rosa do rosal,Deus e homem natural:

    Virgem sagrada.Gratias agamusDomino Deo nostro

    Maria Leonor Carvalho Buescu, Gil Vicente, Copilaam de Toda las Obras, vol. I,pp. 144-175

    FIM