aula02 deleuze imanencia multiplicidade

Upload: orlando-lopes

Post on 07-Apr-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    1/14

    Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005 119

    A IMANNCIA, APRESENTAO DE UM ROTEIRODE ESTUDO SOBRE GILLES DELEUZE1

    Jairo Dias CARVALHO2

    RESUMO: O texto pretende mostrar um tipo de abordagem e de entrada notexto deleuziano. A partir do problema do fato da no existncia de consensono mundo da vida sentiu-se a necessidade de comear a pensar e formularum conceito de formas de vida. Escolheu-se, para isto, a idia de plano deimanncia e o conceito de multiplicidade virtual de Deleuze. Apresentamos,ento, uma espcie de roteiro desse percurso. o conceito de formas de vi-

    da, articulado e pensado a partir de Deleuze, a resposta ao problema da plu-ralidade e da diferena.

    PALAVRAS CHAVE: Plano de Imanncia; multiplicidade virtual; analogia deproporo; formas de vida; Deleuze.

    Nos aproximamos da filosofia de Deleuze a partir do problema dano-existncia, de fato, de consenso no mundo da vida. Haveria formas

    de vida incompatveis e que se excluiriam mutuamente? O fato do noconsenso no obrigava a pensar uma multiplicidade intrnseca vida,em cada vida? Haveria uma forma de vida superior como critrio da lei,do justo, do direito, das formas de sociabilidade? Como a filosofia de De-

    1 O texto uma apresentao e um roteiro do percurso que fizemos na tese de doutorado Plano deImanncia e Formas de vida, um estudo a partir de Gilles Deleuze, defendida na UFMG em 2002;foi apresentado em partes no I Encontro de filosofia francesa contempornea realizado na USP, emmaio de 2003.

    2 Professor adjunto do Departamento de Filosofia do DEFIL da Universidade Federal de Uberlndia-MG.

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    2/14

    120 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005

    leuze apresentava um conceito de mltiplo chamado de multiplicidadevirtual, aparecia, assim, a idia que devia ser combatida, a eminncia,porque implica excelncia e superioridade e a idia de transcendncia.Nosso problema era criticar a iluso da existncia de uma forma supe-rior de ser.

    A importncia de se pensar um conceito de multiplicidade de for-mas de vida justifica-se porque acreditamos que a pluralidade de umavida e das vidas que produzem o no consenso no mundo da vida. A ne-cessidade da filosofia de Deleuze est em seu conceito de multiplicida-de virtual, porque talvez seja o conceito de pluralidade mais elaboradoe rico da tradio. Elegemos como operador de conexes para entrar notexto deleuziano, o debate acerca do uso da analogia de proporo emalguns momentos da histria da filosofia. Uso, este, que acarretava aidia de eminncia cuja figura central era a transcendncia.

    Organizamos a leitura de Deleuze em torno do problema da crtica idia de eminncia. No h como pensar a pluralidade radical de umavida se aceitarmos as noes de superioridade e excelncia que a idiade eminncia implica. Para pensar uma vida como multiplicidade pre-ciso pensar um mundo sem transcendncia. Para pensar a vida comomultiplicidade preciso pensar o mundo sem a idia de eminncia. que a transcendncia uma figura da eminncia cuja gnese o uso da

    analogia de proporo, que instaura um termo tomado como tipo para aatribuio de sentido e do valor aos outros termos em relao. Os ter-mos em relao somente ganham valor e sentido a partir da participa-o proporcional ao termo tomado como tipo. Assim, na analogia deproporo h sempre um termo que possui mais valor e sentido que ou-tros. Julgam-se os outros termos em relao a partir desse termo tpico.A idia de eminncia reduz a multiplicidade unidade. A idia detranscendncia a constituio de um termo ou realidade radicalmente

    separada que possui por isso um sentido superior quela realidade daqual separada. Para se pensar em termos de multiplicidade no pode-mos pensar em termos de separao radical do sentido. O sentido imanente ao mltiplo. Pensar em termos de multiplicidade pensar que na articulao intrnseca do mltiplo que o sentido se produz.

    Deleuze tenta pensar a multiplicidade em si e por si. na relao damultiplicidade com ela mesma, na relao dos termos de uma multi-plicidade que h a produo do sentido e do valor. Como no pensar a

    vida a partir da idia de eminncia? Pensando-a como uma multiplici-dade em si. Lemos Deleuze lendo a histria da filosofia no sentido depensar a vida sem a idia de eminncia e pensando-a como uma multi-

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    3/14

    Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005 121

    plicidade em si. A gnese do problema da existncia de uma forma su-perior de vida est no uso da analogia de proporo e a idia de eminn-cia que implica vrias figuras, como por exemplo, a figura datranscendncia. Este operador nos levou a Aristteles, Plotino, Bruno,Scoto, Espinosa, Bergson e Nietzsche. Mostraremos a seguir uma partedesse percurso.3

    As filosofias da pluralidade dos sentidos de ser:

    1. As filosofias que pensam o sentido de ser referindo-o a um termotomado como unidade de significao, ou seja, trata-se da remisso da

    unidade a um termo interno ao mltiplo. Esse campo trabalha a multi-plicidade a partir da sua unidade interna. Sua formulao tpica apare-ce em Aristteles.

    Aristteles formula o problema dos muitos sentidos do ser e do usoda analogia de proporo. Esse campo orienta-se a partir de uma crticas filosofias que pensam o ser como um gnero, como um coletivo. O ser o que distribui o sentido. Chamamos a referncia de significao dostermos de uma multiplicidade a um termo desta multiplicidade por ana-

    logia de proporo, mas melhor seria chamar de analogia de despropor-o. Preferimos esta terminologia unidade focal de significao (queindicaria melhor o que est em jogo neste campo) porque o prprio De-leuze usa analogia de proporo. A analogia de proporo significa di-zer que a relao de um termo com outro tomado como tipo no a mes-ma relao de outro termo com este tomado como tipo. A manutenodo termo analogia se deve ao fato de que sem a relao qualquer queseja de um termo ou dos termos com este tomado como tipo no h sig-

    nificao. Em Aristteles temos a constituio da filosofia dos muitossentidos do ser e da analogia de proporo. Acreditamos que a exign-cia aristotlica de uma unidade focal de significao leva ao problemado incondicionado.

    Em Aristteles, o que nos interessou foi a sua formulao de que oser se diz em vrios sentidos, formulao que implica o uso da analogia

    3 Como queramos pensar o problema da multiplicidade de uma vida, e como, atentos a vrias pas-sagens da filosofia deleuziana que afirma ser sua filosofia uma teoria das multiplicidades, foi pro-blema da articulao do mltiplo por si que orientou a escolha dos autores trabalhados em nossoestudo.

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    4/14

    122 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005

    de proporo. O ser se diz em muitos sentidos porque ancorado em umaanalogia de proporo que referencia os muitos sentidos em um sentidotomado como tipo, a substncia. A analogia de proporo concebe umasemelhana de A com B pela relao diferente que mantm com X. a

    relao com X que permite falar em semelhana. Uma distribuio dosentido a partir de um referente-tpico acarreta a idia de eminncia. Aeminncia pode ser concebida como a atribuio de superioridade deum termo em relao aos outros termos. A analogia de proporo ouunidade focal de significao elege um termo tomado como padro designificao aos termos em relao. Este termo pode ser interior ao ml-tiplo, como o caso da substncia em Aristteles. O uso da analogia deproporo necessrio a partir da exigncia de no se pensar o sercomo gnero. Estudamos Aristteles porque sua filosofia a gneseconceitual do uso da analogia de proporo. em torno do uso, da cr-tica e da superao dessa analogia que aparece o pensamento da ima-nncia em Deleuze. Lemos Aristteles a partir da formulao em Deleu-ze de que o ser em Aristteles possui um sentido distributivo ehierrquico e no coletivo, e da formulao de Muralt4 de que a analogiade proporo uma das estruturas do pensamento. Concordamos emparte com Muralt. Para ns, o pensamento da univocidade do ser umatentativa de escapar do uso da analogia de proporo e mesmo de fun-d-la. No discutimos a leitura de Deleuze de Aristteles, partimos deuma intuio sua e da leitura de Muralt para formular a gnese da idiade eminncia que a atribuio proporcional de sentido a partir de umtermo tomado como tipo.

    2. As filosofias que pensam a unidade a partir de um termo externoao mltiplo, esse campo pensa a multiplicidade a partir da unidade ex-terna a esta multiplicidade. A unidade externa focada num termo cha-

    mado de produtor ou modelo e cuja formulao aparece na filosofia dePlotino.

    Plotino nos fornece uma imagem acabada da eminncia, e mesmona sua filosofia vemos funcionar a atribuio de sentido de modo despro-porcional. H uma filosofia dos muitos sentidos do ser em Plotino. A sriedas hipstases implica uma hierarquia dos sentidos do ser. Em Plotino oque nos interessou que sua filosofia, de certo modo, concebe a unida-

    4 MURALT, A de. Noplatonisme et aristotlisme dans la mtaphysique mdivale. Paris: Vrin,1995.

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    5/14

    Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005 123

    de focal de significao como compreenso do Um alm do inteligvel.Plotino parte do problema platnico da imitao, mas a sua concepoda transcendncia do Um um movimento extremo da lgica da analo-gia de proporo de Aristteles. Toda e qualquer eminncia implica ouso da analogia de proporo, ou seja, a constituio de um termo queporta o sentido mais do que outros. Em Aristteles esse termo internoao mltiplo, em Plotino externo. Plotino ultrapassa o problema platni-co da participao por imitao e coloca o problema em termos de pro-duo do mltiplo, mesmo que esta produo seja externa ao mltiplo.

    Segundo Deleuze, a tradio neoplatnica teria como tarefa rever-ter o problema platnico da participao. Esta tradio busca um prin-cpio que tornaria possvel a participao do ponto de vista do partici-pado ele mesmo. Os neoplatnicos no partem dos caracteres do

    participante (mltiplo, sensvel) para se perguntarem sob qual violnciaa participao torna-se possvel. Eles tentam descobrir o princpio e omovimento interno que funda a participao no participado como tal,do lado do participado como tal. No o participado que passa no par-ticipante, o participado permanece em si, ele participado pelo que eleproduz, ele produz pelo que ele doa. Mas ele no sai de si para doar eproduzir. Plotino, conforme Deleuze, pretende subordinar a imitao auma produo, a uma gnese e substituir a idia de uma violncia por

    aquela de um dom. O participado no se divide e no imitado de fora,nem constrangido por intermedirios que fariam uma violncia suanatureza. A participao aqui no imitativa, mas emanativa. Emana-o significa, por sua vez, causa e dom, causalidade por doao, mastambm doao produtora. A verdadeira atividade aquela do partici-pado, o participante no seno um efeito, e recebe o que a causa lhed. A causa emanativa a causa que doa. Quando buscamos o princ-pio de participao do lado do participado, devemos necessariamenteencontr-lo alm dele.

    O problema da filosofia de Plotino seria encontrar uma participaoprpria ao mltiplo que no significasse uma exterioridade como a teo-ria da imitao de Plato implicava. Quando pensa a participao emtermos de produo, de emanao, ele descobre um princpio interno aomltiplo. O Um um princpio interno ao mltiplo porque o produz, mas externo no sentido de que ele no o que produz. O Um no o todo,mas age internamente ao todo, produz internamente ao todo. Julga Plo-tino escapar de uma reduo da multiplicidade unidade pela exterio-

    ridade, que implicava a participao imitativa. No fundo, o problematodo o da exterioridade da unidade do mltiplo. Julga Plotino que pen-sar a produo do mltiplo e no mais a imitao resolveria o problema

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    6/14

    124 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005

    da exterioridade, que seria mal fundada em Plato. Mas Plotino reintro-duz uma exterioridade e a maior de todas: a supereminncia do Um.Mas com a categoria de produo, o Um mesmo exterior ao que produz,age internamente no que produz. Plotino uma figura complexa onde aimanncia e a transcendncia do Um esto em tenso.

    Com Plotino temos, talvez, a maior figura da eminncia, a transcen-dncia do Um. Com Plotino aparecem os primeiros problemas de se pen-sar algo transcendente e ao mesmo tempo produtor, a complexidade daaceitao da existncia de uma causalidade ora imanente ora transitiva,e a questo da exterioridade radical que porta o sentido do ser e do in-teligvel. O tipo em Plotino alm do ser e ao mesmo tempo constituiuma realidade. Com Plotino o tipo uma realidade. Se com Aristteles otipo interior ao mltiplo como tal, se bem que em certo sentido, a subs-

    tncia pensada como pura forma, com Plotino o tipo alm do mlti-plo. No s rene o sentido do mltiplo e tambm do ser, mas o produz, condio de gnese do mltiplo. Plotino a figura radical da eminn-cia. o horizonte de contraposio para se pensar o mltiplo em si.

    Organizamos nossa leitura de Plotino a partir de Muralt, que mostracomo Plotino radicaliza o uso da analogia de proporo.5 Ao lado disso,enriquecemos essa leitura a partir da centralidade da categoria de pro-duo em Plotino. No trabalhamos a leitura deleuziana de Plotino, que

    privilegia a noo de contemplao, mas tentamos mostrar que a filo-sofia de Deleuze quando ataca a eminncia deveria atacar sua figuramaior, o Um plotiniano. Tanto Plotino como Aristteles6 configuram umcampo de pensamento ao qual vo se contrapor Bruno, Espinosa, Berg-son e Deleuze, os dois primeiros pelas teses da univocidade e imannciae os dois ltimos pelas teses da imanncia e lgica das multiplicidades.

    As filosofias da univocidade dos sentidos de ser

    Duns Scoto

    A primeira filosofia da univocidade dos sentidos de ser a de DunsScoto. Sua filosofia apresenta a questo da inconsistncia do uso daanalogia de proporo que acarreta a eminncia. Sejam dois termos em

    5 Muralt, op.cit., p. 43.6 Mesmo se as filosofias de Aristteles e Plotino so diferentes, o primeiro, uma filosofia do ser, o

    segundo, uma filosofia do Um, ambos possuem uma afinidade secreta: pensam o mltiplo a partirde uma unidade originria, seja esta interior ao mltiplo (Aristteles), seja exterior (Plotino).

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    7/14

    Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005 125

    relao e em comparao, na analogia de proporo um dos termos sertomado como tipo ou critrio para a atribuio do sentido do outro ter-mo em relao. Scoto diz que uma relao de proporo, ou se quiser-mos desproporcional, exige um termo mdio que seja comum aos doisem relao. a que concebe o conceito de ser como unvoco em suasdeterminaes mais gerais, e esse conceito neutro que serviria comotermo mdio ao uso da analogia de proporo. Sua crtica radical. ComScoto temos a univocidade do ser, o que significa que em suas determi-naes mais gerais o ser dito de todo ente, o que acarreta a no- exis-tncia de uma forma ontologicamente superior de ser em suas determi-naes mais gerais. H distino entre os seres, mas esta no ontolgica. este componente que nos interessa em Scoto. H diferen-as entre os seres, mas esta diferena no acarreta superioridade, pelo

    menos nas determinaes mais gerais.Nossa leitura de Scoto totalmente deleuziana, mas enriquecida

    com a leitura atenta de Scoto na qual desdobramos e explicitamos v-rias das intuies de Deleuze. Um comentador nos foi tambm muitotil no nosso estudo sobre Duns Scoto, Olivier Boulnois, que traduziu aobra de Scoto para o francs. O interessante de sua leitura de Scoto relacion-lo ao debate acerca da sentido da metafsica de Aristteles:ontologia ou teologia. Questo que nos ajudou e muito a compreender

    Deleuze e relacionar Scoto, Bruno e Aristteles, e montar o debate his-trico acerca do problema da alternativa entre analogia e univocidade.7

    Scoto, ao atacar o problema da eminncia, dizendo que para quehaja uma comparao analgica que permita a atribuio de superiori-dade de um termo em relao a outro necessrio um termo mdio, ata-ca tanto a posio aristotlica quanto a posio neoplatnica. Se a res-posta plotiniana e a exigncia aristotlica so tpicas, a crtica scotistatambm , e neste sentido ela fundante de uma tradio da qual be-ber a filosofia de Deleuze. A univocidade tanto um ataque a uma po-sio neoplatnica quanto aristotlica e componente de um outro cam-po: a filosofia das multiplicidades de Deleuze.

    Giordano Bruno

    Giordano Bruno vai aceitar a univocidade do ser e dizer que ela real e no conceitual como em Scoto. como se Bruno dissesse a Scoto

    7 Questo que aparece na introduo de Olivier Boulnois na sua traduo de Scoto no livro SCOT,Jean Duns. Sur la connaissance de Dieu et lunivocit de ltant. Paris: PUF, 1988.

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    8/14

    126 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005

    que se em Plotino a eminncia uma realidade, a univocidade tambmdeveria ser, por isso a univocidade do ser como real no conceito de na-tureza naturante.

    Com Bruno temos uma idia de univocidade relacionada totalida-de e correspondendo a uma realidade e no a um conceito como emScoto. Com Bruno temos uma interpretao naturalista de Parmnides.Tudo o que dito ser ou natureza naturante ou natureza naturada.Mas a natureza naturante a realidade infinita do universo. Como Bru-no temos a noo de que no h uma exterioridade radical natureza.Bruno introduz o absoluto na natureza. A natureza o absoluto de si.Bruno acrescenta tese da univocidade do ser, que significa a idia deuma no eminncia dos entes ao pensamento, a idia de que a trans-cendncia um horizonte de nosso modo de conhecer as coisas. onosso modo de pensar que acarreta a idia de transcendncia.

    A univocidade real de Bruno que uma vantagem em relao po-sio scotista, tambm uma crtica a Aristteles, mas a partir do neo-platonismo. Bruno aceitaria a formulao plotiniana da produo domltiplo pelo Um, mas o Um no exterior totalidade. O Um a natu-reza naturante. Com Bruno a univocidade real e a produo do mltiplo interna ao mltiplo. Com Bruno a univocidade scotista relacionada imanncia. Bruno significa uma passagem da univocidade imanncia.

    Lemos Bruno a partir da formulao de Deleuze de que em Bruno oconceito de complicao recebe uma determinao completa. E a no-o de complicao em Bruno que permite falar de univocidade e noexistncia de um fora radical natureza. A natureza naturante a com-plicao de todas as coisas e a natureza naturada a sua explicao. De-leuze aproveita esta tese para montar sua leitura de Espinosa. LemosBruno, tambm, a partir de Tristan Dagron.8 Sua tese de que Bruno lParmnides imanentizando-o, e de que a transcendncia uma iluso

    necessria de nosso modo de pensar foi muito til na nossa compreen-so de Bruno.

    Deleuze no possui um trabalho de flego sobre Bruno, mas quere-mos arriscar dizendo que a filosofia de Bruno poderia ser mais til a De-leuze se no elegesse Espinosa, sensvel que exigncia cartesianada existncia do atributo principal para qualificar uma substncia. For-mulemos melhor esta questo que para ns decisiva.

    8 DAGRON, Tristan. Unit de ltre et dialectique: Lide de philosophie naturelle chez GiordanoBruno. Paris: PUF, 1998.

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    9/14

    Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005 127

    Para conceber a relao plano de imanncia/multiplicidade virtualque para ns a formulao mais rica da filosofia deleuziana, e que atorna consistente e apta a entrar nos vrios debates filosficos contem-porneos, Deleuze vai operar uma modificao em Espinosa a partir de

    Bergson e Nietzsche. Na maioria das vezes ele opera com a trade subs-tncia/atributo/modo. Mas ao fim utiliza a relao substncia/atributocomo um componente essencial para conceber a relao plano de ima-nncia/multiplicidade virtual. Deleuze, quando estuda Espinosa, a no-o de expresso na definio seis do livro Um datica que ganha valorestratgico, mas na sua apropriao de Espinosa para a formulao desua filosofia prpria a definio quatro que mais importante. O re-curso a Espinosa poderia ser menos problemtico se Deleuze operassecom a distino natureza naturante e natureza naturada de feita porGiordano Bruno. Distino esta, que diferente da de Espinosa, poisno h a noo de atributo, mas apenas substncia e modos. Apenas arelao substncia/atributo em Espinosa interessaria a Deleuze. Deleu-ze no fundo no espinosista. Ele acompanha Espinosa at certo ponto.Deleuze no aceitar a relao substncia/modo em Espinosa. Noaceitar porque, mesmo no havendo uma diferena eminente entresubstncia e modo, isso garantido pela mediao do atributo, que expli-ca e constitui a substncia e est implicado nos modos, Deleuze no

    aceita a idia distino do em si e em outro. o em si da subs-tncia que problemtico a Deleuze. Uma filosofia das multiplicidadesno poderia aceitar a idia, por exemplo, de uma multiplicidade em si,pois so sempre em relao. Quando dissemos acima que pretendamospensar a vida como uma multiplicidade em si mesma, no queramosdizer que existe uma multiplicidade em si, pois as multiplicidades soem relao, mas que queramos pensar as multiplicidades no a partirda unidade tomada como posio primeira.

    Com Bruno, Deleuze estaria mais vontade porque o em si com-plicante todo ente, se bem que existe ainda em Bruno uma disjuno,complicao e explicao, mesmo se o que explicado intrnseco aoque complica, o que complica o todo. como se em Bruno tivsse-mos apenas substncia e modos. Mas a relao substncia/modos (na-tureza naturante e natureza naturada) em Bruno uma relao que in-teressa a Deleuze, porque h uma relao de interioridade radical entreos termos em relao, natureza naturante e natureza naturada sem o re-

    curso de um termo mdio, como em Spinosa atravs do atributo. queEspinosa compreende Descartes na exigncia de qualificao de umasubstncia por um atributo principal, mas modifica este problema

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    10/14

    128 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005

    transformando-o no problema de constituio da substncia e da per-cepo dessa constituio pelo nosso intelecto, que nomeia o que cons-titui a essncia da substncia, de atributo. Essa relao de interiorida-de entre natureza naturante e natureza naturada diferente da relaoentre substncia e modo em Espinosa, mas prxima da relao substn-cia/ atributo spinozista. Contudo, por ser uma questo importante parans, desenvolveremos esse ponto mais detidamente j que estamosafirmando um lugar de Bruno na univocidade deleuziana.

    A imanncia em Bruno

    Bruno refere a srie mltipla a uma unidade tomada no como umtermo interior srie (Aristteles), nem como um termo supereminente

    fora da srie (Plotino), nem como uma unidade neutra conceitual (Scoto)mas como real: a totalidade da natureza. exigncia de unidade porScoto, Bruno acrescenta que esta unidade no interior nem exterior multiplicidade, produtora da multiplicidade. Mas no sries como ashipstases plotinianas que derivam de um termo. A natureza um meiocomo princpio das coisas naturais, onde todas as formas existem emestado complicado. A unidade em Bruno a unidade de um mundo.Mas no h uma realidade extrnseca natureza. A natureza identifica-

    da ao ser no caracteriza uma hipstase ou uma substncia distinta dascoisas naturais. Bruno no aceita que esta hipstase seja pensada comoum ser inteligvel separado das realidades naturais submetidas ao devir.As coisas naturais existem na natureza, que as produz em si mesma.

    Para Bruno, o universo um, infinito, imvel. O universo indefin-vel, no-limitvel, infinito e, por conseqncia, imvel. imvel comoinfinito, pois se se movesse para algum lugar haveria um fora dele mes-mo para o qual se moveria. O universo o todo. Assim, tambm ele nose engendra, no sentido de que no se produz como um todo, j que

    todo o ser. No se corrompe, porque no h nada em que pudesse setransformar, no se transforma como todo. No pode diminuir-se nemcrescer, o universo o Um infinito. No muda de disposio, porquenada de exterior produz nele qualquer afeco. O universo compreendetudo, todos os contrrios em seu ser de uma maneira harmoniosa e uni-tria. No podemos admitir um contrrio ou alguma coisa de diferentedele que o possa alterar, porque nele tudo concorda. No matria, por-que no tem nem figura nem limite, isto no sentido de que ele matria

    no formada. Mas no podemos dizer que engloba a si prprio, que no maior que si mesmo, e por isto no compreendido nele mesmo. Sen-do Um e idntico, no existem seres distintos dele. No tem partes, no

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    11/14

    Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005 129

    sentido de que no uma multiplicidade discreta. No infinito no h di-ferenas entre as coisas. Como ele compreende tudo, no comporta nempor si nem em si nenhuma mudana, como todo. O universo em tudo,porque tudo um. O universo tudo e compreende em si todo o ser.

    A mudana, ento, no visa a um outro ser, mas um outro modo deser. Esta a diferena entre o universo e as coisas do universo, porquese o universo compreende todo o ser e todos os modos de ser, cada umadas coisas possui o ser, mas no todos os modos de ser. Cada coisa nopode possuir em ato todos os modos, as particularidades e todos os aci-dentes porque muitas formas so incompatveis em um mesmo substra-to. O universo compreende todo o ser totalmente, porque nada podeexistir fora e alm do ser infinito; cada uma das coisas do universo com-preende todo o ser, mas no totalmente porque fora de cada uma delasexiste uma infinidade de coisas. Tudo um, mas no totalmente nemsob todos os modos em cada coisa. Cada coisa una, mas no sob ummodo nico. No um se encontra a multiplicidade, o ser um, mas mul-timodal, multiforme e multifigurado. Todas as coisas so no universo eo universo em todas as coisas.

    No ser encontram-se todas as formas, todas as figuras e todos osmembros, mas indistintos e por assim dizer aglomerados, exatamentecomo na semente, onde o brao no se distingue da mo, dos nervos, e

    onde a diferenciao no produz uma outra ou uma nova substncia,mas atualiza certas qualidades, certas diferenas, certos acidentes ecertas disposies relativos a essa substncia. Assim, h uma s e mes-ma substncia que se chama ser, o fundamento de todas as espcies eformas diversas. O um compreende todo o ser sob o modo da complica-o, e sob o modo da explicao ele se encontra nas coisas naturais.

    A univocidade em Bruno real, ela a unidade que tudo, aquelaque no explicada, que no se encontra na distribuio e na distino

    numrica, mas que a unidade que complica e que compreende tudo.Essa unidade produtividade infinita, mas ato que permanece em si.O ato interior do Um produz um efeito interior, e o que engendrado produzido dentro de si mesmo.

    Bruno quer uma univocidade real. E neste sentido que dialogatambm com Plotino, com a natureza de produtor do Um. O Um umarealidade, e se h univocidade ela deve ser tambm uma realidade e ,ento, que Bruno concebe o conceito de complicatio - a natureza natu-

    rante a complicao de todas as coisas e este conceito a alternativaao conceito de univocidade em Scoto, mas tambm a Aristteles e aPlotino. O que nos interessa em sua filosofia o conceito de complica-

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    12/14

    130 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005

    o e a idia de que no h um fora radical natureza. O conceito denatureza como complicao de todas as coisas torna a univocidade re-al. Mas o fato da transcendncia, que um efeito do nosso modo de co-nhecer, nos deixa entrever a grande revoluo que representa a filosofiade Espinosa.

    A Deleuze interessaria em Bruno a relao natureza naturante/na-tureza naturada, porque esta relao lhe permitir pensar a univocidadeaplicando esta relao a todo ente. Nossa hiptese que, para pensara relao plano de imanncia/multiplicidade virtual, Deleuze vai seapropriar da relao substncia/atributo de Espinosa e da relao natu-reza naturante e natureza naturada de Bruno.

    Espinosa

    Por isso em Espinosa estudamos a relao substncia/atributo deforma privilegiada. Com Espinosa, a partir da noo de atributo, obtive-mos a idia de que no h forma superior de ser e de que no h exte-rioridade absoluta natureza, e o grande avano, a idia de que os atri-butos so formas diferentes entre si, mas se reportam ontologicamente substncia. A substncia difere em si, e o atributo sua constituio.H uma relao intrnseca, revelada pela noo de expresso, que tra-

    balhamos exaustivamente, entre os constituintes expressivos e o que osengloba. A substncia produz a si mesma distinguindo-se em consti-tuintes expressivos. Nosso intelecto percebe essa constituio da subs-tncia e chama os constituintes de atributos. O expresso, a substnciano existe fora da sua expresso, o atributo. essa relao que Deleuzeutiliza para pensar a relao plano de imanncia/multiplicidade virtual.Portanto, central na compreenso deleuziana de Espinosa a noo deexpresso. Se Espinosa em certo sentido representa uma figura impor-

    tante, em Deleuze que a univocidade scotista torna-se absolutamentereal com o conceito de substncia. Mesmo se Espinosa no a figuraacabada da univocidade para Deleuze, Espinosa pensaria o conceito deser (a substncia) como qualificado e no neutro como em Scoto. aformulao tpica da filosofia de Bruno que permite a Deleuze compre-ender Espinosa. o problema da complicatio que permite a Deleuzecompreender a noo de expresso de Espinosa. E um avano em re-lao a Bruno, porque a transcendncia no efeito do modo de conhe-

    cimento, e sim no-existente. Espinosa uma figura tpica importanteporque sua filosofia tanto uma crtica ao problema aristotlico do usoda analogia de proporo quanto uma formulao, agora nos quadros da

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    13/14

    Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005 131

    univocidade e imanncia, do problema da produo do mltiplo plotini-ana. Com Espinosa no h transcendncia/eminncia, mas uma deter-minada lgica do mltiplo.

    Concluso

    Por isso acreditamos que Deleuze se apropria da noo de compli-cao de Giordano Bruno, da noo de expresso e da relao entresubstncia e atributo em Espinosa, de multiplicidade virtual em Berg-son, da questo da repetio e diferena em Nietzsche e constitui umpensamento no a partir da trade substncia/atributo/modo de Espino-sa, ou da dade natureza naturante/natureza naturada de Bruno, mas de

    um quadrado: caos/plano de imanncia/ multiplicidade virtual/multipli-cidade atual, ou, se quisermos, na terminologia de Diferena e Repeti-o, a complicao/perplicao/implicaco/ explicao, mas atribuindoesse quadrado a todo ente. Essa a univocidade deleuziana.

    Nosso roteiro de leitura de Deleuze aponta, ento, para uma aplica-o. Depois de estudar debate acerca da analogia e univocidade e devermos a mudana de foco que a filosofia de Bergson fornece a Deleuze,questo que no apresentamos aqui, aplicamos a relao caos/plano deimanncia/multiplicidade virtual/multiplicidade atual ao conceito devida e a pensamos como multiplicidade intrnseca. O termo formas devida se refere s multiplicidades virtuais implicadas em uma vida, e asformas seriam os atributos de cada vida, questo que pretendemostrabalhar em outro artigo.

    Portanto, organizamos o texto deleuziano a partir do movimento dapassagem do uso da analogia de proporo ou de atribuio a uma lgi-ca das multiplicidades. Passagem, aqui, significa no uma superao,mas mudana de natureza, uma diferenciao no modo de pensar. Ser

    uma lgica das multiplicidades a partir de Deleuze e Bergson a alterna-tiva ao uso da analogia de proporo e que proporcionar essa passa-gem do modo de pensar. No explicitamos a leitura de Deleuze da his-tria da filosofia, mas a lemos a partir do nosso foco. Lemos Deleuze esua leitura da histria da filosofia a partir das questes em torno do usoda analogia de proporo e da alternativa a esse uso representado pelarelao entre a idia de plano de imanncia e do conceito de multiplici-dade virtual. nesse debate que concebemos a vida como multiplicida-

    de infinita e chamamos cada configurao sua de forma. a relao plano de imanncia/multiplicidade virtual, resposta de-leuziana ao problema do debate acerca do uso da analogia de propor-

  • 8/6/2019 Aula02 Deleuze Imanencia Multiplicidade

    14/14

    132 Trans/Form/Ao, So Paulo, 28(1): 119-132, 2005

    o/univocidade, um componente essencial para se pensar a vida comomultiplicidade de formas e de pretenses de sociabilidade, respostamais consistente ao problema de fato do no consenso no mundo da vi-da. a partir dessa hiptese que nos aproximamos de determinados au-tores, conceitos e filosofias, e principalmente de Deleuze.

    CARVALHO, J. D. Immanence plan and forms of life presenting a study guideabout Gilles Deleuze. Trans/Form/Ao, (So Paulo), v.28(1), 2005, p.119-132.

    ABSTRACT: This text intends to show a kind of aprproach and introductionto Deleuze's work. Based on the problem of the non-existence of consensusin the world of life, we feel the need to start thinking and formulating the

    concept of virtual multiplicity. Then we present a kind of guide to do so. Thesolution to the problem of plurality and difference is the concept of forms oflife formulated and thought in acordance with Deleuze.

    KEYWORDS: Plan of Immanence; virtual multiplicity; analogy of proportion;forms of life; Deleuze.

    Referncias bibliogrficas

    AUBENQUE, Pierre. Les origines de la doctrine de lanalogie du ltre. In. Les tudes Philosophiques: Aristote et lAristotlisme, Janvier-Mars, Paris:PUF, 1978, p. 3-12.

    BERGSON, H.LEvolution Cratice. Paris: PUF, 1946.________. Essai sur les donnes immdiates de la conscience. Sexta edio.

    Paris: Quadrige/ PUF, 1997.BRUNO, G. De la cause, du principe et de lun. Trad. Luc Hersant. Paris: Les

    Belles Lettres, 1996.DAGRON, Tristan. Unit de ltre et dialectique: Lide de philosophie naturelle

    chez Giordano Bruno. Paris: PUF, 1998.DELEUZE, G.Diffrence et rpetition. Paris: PUF, 1968.________. Spinoza et le problme de lexpression. Paris: ditions de Minuit,

    1968.________. Niezstche et la philosophie. Segunda edio. Paris: Quadrige/ PUF,

    1998.________. Le Bergsonisme. Segunda edio. Paris: Quadrige/ PUF. 1998.MOURLOS, G.Bergson et les niveux de ralit. Paris: PUF, 1964.MURALT, A. de. Noplatonisme et aristotlisme dans la mtaphysique

    mdivale. Paris: Vrin, 1995.SCOTO, J. D. Sur la connaissance de Dieu et lunivocit de ltat. Trad. Olivier

    Boulnois. Paris: PUF, 1988.