aula – michel foucault – governo e governantes

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aula de ciência política sobre visões sobre o governo e os governantes em michel foucault

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AULA MICHEL FOUCAULT GOVERNO E GOVERNANTES

- SOBRE A PALAVRA GOVERNO: 8 sentidos (extrados de um dicionrio de Francs do final do sculo XIX)

1 - sentido puramente material dirigir fazer ir em frente: um caminho to estreito que dois homens nele no poderiam governar-se

2 - material mais amplo sustentar assegurando subsistncia trigo suficiente pra governar Paris por dois anos

3 - tirar sua subsistncia de alguma coisa uma cidade que se governa de seus tecidos

4 - significados de ordem moral conduzir algum, governando sua alma, impondo um regime, cuidando do enfermo um doente que, depois de sair do hospital, em consequncia de seu mau governo, foi-se desta para a melhor

5 - conduta no sentido moral do termo uma mulher que era de mau governo (de m conduta)

6 - relao entre indivduos dirigir algum, control-lo.

7 falar com algum ele relegava mesa farta a todos os que o governavam durante seu jantar

8 - comrcio sexual um sujeito que governava a mulher do vizinho e ia ter com ela frequentemente

Como quer que seja, atravs de todos esses sentidos, h algo que aparece claramente: nunca se governa um Estado, nunca se governa um territrio, nunca se governa uma estrutura poltica. Quem governado so sempre pessoas, so homens, so indivduos ou coletividades.

Se a viso grega sobre governar governar a prpria cidade que designada como objeto do governo, conclui-se que a ideia de que os homens so governveis uma ideia que certamente no grega, nem romana.A ideia de um governo dos homens uma ideia cuja origem deve ser buscada no Oriente, num Oriente pr-cristo primeiro, e no Oriente cristo depois. E sob duas formas:

- sob a forma da ideia da organizao de um poder de tipo pastoral;

- sob a forma da direo de conscincia, da direo de almas.

Primeiramente, governar, no Oriente mediterrneo (Egito, Assria e Mesopotmia) era um termo que designava a relao dos deuses com os homens. O deus um pastor dos homens. Havia certo tipo de relao entre o soberano e o deus, na medida em que, se Deus o pastor dos homens, o rei de certo modo o pastor subalterno a que Deus confiou o rebanho dos homens e que deve, ao fim do dia e ao fim de seu reinado, restituir a Deus o rebanho que lhe foi confiado. Foi sobretudo entre os hebreus que o tema do pastorado se desenvolveu e se intensificou. A relao pastor-rebanho essencialmente, quase exclusivamente, uma relao religiosa. As relaes entre Deus e seu povo que so definidas como relaes entre um pastor e seu rebanho. Nenhum rei hebreu, com exceo de Davi, fundador da monarquia, nominalmente designado como pastor. A relao pastoral, em sua forma plena e em sua forma positiva, portanto, essencialmente, a relao entre Deus e os homens. uma coisa ao mesmo tempo fundamental e provavelmente especfica desse Oriente mediterrneo to diferente do que encontramos entre os gregos. Nunca o deus grego conduz homens da cidade como um pastor conduziria suas ovelhas. O poder do pastor um poder que no se exerce sobre um territrio, um poder que, por definio, se exerce sobre um rebanho, mais exatamente sobre o rebanho em seu deslocamento, no movimento que o faz ir de um ponto ao outro. o poder sobre uma multiplicidade em movimento.

Alm do exposto, o poder pastoral fundamentalmente um poder benfazejo. Sendo o poder pastoral inteiramente definido por seu bem-fazer, ele no tem outra razo de ser seno fazer o bem. Tal como o pastor estabelece como seu fim a salvao do rebanho, o objetivo do soberano de salvao da ptria. O pastor aquele que alimenta diretamente ou, em todo o caso, que alimenta conduzindo s boas campinas, depois certificando-se de que os animais de fato comem e so alimentados adequadamente. A forma que o poder pastoral adquire no , inicialmente, a manifestao fulgurante da sua fora e da sua superioridade. O poder pastoral se manifesta por seu zelo, sua dedicao, sua aplicao infinita. O pastor aquele que zela. O pastor est a servio do rebanho, deve servir de intermedirio entre ele e os pastos, a alimentao, a salvao, o que implica que o poder pastoral, em si, sempre um bem. Est a, precisamente, a diferena entre o mau e o bom pastor. O mau pastor aquele que s pensa no pasto para engordar o rebanho que poder vender e dispersar, enquanto o bom pastor s pensa no seu rebanho e nada alm dele. Todas as dimenses de terror e de fora ou de violncia temvel, todos esses poderes inquietantes que fazem os homens tremer diante do poder dos reis e deuses, pois bem, tudo isso se apaga quando se trata do pastor, seja ele o rei-pastor ou o deus-pastor.

Em terceiro lugar, o poder pastoral um poder individualizante. Ele faz tudo pela totalidade do rebanho, mas faz tudo tambm para cada uma das ovelhas do rebanho. Eis o paradoxo do pastor: o pastor deve tudo a seu rebanho, a ponto de aceitar sacrificar-se pela salvao do rebanho, mas, por outro lado, como precisa salvar cada uma das suas ovelhas, ser que ele no vai se ver obrigado a descuidar da totalidade do rebanho? o cerne da problemtica crist do pastorado: sacrifcio de um pelo todo e o sacrifcio do todo por um.

Em suma, poderamos dizer que a ideia de um poder pastoral a ideia de um poder que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um territrio. Essa ideia de um poder pastoral completamente alheio ao pensamento grego e romano, foi introduzido no mundo ocidental por intermdio da Igreja crist.

O homem ocidental aprendeu durante um milnio o que nenhum grego, sem dvida, jamais teria aceitado admitir, aprendeu a se considerar uma ovelha entre as ovelhas. Durante milnios ele aprendeu a pedir sua salvao a um pastor que se sacrifica por ele. Extrado Segurana, Territrio e Populao" - curso dado no Collge de France (1977-1978), de Michel Foucault