Aula 4 - Extremismos, política e democracia no começo do século XXI

Antropossociologia e Trabalho de campo

Faculdade Piaget - Suzano - 1º semestre de 2020Profº Me Antonio Gracias Vieira Filho

Tópicos que vamos debater nesta aula:

1. Globalização;2. Extremismos;3. Descrédito da política;4. Futuro da democracia.

Premissas desta aula

O mundo contemporâneo é marcado pelas conexões tecnológicas, acesso a grandes volumes de informação e a impressão de uma constante aceleração. Basta acessar a internet para obter notícias sobre o que acontece nas mais variadas regiões de nosso planeta: conflitos, desastres naturais, pandemias, inovações tecnológicas, eventos políticos, etc. Para além dos benefícios desse processo de integração e do avanço do aparato de comunicação e informação, o planeta também se une nos problemas que precisa enfrentar: questões globais de saúde, o comprometimento do meio ambiente, a garantia de segurança energética, o descrédito da política, entre outros.

Objetivos desta aula

Para compreender esse “funcionamento” político, cultural e social das organizações humanas em nível global, realizaremos uma discussão em dois níveis:1. Vamos entender o conceito de globalização e a crescente

integração entre sociedades de nosso planeta;2. Vamos debater fenômenos que produzem preocupações em

escala igualmente globalizada:a. Extremismos;b. Descrédito da política;c. Futuro da democracia.

1. GlobalizaçãoAo contrário do que sugere o senso comum e o sensacionalismo midiático, o processo de globalização não é um fenômeno recente e ocorre há mais de 2500 anos.

Acima, uma carraca de Portugal é retratada realizando o comércio entre possessões portuguesas na China e a cidade portuária japonesa de Nagasaki. A obra é do século XVII e retrata o período do comércio Nanban entre Japão e Portugal. Domínio público.

Globalização [1]

Trata-se da tendência de crescente interação entre pessoas, instituições e nações, em uma escala global, graças a avanços em tecnologias de transporte e comunicação. Podemos listar vários marcos desse processo, que se iniciou há mais de 2500 anos:● Construção de estradas no Império Persa (550–330 A.C.); ● Integração de territórios ao Império Romano (a partir de 27 D.C.); ● Grandes navegações (séculos XV a XVII);● Criação das locomotivas a vapor (século XIX); ● Advento do telégrafo (século XIX); ● Desenvolvimento da aviação comercial (século XX);● Crescimento da internet comercial (da década de 1990 em diante).

Globalização [2]

Com um intercâmbio crescente entre Estados, sociedades, comunidades e pessoas, tivemos o aumento do comércio internacional e a difusão de ideias e práticas culturais:● Costumes originários de uma cultura passam a ser incorporados a

outras; ● A mestiçagem entre raças/etnias aumentou em determinados

contextos;● Desde as rotas medievais de navegação, em busca de produtos no

extremo oriente, até os atuais grandes navios para transporte de mercadorias, o comércio internacional explodiu;

● As ideias políticas também se tornaram item de exportação.

Globalização [3]Os conflitos e disputas formam uma parte importante da história desse fenômeno. Os processos de colonização são a face sombria da globalização, com a imposição de governos e padrões culturais aos povos dominados. Isso pôde ser visto na América Latina, África, Oceania e países da Ásia. Ainda hoje, acordos econômicos podem ser muito injustos. Enquanto a União Europeia permite a livre circulação de pessoas em seu território, o USMCA (United States - Mexico - Canada Agreement), acordo que integra Canadá, EUA e México não prevê tal política. Nesse sentido, o presidente Donald Trump propõe a construção de um muro que separe definitivamente EUA e México. Outro exemplo pode ser visto na atuação comercial da China, com práticas de concorrência desleal.

2. ExtremismosO comportamento extremista resulta da combinação entre falência da alteridade e o desejo de aniquilação das diferenças.

Em sentido horário, a partir do canto superior esquerdo: “bruxas” sendo queimadas na fogueira (1585); crânios das vítimas do genocídio cambojano (1975-79, foto de 2005); nazistas queimando livros (1933); e reunião da Ku Klux Klan em Chicago/EUA (1920). Domínio público.

Extremismos [1]

A recusa ao diálogo intercultural aparece em práticas sociais que podem gerar comportamentos marcados pelo preconceito e discriminação:● Afirmações sobre a inferioridade de raças/etnias; ● Hostilidade por conta de relações afetivas e modelos

familiares que destoam do “padrão”;● Intolerância por conta de credo religioso;● Intolerância em virtude de diferentes visões políticas.

Em maior ou menor grau, embora combatidas, tais práticas estão presentes no convívio social e se manifestam de diferentes formas a depender da sociedade em análise.

Extremismos [2]

Mas existem atitudes e discursos que ultrapassam a prática cotidiana do preconceito e que podem resultar em situações particularmente graves de intolerância. Trata-se da ideia de aniquilação das diferenças, com a possibilidade de eliminação física daquelas pessoas que são alvo de sentimentos extremistas. Podemos definir o comportamento extremista como a completa intolerância ao convívio com determinados grupos sociais ou culturais, com graves consequências para subsistência desses mesmos grupos. Isso pode incluir a repulsa generalizada da sociedade, a discriminação praticada pelo Estado e atos sistemáticos de violência física e/ou psicológica.

Extremismos [3]

Vale lembrar que o comportamento extremista também pode se manifestar em atos de terrorismo, motivados por questões políticas ou culturais. Existe a prática de terrorismo de Estado quando o aparato público de repressão se volta à perseguição sistemática de minorias e dissidências. Também pode haver o terrorismo praticado no âmbito da sociedade, por grupos radicais, quando estes se recusam a viver em uma sociedade plural e tentam impor à força uma determinada visão de mundo. Em todos os casos citados até aqui, o elemento unificador diz respeito à aniquilação da diferença. Em termos antropológicos, o extremismo representa a falência da alteridade.

2.1 Situações em que o extremismo resultou em práticas reais de

aniquilação*Algumas imagens podem ser chocantes - recomendo especial

cuidado com pessoas impressionáveis, crianças e gestantes.

[*] Os créditos das imagens encontram-se após a bibliografia.

Linchamento. Esse fenômeno diz respeito ao assassinato de indivíduos por grupos de pessoas que atuam à margem da lei e de forma violenta. Pode ser o resultado de uma revolta “espontânea” (como a reação a um crime) ou uma atitude sistemática de intimidação - política, social, relativa a costumes, etc. Entre meados do século XIX e a década de 1960, foi prática comum contra as populações afrodescendentes do sul dos EUA. Na foto [1], três homens negros vítimas de linchamento no Estado da Geórgia, em 1892.

Organizações como a Ku Klux Klan (KKK) eventualmente lideravam tais atos de terror. Em outros casos, multidões brancas enfurecidas assassinavam suas vítimas de modo aparentemente “espontâneo”. O Estado também demonstrava conivência, na medida em que não reprimia adequadamente o linchamento. Sequer havia legislação específica para barrar a prática. Na imagem ao lado [2], um cartão postal com a foto do linchamento de Will Stanley em Temple, Texas, 1915.

A foto [3] mostra Ruby Bridges, com 6 anos, sendo escoltada por delegados federais dos Estados Unidos. A partir de 1960, ela foi uma das primeiras crianças negras a estudar em uma escola antes exclusiva para brancos, em Nova Orleans, Sul dos EUA. Até então, a segregação racial em escolas era um fenômeno comum. Por conta dos protestos da população branca e ameaças de morte, ela era escoltada no caminho de ida e volta. A recusa a direitos básicos, como a educação, também é uma forma de aniquilação do outro.

Genocídio Armênio (1914-1923). Aproximadamente 1,5 milhão de armênios foram mortos pelo Império Otomano com deportações forçadas (marchas da morte), privação de alimentos e assassinatos em massa (foto 4).

Holocausto (1933-1945) - o extermínio sistemático da população judaica da Europa pelo regime nazista da Alemanha. Ao longo de sua realização, foram mortos aproximadamente 6 milhões de judeus - em campos de extermínio, pelotões de fuzilamento, privação de alimentos, entre outras práticas. Na foto [5], uma vala com centenas de cadáveres no campo de concentração de Bergen-Belsen (1945).

Outras vítimas da eliminação sistemática pelo nazismo: ciganos, homossexuais, Testemunhas de Jeová, comunistas, opositores políticos, criminosos comuns, portadores de deficiências físicas ou sofrimento psíquico, etc. Cada grupo possuía um símbolo específico [6] em seu uniforme nos campos de concentração.

A Aktion T4 foi uma ação do regime nazista, realizada entre 1939 e 1945, que resultou no extermínio de algo entre 275000 e 300000 pessoas portadoras de algum tipo de limitação física ou condição psíquica. O cartaz ao lado [7] data de 1938 e tinha por objetivo preparar a opinião pública para o extermínio. Está escrito: 60000 reichsmarks é o quanto essa pessoa, que sofre de um defeito [sic] hereditário, custa à comunidade durante sua vida. Prezado cidadão, esse é seu dinheiro também. Leia “[Um] Novo Povo”, a revista mensal do escritório do Partido Nazista para Política Racial.

3. Descrédito da políticaUm dos caminhos para o colapso da política como meio para solução de conflitos e promoção do bem comum é o seu descrédito. Nesse sentido, o questionamento das instituições democráticas é particularmente preocupante.

Acima, o presidente dos EUA, Donald Trump (Partido Republicano), em foto oficial da presidência (2017). Trump é conhecido pelo discurso agressivo, comportamento radical, intenso uso de mídias sociais e desdém pelas instituições democráticas de seu país (presidência, parlamento, judiciário, etc).

Descrédito da política [1]A política, para o sociólogo Max Weber, comporta dois elementos fundamentais, ambos vinculados às noções de poder, força e violência:1. Trata-se do conjunto dos esforços realizados em vista de participar

no poder ou de influenciar a divisão do poder, seja entre os estados, seja entre os diversos grupos dentro de um mesmo Estado;

2. A dominação do homem sobre o homem por todos os meios: aspirar desta ou daquela forma a exercer um poder necessita manifestar algum tipo de força, dominar o outro ainda que seja pela força ou violência, além de atribuir-se uma forma qualquer de legitimidade.

Citação retirada de LALLEMENT, Michel. História das ideias sociológicas: das origens aos contemporâneos. Petrópolis (RJ), Vozes, 2018. Pp. 238-239.

Descrédito da política [2]

O exercício do poder ganha legitimidade, nos Estados democráticos contemporâneos, por um conjunto de mecanismos: uma burocracia estatal que atenda bem às pessoas; leis que definam regras, direitos, deveres e punições; pela possibilidade de fiscalização por parte dos cidadãos; etc. Em outras palavras, o exercício do poder, definido na política, depende de um conjunto complexo de fatores para que seja aceito pela sociedade. Mas há, ainda, uma questão de fundamental importância: a sociedade, pelo voto, em eleições gerais e plebiscitos, e por diversas ferramentas de participação social, precisa se sentir representada no Estado.

Descrédito da política [3]

O mau funcionamento das instituições democráticas, encarnadas nos poderes executivo, legislativo e judiciário, pode levar a um sentimento de descrédito na política. Nesse caso, ela deixa de ser vista como um caminho viável para solução dos desafios que afetam uma sociedade. Isso se traduz na falta de confiança nas leis e autoridades repressivas; na baixa participação em eleições; em atitudes de desacato aos representantes do Estado (representantes eleitos ou funcionários burocráticos); etc. Ao crescente descrédito da política, corresponde uma crescente desconexão entre sociedade e Estado.

Descrédito da política [4]Esse fenômeno pode ter variadas causas:● Ineficiência do aparato burocrático do Estado;● Ausência de clareza programática por parte das diferentes

forças que atuam na arena política;● Deficiências inerentes ao modelo de representação política

de um país (caso do voto proporcional puro no Brasil);● Escândalos de corrupção que acabam por afetar

representantes políticos de modo geral (não apenas aqueles que, de fato, são autores de práticas reprováveis);

● Baixa formação democrática de uma população e sua recusa em assumir sua responsabilidade política.

4. Futuro da democraciaCaminhamos para um futuro com mais possibilidades de participação democrática ou a tentação das soluções ditatoriais permanece?

Acima, a urna e a via ditatorial - esta representada pelos ex-presidentes militares/ditadores. Desde 1988, o Brasil vive um regime democrático, com a escolha de representantes pelo voto popular. Entre 1964 e 1985, no entanto, o país foi governado por uma ditadura militar. Reprodução para fins educacionais.

Futuro da democracia [1]

Para tratar do futuro da democracia, é necessário retomar os conceitos abordados até aqui. O atual questionamento dos regimes democráticos é um problema globalizado, ancorado no descrédito da política e que pode resultar na busca de soluções extremistas. A democracia representativa tem sido atacada por sua dificuldade em entregar soluções às sociedades que a praticam. Esse fenômeno, no entanto, não é original: o nazismo e o fascismo, bem como a cadeia de eventos que resultou na 2ª Guerra Mundial (1939-1945), têm conexão com a fragilidade dos regimes democráticos e organismos multilaterais resultantes da 1ª Guerra Mundial (1914-1918).

Futuro da democracia [2]

Os regimes democráticos, todavia, podem ser aperfeiçoados:● Os modelos eleitorais e representativos podem ser alterados (voto

proporcional puro; distrital puro; distrital misto; em lista aberta ou fechada; mandatos revogáveis; tempo de mandato; etc);

● Utilização mais frequente de referendos e consultas populares;● A mudança do modelo de governo (presidencialismo,

parlamentarismo; monarquia constitucional; democracia direta; etc);● Aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização do poder

público;● Valorização dos canais de debate democrático entre países - como

a ONU (Organização das Nações Unidas); etc.

Futuro da democracia [3]

Por outro lado, existem as alternativas que se estabelecem fora da democracia representativa - muitas delas de perfil autoritário, ditatorial ou totalitário. Nesses casos, não existe a possibilidade de efetiva fiscalização e controle público. Esse é um ponto que deve ser considerado ao se avaliar o rendimento dos regimes democráticos: a possibilidade de crítica dos mesmos faz parte das liberdades que, de modo geral, têm garantia constitucional. Assim, para que exista democracia, deve haver, antes, liberdade de opinião e manifestação. E essa é uma qualidade fundamental desse regime de governo: o cidadão é livre para o exercício da crítica.

Bibliografia e créditos das imagens

Bibliografia consultadaARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo (SP), Cia das Letras, 2017 [1999].ARBIX, Glauco. O suicidado da globalização. In: Revista Caros Amigos, ano 3, número 34, São Paulo (SP), Editora Caros Amigos, janeiro de 2000.DAHL, Robert K. Poliarquia: Participação e oposição. São Paulo (SP), Edusp, 1997 [1991].GARCIA JR, Renê. Globalização e desigualdade. In: Jornal do Brasil, 20 de março de 2018, edição eletrônica.LALLEMENT, Michel. História das ideias sociológicas: das origens aos contemporâneos. Petrópolis (RJ), Vozes, 2018.Wikipedia, versão inglesa: Aktion T4. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Aktion_T4>. Consultado em 06/04/2020.Wikipedia, versão inglesa: Lynching in the United States. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Lynching_in_the_United_States>. Consultado em 12/04/2019.

Créditos das imagens

[1] Autor desconhecido, maio de 1892, domínio público.[2] Editor responsável pela reprodução da imagem, W.E.B. DuBois, Crisis Magazine, janeiro de 1916 (DuBois era um intelectual afrodescendente estadunidense e militante contra a discriminação e a prática do linchamento - ele não é o autor da foto, apenas o responsável por sua documentação).[3] Foto de domínio público, fotógrafo não identificado.[4] Henry Morgenthau, 1918, domínio público.[5] Nº 5 Army Film & Photographic Unit, Oakes, H (Sgt), 1945, domínio público.[6] Imagem retirada do artigo Nazi concentration camp badge, versão inglesa da Wikipedia, <en.wikipedia.org/wiki/Nazi_concentration_camp_badge>. Acesso em 29/09/2018.[7] Pôster de propaganda do programa nazista de eutanásia, Museu Histórico Alemão, domínio público.

Muito obrigado por sua atenção!

Profº Me Antonio Gracias Vieira Filho

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